Uma Breve História Da Linguagem - Steven Roger Fischer

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A linguagem surgiu nos primórdios de nossa existência, e está totalmente relacionada à evolução de todas as criaturas tanto quanto o seu modo de se relacionar. Ela é uma das mais importantes ferramentas que o ser humano conquistou ao longo dos tempos, a qual o possibilita se desenvolver e aprender sobre si próprio e o mundo que o cerca.O autor Steve Roger nos conduz a uma fascinante viagem ao mundo pré-histórico, remontando os passos do surgimento de uma das mais importantes conquistas do ser humano: a linguagem. Com ela, nossos ancestrais foram capazes de transmitir seus conhecimentos às gerações futuras, e hoje, conhecemos diversos modos de linguagem, seja ela verbal ou não verbal, por meio de sinais, gestos, códigos, imagens, etc.Estudos recentes têm comprovado que qualquer ser vivo, em qualquer época, sempre foi capaz de se comunicar com outro animal, por mais limitado que fosse esta comunicação, e deste modo, podemos afirmar que a linguagem não é um privilégio somente do Homem, mas uma faculdade inerente a todos os seres.Veremos como a linguagem humana evoluiu e as modificações nela ocorridas ao longo da história, até chegarmos ao seu estágio atual, e termos uma prévia de como será no futuro, com o avanço da tecnologia.

Transcript of Uma Breve História Da Linguagem - Steven Roger Fischer

  • LucioSello

  • UMA BREVE HISTRIA DA LINGUAGEM Introduo origem das lnguas

  • Steven Roger Fischer

    UMA BREVE HISTRIA DA LINGUAGEM Introduo origem das lnguas

    Traduo Flvia Coimbra

  • A History of Language by Steven Roger Fischer

    was first published by Reaktion Books, London, UK, 1999 Copyright Steven Roger Fischer, 1999

    Copyright 2009 by Novo Sculo Editora

    PRODUO EDITORIAL Equipe Novo Sculo PROJETO GRFICO E COMPOSIO Claudio Braghini Jr. CAPA Genildo Santana PREPARAO DE TEXTO Josias Aparecido de Andrade REVISO Salete Brentan Patrcia Murari

    Dados Internacionais de Catalogao na Publicao (CIP) (Cmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

    Fischer, Steven Roger Uma breve histria da linguagem / Steven Roger Fischer, traduo Flvia Coimbra. Osasco, SP: Novo Sculo Editora, 2009.

    Ttulo original: A history of language 1. Linguagem e lngua 2. Lingustica histrica 3. Mudanas

    lingusticas Aspectos sociais 4. Sociolingustica.

    09-01046 CDD-417.7

    ndices para catlogo sistemtico:

    1. Histria da linguagem 417.7 2. Linguagem: Histria 417.7

    2009 IMPRESSO NO BRASIL

    PRINTED IN BRAZIL DIREITOS CEDIDOS PARA ESTA EDIO

    NOVO SCULO EDITORA Rua Aurora Soares Barbosa, 405 2o andar

    CEP 06023-010 Osasco SP Tel. (11) 3699-7107 Fax (11) 3699-7323

    www.novoseculo.com.br [email protected]

  • Sumrio

    Capa Orelha Contracapa Prefcio ............................................................................................................. 7 1 Comunicao animal e 'linguagem' ........................................................ 11 2 Primatas falantes ..................................................................................... 43 3 Primeiras famlias ................................................................................... 75 4 Linguagem escrita ................................................................................ 107 5 Linhagens ............................................................................................. 141 6 Em direo a uma cincia da linguagem ............................................. 175 7 Sociedade e linguagem ........................................................................ 219 8 Indicativo futuro .................................................................................. 261 Notas ............................................................................................................ 285

  • Prefcio

    Este livro uma introduo histria da linguagem. Ao tratar o tema em seu sentido mais amplo, sua inteno preparar o leitor, que talvez esteja familiarizado apenas de modo geral com lnguas estrangeiras e o estudo da linguagem, para o aprendizado profissional da lingustica. Nesse sentido, o presente volume uma leitura preliminar til antes do incio de um curso introdutrio de lingustica numa universidade. No necessria nenhuma experincia anterior em lingustica para sua leitura. Ele no exige conhecimento prvio de uma terminologia lingustica especial nem de mtodos lingusticos particulares.

    Como uma histria da linguagem em geral, esta viso difere em muito das histrias tradicionais da lingustica que consistem em descries formais da mudana lingustica em lnguas humanas conhecidas ou reconstitudas. Ela vai alm das restries humanas, para

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  • incluir a linguagem dos animais. uma exposio curta e concisa do significado histrico da 'linguagem' em termos globais.

    O primeiro captulo comea com a Natureza e o passado; o ltimo termina com a Tecnologia e o futuro. Esta histria introdutria tambm se inicia com macroquestes para chegar at as microquestes: das linguagens de todos os animais at aquelas especficas aos primatas; das linguagens do Homo sapiens em geral s macrofamlias das lnguas humanas; e de famlias de lnguas especficas ao uso da lngua na nossa nova sociedade global e o futuro possvel do ingls, no momento em que a espcie humana comea a colonizar o Sistema Solar. uma histria do nico e do lugar-comum, apresentando a capacidade mais fascinante do mundo natural: a linguagem.

    As muitas facetas do que o ser humano quer dizer com essa palavra amorfa que a 'linguagem', com suas vinte e quatro diferentes definies, alm de vrias outras conotaes em contextos especficos, se tornaro evidentes no decorrer desta introduo histria da linguagem. A atual definio formal de 'linguagem' tambm est passando por mudanas semnticas, em que a 'linguagem' no mais privilgio exclusivo do Homo sapiens. Hoje, acredita-se que qualquer ser vivo, em qualquer poca, que tenha usado algum meio para transmitir informao a outros animais, usou algum tipo de 'linguagem'. Ela , obviamente, uma faculdade universal.

    Seria absurdo declarar que 'algum, em algum lugar, emitiu a primeira palavra. E outro algum a entendeu . No presente, tal discurso pode ser especialmente sedutor. Mas seu contedo historicamente invlido, como sabemos hoje. A linguagem no 'comeou'. A linguagem, em toda a sua mirade de formas, evoluiu durante centenas de milhes de anos. Apenas no final dessa lenta evoluo a 'linguaguem', um conceito essencialmente antropomrfico, aparece numa forma em

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  • que seres humanos modernos conseguem identific-la como tal e entend-la melhor.

    Uma histria da linguagem precisa incluir a linguagem no-humana, como foi revelado particularmente em experimentos inovadores feitos com aves, cetceos e primatas, conduzidos desde a dcada de 1960. Ainda existem formas primevas de linguagem em todo o mundo e que apenas agora esto sendo reconhecidas, principalmente como resultado da tecnologia moderna, que usa equipamentos de monitorao sensveis para registrar a comunicao do mundo natural que havia passado despercebida at ento.

    Tempos atrs, os homindeos se tornaram seres falantes. O tema principal deste livro consiste na histria do surgimento da linguagem humana e sua subsequente evoluo. No h respostas definitivas para as principais questes relativas linguagem humana: o que a 'linguagem'? Como a 'linguagem' se relaciona a outras habilidades intelectuais? De que modo a linguagem humana se diferencia da comunicao entre no homindeos? Um dos objetivos de uma histria da linguagem descobrir maneiras de responder essas e outras perguntas semelhantes.

    Este livro no aborda aspectos tericos especficos da evoluo lingustica. O tema mencionado, mas apenas como parte de uma histria da linguagem em geral, dentro de uma viso global. Para o aprofundamento de controvrsias tericas especficas a origem das 'palavras', o surgimento da sintaxe e assim por diante h textos relevantes citados nas Referncias e na Bibliografia. A evoluo da capacidade do crebro em processar referncias vocais especficas um campo igualmente fascinante que, infelizmente, est alm da esfera de ao dessa introduo a uma histria da linguagem.

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  • Jeremy Black sugeriu que eu escrevesse este livro, e sou extremamente grato a ele pela ideia e por seu inigualvel apoio. Tambm agradeo Michael Leaman da Reaktion Books, que gentilmente discutiu comigo as especificidades do projeto e forneceu vrios comentrios e sugestes construtivas.

    Tambm devo agradecimentos especiais a muitas pessoas especiais, que desempenharam papis importantes, cada uma de sua prpria maneira, na minha carreira lingustica e filolgica. Seu profundo conhecimento sobre lnguas, cincia da lingustica e/ou filologia influenciou, formou e afiou meu conhecimento e crenas lingusticas e filolgicas nos ltimos trinta anos. Dos muitos que merecem meno, gostaria de expressar minha gratido particularmente a Eli Sobel (T), Noam Chomsky, Raimo Antilla, Theo Vennemann, Terrence Wilbur, Stephen Schwartz, Arthur Groos, Thomas Bartel (T), H. G. A. Hughes, Margaret Orbell, Bruce Biggs, Andrew Pawley, Malcom Ross, Ross Clark, Ray Harlow, Terry Crowley, Albert Schutz, John Charlot e Jack Ward.

    E tambm um agradecimento muito especial a Jean Aitchison, por mostrar a todos ns como se deve escrever sobre a linguagem.

    Acima de tudo, a minha esposa, Taki, que foi meu pilar e minha vela.

    Steven Roger Fischer Ilha de Waiheke, Nova Zelndia

    Janeiro de 1999

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  • 1 Comunicao animal e 'linguagem'

    Os primeiros organismos terrestres desenvolveram mecanismos primitivos de troca capazes de transmitir informaes sobre espcie, gnero e inteno. Essa transmisso ocorria atravs do que ento consistia o meio mais sofisticado da natureza: a comunicao qumica. Os milhes de anos da necessidade contnua de se entrar em contato com outra criatura da mesma espcie para fins reprodutivos exigiram mtodos de comunicao ainda mais complexos. Desse processo evolutivo nasceu a 'linguagem' em seu sentido mais amplo.

    Cada tipo de linguagem usada na natureza difere entre si. Quanto mais profundamente se investiga, mais se descobre sobre a habilidade comunicativa de cada espcie, distinguida por definies cada vez mais elaboradas do conceito de 'linguagem'.

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  • Em sua definio mais simples, linguagem significa 'meio de troca de informaes'. Essa definio permite que o conceito de linguagem englobe expresses faciais, gestos, posturas, assobios, sinais de mo, escrita, linguagem matemtica, linguagem de programao (ou de computadores), e assim por diante. A definio tambm abarca a 'linguagem' qumica das formigas e a dana das abelhas (hoje sabemos que ambos os insetos tambm usam simultaneamente outros meios de expresso comunicativa).

    A definio reconhece as vrias trocas de informao bioacsticas (emisses de sons de formas de vida) que ocorrem em frequncias que escapam audio humana. Por exemplo, um humano comum de 15 anos de idade s consegue ouvir cerca de dez oitavas dentro da frequncia e amplitude da conversao normal que fica entre 30 e 18.000 hertz (ondas por segundo). Aves, rs, sapos e ces vocalizam dentro desse intervalo. Porm, a maioria das outras criaturas parece se comunicar tanto abaixo quanto acima dos limites considerados 'normais' pelos humanos. O infrassom compreende emisses abaixo de 30 hertz, como, por exemplo, os sons emitidos por baleias-fin, baleias-azuis, elefantes, crocodilianos, ondas ocenicas, vulces, terremotos e tempo ruim. O ultrassom ocorre acima dos 18.000 hertz, frequncias normalmente usadas por insetos (os habitantes mais numerosos do planeta), morcegos, golfinhos e musaranhos. Porm, a linguagem muito mais do que a comunicao vocal. Em seu sentido mais universal, a linguagem o nexo do mundo animado, cujos limites so traados apenas pelos seres humanos.

    Estudos mais recentes sobre comunicao animal tendem a se concentrar na descrio das espcies, ligando a comunicao animal a processos essencialmente biolgicos ou especificamente sociais.1 Embora uma 'histria da linguagem' no incio do sculo XXI ainda

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  • seja implicitamente uma 'histria da linguagem humana', ela carrega a sugesto de que possa evoluir de modo a abarcar muitas formas de linguagem desconhecidas at ento. A comunicao vocal de muitos anfbios, especialmente rs, foi pesquisada intensivamente nos ltimos anos embora ainda no se encontre qualquer referncia a uma 'linguagem das rs'. A bioacstica vem concentrando sua ateno tambm nos peixes, uma vez que, particularmente durante a desova, muitos peixes emitem um 'som complexo' representativo, cuja primeira parte consiste numa srie de pulsos parcialmente sobrepostos, e a segunda, composta por pulsos rapidamente repetidos que se sobrepem, produzindo uma onda constante semelhante a um 'tom'.

    A comunicao vocal em sua forma mais primitiva , por exemplo, surpreendentemente demonstrada pelo 'zumbido' do peixe mamang do litoral oeste dos EUA, cujos 'zumbidos' noturnos eram desconhecidos para a cincia at perturbarem, recentemente, uma comunidade flutuante na Califrnia, chegando s manchetes internacionais. O mamang macho emite 'zumbidos' para atrair fmeas que desovem em seus ninhos. O barulho um zumbido alto e ressonante, muito parecido ao som produzido pelo didgeridoo2 australiano se origina de um par de msculos presos bexiga natatria, que se contrai e vibra contra a parede do estmago, e continua se movimentando por mais de uma hora. Quando a fmea chega, o 'zumbido' prontamente acaba.

    Vrias ordens de insetos tambm possuem rgos que produzem sons, evidentemente usados para a comunicao. Muitos deles usam o ultrassom, cuja prpria existncia era desconhecida cincia at a segunda metade do sculo XX. Por exemplo, durante a corte, traas machos e fmeas se comunicam por meio dos feromnios (secrees excretadas por glndulas especficas); toda a sequncia do comportamento das

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  • traas durante a corte tambm envolve a produo do ultrassom. Esta descoberta recente exigiu que o comportamento das traas durante a corte fosse reconsiderado, e que fosse colocada uma maior nfase na interao entre os vrios modos de expresso comunicativa.

    Porm, quando se ouve sobre comunicao ou 'linguagem' animal, normalmente se pensa na linguagem das formigas, abelhas, aves, cavalos, elefantes, cetceos e grandes primatas.

    FORMIGAS (FORMICIDAE) H entre 12.000 e 14.000 espcies de formigas no mundo, cada

    uma de suas colnias compreende um milho de indivduos ou mais. Elas ocupam quase todos os locais habitveis do planeta e excedem em trilhes o nmero de seres humanos. Nenhuma est sozinha. Todas se comunicam de alguma maneira. Cada formiga consegue transmitir pelo menos 50 mensagens diferentes usando a linguagem corporal e os feromnios. Suas glndulas mandibulares secretam odores de alerta; seu aparelho digestivo termina numa glndula retal que libera um cheiro que marca sua trilha. Excrees da glndula esternal so usadas para chamar as formigas operrias que estiverem por perto, e assim por diante. Essas mensagens qumicas altamente especficas, combinadas com a linguagem corporal, aparentemente oferecem um pacote econmico que contm as informaes necessrias que uma formiga precisa trocar com suas companheiras para a sobrevivncia da colnia. Aqui, a linguagem foi reduzida a seu mnimo, basicamente a uma 'linguagem dos feromnios'. Alguns a chamam de idioma primevo da Terra.

    Porm, possvel que a habilidade lingustica das formigas seja mais complexa do que a cincia atualmente admite. A diviso do trabalho das

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  • formigas no pode ser totalmente explicada pelo modelo de comunicao presente. Como o grupo decide qual folha levar? Como so alcanadas a organizao e a coordenao em massa? Isso deve envolver uma troca de informao mais elaborada do que a identificada at ento. Alm disso, pesquisas bioacsticas muito recentes revelaram que as formigas tambm usam a estridulao; sua produo de som e ultrassom ainda pouco entendida e os contextos precisos de seu uso ainda so desconhecidos. Em qualquer evento, hoje, os entomologistas desconfiam de que talvez as formigas se comuniquem por meio de uma altamente complexa combinao de feromnios, linguagem corporal e emisso de sons h centenas de milhes de anos.3

    ABELHAS-EUROPEIAS (Apis mellifera) Na primeira metade do sculo vinte, o zologo austraco Karl

    von Frisch revelou que as abelhas-europeias usam a 'dana' para se comunicar, chocando o mundo ao demonstrar que mesmo 'insetos insignificantes' eram capazes de trocar informaes complexas sobre coisas distantes no tempo e no espao. Por meio de uma 'dana', a abelha forrageadora informa s seguidoras o tipo (por meio de amostras oferecidas), a qualidade (quantidade de voltas de 180 graus realizadas na 'dana') e a localizao (traando uma figura em forma de oito para comunicar a distncia e a direo) da comida que encontrou alm da colmeia. No passado, a dana da abelha-europeia foi frequentemente citada como um exemplo clssico do uso da 'verdadeira linguagem' no reino animal.

    Pesquisas recentes tambm revelaram que as abelhas forrageadoras da espcie Trigona minima danam apenas a cu aberto, acima das colmeias; as seguidoras apenas assistem. Porm, as forrageadoras das espcies que danam dentro das colmeias vibram as asas para

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  • produzir correntes de ar, uma 'voz' que as seguidoras, aps acompanhar vrias figuras em oito, monitoram de perto com suas antenas indicando que as abelhas conseguem 'ouvir'. Logo depois, as seguidoras pedem amostras da comida pressionando seus corpos para baixo e emitindo uma vibrao repentina no trax, sentida pelas pernas da danarina. Essa combinao de meios de expresso linguagem corporal, troca de comida e 'voz' constitui a 'linguagem' das abelhas-europeias. Experimentos com 'abelhas-robs' mostraram que tanto a dana quanto a mensagem acstica so essenciais para o estabelecimento de uma comunicao correta entre as abelhas-europeias. Se um desses meios omitido, a maioria das seguidoras no consegue encontrar a comida.

    PSSAROS (AVES) H muito tempo ornitlogos entusiasmados vibram com o vasto

    repertrio de sons da carria. Desde a Antiguidade, sabe-se que na natureza, alguns pssaros aprendem suas msicas em contextos diferentes, um fato que sugere que os pssaros agregam significados diferentes a suas vocalizaes. Pesquisas de campo recentes confirmam o fato.4

    Os pssaros apresentam grandes diferenas individuais nas inclinaes e habilidades vocais, mesmo entre as espcies mais loquazes. Alguns no dizem nada; outros, ao que parece, nunca se calam. Talvez, os grandes papagaios estejam entre os 'linguistas' mais fenomenais do reino animal, especialmente o papagaio cinzento e o papagaio da Amaznia (papagaio-de-nuca-amarela, papagaio-campeiro, papagaio-diadema e papagaio-verdadeiro). A arara-piranga e a arara-vermelha tambm vocalizam bem; mas suas vocalizaes so normalmente roucas e altas. Cacatuas so boas 'falantes' de voz suave; porm, assim como ocorre com as araras, difcil ensin-las.5

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  • J na dcada de 1940, foi demonstrado que o papagaio-cinzento era perfeitamente capaz de aprender tarefas no vocais, que, segundo a crena comum, exigem uma inteligncia complexa, como combinar quantidades de objetos. Pesquisas posteriores observaram que os papagaios, em particular, pareciam usar entre eles vocalizaes naturais 'significativas' de diversas maneiras, vocalizaes certamente aprendidas com outros membros do bando.

    Os ltimos vinte e cinco anos do sculo XX testemunharam uma grande ruptura no nosso entendimento do que, durante sculos, era chamado apenas metaforicamente de 'linguagem' dos pssaros.6 Em junho de 1977, Irene Pepperberg comeou a ensinar um papagaio-cinzento de 13 meses de idade chamado 'Alex' a se comunicar com ela em ingls, usando novas tcnicas e resultados de pesquisas sobre o aprendizado social humano. Os resultados do experimento so impressionantes. Segundo todos os indcios, Alex, totalmente treinado, no 'repete' o discurso humano, mas sim entende seu significado e consegue expressar uma resposta de teor semntico similar, numa variedade de modos conceituais, com uma preciso estatstica notvel.

    Por exemplo, um pesquisador segura no alto uma chave de metal roxa e uma chave maior de plstico verde. Ele pergunta: Alex, quantos?' Quinze segundos depois, Alex responde: 'Dois'. 'Qual o maior?' 'Chave verde'. Ento, um palito de sorvete de madeira levantado. 'De que feito?' H uma longa pausa e ele finalmente responde: 'Madeira'.

    Em 12 anos, os treinadores de Alex ensinaram a ele uma variedade de tarefas lingusticas. Alex conseguia nomear 40 objetos diferentes (banana, rolha, gua, e assim por diante). Ele fazia um uso funcional de 'no', 'Venha c', 'Eu quero X', e 'Quero ir para Y'. Ele conseguia nomear sete cores, descrever vrias formas e contar objetos at seis. No

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  • fim, Pepperberg descobriu que Alex estava combinando todas aquelas etiquetas vocais para identificar, pedir, recusar, categorizar e quantificar mais de 100 objetos diferentes, incluindo alguns que diferiam dos exemplares de seu treinamento regular. Quando suas habilidades eram testadas, a preciso de Alex chegava, em mdia, a 80%.7

    Havia limites. Embora Alex fosse evidentemente capaz de se comunicar com seres humanos num nvel aparentemente elevado, ele no conseguia 'falar' com seus treinadores da mesma maneira que papagaios falam uns com os outros. Diferente de grandes primatas, Alex tambm no conseguia se referir ao que havia feito no dia anterior, ou ao que gostaria de fazer no dia seguinte. O que Alex mostrou aos seres humanos que talvez os pssaros tambm possam usar a linguagem de maneira criativa e, portanto, tambm possam raciocinar com um nvel de complexidade comparvel ao dos grandes primatas (orangotangos, gorilas, chimpanzs e bonobos) e cetceos (baleias e golfinhos).

    Recentes testes neuroanalticos revelaram que, nos pssaros, o controle do canto feito pelo lado esquerdo do crebro, semelhante aos humanos, cuja fala tambm controlada no lado esquerdo do crebro. Uma ligao foi feita a partir desse fato. Porm, a comunidade cientfica ainda no a estudou.

    Ser que se a cincia acabar por concluir que os pssaros tm e usam algum tipo de 'linguagem' elaborada, o fato implicaria que seus longnquos ancestrais, os dinossauros, tambm usavam algum tipo de linguagem, talvez de um modo semelhante? A implicao parece evidente.

    A comunicao acstica tambm muito usada por todos os mamferos, grandes vertebrados que amamentam seus filhotes com

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  • leite excretado peias glndulas mamrias. Ao ajudar na sobrevivncia dos mamferos, permitindo a coeso social e a adaptao, a linguagem parece uma caracterstica primitiva de toda essa classe de vertebrados. Os intricados sons produzidos pelos mamferos tornam seu estudo to difcil quanto o estudo dos sons dos no mamferos, alm dos contextos sociais dos mamferos serem extremamente complexos e variados. difcil associar sons especficos e/ou padres de sons com atividades particulares e/ou trocas entre a mesma espcie. Aumentando ainda mais a dificuldade, assim como ocorre com os pssaros que vivem na natureza, parece haver muitas variantes regionais ('dialetos') no 'discurso' dos mamferos, assim como capacidades de aprendizado e expresses individuais ('idioletos').

    A maioria das pesquisas sobre a comunicao dos mamferos feitas at ento se concentra em sua bioacstica: a medio e anlise das emisses de som de formas de vidas. Os estudos bioacsticos mais sofisticados feitos com mamferos foram concludos em ambientes com um contexto altamente especfico, como o acasalamento ou estudo de sonares (ecolocalizao8). Na verdade, apenas os estudos mais recentes conseguiram satisfazer quase todas as exigncias normalmente feitas a experimentos cientficos, uma vez que seu ambiente limitado por leis fsicas bem conhecidas e essas emisses de sons so mais uniformes e fceis de monitorar do que as atividades sociais, permitindo comparaes simples de dados. Porm, o estudo de sonares no consiste em comunicao. Ele prova que vrios mamferos, como morcegos, baleias e golfinhos, possuem biomecanismos elaborados que podem ser capazes de promover sofisticadas trocas de informao entre membros de uma espcie. Particularmente, os estudos com morcegos se concentram no sonar de frequncia constante e de frequncia modulada com o qual esses pequenos mamferos se

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  • orientam e caam atravs da ecolocalizao; nesse caso, emisses ultrassnicas compreendem seu componente mais importante. Porm, os chamados sociais dos morcegos so emitidos em frequncias mais baixas, e ainda no so compreendidos. Os estudos de bioacstica em mamferos tambm tratam da vocalizao de camundongos. Mesmo assim, poucos escreveram sobre uma 'linguagem dos morcegos' ou uma 'linguagem dos camundongos'. Essa uma deficincia, cuja causa reside na falta de familiaridade ou na restrio do termo 'linguagem' aos seres humanos, pois a complicada comunicao bioacstica ocorre tanto com morcegos quanto com ratos. At muito recentemente, a espcie humana simplesmente no percebeu o fato.

    Por outro lado, as 'linguagens' de cavalos, elefantes, baleias e golfinhos receberam uma enorme quantidade de ateno popular nos ltimos anos. Escritores esotricos chegaram a ligar esses sistemas de comunicao com formas de 'supercomunicao' sobrenaturais e at extraterrestres. Embora isso seja absurdo, no h dvidas de que esses mamferos se comuniquem de alguma forma. Sua comunicao simplesmente diferente da nossa. No h indcios cientficos que sugiram que a comunicao entre mamferos no humanos de qualquer forma 'superior' ou seja, contextualmente mais elaborada linguagem humana. Na verdade, o acmulo de indcios da segunda metade do sculo XX leva enfaticamente concluso de que s os homindeos (espcie humana e ancestrais prximos) desenvolveram formas mais sofisticadas de comunicao natural e artificial na histria natural do planeta.

    CAVALOS (Equus caballus, FAMLIA EQUIDAE) H muito tempo sabido que os cavalos usam alguma forma

    sofisticada de linguagem corporal (gestos, orientao, contato visual e

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  • evitao), com vocalizaes especficas, para se comunicarem uns com os outros, mesmo a longa distncia. Nos ltimos anos, treinadores humanos desenvolveram novas tcnicas baseadas na observao dessa 'lngua' equina para manipular o comportamento dos cavalos para propsitos humanos, como selar e montar. Os resultados so notveis, reduzindo o breaking time de cavalos de muitos dias para dezenas de minutos. No pode haver muitas dvidas de que se alcanou assim alguma forma de comunicao entre humanos e equinos desconhecida at ento. Realizaes semelhantes com cervos (famlia Cervidae) seguiram tcnicas quase idnticas, embora o processo tenha sido mais lento e sutil. Normalmente, as vocalizaes no desempenham um papel nessas interaes; como regra, entre eles, os cavalos quase sempre combinam linguagem corporal e vocalizao. Contudo, uma forma de 'linguagem' fica evidente aqui, pois h uma troca de informaes especficas entre humanos e cavalos e humanos e cervos. Porm, a investigao cientfica acerca de 'linguagens' de cavalos e cervos est apenas no incio.

    ELEFANTES (ELEPHANTIDAE) Nas ltimas duas dcadas do sculo vinte, pesquisadores usaram

    mtodos e tcnicas cientficas modernas na questo da comunicao dos elefantes. H muito se suspeita de que os elefantes se comunicam constantemente para reforar os laos sociais que sustentam a sobrevivncia de uma manada. Porm, se essa comunicao pode ser considerada uma 'linguagem', no sentido de transmitir informaes significativas entre a espcie, ainda um fato, em geral, desconhecido.

    Elefantes usam vrios tipos de vocalizaes: roncos, rugidos, rosnados, bufos, barridos e ladros.9 Cada uma dessas vocalizaes parece representar um diferente modo de expresso comunicativa,

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  • dentro dos quais os variados sons representam subunidades importantes. O ronco , sem dvida, a mais significativa de todas as vocalizaes dos elefantes, emitidas entre 14 e 35 hertz; acima de 30 hertz, os roncos so audveis aos seres humanos como um deep organ bass, sentido como um 'tinido' subcutneo. Frequncias to baixas so pouco barradas por obstculos ao passar por matagais e florestas. Pesquisas no Zimbbue, Nambia e Qunia sugerem que os elefantes (provavelmente de maneira nica entre os mamferos) usam os roncos infrassonoros abaixo do limite normalmente audvel para se comunicarem de algum modo com outros elefantes distantes de si. Sensores remotos, com cronmetros, provaram a ocorrncia de comunicao infrassonora entre elefantes fmeas e machos separados por uma distncia de quatro quilmetros. Parece que, entre vrias outras utilidades, os roncos permitem que elefantes machos e fmeas se encontrem para a reproduo (machos e fmeas adultos vivem longe uns dos outros e no contam com migraes previsveis nem temporada de acasalamento fixa). Durante o cio, uma fmea emite uma sequncia nica de chamados com infrassons que, como preservam a mesma forma, podem ser classificados como uma 'cano de acasalamento': ela comea com roncos lentos e profundos, que gradualmente crescem em fora e aumentam o tom; e depois baixam at o silncio. O 'concerto' pode durar meia hora.

    As vocalizaes da fmea so ricas e variadas, implicando muitos tipos diferentes de mensagens. s vezes, seus chamados parecem indicar at onde a manada pode ir, quando amamentar, quem est presente no grupo e assim por diante. As fmeas tambm reagem a eventos distantes. Machos adultos vocalizam muito menos; um pesquisador jocosamente concluiu que isso ocorre porque os machos

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  • esto ocupados demais ouvindo as fmeas tagarelas. O olfato sempre usado com a audio; evidente que os feromnios desempenham um papel significativo na reproduo dos elefantes. Machos em estado de frenesi sexual em busca de uma parceira, que podem ter apenas dois dias de cio a cada quatro anos, reagem agudamente a tal 'comunicao qumica'.

    claro que a comunicao dos elefantes como uma forma de 'linguagem' incluiria os roncos que permitem variados tipos de mensagens, e no apenas sinais reprodutivos. Alguns dos mais fortes infrassons de elefantes j registrados documentaram roncos que claramente assinalam pnico; foi sugerido que esses 'chamados de pnico' so emitidos para pedir ajuda a uma manada distante. Embora separadas por quilmetros de florestas, manadas individuais conseguem ajustar continuamente sua busca por alimento numa sincronia quase perfeita, evidentemente usando roncos infrassonoros para manter contato umas com as outras. Essa rede tambm pode permitir a manuteno de uma elaborada sociedade hierrquica, mesmo entre populaes esparsas, como sugerem alguns pesquisadores.

    BALEIAS (CETACEA) Por uma ampla variedade de motivos, frequentemente de

    natureza militar secreta (estudos com sonares), a maioria das pesquisas internacionais sobre a acstica dos mamferos envolve os cetceos: mamferos aquticos, na maior parte marinhos, que incluem baleias, golfinhos, botos e animais similares. Alm dos pssaros e dos homindeos, os cetceos parecem ser as nicas outras criaturas terrestres que contam com trocas vocais facilmente audveis, espontneas e complexas. As pesquisas atuais sobre a acstica dos cetceos se concentram em chamados sociais e sinais de ecolocalizao, por meio da anlise de

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  • registros de sons na gua, detectados por conjuntos de hidrofones ligados a estaes de trabalho com processadores de sinais digitais. Porm, o mtodo falha na hora de mostrar os contextos sociais dos cetceos; para isso, seria necessrio um monitoramento de vdeo em tempo real, cujos resultados deveriam, ento, ser analisados em laboratrio para dados comparativos. Em particular no caso das baleias, cuja coleta de dados extremamente difcil.

    As vocalizaes das baleias podem alcanar 256.000 hertz uma frequncia doze vezes mais aguda que o ouvido humano consegue detectar. Por esse motivo, os seres humanos s ficaram a par do verdadeiro intervalo de comunicao vocal entre as baleias aps o desenvolvimento de dispositivos eletrnicos sensveis, na segunda metade do sculo XX. H muitos tipos de 'linguagens' de baleias, que dependem do seu gnero.10

    Pesquisas sobre as orcas feitas desde a dcada de 1970 revelam que suas vocalizaes compreendem cliques, assobios e gritos curtos e agudos chamados de 'chamados em pulso'. Os cliques so simplesmente sons do sistema de ecolocalizao. Os assobios so ouvidos entre orcas que esto descansando ou socializando e parecem estar envolvidos em brincadeiras e atividades sexuais. Chamados em pulso, junto a um 'grito parecido com uma dobradia enferrujada', provavelmente servem para rastrear membros do cardume que no esto vista, uma vez que eles podem ser ouvidos por outras orcas a oito quilmetros de distncia. Cada cardume compartilha um nmero de sequncias de pulsos com outros cardumes da regio. Porm, frequentemente, cada cardume demonstra verses nicas desses chamados em pulso em comum; alm disso, cada um deles possui um ou dois chamados em pulso distintos, que no so compartilhados com outros cardumes. So essas

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  • diferenas que parecem isolar um 'dialeto' local. Cardumes individuais de orcas podem ser facilmente identificados por seu dialeto nico. Diferentemente das baleias-jubarte, as orcas mantm dialetos individuais sem mudanas intencionais por perodos muito longos, possivelmente pela vida inteira.

    Hoje, as baleias-fin so conhecidas por emitirem intensos chamados infrassnicos; mas ainda no se sabe se eles servem para sua comunicao. Tambm no se sabe se os gemidos, grunhidos e sons parecidos com o da corneta e do barrido do elefante feitos pela baleia-franca, um dos cetceos mais vocais, compreendem algum tipo de comunicao.

    Entre os mais poderosos sons uniformes emitidos por qualquer forma de vida terrestre est o chamado produzido pela baleia-azul. Como foi medido pela marinha norte-americana no litoral da Amrica do Sul, sua 'cano' de 188 decibis um nvel de barulho comparvel a um cruzeiro navegando em velocidade normal pode ser detectada a centenas de quilmetros de distncia. Normalmente infrassnicas, as canes da baleia-azul compreendem notas perfeitamente harmonizadas, repetidas em intervalos de 128 segundos. Durante a maior parte do ano, a baleia-azul canta continuamente durante oito dias, repetindo apenas cinco dessas notas harmonizadas em diferentes combinaes. Se h alguma pausa, a nota seguinte ocorre em exatos 256 segundos. Alguns especialistas acreditam que as baleias-azuis 'cantam' para apontar com preciso sua localizao no oceano, cronometrando o reflexo de suas emisses em bancos de areia dos continentes, ilhas e montanhas submersas. Assim essas canes no teriam uma funo comunicativa. Porm, o fato de as canes serem audveis em distncias to gigantescas parece contradizer essa hiptese.

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  • Hoje, ns sabemos que as baleias-jubarte assim como os primatas, talvez as nicas outras compositoras na natureza transmitem, de modo semelhante, 'canes' para centenas de quilmetros pelo oceano. As jubartes evidentemente usam uma 'linguagem' especial que deve verdadeiramente ser uma das caractersticas mais fascinantes da natureza. Elas exibem uma grande variedade de vocalizaes: lamentos, chiados, grunhidos, rugidos e urros que podem, s vezes, ser associados a comportamentos especficos, sugerindo um significado social. Mas so as canes da jubarte que mais se aproximam do nosso conceito de 'linguagem' verdadeira. Durante mais de vinte anos, as canes das jubartes das bermudas foram investigadas. Foi descoberto que entre as vocalizaes havia 'longas canes de amor' ou seja, sequncias regulares de sons repetidos emitidos para o acasalamento. As canes apresentavam uma ampla variedade de tons e duravam entre seis e 30 minutos; quando gravadas e artificialmente aceleradas em mais de 14 vezes, as canes se pareciam notavelmente com o canto de um pssaro. H solos, duetos, trios e at coros de dezenas de jubartes. Cada uma delas canta a mesma 'cano', embora no em unssono. E a cano muda diacronicamente, ou seja, ao longo do tempo, um processo que parece ser constante e intencional, muito semelhante a formas de mudana da linguagem humana: novos elementos so compostos, mantidos, e depois aperfeioados. Isso muito diferente do 'dialeto' das aves, que so simplesmente regionais. Como os humanos, as jubartes modificam intencionalmente seu prprio ritual de vocalizaes com o tempo. Um grupo regional de jubartes cantar a mesma 'cano' durante um ano, e no ano seguinte colocar outra cano em seu lugar. significativo que as canes de dois anos consecutivos sejam mais parecidas do que duas canes separadas por um intervalo de vrios anos. A cano parece estar 'evoluindo' e cada jubarte participa da evoluo da cano.

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  • Quando as jubartes do Hava foram comparadas s jubartes das Bermudas, num perodo de quatro anos, foi descoberto que em todos os anos os grupos cantavam canes diferentes. Ainda assim, ambas apresentaram uma mudana diacrnica e demonstraram a mesma estrutura (no contedo) na cano. Por exemplo, cada cano compreende cerca de seis temas, com vrias frases idnticas ou que mudavam lentamente. Cada frase contm entre dois e cinco sons. A cano mantm os temas numa determinada ordem, mas, s vezes, as jubartes omitem um ou mais temas. Os temas que restam so sempre cantados numa sequncia previsvel, baseada em performances anteriores. Embora as jubartes das Bermudas e do Hava no tenham contato, suas canes compartilham 'regras lingusticas' essenciais.

    Assim, as leis de composio das jubartes parecem ser universais, seja no Atlntico, seja no Pacfico. Isso sugere que as jubartes (na verdade, talvez todos os cetceos) herdam um conjunto de leis de vocalizao, dentro das quais cada gerao pode improvisar. No se sabe se essas supostas leis de vocalizao so transmitidas geneticamente ou transmitidas pelo aprendizado. Sugere-se que, como as jubartes no cantam nas reas de alimentao durante o vero e como as canes so complexas demais, elas simplesmente esqueam a cano entre uma estao e outra e arquitetem uma nova verso, baseadas numa lembrana parcial. A hiptese foi testada nos mares da Ilha de Maui, no Hava, e se provou equivocada: quando as jubartes voltaram, a cano antiga foi cantada, e depois gradualmente alterada durante a temporada de acasalamento.

    As jubartes sempre cantam as novas frases num andamento mais rpido do que as frases antigas, e, s vezes, as frases novas so ajustadas, de modo a conectar o incio e o final de frases consecutivas. As partes

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  • do meio so simplesmente omitidas, como as abreviaes usadas por seres humanos ('c' por Voc'). Esse processo tambm parecido com o modo como a linguagem evolui em comunidades humanas. Como as canes das jubartes so diferentes, embora a forma da cano seja similar tanto no Atlntico como no Pacfico, os especialistas concordam que, nesse caso, pode-se falar em termos de verdadeiros 'dialetos' regionais. O fato tambm indica fortemente que na cano da jubarte pode se encontrar uma forma de 'linguagem' que mais se aproxima das expectativas humanas, embora sua natureza especfica ainda precise ser entendida.

    Os celebrados codas distintos padres de cliques do grande e tmido cachalote parecem ser diferentes para cada indivduo; ou seja, eles no parecem constituir o mesmo tipo de 'linguagem' compartilhada, exibida pela jubarte. Infelizmente, esses codas ainda no foram decifrados. Porm, sabe-se que eles variam de oceano para oceano, e, portanto, podem representar (pelo menos para rastreadores humanos) uma marca de 'dialeto'. Por exemplo, os cachalotes de Galpagos emitem 23 codas distintos durante interldios sociais. H um coda de cinco cliques que frequentemente inicia as conversaes, como um 'oi'. Tambm h um coda de sete cliques que normalmente segue um coda de oito cliques, ambos os significados so desconhecidos. Os machos se anunciam com um som metlico chamado de 'grande clique', repetido a cada sete segundos, parecido com o som do 'bater de uma porta de cela de cadeia', talvez o som seja usado para atrair fmeas ou intimidar rivais. Os codas do cachalote so quase sempre ouvidos no meio do dia, quando as baleias esto socializando perto da superfcie do mar. Foi sugerido que os codas permitem que os cachalotes se identifiquem individualmente, uns para os outros. Vrios outros cliques (no codas) usados pelos cachalotes podem agir

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  • como um sonar de ecolocalizao e, como dizem alguns, para atordoar a presa com o som.

    GOLFINHOS (DELPHINIDAE) O termo golfinho geralmente inclui os botos, uma subespcie,

    que tambm vocaliza frequentemente, como observado h milhares de anos no caso do golfinho-riscado, que assobia para se comunicar e faz cliques para ecolocalizao simultaneamente. Os golfinhos produzem os cliques forando as cavidades nasais contra as beiradas sseas do crnio, e depois, convergindo-os atravs do tecido adiposo em sua testa. Os golfinhos no possuem ouvidos externos; o som recebido atravs de uma estreita 'janela no osso maxilar inferior.

    Na dcada de 1960, o neurofisiologista e psicanalista norte-americano John C. Lilly, convencido de que os golfinhos j possuam uma elaborada linguagem natural, comeou a ensin-los a 'falar ingls'.11 O objetivo do Projeto Janus, idealizado por Lilly, era permitir que seres humanos e golfinhos, cada um em seu respectivo ambiente, trocassem vocalizaes ajustadas a uma 'audio confortvel', atravs de um cdigo de 64 sons. Lilly esperava rpidas comunicaes entre humanos e golfinhos: 'Quero descobrir se eles tm sagas, ensinamentos, histrias'. Seu desejo antropocntrico talvez ingnuo, quando visto em retrospecto no foi satisfeito. Tentativas semelhantes posteriores, como as feitas em Marineland, na Flrida, seguindo o modelo de experimentos contemporneos para ensinar uma lngua artificial para primatas, tambm produziram resultados insatisfatrios. A comunicao entre humanos e golfinhos, quase sempre vinculada combinao de cdigos simples, raramente transmitia mais de 12 palavras codificadas em ingls.

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  • evidente que o repertrio vocal dos golfinhos inclui mensagens emocionais de alguma espcie. Especialistas isolaram um grito, que sobe e desce, parecido com o de um pssaro, que deve significar algo parecido com 'socorro!'. Outros sinais isolados e especficos de golfinhos devem significar alguma coisa como: 'Sou o Flipper'. Apesar disso, a opinio cientfica atual, num forte contraste com o entusiasmo otimista de mais de uma gerao passada, sustenta que a 'linguagem' do golfinho na natureza (em oposio comunicao artificial entre humanos e golfinhos) esteja talvez mais prxima aos gemidos, risadinhas e suspiros humanos do que geralmente se espera de uma 'linguagem' verdadeira.

    Como vimos, a acstica dos cetceos indica 'dialetos' discernveis, e mesmo evolues de estrutura marcadas, esperadas numa troca de informaes baseadas no conhecimento. Por tudo isso, as tentativas dos humanos em estabelecer 'dilogos', na forma como os entendemos, com os cetceos falharam at o momento. Ns no compreendemos realmente o modo como os cetceos transmitem informaes. Eles se comunicam uns com os outros de alguma maneira; e acima de tudo, os golfinhos e as jubartes parecem viver numa sociedade ricamente vocal. Mas ainda temos de compreender a 'linguagem' dos cetceos nessas elaboradas vocalizaes.

    No caso dos primatas, o terreno mais familiar. Como escreveu o primatologista John Mitani: 'Voc no consegue olhar de perto um grande primata sem sentir algo muito especial'. o extremo da vaidade: percebemos ns mesmos. Cerca de dezessete milhes de anos atrs, durante o perodo mioceno, havia pelo menos trs vezes mais gneros de macacos do que hoje. Seus descendentes so os pequenos primatas ou gibes; os grandes primatas (orangotangos, gorilas, chimpanzs e bonobos); e os seres humanos, o ltimo dos homindeos.

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  • Todos os grandes primatas parecem exibir habilidades lingusticas que chegam perto daquilo que entendemos por verdadeira 'linguagem', principalmente devido a seu conceito antropocntrico.

    ORANGOTANGOS (Pongo pygmaeus) No final da dcada de 1970, a linguagem de sinais foi ensinada

    para grandes primatas em seu prprio lar pela primeira vez, para orangotangos em Bornu. Suas lies foram preparadas no modelo de experimentos contemporneos com gorilas e chimpanzs nos EUA. Dois orangotangos aprenderam vinte sinais da Linguagem de Sinais Norte-Americana em menos de um ano, uma taxa semelhante capacidade de aprendizado das outras espcies. O experimento indicou que as habilidades de 'linguagem' de todos os grandes primatas , provavelmente, quase a mesma, independentemente da espcie. O talento individual parece apresentar uma diferenciao mais ampla. As experincias com a linguagem em orangotangos aumentaram nos ltimos anos. Elas produziram resultados de compreenso e produo lingusticas ainda mais surpreendentes.

    GORILAS (Gorilla gorilla) Uma tolerncia temporria a seres humanos na sociedade dos

    gorilas da montanha pode ser alcanada por meio de gestos (fingindo comer folhas), postura (de lado, olhos desviados) e vocalizaes (sons que imitam o ato de comer, grunhidos de busca por alimentos) tudo simultaneamente, como demonstrou Dian Fossey no Centro de Pesquisa Karisoke de Ruanda, desde a dcada de 1960, at seu assassinato em 1985. Ela fez um estudo bsico das vocalizaes dos gorilas na natureza, e chegou at mesmo a reproduzir esses sons, numa tentativa

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  • de 'falar a lngua dos gorilas'. Pela primeira vez na histria, foi estabelecida uma confiana entre gorilas e seres humanos na natureza por meio da 'linguagem' deles e no da nossa.

    Ao mesmo tempo, os experimentos de linguagem com a chimpanz fmea Washoe haviam inspirado Francine Patterson a tentar ensinar uma adaptao da Linguagem de Sinais Norte-Americana, ou Ameslan, a linguagem dos 'surdos-mudos' dos Estados Unidos, a uma gorila ocidental das terras baixas, fmea de 13 meses chamada Koko em julho de 1972. Em 6 anos, o mundo aclamava Koko como a 'primeira gorila a alcanar proficincia' em conversar por sinais. O experimento se tornou o mais longo estudo em andamento sobre a linguagem dos primatas, ttulo que mantm at hoje.12 Atualmente, Koko apresenta um vocabulrio ativo de mais de 500 sinais; ela tambm tem um vocabulrio passivo com outros 500 sinais. Hoje, seu vocabulrio total semelhante ao de uma criana humana de menos de 5 anos de idade. Tal capacidade lingustica tambm prova a existncia de uma faculdade cerebral para a linguagem em grandes primatas ou seja, os gorilas na natureza j so 'preparados' para algum tipo de linguagem, que os permite usar a linguagem de sinais em laboratrio. O QI de Koko, testado por meio do exame Stanford-Binet, fica entre 85 e 95; muito pouco abaixo da mdia das crianas humanas. Porm, vrios de seus 'erros' cometidos no teste antropocntrico foram computados incorretamente: por exemplo, para um gorila, uma rvore, e no uma casa, o abrigo lgico contra chuva. Provavelmente, o QI de Koko seja um pouco mais alto.

    As proezas de Koko so tanto divertidas quanto srias. Quando Koko viu um cavalo com um freio na boca, fez sinais para 'cavalo triste'. Patterson perguntou por qu. Koko respondeu: 'Dentes'. Ao imitar os humanos, Koko tentou at falar; uma vez, ela tentou telefonar

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  • (aterrorizado, o operador rastreou a chamada, achando que a pessoa que havia ligado estava morrendo). Em 1976, um gorila ocidental das terras baixas, macho de trs anos e meio chamado Michael, se juntou ao treinamento de Koko. Patterson disse a Koko que um novo beb estava chegando. Quando Koko viu Michael, de 23 quilos, respondeu por meio dos sinais: 'Errado. Velho'. Em dois anos, os gorilas Koko e Michael 'conversavam' entre si usando a Ameslan.

    Um teclado especial foi projetado para operar com um sintetizador de voz. Koko e Michael apertavam uma tecla e a palavra escolhida era pronunciada em voz alta nas caixas de som. Por meio da linguagem de sinais e do teclado, Koko, em particular, apresenta toda a gama de emoes, humor e inteligncia de uma criana humana.13

    Patterson foi mais alm. Reconhecendo o deslocamento a habilidade inata de se referir a eventos distantes no tempo e no espao do ato presente da comunicao como uma caracterstica principal da linguagem humana, ela testou se Koko estava na verdade classificando eventos simultneos ou se os recriava linguisticamente usando o deslocamento. 'Ser que os animais usam smbolos para se referir a eventos passados ou futuros?', ela ousou perguntar. Logo foi descoberto que Koko conseguia conversar prontamente sobre um incidente passado, assim como descrever um estado emocional passado.14 O deslocamento tambm foi demonstrado pelas mentiras que Koko contava, usadas principalmente para evitar a culpa, mas tambm com humor ou fazendo gracinhas. Por exemplo, Koko comeou a mastigar um giz de cera vermelho. Patterson perguntou: 'Voc no est comendo o giz de cera, est?' Koko respondeu por meio de sinais: 'Lbio', e comeou a passar o giz, primeiro no lbio superior, e depois no lbio inferior, como se fosse um batom. Essa anedota contm uma revelao mais profunda: o uso da linguagem por um

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  • no humano para distorcer a percepo da realidade do ouvinte. Ale os experimentos de Patterson com Koko, tal uso era uma prerrogativa exclusivamente humana.

    Ao contrrio das estimativas depreciativas dos naturalistas sobre a inteligncia dos gorilas na metade do sculo XX, no incio do sculo XXI os primatologistas hoje consideram os gorilas pares intelectuais dos chimpanzs, em grande parte devido aos resultados da pesquisa de Patterson. Mas h diferenas significativas entre gorilas e chimpanzs. Em comparao com seus primos chimpanzs, Koko usa os sinais mais deliberada e cuidadosamente. Ela tambm usa os sinais com mais frequncia e se dirige a uma gama muito maior de atividades.15

    Mesmo hoje, 27 anos aps o incio do experimento, Koko ainda usa ativamente seu teclado auditivo de 46 teclas. Ele apresenta os nmeros e as letras comuns do alfabeto, mas cada tecla tambm est pintada com um padro geomtrico simples e arbitrrio em dez cores diferentes. Koko entende que eles representam 'palavras' para objetos, emoes e aes; eles tambm incluem pronomes, preposies e modificadores, permitindo uma sintaxe primitiva. Pacientemente, Koko digita com o dedo indicador; uma mo fica livre para fazer sinais. Ela digita e 'fala' simultaneamente. Koko e seu companheiro Michael usam regularmente centenas de gestos da Ameslan. O projeto em andamento continua revolucionando nossa compreenso da comunicao animal e da 'linguagem'.

    CHIMPANZS (Pan troglodytes) O ano de 1967 foi um marco para a comunicao entre humanos

    e primatas, quando a chimpanz Washoe proferiu a sentena 'quero doce' na linguagem de Sinais Norte-Americana. O perodo

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  • entre as dcadas de 1960 e 1980 foi a grande era dos experimentos em comunicao entre humanos e chimpanzs. Experimentos anteriores, levados a cabo durante anos com as chimpanzs Viki e Sarah, usavam smbolos de plstico ou palavras faladas e haviam gerado apenas um vocabulrio extremamente pequeno. Em contraste, Washoe aprendeu 34 sinais da Ameslan nos primeiros 22 meses de treinamento, e dois anos mais tarde, em 1970, j havia adquirido um total de 132 sinais, que ela usava de uma maneira semelhante usada por crianas humanas nos primeiros estgios de aprendizado da fala.16 Ficou evidente para os treinadores de Washoe, Allen e Beatrix Gardner, que a dificuldade dos chimpanzs em adquirir a linguagem est em sua incapacidade de controlar os lbios e a lngua ou seja, em produzir um discurso articulado. Alm disso, a faringe dos grandes primatas impede o som aspirado dos humanos, permitindo apenas as vocalizaes mais simples atravs da laringe: grunhidos, gritos agudos, choramingos e assim por diante. Os Gardners foram os primeiros a usar a linguagem dos sinais com os primatas. Seus resultados foram impressionantes, e inspiraram Francine Patterson a usar a Ameslan com a gorila Koko, quando tambm instigaram Duane Rumbaugh a colocar a chimpanz Lana em frente a um computador no Centro Regional de Pesquisa de Primatas de Yerkes, em Atlanta, na Gergia: eventualmente, Lana 'digitou' declaraes racionais e intencionais num teclado arbitrariamente codificado.17

    Se no incio da dcada de 1970 os linguistas, com base apenas nas pesquisas feitas com chimpanzs, concluram com unanimidade que Washoe e outros grandes primatas no possuam uma linguagem como ns conhecemos; no final da dcada de 1970, principalmente devido aos resultados dos experimentos de Patterson com os gorilas Koko e Michael, eles ou se retrataram totalmente ou modificaram

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  • significativamente sua avaliao: os grandes primatas, admitiu a maioria dos linguistas, pareciam ser dotados de alguma forma de 'capacidade de linguagem'. Muito recentemente, uma caracterstica do crebro considerada essencial para a linguagem humana a assimetria do planum temporale localizado bem acima do ouvido foi descoberta tambm no crebro do chimpanz; porm, ainda no se sabe como isso pode influenciar na capacidade de linguagem dos chimpanzs, se que h uma influncia. O papel exato dessa assimetria na recepo e/ou produo de linguagem ainda precisa ser determinado.

    Experimentos de comunicao entre humanos e primatas feitos entre as dcadas de 1960 e 1980, nos quais alguns primatas aprenderam a linguagem de sinais, enquanto outros, usaram linguagens simblicas inventadas, demonstram que no h uma diferena real se so usados gestos ou smbolos. Os grandes primatas aprenderam sim a trocar informaes com seus treinadores humanos, alguns deles de maneira notvel, o que provou que seus caminhos neurais para a linguagem, de alguma forma no especfica, j estavam presentes. Porm, uma questo ainda permanece: a comunicao entre humanos e primatas prova que os grandes primatas so capazes de usar a linguagem de modo semelhante aos humanos? Talvez Washoe estivesse sinalizando associaes vagas esperando uma recompensa. Koko pode ter sido superinterpretada a partir de pr-concepes humanas. Outros chimpanzs podem ter respondido a sugestes corporais, sons circunstanciais e sutis, e no a uma linguagem real. O pessimismo recaiu sobre todo o campo e os fundos de pesquisa foram extremamente reduzidos. Mas tudo mudou com o bonobo Kanzi.

    BONOBOS (Part paniscus)

    Dividimos 99% da nossa constituio gentica com os chimpanzs, e ainda mais caractersticas consideradas humanas com os

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  • chimpanzs pigmeus, os bonobos. Na natureza, os bonobos foram observados se comunicando individualmente e de maneira constante uns com os outros por meio da linguagem corporal (gestos, expresses faciais, postura, orientao) combinada com vocalizaes simultneas. Por exemplo, h pelo menos vinte gestos e chamados que demonstram a vontade de copular. Ser que essa 'linguagem natural' dos bonobos na natureza pode indicar os caminhos neurais que permitem que os bonobos usem a linguagem de uma maneira talvez mais familiar para os seres humanos? Experimentos recentes feitos pela norte-americana Sue Savage-Rumbaugh, aclamada pela comunidade cientfica, no apenas confirmaram o fato, mas tambm revelaram uma dimenso at ento ignorada da capacidade lingustica dos grandes primatas.18

    O bonobo Kanzi foi ensinado a se comunicar com os seres humanos por meio de um 'lexigrama, um teclado com smbolos que representam conjuntos de palavras ou aes. Kanzi diferente de um 'primata treinado', no sentido de que suas respostas so motivadas em vez de condicionadas: Kanzi 'estimulado' a usar smbolos de maneira espontnea e criativa para se comunicar com humanos e outros prima-tas. Aps muitos anos nesse ambiente de treinamento artificial, Kanzi tambm aprendeu a entender perguntas, declaraes e comandos de voz em ingls, aos quais ele responde usando o lexigrama. Hoje, o lexigrama tambm consegue ativar eletronicamente uma resposta vocal para Kanzi. Raramente um primata chegou to perto de produzir um lxico e uma sintaxe que seres humanos conseguem identificar e entender prontamente. Kanzi parece estar no limiar do uso da 'linguagem' do modo que os seres humanos compreendem o conceito.19

    Exemplificando, um dos chimpanzs do centro de pesquisa havia roubado as chaves de Savage-Rumbaugh. Ela pediu para Kanzi recuper-las. Kanzi foi at o culpado, 'murmurou' alguma coisa em seu

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  • ouvido, e voltou com as chaves. Kanzi tambm demonstra reconhecer vozes humanas no telefone, e consegue sinalizar respostas apropriadas a essas mensagens telefnicas. Ele aparenta compartilhar uma comunicao vocal parecida com a dos humanos com seus treinadores, embora suas respostas a mensagens vocais sejam necessariamente eletrnicas ou simblicas. Atualmente, Kanzi est usando o lexigrama com 256 smbolos geomtricos. Os chimpanzs esto aprendendo a usar o lexigrama de Kanzi de maneira semelhante. Um resultado curioso do experimento que, hoje em dia, crianas humanas com dificuldades de aprendizado esto usando e se beneficiando de uma verso adaptada do lexigrama do bonobo.

    Num teste recente, 660 solicitaes inditas, do tipo 'coloque a ma no chapu', foram feitas para Kanzi e para crianas. Os acertos de Kanzi foram superiores aos de crianas de 2 anos de idade. Kanzi parece ser capaz de responder e produzir linguagem de maneira espontnea com a mesma proporo inata de uma criana de dois anos e meio. Savage-Rumbaugh provou, para a satisfao da maioria dos especialistas, que primatas podem compreender e usar a linguagem espontaneamente do mesmo modo que uma criana: por meio da audio e relao das palavras faladas a objetos, smbolos e aes que elas representam.

    Se a capacidade lingustica de um ser humano de dois anos de idade chamada de 'linguagem', ento o bonobo Kanzi est 'falando' conosco.20

    Haver uma 'linguagem' verdadeiramente no humana? Ou estaremos ns apenas 'concedendo' a linguagem a no humanos, talvez interpretando uma linguagem onde h, na verdade, uma

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  • no linguagem? Como escreveu o filsofo austraco Ludwig Wittgenstein: 'Se um leo pudesse falar, ns no o entenderamos'. A comunicao dos grandes primatas na natureza significativamente diferente da comunicao entre humanos e primatas em laboratrio: o primeiro compreende uma rica combinao de linguagem corporal e vocalizaes, enquanto o segundo ocorre era um ambiente humano artificial que estimula os primatas a responderem por meio de smbolos humanos ou palavras.21 Porm, uma grande quantidade de testes controlados demonstrou, talvez alm de qualquer dvida, que embora o meio seja artificial e treinado, o resultado dos experimentos com humanos e animais uma comunicao espontnea e criativa ou seja, a troca vocal ou por meio de sinais de informaes com significado. Atravs de caminhos neurais preexistentes, os animais esto falando para ns, e conosco, de uma maneira significativa.22

    Contudo, a comunicao entre humanos e animais no forneceu quase nenhuma informao sobre o que os animais comunicam uns aos outros em seu ambiente natural. possvel que primatas transmitam mensagens complexas, porm o contedo das informaes trocadas ainda desconhecido. Os humanos podem ensinar papagaios cinzentos e bonobos a se comunicar de modo humano, mas papagaios cinzentos e bonobos no esto ensinando seres humanos a se comunicarem de maneira no humana.

    A ignorncia e a arrogncia humana em relao maioria das espcies de animais at o meio do sculo XX foi substituda, na segunda metade do sculo, por uma crena exagerada na equidade intrnseca dos animais, postulando inclusive intelectos proporcionados. Essa dialtica irracional encontrou, atualmente, um equilbrio mais racional, que aceita que os animais usem sim 'algum tipo de linguagem' na

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  • natureza; que eles so capazes de ser treinados para se comunicar, deforma espontnea e criativa, com humanos e no humanos por meios artificiais e/ou no naturais; e que o limite (definido por humanos) da inteligncia de tal comunicao entre humanos e animais pode, s vezes, se aproximar do de crianas muito pequenas. Por outro lado, precisa-se aceitar que a questo da inteligncia comparativa de no humanos pode simplesmente no valer a pena.

    A linguagem que os no humanos aprendem e usam ativamente no irrelevante nem efmera para esses animais. No incio da dcada de 1970, o chimpanz Bruno aprendeu o Ameslan; em 1982, o projeto foi encerrado e Bruno foi levado para um laboratrio mdico. Em 1992, mesmo sem estmulos, Bruno continuava usando o Ameslan, inspirando os tcnicos do laboratrio a aprender a linguagem de sinais para se comunicar com ele. Outros primatas ensinaram voluntariamente a membros de sua espcie, incluindo os filhotes, modos de comunicao aprendidos com os humanos. Para esses animais, a linguagem artificial, uma vez adquirida, reconhecida como um elemento essencial de interao social. Talvez, a apreciao seja inata.23

    Mais importante, o estudo da comunicao e 'linguagem' animal nos permite especular de maneira mais inteligente sobre a evoluo da linguagem humana. Certamente, no coincidncia o fato de os animais que aparentam ter uma 'linguagem' mais prxima quela como concebemos embora a vocalizao tenha sido alcanada apenas eletronicamente serem tambm os geneticamente mais prximos de ns. O prprio conceito humano do que constitui a linguagem , necessariamente, antropocntrico. No estamos buscando linguagem em animais, estamos procurando a linguagem humana. Quando planejamos vrias maneiras de extrair linguagem dos animais, geralmente as limitamos a artifcios humanos. A maioria das pesquisas de

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  • 'linguagem' entre humanos e animais, mesmo as mais objetivas, cria um meio artificial, centrado no humano, que tem pouca relao com as linguagens naturais. Sob esse aspecto, admirvel que pesquisadores como Patterson e Savage-Rumbaugh tambm considerem o contedo semntico de olhadelas, gestos, posturas e orientaes como 'modos comunicativos' que, tambm em laboratrio, recebem a mesma considerao que expresses vocais e habilidades no teclado.

    O que diferencia os humanos? No podemos mais ser identificados como a espcie que constri ferramentas. Parece que no temos mais a patente da linguagem. Talvez os humanos sejam animais que simplesmente desenvolveram uma 'comunicao mais elaborada' que rendeu benefcios sem precedentes para seus inovadores.

    Concluindo com sua definio mais estrita, a linguagem pode ser entendida como o meio pelo qual se transmitem pensamentos complexos por smbolos arbitrrios expresses vocais gramaticais ou sua expresso grfica numa sintaxe significativa. Embora a humanidade tenha at ento assumido que essa definio preenchida apenas pelo Homo sapiens, as revelaes dos experimentos feitos com humanos e animais foraram, pelo menos, uma reconsiderao dessa antiga pressuposio.

    Talvez seja melhor considerar os animais similares a administradores assessores, que tentam, por meio de uma variedade de meios comunicativos, fazer com que outras criaturas obedeam de modo a beneficiar o indivduo, o grupo e a espcie. Essa interao entre administradores e assessores poderia ento explicar a evoluo da comunicao animal em geral: o que o comportamento comunicativo conquista, e no o que ele diz, que realmente importa para a sobrevivncia e prosperidade na natureza. Nesse processo evolucionrio cada vez mais elaborado, a linguagem na forma de comunicao

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  • vocal no apenas como a base de toda a interao social, mas tambm como veculo de pensamentos sofisticados pelo menos em termos comparativos parece ter surgido naturalmente em uma nica famlia, a dos homindeos.

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  • 2

    Primatas falantes

    Nossos ancestrais primatas evidentemente possuam os exatos caminhos neurais necessrios para variados modos de expresso comunicativa de maneira a alcanar uma transmisso de informao adequada. Porm, os lbios e a lngua dos grandes primatas careciam de controle coordenado; eles tambm eram incapazes de controlar a expirao. Mesmo se esses grandes primatas fossem fisicamente aptos a falar, sua 'fala provavelmente no seria em nada semelhante no modo como a entendemos hoje. O crebro do humano moderno duas ou trs vezes mais volumoso do que qualquer outro primata existente no planeta; ele confere maior capacidade de usar e posteriormente elaborar a linguagem falada e raciocinar com ela. A histria da linguagem humana tambm uma histria do crebro humano e suas habilidades cognitivas; as duas caminham lado a lado. uma histria antiga.

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  • Entre sete e cinco milhes de anos atrs, na frica, provavelmente como resultado de dietas diferenciadas, os homindeos se separaram das outras espcies de primatas primitivos.1 Dois principais gneros de homindeos se distinguiram: o gnero Australopithecus e o gnero Homo.

    Forado pelas mudanas do clima na Terra a se adaptar para sobreviver, o homindeo Australopithecine presente no Grande Vale do Rift, na frica h, pelo menos 4,1 milhes de anos se tornou mais carnvoro que seus primos primatas e desenvolveu o bipedalismo (capacidade de andar sobre duas pernas) com uma postura ereta, permitindo maiores possibilidades de coleta de comida e a caa com duas mos livres. Segundo alguns especialistas, devido dieta altamente calrica, sua capacidade cerebral aumentou proporcionalmente ao seu peso corporal. As florestas africanas continuaram a se retrair, e esses robustos Australopithecines se ajustaram fsica e mentalmente s novas, ridas e abertas savanas; eles desenvolveram uma maior cooperao entre pequenos bandos, com perodos de caa mais longos e cobrindo distncias maiores. Nenhum grande primata jamais exibiu a coero social necessria para caar nas savanas (embora os chimpanzs se juntem em bandos para caar macacos na floresta); ainda assim, foi na savana africana que o Australopithecine se desenvolveu. Porm, um Australopithecus africanus de trs milhes de anos atrs, por exemplo, teria demonstrado uma capacidade lingustica similar de um gorila, chimpanz ou bonobo moderno. Ao dominar o bipedalismo, os australopithecines se tornaram grandes primatas andantes, mas a maioria dos especialistas concorda em afirmar que eles no eram grandes primatas falantes.2

    A linguagem vocal humana parece ter surgido pela primeira vez com o gnero Homo, como ser explicado a seguir. Hoje em dia, a

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  • maioria dos especialistas assume que uma espcie do gnero Australopithecus ou os africanus do sul da frica, ou os afarensis do leste da frica originou uma linhagem que eventualmente evoluiu para 0 nosso gnero Homo, cerca de 2,5 milhes de anos atrs. (Porm, igualmente possvel que o Homo seja um gnero no relacionado a ele.) O mais antigo espcime Homo j identificado, com 2,4 milhes de anos, pertence espcie Homo habilis. O habilis surgiu quando o clima da frica mudou novamente: ele ficou mais seco e frio; as florestas tropicais encolheram, o pasto cobriu extenses maiores. Com uma capacidade cerebral de 400 cc a 500 cc, os Australopithecines eram evidentemente inaptos, em termos evolucionrios, para se adaptar a essas mudanas ambientais. Com um crebro significativamente maior, com capacidade entre 600 cc a 750 cc, o Homo habilis possua outros atributos inexistentes no Australopithecus e necessrios sobrevivncia nesse novo ambiente membros modernos, mais longos e assim, o habilis prosperou at cerca de 1,6 milho de anos atrs. O habilis no fabricava armas; ele comia restos de presas de carnvoros mais fortes e velozes. Porm, o habilis fabricou ferramentas de pedra simples, como martelos de pedra. O habilis tambm foi a primeira criatura a controlar o fogo.

    O crebro maior do habilis permitiu que bandos maiores sobrevivessem, conseguindo excedentes ocasionais de comida. Por sua vez, isso permitiu que agrupamentos cada vez maiores e mais complexos de habilis se desenvolvessem, exigindo sociedades mais elaboradas e favorecendo maior propagao entre os membros com habilidades mentais superiores. Apenas no crnio do Homo habilis foi encontrada pela primeira vez a salincia da rea de Broca, uma regio do crebro, essencial para a produo da fala e da linguagem de sinais.3 O habilis poderia possuir os caminhos neurais para uma linguagem muito rudimentar.

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  • Porm, a fala humana no devia ser fisicamente possvel naquela poca. Os atributos fsicos necessrios para a produo do discurso vocal foram, geralmente, ignorados na busca pelas origens da linguagem humana. A cincia s comeou a investigar essa questo a srio nas ltimas duas dcadas do sculo XX. Parece que h 1,6 milho de anos, o Homo ergaster, uma espcie de homindeo que sucedeu o habilis, ainda preservava o pequeno buraco na vrtebra da caixa torcica atravs do qual passa a medula espinhal, idntico ao pequeno buraco que hoje tambm encontrado em primatas no humanos. Os nervos dessa regio controlam os msculos da caixa torcica usados especificamente na expirao. Um buraco to pequeno torna as expiraes necessrias fala incontrolveis: h muito pouco tecido nervoso. As duas espcies mais antigas do Homo eram, desse modo, capazes apenas de padres de fala curta e lenta e no modulada, e no uma fala articulada, que o arranjo sistemtico de sons vocais significativos.

    Alm disso, sua laringe ou caixa vocal ainda era parecida com a das crianas humanas, que so anatomicamente incapazes de articular a maior parte dos sons humanos at a descida da laringe na garganta, que ocorre aps o primeiro ano de vida (a laringe dos grandes prima-tas no desce). O crnio do antigo Homo habilis mostra apenas uma leve flexo na sua base, indicando que sua laringe ainda no havia evoludo para a dos humanos adultos modernos. Mesmo se os caminhos neurais que permitem a fala estivessem presentes, os rgos fsicos necessrios a ela no estavam.

    Os atributos fsicos, necessrios fala articulada humana, parecem ter evoludo bem rapidamente entre 1,6 milho e 400 mil anos atrs. dessa ltima data que provm o mais antigo fssil de homindeo que indica um uso possvel do discurso vocal. Essa

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  • possibilidade surgiu com uma espcie de homindeo totalmente nova: o Homo erectus.

    HOMO ERECTUS A cincia moderna reconhece atualmente pelo menos trs

    espcies essenciais do gnero Homo: habilis, erectus e sapiens, nesta ordem evolucionria. possvel que apenas duas espcies humanas tenham vivido alm da frica: o erectus e o sapiens, e que tenham realizado o feito apenas porque haviam elaborado, por meio de uma fala rudimentar, um alto grau de organizao social, que permitiu a migrao dos grupos. Um modelo atualmente preferido coloca o Homo erectus como o primeiro homindeo a deixar a frica, seguindo animais selvagens maiores e deixando para trs uma trilha de machados minuciosamente manufaturados.

    Na dcada de 1890, a descoberta dos fsseis do topo do crnio, molar e fmur de um humano na ilha de Java, na Indonsia, datado de 700.000 anos atrs, provou que um homindeo, primeiro chamado de 'homem de Java', habitava o que na poca era o sudeste do subcontinente asitico de Sunda. Descobertas posteriores permitiram a identificao de uma nova espcie: o Homo erectus. Essa espcie de homindeo pode ter evoludo na frica cerca de dois milhes de anos atrs, seguindo manadas pelos pastos africanos durante uma expanso interglacial, tornando-se, aos poucos, quase totalmente carnvora. O surgimento do erectus assinalou um grande avano na evoluo dos homindeos. O erectus era mais magro, mais alto, mais rpido e mais esperto que todos os outros homindeos antes dele. Do pescoo para baixo, ele lembrava com preciso os humanos modernos. Assim, o erectus ostentava um corpo forte, sua cabea apresentava sulcos

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  • protuberantes na rea da sobrancelha, e sua testa se projetava para atrs. Alguns especialistas acreditam que a energia extra fornecida por sua dieta predominantemente carnvora produziu um crebro maior: 800 cc a 1.000 cc (Homo sapiens: 1.100 cc a 1.400 cc).

    O crebro maior permitiu que o erectus inventasse de uma maneira sem precedentes na natureza at ento. O erectus fabricou o primeiro machado de mo (o mais antigo stio arqueolgico de machados de mo do mundo fica em Konso-Gardula, na Etipia, e data entre 1,7 e 1,37 milho de anos). Ele matava a presa com lascas e tijolos feitos de pedras. Provavelmente tambm usava ossos e madeira. Com armas versteis e bons suprimentos de carne, o erectus se tornou evidentemente o primeiro homindeo globalmente adaptado.

    Aparentemente, o erectus emigrou da frica bem cedo, quase ao mesmo tempo de seu surgimento como espcie. (Ou ento seu ancestral Homo emigrou antes dele, e evoluiu para erectus em outro lugar, emigrando depois para Java, e de volta para a frica, como prope uma outra teoria.) Parece que o erectus j estava instalado em Java ou seja, no antigo subcontinente de Sunda, antes da elevao do oceano cerca de dois milhes de anos atrs.

    A conexo com Java essencial. At 1997, acreditava-se que o erectus nunca havia, provavelmente devido ausncia de fala e inteligncia, conseguido cruzar a linha de Wallace, o limite imaginrio que separa Sunda da ilha de Lombok e divide a fauna da sia e da Austrlia. Na verdade, at ento, a linha de Wallace representava um divisor de guas que delineava as diferentes capacidades e alcance do Homo erectus e do Homo sapiens}

    Porm, ferramentas de pedra e restos dietticos descobertos em 1997 na ilha Flores ao leste de Lombok do outro lado da

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  • linha de Wallace -, datados entre 900.000 e 800.000 anos atrs, parecem demonstrar que o erectus era inteligente e socialmente bem organizado o suficiente para construir balsas de bambu e cruzar o estreito de dezessete quilmetros que separa Sunda de sua vizinha oriental, mesmo nas pocas de nveis martimos mais baixos. (Mais de uma dcada antes, um paleontlogo holands sugeriu que os humanos haviam causado ali a extino dos stegodons pigmeus cerca de 900.000 anos atrs.)

    Planejamentos complexos exigem processos mentais complexos. A implementao social de um planejamento complexo demanda um alto grau de cooperao social. Isto implica o uso de uma linguagem que permita uma sintaxe condicional (frase significativa e sentena sequencial): 'se fizermos isto, acontecer isso e aquilo'. Parece apropriado concluir a partir das evidncias da ilha Flores que j h quase um milho de anos, o Homo erectus era capaz de expressar tal forma de proposio condicional em sua fala. Isto j est bem alm do 'primeiro passo' da humanidade em direo a um pensamento simblico.

    Apenas recentemente os especialistas cogitaram a ideia de que o erectus poderia ter sido capaz da linguagem vocal. A admisso deriva do reconhecimento da capacidade de organizao do erectus, como pode ser testemunhado em suas mltiplas conquistas atravs do globo. Porm, improvvel que a linguagem do erectus tenha sido a fala como a conhecemos. O buraco na vrtebra mais baixa atravs da qual passa a medula espinhal ainda era pequeno demais para que ele pudesse controlar a expirao. Expresses vocais curtas e significativas eram possveis; talvez uma sintaxe condicional estivesse realmente se desenvolvendo. Mas expresses vocais longas e complexas eram anatomicamente impossveis.5

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  • Aparentemente o Homo erectus povoou todo o Velho Mundo (ilustrao I). Dez mil ferramentas de pedra, incluindo muitos machados de mo, recentemente descobertos em Ubeidiya em Israel, perto do Mar da Galileia foram datados de 1,4 milho de anos atrs. At a dcada de 1990, acreditava-se que os humanos no haviam entrado na Europa antes de 500 mil anos atrs. Porm, indcios da presena do erectus no local datam de um tempo muito anterior a esse, e aparecem quase anualmente nos registros arqueolgicos. claro que isso estabelece uma relao imediata cora a histria da linguagem humana na Europa.

    No incio de 1996, uma grande parte do topo do crnio de um (provisoriamente identificado) erectus que havia sido encontrado a 80 quilmetros a sudeste de Roma, perto de Ceprano, foi montado e descobriu-se que ele datava de mais de 800.000 anos; ele no tem a crista que percorre o centro do crnio, e seu crebro significativamente maior que o do erectus clssico. Em duas temporadas recentes no stio arqueolgico de Gran Dolina, na Serra de Atapuerca, no norte da Espanha, foram descobertos cerca de 100 fsseis, provavelmente de erectus, e o dobro de ferramentas de pedra, datando de pelo menos 800.000 anos. A fabricao de ferramentas no exige linguagem, embora a travessia do estreito de Gibraltar como uma 'migrao de grupo' do mesmo modo que o cruzamento da linha de Wallace na Indonsia a exija. A semelhana desses fsseis com os fragmentos do erectus encontrado na Arglia na dcada de 1950 sugere que o erectus efetuou travessias martimas semelhantes do litoral do norte da frica at a Siclia e Itlia continental mais ou menos na mesma poca. O maxilar inferior de um erectus, datado de talvez 1,6 milho de anos (o dado contestado por vrios cientistas ocidentais), foi encontrado em 1991, na Repblica da Gergia. O peso cumulativo desses indcios

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  • atualmente sugere que o Homo erectus deve ter entrado na Europa por vrios pontos sudoeste, sul e leste mais de um milho de anos atrs. Porm, nem todos os paleontlogos concordam.6

    Esses primeiros europeus parecem surpreendentemente sofisticados quando comparados aos primeiros homindeos. O stio arqueolgico de Boxgrove no sudeste da Inglaterra demonstra isso, por um curto perodo, h, pelo menos, 500 mil anos, os humanos primitivos estavam caando animais grandes e perigosos, como auroques e cavalos, com lanas de madeira numa elaborada orquestrao. No era o mesmo que comer restos, como os antigos erectus africanos; era uma caa cooperativa, numa escala bem acima do modo como os chimpanzs caam macacos na floresta. Para planejar, coordenar e emboscar a presa dessa maneira, a fala essencial.

    Mais recentemente, a Alemanha revelou a sofisticao da sociedade dos erectus na Europa central h quase 500 mil anos. Em 1995, perto de Scheningen, a leste de Magdeburgo, foram encontradas cinco longas lanas com 400.000 anos, entre milhares de ossos de cavalos abatidos e muitos restos de fogueiras. Outro stio, Bilzingsleben, perto de Jena, parece ter sido um povoado permanente de erectus, h, pelo menos, 412.000 anos, com 'casas' de 3 a 4 metros de largura e uma grande rea pavimentada que deve ter servido para rituais de grupo, incluindo o de esmagar e espalhar restos humanos. O stio forneceu a maior coleo de artefatos feitos com ossos do mundo que indicam uma presena anterior de oficinas para a fabricao de artefatos de ossos, madeira e pedras. Vrios ossos de Bilzingsleben parecem exibir incises intencionais, revelando linhas cortadas em intervalos regulares. Embora seu descobridor veja nesses talhos smbolos grficos primitivos, outros sustentam que qualquer intencionalidade humana seria improvvel, uma vez que o

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  • 1 Alcance cronolgico do Homo erectus (o mapa apresenta os litorais modernos).

  • pensamento simblico geralmente aceito como uma caracterstica da mente humana moderna.

    Cerca de 350.000 anos atrs, o norte da Europa foi tragado pelas geleiras. Os humanos tornaram-se escassos, e migraram para o sul atrs de climas mais quentes. Restos de pelos menos 32 humanos de 300.000 anos atrs foram descobertos em 1993 na Serra de Atapuerca. Um crnio possua um crebro to grande quanto o de um humano moderno. As caractersticas faciais desses humanos primitivos lembravam os primeiros Neandertais (veja mais frente), mas sua altura era similar nossa. No se sabe se essa populao era composta de Homo heidelbergensis tardios, Homo sapiens primitivos ou uma nova espcie de Homo. Como resultado de migraes sucessivas, nessa poca, a Europa abrigava muitas espcies diferentes de homindeos. As diferenas entre os fsseis tambm sugerem uma diversidade 'racial' significativa entre as populaes de erectus, indicando uma maior liberdade gentica do que se estimava at ento.

    O clima rspido da Europa forava uma dieta quase exclusivamente carnvora, a qual, por sua vez, devido s enormes dificuldades apresentadas pela caa naquele clima, tornava urgente planejamentos, coordenaes e organizaes ainda mais complexas: as sociedades de homindeos primitivos europeus chegaram a designar pequenos grupos de caadores que se separavam do grupo principal durante longos perodos. Para sobreviver na Europa durante as Eras Glaciais, migrantes de latitudes meridionais mais quentes tiveram de desenvolver redes sociais mais complexas, ir embora ou perecer. Uma teoria recente prope que a fala articulada humana possivelmente evoluiu primeiro no rspido norte europeu e s depois foi transmitida para outras espcies de Homo em outros locais. Porm, se a linguagem geneticamente determinada, sua transmisso para outras espcies s poderia

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  • ocorrer por meio de acasalamentos hbridos; isso faz essa teoria parecer improvvel. Caso o suposto uso da linguagem articulada em Sunda, que permitiria a travessia da linha de Wallace 900.000 anos atrs seja verdade, ele similarmente contradiz a sugesto.

    O Homo erectus 'deixou' de existir? Recentemente, uma coleo de fsseis de erectus no stio arqueolgico de Ngandong, na Indonsia, foi redatada para menos de 50.000 anos atrs. Talvez o erectus tenha coexistido com o recm-surgido sapiens. Sob esse aspecto, as descobertas mais recentes de fsseis ainda parecem apoiar, pelo menos, uma verso modificada da teoria da 'Sada da frica para a substituio do Homo erectus e o aparecimento do Homo sapiens nessa regio.7 Ou seja, o sapiens moderno surgiu na frica entre 150.000 e 100.000 anos atrs, e depois se expandiu para o Oriente Mdio e a Europa, onde substituram os Neandertais, 30.000 anos atrs, e para a sia, onde substituram os mais antigos Homo erectus. Os crnios de Ngandong exibem abbadas mais altas que os mais primitivos crnios de erectus de Java ou da China. Alguns especialistas acreditam que isso pode ser explicado ou como uma evoluo convergente ou seja, que o crnio dos erectus simplesmente evoluiu por conta prpria para um crnio parecido com o dos humanos modernos ou como resultado de acasalamento hbrido com a chegada do sapiens menos de 50.000 anos atrs (embora a caracterstica que defina uma 'espcie' seja a incapacidade de se acasalar com outra).

    Com a espcie erectus, talvez originada h 900.000 anos, uma forma de fala articulada foi aparentemente se desenvolvendo pela primeira vez, possivelmente permitindo planejamentos e organizaes complexas. possvel que os humanos j estivessem usando nomes para identificar indivduos. Porm, declarar, como fez recentemente um neurocientista, que um primitivo ritual de casamento plantou

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  • o simbolismo na mente do homindeo, e foi a nica fonte da linguagem humana, ignorar a complexidade e a antiguidade do desenvolvimento da fala humana que, na realidade, foi um processo demorado de evoluo anatmica conduzido e alimentado por uma srie de fatores externos. Que esse processo j houvesse sido iniciado especificamente pelo erectus, talvez seja ainda mais insinuado pelas capacidades fsicas e neurais de fala que eles dividiam com os posteriores neanderthalensis (Neandertais) e sapiens (humanos modernos) e a relativa sofisticao de suas sociedades baseadas na fala: uma sofisticao que aponta para ou uma evoluo convergente ou uma origem comum.

    Quais fundamentos lingusticos o Homo erectus poderia ter desenvolvido h quase um milho de anos? Deve-se lamentar a improbabilidade de que os processos cerebrais dos primeiros homindeos possam ser restaurados. Geralmente, aceita-se que a linguagem vocal humana no deriva diretamente de alguma caracterstica pr-humana. A linguagem vocal humana tambm no lembra nenhuma forma conhecida de comunicao animal na natureza: o alerta 'fogo!' dos grandes primatas e outros animais, por exemplo, no constitui uma 'palavra embrionria. E a associao indexical ou seja, uma ligao entre um objeto fsico e uma palavra falada ou sinalizada como 'banana' ou 'teclado' no simblica, mas simplesmente associativa. Assim, as vocalizaes ou sinais que reproduzem essas associaes, tais quais as usadas nos experimentos de comunicao entre humanos e animais, no apontam para o uso humano da linguagem. A linguagem vocal humana diferente. Ela um processo dinmico, simblico no associativo e totalmente antropocntrico. Isso ocorre porque a linguagem vocal humana evoluiu como uma funo distinta e autnoma com os rgos de fala e crebro humanos.

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  • Porm, a implicao de que o crebro humano s poderia ter evoludo em conjuno com a fala improvvel.

    No centro da histria do surgimento da linguagem vocal humana esto duas questes fundamentais: como apareceram as 'palavras' e como a 'sintaxe' surgiu?8 Talvez essas duas questes possam ser mais bem respondidas por meio de uma investigao dos universais lingusticos. Esses universais poderiam estar presentes nos primeiros estgios do desenvolvimento da linguagem dos homindeos. A classe bsica do 'lxico' (entendido aqui em seu sentido mais amplo, significando o conjunto de unidades individuais de comunicao) deve ser compartilhada por todas as criaturas, e manifestada por meio de diferentes modos de expresso: os feromnios, no caso das formigas, a dana das abelhas e a linguagem voclica dos homindeos. Porm, pode-se observar que o lxico vocal da linguagem de uma criana humana no se combina em estruturas mais longas; seu lxico tambm no pode ser definido em termos de outras palavras. A linguagem da criana humana carece de sintaxe, da mesma forma que todos os no humanos carecem de sintaxe em seus vrios modos de comunicao. (O contra-argumento de que as danas das abelhas certamente tm algum tipo de sintaxe comearia o problema; coreografia no substitui articulao.)

    Cerca de um milho de anos atrs mudanas significativas nas vocalizaes dos homindeos primitivos foram, evidentemente, ocorrendo, talvez como mais uma consequncia, a evoluo da capacidade cerebral resultante da dieta, das migraes e/ou das mudanas climticas. A gramtica foi surgindo a partir de sons at ento indistinguveis. Provavelmente, um lxico vocal bsico foi incorporando uma morfologia simples: por exemplo, uma palavra central como 'caa poderia agora se tornar 'caado' para expressar o passado. (Essa

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  • uma analogia meramente ilustrativa.) Uma fonologia, ou sistema de sons, mais sofisticada talvez decorrente de um melhor controle verbal, permitiu distines fonticas (som falado) que se tornaram distines fonmicas (a menor unidade de som): uma palavra como 'co' poderia agora ser distinguida de uma palavra como 'mo'. Foi nessa poca que os primeiros universais lingusticos especficos poderiam, talvez, ter aparecido. Pode-se deduzir os universais pr-sapiens nos tipos de universais encontrados nos sapiens de hoje.

    Aparentemente h quatro tipos bsicos de universais lingusticos. Entre os vrios universais absolutos, esto, por exemplo, o reconhecimento de que todos os sistemas lingusticos contm pelo menos trs vogais e que preto e branco devem estar presentes entre o conjunto de cores. Entre os universais tendenciais, est a percepo de que [p t k] so 'normalmente' os pontos de articulao bsicos para pausas (consoantes que encerram uma obstruo total das vias respiratrias) e que outras pausas geralmente no so includas lngua a no ser que [p t k] j estejam presentes. Universais implicativos s so verdadeiros quando existem certas condies: por exemplo, se vermelho uma cor em determinada lngua, ento pode-se 'esperar' que preto e branco j estejam presentes nelas. Os universais no implicativos no exigem condies prvias, mas tambm podem ser absolutos ou tendenciais: isso observado no aparente universal de que todas as lnguas humanas contm pelo menos trs vogais.

    O linguista norte-americano Noam Chomsky props que crianas possuem uma 'predisposio inata para selecionar certos princpios formais de construo de frases em lnguas naturais e no em outras. Ele est convencido de que se, digamos, fosse construda uma lngua artificial que violasse vrios desses princpios, ento essa lngua simplesmente no poderia ser aprendida ou adquirida com a

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  • 'facilidade e eficincia' que uma criana normal demonstra ao aprender uma lngua natural. Porm, a hiptese de Chomsky no est sujeita verificao emprica direta. Tambm h vrios problemas graves com o conceito 'inato'.9 Mais significativamente, o conceito parece exigir uma aceitao passiva de uma qualidade indefinvel e inexplicvel 'inatismo' em vez de identificar caractersticas lingusticas universais derivadas do processo dinmico do pensamento relacionadas capacidade de percepo, cognio, demanda social e processamento de informaes.

    Vamos passar da sintaxe, da construo das sentenas, para um lxico lingustico ou palavras constituintes, para ampliar a discusso sobre os universais (embora deva-se notar que a posio de Chomsky diz respeito apenas sintaxe). O universal preto/branco mencionado acima no verdadeiramente um 'universal de cores', mas meramente um produto do processo perceptivo do crebro humano que pode registrar o brilho em termos de 'negritude' e 'brancura', embora as cores sejam separadamente codificadas como 'amarelo/azul', 'vermelho/verde, e assim por diante, para o estabelecimento das seis cores focais do arco-ris as quais todos os grupos lingusticos parecem responder de variadas maneiras.

    Do mesmo modo, tambm formalmente inadequado simplesmente declarar que h um mnimo de trs vogais em todas as lnguas humanas modernas (ou seja, do Homo sapiens). Tambm deve-se incluir a informao de que as lnguas que possuem apenas trs vogais apresentam apenas o [i] (pronunciado i), [a] (a) e [u] (u). (Estudos recentes mostraram que mesmo o Homo neanderthalensis era anatomicamente incapaz de produzir especificamente essas trs vogais do Homo sapiens.) Pode-se perguntar 'por qu?'. A resposta seria que essas trs vogais fornecem a mxima projeo acstica. Vogais adicionais

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  • sero posicionadas uniformemente entre essas trs voga is bsicas de acordo com o papel dinmico da separao de vogais.

    Um outro exemplo, ligado ao processo cognitivo do crebro humano, seria o reconhecimento de que em todas as lnguas o singular ocorre mais frequentemente que o plural, e o plural mais frequentemente que o dual. Ou seja, o crebro humano registra uma unidade especfica antes de um grupo (conjunto), e um grupo antes de um tipo de grupo. A partir da pode-se generalizar a dinmica universal de que, em todas as lnguas, uma m