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UMA ANÁLISE ICONOGRÁFICA DO MAPA DA AMÉRICA DE 1562, DE DIEGO GUTIÉRREZ Adriano Rodrigues de Oliveira 1 Universidade Estadual Paulista (UNESP) [email protected] Resumo: No presente estudo analisamos o mapa da América impresso em 1562, no qual o continente americano está representado como a Quarta Parte do Mundo. A produção desta carta contou com a colaboração de duas ilustres personagens do contexto cartográfico quinhentista: o cosmógrafo e cartógrafo oficial da Casa da Contratação das Índias, o espanhol Diego de Gutiérrez, que desenhou o mapa, e o pintor e gravador flamengo, Hieronymus Cock, responsável por ilustrá-lo com as diversas gravuras que ornamentam o seu relevo. Partimos da problemática central de que sua vasta riqueza iconográfica, elucida o contexto histórico da segunda metade do século XVI, bem como as disputas territoriais entre as grandes potências coloniais no Novo Mundo. Para a análise do referido mapa, nos orientamos a partir das discussões de Brian Harley (2005), para quem os mapas são a própria representação do mundo real, bem como imagens carregadas de signos, intenções, consequências e valores socioculturais. Assim sendo, sua análise requer que se leve em consideração o contexto do cartógrafo, o contexto de outros mapas e o contexto da sociedade. Palavras-chave: Cartografia; Iconografia; Representação; Imaginário. Introdução O objetivo dessa nossa comunicação é o de analisar a representação iconográfica do mapa da América datado do ano de 1562, intitulado Americae Sive Qvartae Orbis Partis Nova et Exactissima Descriptio (Uma descrição moderna e bastante precisa da América ou a quarta parte do Mundo). Em nosso entendimento, a ausência quase completa de estudos historiográficos em torno desse belo documento, justifica por si mesmo, a necessidade de averiguarmos e debatermos o contexto histórico da sua produção, bem como de sua importância política e econômica na conjuntura colonial da segunda metade do século XVI. 1 Doutorando em História pela UNESP/Assis. O estudo que resultou nessa comunicação originou-se de pesquisas durante o desenvolvimento da tese e contou com o financiamento da CAPES - Código de Financiamento 001.

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UMA ANÁLISE ICONOGRÁFICA DO MAPA DA AMÉRICA DE 1562, DE

DIEGO GUTIÉRREZ

Adriano Rodrigues de Oliveira1

Universidade Estadual Paulista (UNESP)

[email protected]

Resumo: No presente estudo analisamos o mapa da América impresso em 1562, no qual

o continente americano está representado como a Quarta Parte do Mundo. A produção

desta carta contou com a colaboração de duas ilustres personagens do contexto

cartográfico quinhentista: o cosmógrafo e cartógrafo oficial da Casa da Contratação das

Índias, o espanhol Diego de Gutiérrez, que desenhou o mapa, e o pintor e gravador

flamengo, Hieronymus Cock, responsável por ilustrá-lo com as diversas gravuras que

ornamentam o seu relevo. Partimos da problemática central de que sua vasta riqueza

iconográfica, elucida o contexto histórico da segunda metade do século XVI, bem como

as disputas territoriais entre as grandes potências coloniais no Novo Mundo. Para a análise

do referido mapa, nos orientamos a partir das discussões de Brian Harley (2005), para

quem os mapas são a própria representação do mundo real, bem como imagens carregadas

de signos, intenções, consequências e valores socioculturais. Assim sendo, sua análise

requer que se leve em consideração o contexto do cartógrafo, o contexto de outros mapas

e o contexto da sociedade.

Palavras-chave: Cartografia; Iconografia; Representação; Imaginário.

Introdução

O objetivo dessa nossa comunicação é o de analisar a representação iconográfica

do mapa da América datado do ano de 1562, intitulado Americae Sive Qvartae Orbis

Partis Nova et Exactissima Descriptio (Uma descrição moderna e bastante precisa da

América ou a quarta parte do Mundo). Em nosso entendimento, a ausência quase

completa de estudos historiográficos em torno desse belo documento, justifica por si

mesmo, a necessidade de averiguarmos e debatermos o contexto histórico da sua

produção, bem como de sua importância política e econômica na conjuntura colonial da

segunda metade do século XVI.

1 Doutorando em História pela UNESP/Assis. O estudo que resultou nessa comunicação originou-se de

pesquisas durante o desenvolvimento da tese e contou com o financiamento da CAPES - Código de

Financiamento 001.

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De acordo com Gomes (2004), a tendência atual da cartografia enquanto fonte

de pesquisa, aponta para uma abordagem a partir das práticas científicas e culturais. Nesse

sentido, os mapas são concebidos como produtos culturais e elementos da cultura

material, “agora é necessário considerar o desenvolvimento econômico, social e cultural

que permitiu o aparecimento das formas cartográficas” (GOMES, 2004, p. 74).

Protásio Langer (2015), em um artigo em que analisa as representações e

apropriações dos topônimos e etnônimos indígenas em uma carta geográfica do século

XVII, destaca que as fontes cartográficas são, antes de tudo, imagens e, como tais,

merecem uma abordagem teórico-metodológica específica, que deve levar em conta os

seus processos de leitura, criação, interpretação, apropriação e circulação (LANGER,

2015, p. 44). Esse mesmo autor nos lembra ainda o papel da cartografia no contexto

colonial do Novo Mundo, e ressalta: “A partir do alvorecer da era moderna, o mapa,

integrado a um ferramental náutico voltado à conquista de terras e oceanos, alcançou cada

vez mais credibilidade técnica e simbólica” (LANGER, 2015, p. 44).

Brian Harley (2005), um dos principais representantes da denominada nova

História da Cartografia, observa que os mapas são fontes conhecidas dos historiadores,

porém, mal compreendidas: “Los historiadores tienden a relegar los mapas, junto com

cuadros, fotografías y otras fuentes no verbales, a un tipo de evidencia de menor

categoría que la palabra escrita” (HARLEY, 2005, p. 59). Assim sendo, os mapas, em

sua multiplicidade, descrevem o mundo e suas sociabilidades como qualquer outro

documento: “Lo que leemos em um mapa está tan relacionado com un mundo social

invisible y com la ideología como con los fénomenos vistos y medidos en el paisage. Los

mapas siempre muestran más que la suma inalterada de un conjunto de técnicas”

(HARLEY, 2005, p. 61).

Harley propõe três pilares fundamentais para uma análise historiográfica

proveitosa de determinado mapa, o que consideramos para o estudo do documento que é

o objeto central dessa nossa comunicação. Na primeira categoria, tal como propõe Harley,

o contexto do cartógrafo, deve ser levando em consideração a abordagem e investigação

de todos os autores que participaram de sua produção – pintores, gravadores, impressores,

editores, entre outros. De qual escola derivam o cartógrafo e o gravador, por exemplo?

Qual a instituição responsável por direcionar a produção desse artefato? Essas são

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algumas das perguntas que devem ser contempladas pelo historiador da cartografia de

acordo com essa proposta.

Na segunda categoria, ou seja, o contexto de outros mapas, devem ser analisados

os traços, as características, as cores, as formas e os desenhos contemplados em um

determinado gráfico e que são semelhantes em forma e conteúdo a outros produtos de

contextos temporais e espaciais distintos. Conforme tivemos a oportunidade de averiguar

em nossa pesquisa, a semelhança cartográfica entre diversos gráficos nos séculos XVI e

XVII, podia advir de inúmeros fatores, especialmente dos constantes plágios, muito

comuns nesse período, mas também das cartas produzidas na mesma família de

cartógrafos durante gerações. Essa última prática era muito comum na Holanda, onde

diversas gerações de artistas se sucediam na mesma oficina na produção dessas peças.

Por fim, mas não menos importante, o contexto da sociedade, é uma categoria

de análise fundamental para a compreensão do entorno do qual o cartógrafo está inserido

e participa duplamente, como indivíduo e artista. Conforme reforça Harley: “Todos los

mapas están relacionados con el orden social de un periodo y un lugar específicos [...]

no son la sociedad exterior, son parte de ella, son elementos constitutivos dentro del

mundo en general” (HARLEY, 2005, p. 72).

Vale destacar que, durante o século XVI, especialmente no contexto da produção

do “nosso mapa”, foi o momento em que talvez a imaginação mais esteve à serviço da

cartografia. Em linhas gerais, preenchia-se os espaços desconhecidos, sobretudo os

interiores dos continentes, com a inclusão de criaturas monstruosas e lugares fabulosos.

Nesse sentido, conforme observa o historiador Frank Lestringant, em A Oficina do

Cosmógrafo: “A cosmografia não antecipa só a própria teoria, ‘montando’

arbitrariamente os traçados de marcos e cabos numa estrutura vazia; fabrica todas as peças

dos territórios para cobrir as lacunas da esfera ” (LESTRINGANT, 2009, p. 198).

A esse respeito, Dreyer-Eimbcke (1992), em sua obra intitulada O

descobrimento da Terra, enfatiza que:

“[...] coube aos cartógrafos uma parte considerável dos méritos no progressivo

descobrimento do mundo. Foram seus mapas que – mesmo partindo

frequentemente de propósitos errôneos (ou justamente por isso) – criaram as

condições para a descoberta de novos caminhos para novos litorais. Com toda

a razão, o século XVI foi chamado de período impulsor da cartografia [...] “Os

mitos e os enganos refletidos na cartografia despertaram a fantasia e a

curiosidade dos descobridores [...] em muitos casos, o erro se tornou fonte de

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criatividade, partindo dele o impulso inicial que levaria a descobrimentos e

explorações” (DREYER-EIMBCKE, 1992, p. 12).

O mapa da América de 1562

O mapa da América, impresso no ano de 1562, intitulado Americae Sive Qvartae

Orbis Partis Nova et Exactissima Descriptio, é sem dúvidas uma das mais belas e

emblemáticas representações do Novo Mundo na denominada Era Moderna da

cartografia europeia. Foi produzido pelo espanhol Diego de Gutiérrez, cartógrafo e

cosmógrafo oficial da Casa da Contratação das Índias, uma organização localizada em

Sevilha. Ao encomendar o mapa, essa instituição real, pretendia não apenas confirmar a

posse e o domínio espanhol sobre os novos territórios, com também arrefecer as ambições

francesas e portuguesas na América (Ver o mapa na fig. 1).

Diego de Gutiérrez, o autor da carta, era filho de um respeitável cartógrafo de

mesmo nome, Diego de Gutiérrez, um produtor de mapas e instrumentos cartográficos

que se estabeleceu em Sevilha e prestou serviços à já mencionada Casa de Contratação.

Sobre Gutiérrez filho, o artífice principal do nosso mapa, são escassas as informações

sobre a data e local de seu nascimento. Sabe-se, contudo, que no ano de 1554 ele fora

nomeado cosmógrafo oficial da Casa de Contratação, exercendo tal cargo até o ano de

1569. Fabricava instrumentos náuticos e cartas de marear, recebendo por esse trabalho

um salário de cerca de 6.000 maravedis (HÉBERT, 2020).2

O gráfico contou ainda com os trabalhos do famoso gravador flamengo

Hieronymus Cock (1510-1570), que estampou seu relevo inserindo diversas gravuras e

alegorias de embarcações, deuses e monstros. Cock, nascido em Antuérpia, era filho de

uma tradicional família de pintores. Entre 1546 e 1548, após ter atuado como pintor e

mestre, foi estudar na cidade de Roma, onde acabou por ser influenciado por renomados

artistas e gravadores renascentistas, entre os quais, Antonio Salamanca e Antonio Lafrery.

De volta ao seu local de origem, fundou uma das principais editoras europeias do período,

a Aux quatre vents (Casa dos Quatro Ventos) (HÉBERT, 2020).

2 HÉBERT, J. The 1562 Map of America. 2020. Online: https://www.replicaprints.com/single-

post/2020/02/27/The-Americas-Map-of-1562. Acesso em: 29 de setembro de 2020.

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É oportuno destacar a relevância da cidade de Antuérpia no contexto em que

Cock exercia sua atividade de gravador e editor. De acordo com Jaime Cortesão (1965),

essa cidade era o principal entreposto comercial da Europa, bem como um dos principais

centros culturais desse continente. Consequentemente, tornou-se um grande polo de

produção de mapas, cuja característica principal estava na inclusão de várias alegorias e

cartas decorativas (CORTESÃO, 1965, p. 96). Ainda segundo Cortesão:

[...] na cartografia holandesa a decoração tomou a parte primacial em prejuízo

da objetividade e renovação científica. A evolução deu-se, principalmente, sob

o ponto de vista do efeito artístico e em detrimento da criação de novos tipos

cartográficos ou do seu aperfeiçoamento. Multiplicaram-se as alegorias e as

cartelas decorativas. E com o objetivo mercantil de fazer dos atlas obras de

arte, aplicou-se o estilo de vida flamengo, principalmente pelo que respeita ao

tipo de vivenda, à representação dos mais variados povos em todo o mundo

(CORTESÃO, 1965, p. 100-101).

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Figura 1. Esse mapa da América, intitulado Americae Sive Qvartae Orbis Partis Nova et Exactissima

Descriptio, foi resultado da parceria entre o espanhol Diego Gutiérrez e o holandês Hieronymus Cock.

Impresso em Antuérpia no ano de 1562. Fonte: Divisão de Geografia e Mapa da Biblioteca do Congresso

Washington, DC. Disponível em: http://hdl.loc.gov/loc.gmd/g3290.ct000342. Acesso em: 05 de outubro

de 2020.

O mapa de 1562, conforme já foi parcialmente dito, fora produzido em um

contexto de acirradas disputas territoriais entre as principais potências coloniais da

Europa, especialmente Espanha, França e Portugal, que pleiteavam palmo a palmo a posse

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das terras “recém-descobertas” do Novo Mundo. O historiador estadunidense John R.

Hébert, um dos principais estudiosos desse documento, destaca que este fora lançado para

o governo espanhol a pedido do então ministro francês Antoine Perrenot de Granvelle,

negociador do Tratado de Cateau Cambrésis, firmado em 1559. Tal acordo, encerrava

quase trinta anos de conflitos na Europa Ocidental, e selava as pazes entre Espanha e

França através do casamento entre Isabel de Valois, filha de Henrique II, rei da França,

com Filipe II da Espanha, nesse mesmo ano (HÉBERT, 2020).

As provas do pacto de 1559, influenciaram, com efeito, diretamente na produção

desse mapa, conforme podemos ver na união dos brasões de França e Espanha, carregados

por um anjo e posicionados no território da “América do Norte” (fig. 2).

Figura 2. No topo da imagem vemos os brasões de Espanha e França simbolizando o Tratado de Cateau

Cambrésis firmado em 1559. Fragmento retirado do mapa de Diego Gutiérrez e Hieronymus Cock.

Antuérpia, ano de 1562. Fonte: Divisão de Geografia e Mapa da Biblioteca do Congresso Washington, DC.

Disponível em: http://hdl.loc.gov/loc.gmd/g3290.ct000342. Acesso em: 05 de outubro de 2020.

É importante comentar brevemente sobre a instituição ligada diretamente à

produção desse artefato: a Casa da Contratação das Índias, fundada em 1503 pelos Reis

Católicos, a então Rainha Dona Isabel de Castela e o Rei Dom Fernando II de Aragão,

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constituía-se de uma unidade oficial burocratizada, incumbida da administração da

empresa colonial no Novo Mundo. Era ainda um grande centro de ciência náutica,

cartográfica e cosmográfica, definidora do denominado “Padrão Real”, e lugar em que

grandes cartógrafos europeus haviam produzido diversos mapas e cartas náuticas

(MARTÍNEZ, 2010, p. 721).

Ao estudar as ações dessa organização e seu papel na confecção desses itens

cartográficos, Martínez (2010) faz as seguintes observações:

A partir de 1508, com a criação do cargo de Piloto-Chefe, e a produção de um

mapa modelo chamado Padrão Real, a Casa converteu-se em uma dependência

administrativa da monarquia, habilitada a produzir representações

demográficas dos descobrimentos espanhóis, em um lugar reprodutor de

imagens, de modelos visuais que mostravam como era o mundo visto da

Península Ibérica, definitivamente, a imagem oficial do mundo...

(MARTÍNEZ, 2010, p. 724).3

Como podemos perceber, a Casa da Contratação das Índias, acabava por instituir

os diferentes modelos de representações cartográficas que deveriam ser utilizados pelos

cartógrafos europeus e, obviamente, enquanto instituição da Coroa, estabelecia os limites

territoriais e as posses imperiais na América. Nesse sentido, pode-se dizer, que a “imagem

oficial do mundo”, de acordo com Martínez, era uma construção ideologizada, que

enquadrava o denominado Novo Mundo nos padrões definidos pela Metrópole.

John R. Hébert vai além, ao ressaltar o aspecto político e imperial da carta de

1562 e seus propósitos:

O magnífico mapa da América de 1562, de Gutiérrez, não pretendia ser um

documento científico ou de navegação, embora fosse de grande escala e

permanecesse como o maior mapa da América por um século. Era, antes, um

mapa cerimonial, um mapa diplomático, identificado pelos brasões que

proclamavam posse. Através do mapa, a Espanha proclamou para as nações da

Europa Ocidental seu território americano, delineando claramente sua esfera

de controle, não em graus, mas com o surgimento de uma linha muito ampla

para o Trópico de Câncer claramente desenhada no mapa (HÉBERT, 2020).4

3 Tradução nossa. Em espanhol: “A partir de 1508, con la creación del puesto de Piloto Mayor y la

confección de un mapa modelo llamado Padrón Real, la Casa se convirtió en la dependencia administrativa

de la Monarquía facultada para producir representaciones cartográficas de los descubrimientos

españoles, en un lugar reproductor de imágenes, de modelos visuales que mostraban cómo era el mundo

visto desde la Península Ibérica, en definitiva, la imagen oficial del mundo...” (MARTÍNEZ, 2010, p. 724). 4 Tradução nossa. Em inglês: “Gutiérrez 's magnificent 1562 map of America was not intended to be a

scientifically or navigationally exacting document, although it was of large scale and remained the largest

map of America for a century. It was, rather, a ceremonial map, a diplomatic map, as identified by the

coats of arms proclaiming possession. Through the map, Spain proclaimed to the nations of Western

Europe its American territory, clearly outlining its sphere of control, not by degrees, but with the

appearance of a very broad line for the Tropic of Cancer clearly drawn on the map” (HÉBERT, 2020).

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Duas alegorias inseridas nesse mapa pelo gravurista flamengo Hieronymus

Cock, ajudam a elucidar o contexto de sua produção. Na primeira imagem, localizada no

Atlântico Norte, vemos a figura do deus netuno empunhando o tridente enquanto é levado

por uma carruagem puxada por quatro hipocampos. No entanto, a gravura que mais chama

a atenção do observador, é a do rei espanhol Felipe II: ele está localizado logo atrás do

“deus dos mares”, e é levado por uma segunda carruagem enquanto segura o cetro em sua

mão direita. Emblematicamente, acima do dito rei, nota-se a figura de um anjo

cristianizado, que protege sua majestade, o “senhor dos oceanos e mares” (fig. 3).

Uma segunda ilustração, inserida sobre o extremo Atlântico Sul, “ao lado” da

região do Prata, representa o oposto do desenho anterior, e estabelece um antagonismo

marcante entre Espanha e Portugal, ou seja, revela as disputas entre as principais

potências europeias pelas terras da América. Na alegoria, vemos um indivíduo com

aparência gigantesca carregando o brasão português enquanto está sentado sobre um

grande monstro dos oceanos (fig. 4).

Conforme analisamos em nossa tese de doutorado, a noção de gigantismo em

voga no século XVI, denota uma série de conotações negativas: selvageria, brutalidade,

crueldade, soberba e voracidade. Assim, na visão de mundo construída a partir das

pretensões espanholas no além-mar, a imagem de um Felipe II soberano protegendo seus

domínios, contracena com a de um voraz império português, que ambicionava ampliar

suas posses territoriais no Novo Mundo.

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Figura 3. O rei Felipe II da Espanha está representado nessa alegoria como o “senhor e mestre dos oceanos

e mares”. Fragmento retirado do mapa de Diego Gutiérrez e Hieronymus Cock. Publicado em Antuérpia,

no ano de 1562. Fonte: Divisão de Geografia e Mapa da Biblioteca do Congresso Washington, DC.

Disponível em: http://hdl.loc.gov/loc.gmd/g3290.ct000342. Acesso em: 05 de outubro de 2020.

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Figura 4. Nesta alegoria Portugal é um voraz gigante dos mares. Fragmento retirado do mapa de Diego

Gutiérrez e Hieronymus Cock. Publicado em Antuérpia, em 1562. Fonte: Divisão de Geografia e Mapa da

Biblioteca do Congresso Washington, DC. Disponível em: http://hdl.loc.gov/loc.gmd/g3290.ct000342.

Acesso em: 05 de outubro de 2020.

Conclusão

O objetivo de analisar o mapa Americae Sive Qvartae Orbis Partis Nova et

Exactissima Descriptio na presente comunicação, bem como o seu contexto de produção

e circulação, foi alcançado. Conforme averiguamos, o referido artefato cartográfico foi

produzido em uma conjuntura de acirradas disputas pela posse das terras da América.

Assim, as gravuras inseridas no relevo da carta pelo gravurista flamengo Hieronymus

Cock, não são de modo algum desprovidas de significado. Através dessas alegorias, dos

traçados e das linhas, a Espanha reivindicava, ainda que por antecipação, a soberania

sobre as terras do Novo Mundo. Dito isso, fale reforçar finalmente, a importância dos

mapas, cartas náuticas e afins, enquanto fontes e documentos históricos indispensáveis,

permeados de signos, imaginários e representações, quer sejam sobre povos ou lugares, e

dispersos tanto no tempo, quanto no espaço.

Referências/Fontes

CORTESÃO, Jaime. História do Brasil nos velhos mapas. Rio de Janeiro: Ministério

das Relações Exteriores, Instituto Rio Branco, 1965.

DREYER-EIMBCKE, Oswald. O descobrimento da Terra: história e histórias da

aventura cartográfica. São Paulo: Melhoramentos, 1992.

GOMES, Maria do Carmo Andrade. Velhos mapas, novas leituras: revisitando a história

da cartografia. Geousp, São Paulo, v. 16, p. 67-79, 2004. Disponível em:

http://www.repositorio.fjp.mg. gov.br/ handle/123456789/196. Acesso em: 28 de

setembro de 2020.

GUTIÉRREZ, Diego; COCK, Hieronymus. Americae sive qvartae orbis partis nova et

exactissima descriptio. Antuérpia: 1562. Divisão de Geografia e Mapa da Biblioteca do

Congresso Washington, DC. Disponível em: http://hdl.loc.gov/loc.gmd/g3290.ct000342.

Acesso em: 05 de outubro de 2020.

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HARLEY, B. La Nueva Naturaleza de los mapas: ensayos sobre la historia de la

cartografía. México: Fondo de Cultura Económica, 2005.

HÉBERT, J. The 1562 Map of America. 2020. Online. Disponível em:

https://www.replicaprints.com/single-post/2020/02/27/The-Americas-Map-of-1562.

Acesso em: 29 de setembro de 2020.

LANGER, Protasio Paulo. Representações e apropriações dos topônimos/etnônimos

indígenas numa carta geográfica do século XVII. História Unisinos, v. 19, n. 1, p. 43-

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LESTRINGANT, Frank. A oficina do cosmógrafo ou a imagem do mundo no

Renascimento. Tradução de Edmir Missio. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2009.

MARTÍNEZ, Antonio Sánchez. La institucionalización de la cosmografía americana: la

Casa de la Contratación de Sevilla, el Real y Supremo Consejo de Indias y la Academia

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Disponível em: http://revistadeindias.revistas.csic.es/. Acesso em: 05 de outubro de 2020.