Uma Aproximação Entre o Realismo Baziniano e a Estética Do Dogma 95 Em Os Idiotas, De Lars Von...

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    UMA APROXIMAO ENTRE O REALISMO BAZINIANO E A ESTTICA DO DOGMA 95 EM

    OS IDIOTAS, DE LARS VON TRIER

    Mariana Costa

    Introduo

    Diferentemente dos tericos vinculados escola formativa, Andre Bazin, um dos formuladores

    de uma teoria realista do cinema juntamente com Siegfried Kracauer, defendia que a forma

    ideal de expressar a realidade no cinema era o uso da imagem sem enfeites, limpa. Para o

    autor, a linguagem cinematogrfica ia alm de uma lista de efeitos tcnicos associados a

    determinados significados prvios e atravs do cinema o homem poderia perceber e conhecer

    coisas sobre a realidade de outra forma, anteriormente impossveis de acessar.

    Bazin defendia os desenvolvimentos tcnicos do cinema que aproximavam a percepo que

    temos do filme da nossa percepo natural. Som, cor, tela panormica, realizavam esta

    aproximao, por exemplo. Para o terico, a superposio, assim como outras formas de

    estilizao, no deveria ser utilizada no cinema porque as convenes so a essncia do

    teatro. Entretanto, no mbito da construo realista da imagem, o autor v espao para o uso

    simblico no cinema desde que as associaes nasam da prpria realidade, como o caso

    das produes neo-realistas italianas.

    O autor afirmava que a tela do cinema como uma mscara que revela apenas uma parte da

    realidade. Todavia o que no mostrado continua existindo como realidade no mostrada.

    Destaca-se que a concluso central da teoria de Bazin a ideia de que a viso de um artista

    deve ser determinada pela seleo que ele faz da realidade, no por sua transformao dessa

    realidade.

    Para Bazin, a mais perfeita expresso de sua viso realista do cinema estava presente nosfilmes de Jean Renoir. O uso da profundidade de campo, a intensa explorao das entradas e

    sadas das personagens do campo e a recusa do uso da retroprojeo geravam um mundo

    verdadeiro no qual os personagens falavam da mesma maneira que somos atingidos em nossa

    percepo cotidiana. No estilo neutro, denominao atribuida devido ausncia de

    intervenes formativas na imagem, a abordagem exigia da platia, segundo Bazin, no a

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    compreenso do significado daquilo que o cineasta est criando, mas o reconhecimento dos

    nveis de significado na prpria natureza. O autor afirmava que, em um sentido psicolgico, o

    realismo tem a ver, no com a acuidade de reproduo, mas com a crena do espectador na

    origem da reproduo.

    Tendo em vista os principais conceitos bazinianos, este artigo pretende realizar uma

    aproximao entre a teoria realista de Andre Bazin e a esttica promovida pelas produes

    com selo dogma 95, em especial com filme Os Idiotas (Idioterne, 1998), de Lars Von Trier, que

    ser objeto de anlise durante o desenvolvimento desse trabalho.

    A esttica do real em Os idiotas

    Em 1995, por ocasio das comemoraes do centenrio do cinema na capital francesa,

    Thomas Vinterberg e Lars von Trier elaboraram o Manifesto Dogma 95, um documento que

    tecia uma nova frmula que proporcionaria ao cinema um retorno verdade e ao real. O

    manifesto foi escrito visando a criao de um cinema mais realista e menos comercial e

    apresentava uma srie de restries quanto ao uso de tcnicas e tecnologias nos filmes.

    Nascia, portanto, um novo movimento que defendia o uso da imagem cinematogrfica sem

    artifcios.Abaixo encontra-se uma traduo das regras do Dogma 95.

    Voto de Castidade

    Eu juro me submeter ao seguinte conjunto de regras criado e confirmado pelo Dogma 95:

    1. As filmagens devem ser feitas em locais externos. No podem ser usados acessrios ou

    cenografia (se a trama requer um acessrio particular, deve-se escolher um ambiente externo

    onde ele se encontre).2. O som no deve jamais ser produzido separadamente da imagem ou vice-versa. (A msica

    no poder, portanto, ser utilizada, a menos que no ressoe no local onde se filma a cena)

    3. A cmera deve ser usada na mo. So consentidos todos os movimentos - ou a imobilidade

    - devidos aos movimentos do corpo. (O filme deve ser feito onde a cmera est colocada so

    as tomadas que devem desenvolver-se onde o filme tem lugar).

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    4. O filme deve ser em cores. No se aceita nenhuma iluminao especial. (Se h luz demais,

    a cena deve ser cortada, ou ento, pode-se colocar uma nica lmpada sobre a cmera).

    5. So proibidos os truques fotogrficos e filtros.

    6. O filme no deve conter nenhuma ao superficial. (Em nenhum caso homicdios, uso de

    armas ou outros).

    7. So vetados os deslocamentos temporais ou geogrficos. (Isto significa que o filme se

    desenvolve em tempo real).

    8. So inaceitveis os filmes de gnero.

    9. O filme deve ser em 35mm, standard.

    10. O nome do diretor no deve figurar nos crditos.

    Alm disso, juro como diretor, renunciar a meu gosto pessoal. No sou mais um artista. Eu juro

    renunciar criao de uma obra, j que considero o instante mais importante que o todo. Meu

    objetivo supremo arrancar a verdade de meus personagens cenrios. Prometo faz-lo por

    todos os meios minha disposio e ao custo de qualquer bom gosto e consideraes

    estticas. Portanto, fao aqui meu voto de castidade.

    Copenhage, 13 de maro de 1995

    Lars von Trier, Thomas Vinterberg

    O Dogma 95 tenta recriar a verdade dentro do cinema e arrancando-a dos personagens e da

    histria narrada sem precisar recorrer aos efeitos especiais adotados com exausto pela

    indstria norte-americana. curioso notar que o autores do manifesto se opem tambm a

    Nouvelle Vague, um movimento cujo corpo doutrinrio crtico fora constitudo por jovens

    inspirados pela revista Cahiers du cinmacriada por Andr Bazin e que propiciou um novo

    modelo de produo independente, porm que, segundo Trier e Vinterberg, baseava-se em

    teorias de uma concepo burguesa de arte.

    Ressalta-se que todos movimentos cinematogrficos de vanguarda do sculo XX que

    debateram sobre a linguagem cinematogrfica e ofereceram crticas ao modo hegemnico dos

    filmes hollywoodianose tambm estabeleceram novas formas de utilizao dessa linguagem.

    Obviamente aconteceu o mesmo com o Dogma 95. Festa de Famlia (Festen, Thomas

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    Vinterberg) e Os Idiotas (Idioterne, Lars von Trier), as primeiras obras produzidas, atenderam

    com rigor as propostas expressas no manifesto.

    Em Os Idiotas contada a histria de um grupo de pessoas que fingem ter problemas mentais

    para conseguir regalias, se divertir e incomodar as pessoas, usando como argumento que

    preciso deixar aflorar o lado idiota que existe em cada um e expr a hipocrisia burguesa. Por

    acaso, Karen conhece o grupo, porm gosta da idia de no precisar ser normal, de no

    seguir convenes e expectativas, e assim passa a acompanha-los em suas atividades.

    Trata-se de um filme repleto de smbolos e sentidos inacabados deixando em aberto diversas

    compreenses. Pretende-se neste trabalho realizar uma anlise dessa produo

    cinematogrfica voltada mais para os efeitos estticos proporcionados do que para as questes

    da narrativa.

    O filme atende ao conjunto de regras puristas do dogma 95, tais como: cmera na mo, a

    ausncia de iluminao artificial, a ausncia de adio de trilha sonora s cenas das produes

    e ausncia de quaisquer efeitos especiais computadorizados. Trata-se de uma produo com

    uma esttica de filme caseiro, quase documental, com cmeras tremidas e microfones

    aparecendo a toda hora, alm de sombras dos produtores muito presentes.

    A trilha sonora propositadamente eliminada nos filmes do Dogma. S ouvimos o que

    efetivamente se passa na cena. Logo no primeiro plano essa caracteristica j pode ser notada,

    pois no caminho de Karen ao restaurante possivel ouvir o som de um violino que

    reproduzido diretamente de sua charete. Tal trama inicia-se no restaurante em que Karen

    (Bodil Jrgensen) tem dificuldades para pedir uma refeio por no ter uma quantidade

    razovel de dinheiro. J nesse momento apresentado ao espectador a esttica crua do longa

    metragem, que ao invs de afasta-lo aproxima-o da situao, fazendo com que tudo se torne

    verossmil e cause uma perturbao que se d graas aos pontos de encontro com situaes

    da vida real.

    Embora no exista nenhum tpico no manifesto que cite a montagem, as diversas regras

    influenciam diretamente no modo de organizar e compor sentido obra, uma vez que a

    montagem tem como matria-prima os planos - um conjunto de unidades de ao descontnuas

    j dotadas de sentido. Nota-se em Os idiotasuma conjuntura imagem-montagem dialogando e

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    servindo a uma mesma esttica, a um mesmo clima narrativo e dramatrgico, onde a

    ordenao visual no meramente escolha, e sim comunhes de significados e composies

    singulares.

    A granulao, a luz precria e as ranhuras na imagem so caractersticas percebidas com

    facilidades. O tempo todo, a imagem foge clareza e ao convencional. Relacionando a

    fotografia montagem, ora h a ligao entre planos de mesma natureza fotogrfica, planos

    com luzes semelhantes ora, planos de luzes opostas (claro-escuro). Os enquadramentos

    tambm esto relacionados com a ordenao de planos, v-se a presena majoritria de

    alternncia close-close, ou, primeiro-plano-primeiro-plano, pode-se dizer de uma alternncia

    por semelhana. Isso ocorre quanto ao movimento da cena, dos atores, da ao, instaurando

    uma relao rtmica entre planos. Nesse sentido, a alternncia de planos semelhantes constri

    um clima catico ao filme, conveniente situao dos personagens, assim, a montagem mais

    um fator de significao que simples ordenao. Tal montagem pode ser notada na cena em

    que Stoffer (Jens Albinus) engana um morador de um bairro rico convencendo-o de que o

    desnivelamento (inexistente) de sua calada foi a causa de um acidente (igualmente

    inexistente) com o grupo de idiotas. O mesmo pode-se afirmar sobre a cena em que a

    personagem Katrine (Anne-Grethe Bjarup Riis) discute o relacionamento com seu namorado.

    Para tentar estabelecer uma analise comparativa com os priincpios defendidos por Bazin

    preciso destacar as observaes do autor sobre montagem. Bazin concebe dois tipos

    diferentes de montagem. A primeira, associada ao cinema mudo, a que as imagens seriam

    agrupadas de acordo com algum princpio abstrato de argumento drama ou forma. Na segundo

    tipo, a montagem psicolgica, o evento dividido em partes que duplicam as mudanas de

    ateno que naturalmente experimentaramos se estivssemos fisicamente presentes ao

    evento. Em oposio a esse tipos de montagem, Bazin props a utilizao da profundidade de

    campo, que permite o desenvolvimento de uma ao em vrios planos espaciais. De acordo

    com ANDREW(2002), como o foco permanece ntido desde as lentes da cmara at o infinito,o diretor tem a opa de construir inter-relaes dramticas dentro do enquadramento (isso

    chamado de mise eb scne), em vez de entre os enquadramentos.

    Andre Bazin defende a utilizao da profundidade de campo ao invs das construes de

    montagem por trs razes: inerentemente mais realista alguns eventos demandam esse

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    tratamento mais realista e confronta nosso modo psicolgico normal de processar eventos,

    chocando-nos dessa forma como uma realidade que frequentemente no conseguimos

    reconhecer.

    Em busca de um novo cinema realista, Lars Von Trier no levou em as ideias de Bazin no

    utilizando o recurso da profundidade de campo em Os Idiotas. Todavia, com uso de uma

    imagem crua Lars von Trier estabelece um novo conceito de imagem cinematogrfica.

    importante observar que essa nova esttica no atende a crtica que sempre espera a

    espetcularizao das narrativas. Em A Sociedade do Espetculo, Guy Debord afirma que

    toda a vida das sociedades nas quais reinam as condies modernas de produo se anuncia

    como uma imensa acumulao de espetculos. O espetculo ao mesmo tempo parte da

    sociedade, a prpria sociedade e seu instrumento de unificao. Debord ainda afirma que o

    espetculo no um conjunto de imagens, mas uma relao social entre pessoas, mediatizada

    por imagens. Os idiotas uma obra de repdio sociedade do espetculo j que se recusa a

    alimenta-la estticamente e narrativamente. Contudo, considerando a ausncia de

    transformaes no cenrio cinematogrfico mundial atrves do dogma 95, possvel afirmar

    que o manifesto passou longe de ser uma revoluo no modo de se fazer o cinema das

    grandes massas, ainda que no seja imprudente dizer que suas proposies estticas

    ressonaram por diversas produes independentes em todo mundo.

    Consideraes finais

    O Dogma 95 tem seu prprio manifesto, a sua prpria agenda e tambm tem sua pretenso de

    realismo, estabelecida atravs de uma srie de regras sobre histria e tcnica. Em Os Idiotas,

    Lars von Trier no faz uso da profundidade de campo, fato que tambm se d pelas limitaes

    tcnicas estipuladas pelo Dogma 95, como a ausncia de luz artificial. Entretanto, nos cabepensar se as escolhas estticas no se mais aproximam ou no da forma como percebemos o

    mundo.

    Destaca-se que as regras desse manifesto so capazes de emprestar ao filme ficcional um

    carter documental. Nessa produo fica evidente a noo de que os meios cinematogrficos

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    basicamente primitivos so, em si mesmos, o melhor mtodo para capturar e transpor a

    realidade sobre a tela.

    Pode-se dizer que em todo o decorrer do filme a montagem privilegia a composio da

    imagem, texturas, luz, movimento e enquadramentos inusitados. Os idiotasse organiza em

    meio necessidade de um cinema contemporneo mais gil, orgnico, intuitivo, de baixo

    oramento e pautado na dramaticidade que a ausncia de rigor tcnico intensifica.

    Referncias bibliogrficas

    ANDREW, J. D. As principais teorias do cinema: uma introduo. J. Dudley Andrew, traduo

    Teresa Ottoni. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002.

    DEBORD, Guy. A Sociedade do Espetculo. E-book digitalizado por Coletivo Periferia eeBooks Brasil, 2003.

    IMDB. The Idiots. IMDB. Disponvel em: . Acesso em: 15 jul. 2014

    NERES, Otvio Herique Cordeiro.Anlise de Os Idiotas: uma crtica s convenes sociais.Trabalho de graduao. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, Minas Gerais,

    2013.

    RODRIGUES, Leandro. Dogma 95: uma subverso normativa. Trabalho de graduao.Universidade Federal do Recncavo da Bahia, Cruz das Almas, Bahia, 2012.

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