Uma construção da Amazônia na marca Égua de Camiseta: … · 2020-03-15 · 1 Uma construção...
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Uma construção da Amazônia na marca Égua de Camiseta: identidade,
representação e moda1
Isaac de Souza Lôbo
Universidade da Amazônia – Unama/PA
RESUMO
A construção e difusão de uma identidade paraense, como objeto de referência, para a marca
de roupas Égua de Camiseta foi o ponto de inquietação deste trabalho. Foram analisadas 26
imagens de camisetas, a fim de identificar quais são as principais representações veiculadas
e estabilizadas no imaginário coletivo. Para esta pesquisa, lancei mão das noções de
identidade, consumo e representações sociais.
Palavras-chave: moda – identidade – consumo – representações sociais.
1. INTRODUÇÃO
A maneira de falar, a decoração da casa, o carro escolhido e as roupas usadas
configuram algumas das escolhas que os sujeitos fazem de forma recorrente. Algumas delas,
diariamente; outras, mais esporádicas.
Através das práticas de consumo, é possível compreender questões dos indivíduos que
não precisam ser ditas, assim como o modo escolhido para se apresentar ao mundo. Algumas
dessas escolhas transcendem o gosto e o livre arbítrio: são pensadas para comunicar,
representar e criar sentidos.
A combinação de cores, texturas e materiais, os acessórios de luxo e as grifes de
marcas famosas, por exemplo, carregam conceitos que vão além dos próprios objetos. E a
aquisição deles está impregnada de sentidos que extrapolam o simples sentimento de posse.
Essas seleções só são compreensíveis coletivamente porque a representação é social: a
cor preta é luto, os cristais Swarovski são precisos, brilhosos e glamorosos, o tom nude segue
a linha “menos é mais”. Em outros países e culturas, os sentidos provavelmente serão outras.
Portanto, a identidade só se constrói por meio da diferença com o outro; e a representação,
ancorada nas crenças de uma coletividade.
1 Trabalho apresentado no I Encontro de Antropologia Visual da América Amazônica, realizado entre os dias 04
e 06 de novembro de 2014, Belém/PA.
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A imagem da identidade paraense é o fio condutor desta pesquisa. E, para visualizar as
representações feitas, escolhi, como objeto de estudo, a grife Égua de Camiseta, por oferecer
aos clientes roupas regionais e criativas, no melhor estilo “vestir o Pará”.
2. DESENVOLVIMENTO
A construção da identidade paraense sempre me inquietou, desde a época da
graduação. Uma pergunta que faço aqui, para começar o debate, é: por que, para ser
considerado o estereótipo de habitante nato do Estado, é preciso usar calças de linho e tons
terrosos? Por que usar penas de aves e fitas de cetim nos chapéus? Com exceção dos tons
terrosos, os outros elementos não estão massivamente solidificados na indumentária paraense.
Essas e outras imagens são construções de sentidos, os quais são representados e
reconhecidos socialmente, e que só atingem o objetivo de comunicar se os códigos forem
compreendidos e compartilhados no meio em que se insere. É o que pesquisador Serge
Moscovici chama de fenômeno das Representações Sociais:
As representações sociais são entidades quase tangíveis. Elas circulam, se
entrecruzam e se cristalizam continuamente, através duma palavra, dum gesto, ou
duma reunião, em nosso mundo cotidiano. Elas impregnam a maioria de nossas
relações estabelecidas, os objetos que nós produzimos ou consumimos e as
comunicações que estabelecemos. (2003: 10).
As roupas podem ser vistas como linguagem, comunicação, expressão de identidade e
face visível do consumo. Entretanto, só adquirem esses status por serem representações
sociais. Na apresentação do livro O mundo dos bens: para uma antropologia do consumo, de
MaryDouglas e Baron Isherwood, Everardo Rocha afirma que “os bens são investidos de
valores socialmente, utilizados para expressar categorias e princípios, cultivar ideias, fixar e
sustentar estilos de vida, enfrentar mudanças ou criar permanências” (2006: 8).
De acordo com a descrição no blog da marca analisada neste trabalho, a Égua de
Camiseta trabalha a temática paraense em 90% das estampas. Já no perfil no Twitter, o texto
faz questão de frisar que se trata de uma grife paraense, em que os produtos são pensados a
partir do regionalismo e da exclusividade. No fim do parágrafo, ainda existe a ênfase sobre
“vestir o Pará”.
Historicamente, a imagem veiculada do paraense é bastante delimitada. O apego às
raízes, ao que é natural e considerado da terra, está sempre presente, assim como a
religiosidade, a culinária exótica e a paixão pelo futebol. Aquilo que é definido como próprio
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ou local, segundo Barbero (1993, p. 21), está cada vez mais relacionado ao que a lógica das
comunicações de massa elege para representar como tal, como, mais recentemente, tem
acontecido com o tecnobrega e as aparelhagens – elementos atuais somados a este estereótipo.
O sujeito cosmopolita, presente em várias cidades brasileiras – cada qual com suas
associações identitárias locais e globais mescladas, misturadas e hibridizadas –, pouco é
retratado quando o assunto é a representação regional. Para Castro (2007a: 2), essas
identificações, com caráter simplista e reducionista, são reduções da realidade.
A discussão acerca das identidades não é recente, tampouco é possível vislumbrar um
ponto final. Assim com a temática é vista atualmente – múltipla –, o próprio estudo das
identidades também o é. Para Diana Crane, um elemento desempenha um papel de grande
relevância na construção social da identidade: o vestuário.
A escolha do vestuário propicia um excelente campo para estudar como as pessoas
interpretam determinada forma de cultura para seu próprio uso, forma essa que
inclui normas rigorosas sobre a aparência que se considera apropriada num
determinado período (o que é conhecido como moda), bem como uma variedade de
alternativas extraordinariamente rica. Sendo uma das mais evidentes marcas de
status social e de gênero – útil, portanto, para manter ou subverter fronteiras
simbólicas –, o vestuário constitui uma indicação de como as pessoas, em diferentes
épocas, veem sua posição nas estruturas sociais e negociam as fronteiras de status
(2006: 21).
Por meio das roupas, é possível interpretar a intenção de expor sentidos de quem as
veste. Para alguns autores que estudam moda, a ocupação, a identidade regional, a religião, os
costumes e a classe social, por exemplo, podem ser refletidos nas roupas. Concordo com este
argumento, em parte. Entretanto, friso que, caso os códigos sejam compreendidos, qualquer
pessoa é capaz de criar uma imagem, nem sempre condizente com a realidade. Então eu
pergunto: será que os usuários da marca Égua de Camiseta são mais paraenses que aqueles
que não usam? Ou, ainda, se valorizam mais a cultura local que os outros ao ponto de
estampá-la no peito? É uma expressão do que se sente, uma exteriorização do eu, ou a
construção planejada da identidade do sujeito?
O modo como os sujeitos se apropriam e reelaboram códigos oferecidos socialmente
também assume uma conotação de representação identitária. Quando compramos um DVD,
escolhemos um restaurante ou decidimos sair de casa vestindo um estilo de roupa,
dependendo daquilo que fazemos questão de tornar público, seremos julgados pela imagem
que estas práticas de consumo proporcionam. Segundo Canclini (1997:21), quando
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selecionamos os bens, também nos apropriamos deles e definimos o que consideramos
publicamente valioso – a maneira como nos integramos e nos distinguimos na sociedade.
Trata-se da capacidade que os bens têm de falar pelos indivíduos e destacar aspectos
gerais e subjetivos dos sujeitos. Por mais que não conheça uma pessoa que esteja vestindo
uma camiseta da marca que trato neste trabalho, só o fato de estar usando-a, essa escolha me
permite fazer alguns pré-julgamentos a respeito de suas preferências e posicionamentos sobre
o que seria a identidade regional.
A escolha dos bens cria continuamente certos padrões de discriminação, superando
ou reforçando outros. Os bens são, portanto, a parte visível da cultura. São
arranjados em perspectivas e hierarquias que podem dar espaço para a variedade
total de discriminações de que a mente humana é capaz. As perspectivas não são
fixas, nem são aleatoriamente arranjadas como um caleidoscópio. Em última análise,
suas estruturas são ancoradas nos propósitos sociais humanos (DOUGLAS,
ISHERWOOD, 2006: 114).
O consumo tem a capacidade de construir imagens dos indivíduos pela maneira como
eles selecionam bens, o que pode gerar aspectos de identificação, mas também distinção com
categorias e grupos.
E qual é a imagem que a marca Égua de Camiseta tem do paraense? E quais são as
representações utilizadas para criar identificações com o público? Por questões
metodológicas, analisei as imagens publicadas no perfil do Facebook da marca, nos álbuns
“Clássicos” e “Sucessos”. A escolha pelas camisetas que compõe esses grupos se deu em
função do entendimento que clássicos são duradouros e tradicionais, e sucessos são campões
de crítica e público. Vale frisar que quem os intitulou dessa forma foi a própria empresa.
Como não tenho como precisar o período de produção ou publicação das imagens no
Facebook, acrescentei neste objeto as postagens de outra rede social, o Instagram, que me
proporciona temporalidade, já que data o período em que as fotos são veiculadas, e frescor,
por entender que as fotografias não são de arquivo e, sim, da produção atual da marca.
Acessei o perfil da marca no Instagramno dia 7 de outubro de 2014 e retirei as publicações
desde o início de agosto (dia 5 aproximadamente) até o dia 5 de outubro de 2014. As imagens
repetidas (nos álbuns do Facebook e Instagram) foram incluídas somente uma vez.
O álbum Clássico do Facebook tem duas camisetas: uma com o açaí como temática
principal e a outra com a bandeira do Pará, representada por meio de um jogo de vídeo grame.
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A Égua de Camiseta, na descrição, pontua
algumas ações que considera um clássico. O açaí
somente, apesar de ter uma aceitação local expressiva,
não ganha esse título. A ingestão do suco da fruta é um
ritual: tomá-lo após o almoço, como sobremesa. Eu
acrescento ainda que a sesta faz parte do pacote.
Quando a marca elege o açaí como um elemento
característico da identidade paraense e o associa à
felicidade, qualquer pessoa que tenha contato com essa
camiseta entenderá a paixão local pelo fruto.
A outra imagem que compõe o grupo de clássicos da marca é uma camiseta com a
bandeira do Pará. Descrevendo assim parece que se trata de uma estampa qualquer, disponível
em lojas de artigos para turismo. Entretanto, o viés divertido, contemporâneo e pop da grife
aproxima este elemento de outro global: vídeo game.
Das estampas que colocarei neste trabalho, essa é
uma das que melhor mescla o regional com o global. O
Mário Bros é um personagem clássico de vídeo game,
sendo reconhecido até mesmo por quem não é aficionado
por jogos eletrônicos. A proposta é simples: apenas
estampar a bandeira do Estado; entretanto, a partir do
momento em que se utiliza a linguagem de vídeo game, as
relações e conexões estabelecidas são ampliadas. Não se
trata de um paraense que tem orgulho do Estado. É um paraense divertido, criativo, moderno,
jovial e que se orgulha do Pará. A identidade local ganha um componente universal,
aproximando a simbologia dos outros, e afastando-se um pouco do regionalismo tradicional
enraizado. Não é necessário ser paraense para esta estampa fazer sentido e comunicar códigos.
O álbum de Sucessos é formado por 18 imagens. A cidade de Belém, as gírias locais, a
chuva, o açaí e as localidades de Algodoal e Ajuruteua estão entre as temáticas abordadas.
As duas primeiras camisetas do álbum trazem elementos que caracterizam a cidade de
Belém. A primeira delas apresenta um recorte de um lugar tradicional da cidade: o Bar do
Parque, localizado na Praça da República, ao lado do Teatro da Paz. A segunda enfatiza as
chuvas vespertinas de Belém, em uma visão romântica.
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A camiseta do Bar do Parque é simples e direta. É uma valorização de um local,
bastante tradicional na cidade. O lado criativo, jovial e um pouco mais global aparece na
apresentação da roupa, com a frase “Vamos passear no Parque!” – um trocadilho com a
canção infantil “Vamos passear no bosque”.
O mesmo ocorre com a camiseta sobre as chuvas da tarde. Por mais que essa seja uma
representação local bastante difundida e cultuada pelos defensores de uma identidade
regional, ela também está muito localizada na cidade de Belém. Os paraenses de outras
cidades podem até reconhecem este elemento como identitário regional, entretanto nem
sempre as chuvas são constantes em lugares como Placas e Novo Progresso, por exemplo
A linguagem e as gírias locais são a temática das outras duas camisetas que seguem no
álbum. A palavra “Égua” é o carro-chefe, o que é mais do compreensível, considerando o
nome da empresa.
A primeira traz a frase “Égua muleque tédoidé”. Considero esta uma das camisetas
mais limpas e menos apelativas. É só uma frase. É como aquelas camisetas com frases em
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outras línguas, as quais não fazem sentido para quem não compartilha dos mesmos códigos e,
sim, para quem decide andar com o letreiro pelas ruas.
A segunda já delimita um campo: o modo como fala o paraense, na concepção da
marca. De pronto, discordo de duas palavras: tacacá e chibé, já que ambos são produtos,
receitas. As demais palavras abarcam todos os paraenses? Eu, por exemplo, nunca falei “Pai
d‟égua”, “rabiola” e “ulha”. Trata-se, mais uma vez, de tentar somar e solidificar uma
concepção essencialista de identidade paraense. E mais: por que a brincadeira em tatuar no
braço do ator Dwayne Douglas Johnson a frase “Eu amo Belém”? A proposta não é do Pará?
Das duas camisetas seguintes, incluídas no álbum, comentarei apenas a segunda, pois
a primeira já foi abordada.
“Pense positivo. Ainda bem que é manga. E se fosse jaca?” é a estampa da sexta
imagem incluída rol dos sucessos da marca. Essa estampa foi inspirada na imagem de Belém
como Cidade das Mangueiras. Preciso ressaltar que essa representação social de Belém foi
apenas a inspiração para a estampa. Entretanto, Belém é mesmo a Cidade das Mangueiras?
Onde estão as mangueiras da rodovia Augusto Montenegro? E da avenida Duque de Caxias?
Não listarei aqui os pontos onde há ou não essa árvore na cidade inteira, mas é
interessante pensar como um elemento é difundido como característico local, mas não está
presente em grande parte da região metropolitana. Isso é um exemplo de como somos
repetidores de discursos criados, sem nem conhecermos a origem, e que nem sempre fazem
total sentido. Além de repetirmos, nós o afirmamos, o reproduzimos e o mantemos. E, mais
uma vez, a estampa é sobre Belém. Será que a identidade paraense se resume a Belém? Não
há nada de marcante nos outros municípios?
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As estampas seguintes trazem, novamente, elementos já comentados aqui, apenas com
outro formato: o açaí e Belém. E ambas são apresentadas com letras de músicas consideradas
genuinamente paraenses.
A camiseta sobre o açaí expõe o transporte
da fruta em paneiros sobre um veículo Kombi, da
marca Volkswagen, com um açaizeiro ao fundo,
feito com traço de desenho. Um trecho da música
Sabor Açaí, de Nilson Chaves, foi utilizado para
criar uma identificação maior com os usuários
que conhecem e sentem a canção, a qual exalta a
fruta como marca simbólica de consumo paraense.
A música utilizada para divulgar a outra estampa foi “Belém, Pará, Brasil”, de Edmar
Rocha. Inclusive, o nome da canção é o texto da estampa. Sobre a camiseta em si, não tenho
muito o que ponderar, em função de existir criações que seguem a mesma proposta em várias
cidades brasileiras. Mas não posso deixar de expor a contradição da utilização do trecho desta
música ao lado para reafirmar a identidade local.
Frases como “Vão destruir o Ver-o-
Peso e construir um shopping center” e “Vão
derrubar o Palacete Pinho pra fazer um
condomínio” iniciam a canção, que provoca
uma sensação de perda de elementos
identitários locais como reflexo da
modernização. Em seguida, afirma que a
região não é “levada a sério”, que os “nossos índios não comem ninguém” e que “a gente
toma guaraná, quando não tem coca-cola”. Ou seja, ao mesmo tempo em que lamenta a perda
de raízes, exalta o fato de fazer parte da contemporaneidade. A letra ainda aponta o culpado
disso: “a culpa é da mentalidade criada sobre a região”.
Por mais que a estampa não traga o discurso completo da música, certamente é feita
uma associação direta a todos esses elementos, em função da utilização do trecho ao lado.
Contudo, é preciso destacar que a grife está fazendo justamente o que é criticado na canção:
mantendo a mentalidade sobre a região.
As próximas estampas apostam na simbologia de outras localidades paraenses:
Algodoal e Ajuruteua – praias que se destacam pela beleza e tranquilidade –, saindo do foco
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da capital, mas que são destinos frequentes de quem mora em Belém. Além dessas duas
localidades, o município de Salinópolis e o distrito de Mosqueiro também estão na lista dos
recantos populares de veraneio do belenense, já que são de fácil acesso para quem está na
capital do Estado.
Detentora de uma aura de liberdade, a praia
de Algodoal localiza-se na ilha de Maiandeua,
pertencente a Marudá, distrito do município de
Marapanim. Em função da travessia de Marudá até
a ilha, Algodoal mantém uma estrutura rústica, sem
veículos e sem iluminação pública. Esse
distanciamento permite um desprendimento maior
dos que se deslocam ao local, provocando atitudes e ações que não devem ser repercutidas
fora daquele ambiente. A máxima “o que acontece em Algodoal, morre em Algodoal” já foi
título de comunidade no Orkut e é uma espécie de Lei. E sugere que o que acontece lá é
sigiloso e não seria bem aceito no cotidiano das cidades grandes.
Outro lugar bastante frequentado
pelos belenenses é a praia de Ajuruteua, no
município de Bragança. O acesso ao local,
de Belém, é somente por terra. Entretanto,
a estrada que leva à praia é cercada de
manguezais, sendo, portanto, comum que
caranguejos cruzem a pista para se
deslocar. Em função desta cena, comum a
quem frequenta a praia, é que a marca criou a estampa abaixo, fazendo alusão à fotografia dos
Beatles, em que os integrantes da banda cruzam uma rua sobre a faixa de pedestres.
Vale ressaltar que as últimas duas estampas só fazem sentido a quem conhece as
localidades, as quais não fazem parte do roteiro tradicional dos moradores dos municípios do
sul e oeste do Pará.
As estampas seguintes são bem diretas. A primeira faz referência às brincadeiras de
criança, em que a contagem, seja para começar a brincadeira, seja para pontuar um momento
do jogo, é finalizada com a frase “um, dois, três, largatiii, já!”. O sentido é o mesmo de “um,
dois, três e já!”. Já a segunda estampa apresenta os peixes da região.
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A estampa seguinte, assim que a vi, me remeteu a um monitor de freqüência cardíaca.
Os corações desenhados nas linhas ajudaram também nesta associação. As palavras
selecionadas não são surpreendentes. Fazem parte de um grupo estereotipado de
representações. Se separarmos por
classificações, fazem referência ao lugar
as palavras “Belém”, “Ver-o-Peso” (que
fica em Belém), “Pará” e “Amazônia”;
aos elementos naturais, não exclusivos do
Estado, “calor”, “sol” e “chuva”; à
linguagem a expressão “égua”; e à
culinária as frutas “açaí”, “cupuaçu”,
“pupunha” e “bacuri”, as comidas típicas “tacacá” e “maniçoba”, e os ingredientes “tucupi”,
“filhote” e “pirarucu” – sendo os dois últimos espécies de peixe.
Ressalto, considerando esta seleção de palavras, a imagem construída do Estado: um
lugar quente e úmido, e rico gastronomicamente. E afirmo categoricamente que o Pará não é o
único lugar do Brasil que possui essas características.
As outras três imagens trazem como tema a paixão do paraense pelo futebol,
materializada através dos times sediados em Belém Remo e Paysandu, rivais e essenciais para
a manutenção um do outro – apesar de já haver times expressivos no interior do Estado.
As criações da grife utilizam elementos universais para aproximar a mensagem de um
público não familiarizado com o regional. É o que ocorre com a estampa abaixo com a
palavra “égua”, utilizada dentro do padrão da marca Lego, apoderando-se do mesmo artifício
já discutido acima sobre a apropriação do ícone de vídeo game Mário Bros.
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A última estampa do álbum foi inspirada
nas obras do grafiteiro e pintor britânico Banksy,
conhecido por espalhar obras de arte nas ruas,
grafitando prédios antigos, muros, entre outros. Na
estampa, é como se o artista tivesse se inspirado
no Pará, representado pelas bandeiras, para fazer uma
obra em uma parede.
As imagens seguintes foram extraídas no perfil da marca no Instagram, acessado no
dia 7 de outubro de 2014. Selecionei apenas as fotografias que apresentavam estampas.
Seguem as 12 postagens, das mais antigas às mais atuais.
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Nesse momento, já é possível perceber que as temáticas abordadas pela marca são as
mesmas. O que muda é a forma de apresentação. O paraense e sua identidade são
representados por gírias e associações com elementos naturais, como a culinária e as frutas. O
interessante da segunda camiseta acima é a afirmação sobre a digital de quem mora/nasce no
Pará.
As estampas seguintes trazem, novamente, a valorização das frutas, como elemento
característico local e identitário, e a referência sobre Algodoal, já abordada neste trabalho,
mais acima.
A próxima estampa já foi apresentada, em um dos álbuns do Facebook. Já a outra,
apesar de não ter sido abordada, segue a mesma proposta visual. Entretanto, a camiseta que
carrega as cores da bandeira do Pará – azul e vermelho – é bem mais direta e explícita.
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O tema “Belém – Cidades das Mangueiras” é explorado, novamente, na camiseta
abaixo – a primeira. A segunda já foi debatida aqui.
A próxima estampa também já foi incluída neste trabalho, abordando o mesmo assunto
da anterior: as mangueiras da capital paraense. A segunda, por sua vez, é inédita neste
trabalho. Trata-se de uma reprodução do rótulo de uma cachaça feita de jambu, erva típica da
região, comercializada no bar Meu Garoto. Pela legenda, é possível concluir que a loja
também vende a bebida.
As duas camisetas abaixo são as últimas selecionadas para a análise deste trabalho. A
primeira delas faz uma releitura de uma imagem clássica: “I NY”. Misturando o global,
com o local, a marca faz uma interferência na frase acrescentando um traço na letra N,
formando um M – o que forma a palavra “my”, que significa “meu” – e inclui o nome do
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Estado ao final, juntamente com a expressão “pai d‟égua”, gerando o conceito “Eu amo meu
Pará pai d‟égua”.
A outra estampa segue a mesma linha de brincar com o universal. Como nas cidades
em que se vende açaí, a identificação do ponto de venda é feita através de uma placa
vermelha, estilo bandeira, com a palavra “açaí” escrita, a marca substitui, na imagem do
homem na lua, a bandeira dos Estados Unidos pela placa que sinaliza a comercialização do
produto.
Diante dessas imagens, e das mensagens estampadas, é possível imaginar qual é a
informação que os usuários querem transmitir ao usar as roupas e ainda como a marca
concretiza a identidade paraense. Esse apelo material é o que Canclini chama de rituais
valiosos, pois estabelecem relação entre sentido e prática. “Os rituais servem para „conter o
curso dos significados‟ e tornar explícitas as definições públicas do que o consenso geral julga
valioso”. (1997:58).
Nesse sentido, não posso afirmar que a marca Égua de Camiseta é a responsável pela
criação de uma imagem reduzida da identidade local. Ela apenas se apropria de um
estereótipo aceito socialmente e é justamente por esta razão que o discurso faz sentido, porque
consegue se comunicar até mesmo com aqueles que discordam da construção difundida.
Entretanto, posso garantir que a grife ajuda a propagar e a manter essas representações.
O consumo usa os bens para tornar firme e visível um conjunto particular de
julgamentos nos processos fluidos de classificar pessoas e eventos. [...] Dentro do
tempo e do espaço disponíveis, o indivíduo usa o consumo para dizer alguma coisa
sobre si mesmo, sua família, sua localidade, seja na cidade ou no campo, nas férias
ou em casa. A espécie de afirmações que ele faz depende da espécie de universo que
habita, afirmativo ou desafiador, talvez competitivo, mas não necessariamente. Ele
pode conseguir, através das atividades de consumo, a concordância de outros
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consumidores para redefinir certos eventos tradicionalmente considerados menos
importantes como mais importantes e vice-versa. (Douglas e Isherwood, 2006: 115-
116).
As representações sociais são os pilares de funcionamento das coletividades do mundo
contemporâneo. Elas tornam ideologias, teorias, significados em realidade compartilhada,
agem nas interações entre pessoas e coletividades. Para Moscovici, as representações sociais
“[...] „corporificam idéias‟ em experiências coletivas e interações em comportamento [...]”.
(2003, p.48).
As camisetas da marca analisada estão impregnadas de representações sociais, as quais
traduzem o enraizamento cultural paraense e que são notadamente aceitas como integrantes da
identidade local, recorrendo ao uso de mensagens consolidadas no imaginário popular como
sendo da terra.
Esses processos são criados e recriados, nem sempre são contínuos. Dependendo de
sua formação, alguns duram mais tempo; outros, já nascem fadados ao desaparecimento. As
novas representações agem nos pontos de tensão das culturas. É justamente onde há falta de
sentido, um ponto não-familiar, que as representações são criadas. A emergência dessas
representações torna familiar o desconhecido, proporcionando um sentimento de estabilidade
e reconhecimento.
Há uma relação sutil entre representações e influências comunicativas, identificadas
pelo autor, quando ele define uma representação social como:
Um sistema de valores, idéias e práticas, com uma dupla função: primeiro,
estabelecer uma ordem que possibilitará às pessoas orientar-se em seu mundo
material e social e controlá-lo; e, em segundo lugar, possibilitar que a comunicação
seja possível entre os membros de uma comunidade, fornecendo-lhes um código
para nomear e classificar, sem ambigüidade, os vários aspectos de seu mundo e da
sua história individual e social. (MOSCOVICI, 2003, p.21).
Elas possuem três funções básicas: a de constituição de um saber comum; a orientação
das condutas e dos comportamentos; e a constituição e fortalecimento da identidade. Elas
assumem o papel de compreender e comunicar o que já é sabido e transitam abstraindo
sentido do mundo, introduzindo “[...] ordem e percepções, que reproduzam o mundo de uma
forma significativa [...]. A representação iguala toda imagem a uma idéia e toda idéia a uma
imagem”. (MOSCOVICI, 2003, p.46).
Essas representações criam o que Moscovici (2003, p.54) chama de universos
consensuais. Nascidos no Pará ou não, o contato com as camisetas faz com que os clientes
experimentam o que é ser paraense. “[...] Universos consensuais são locais onde todos
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querem sentir-se em casa, a salvo de qualquer risco, atrito ou conflito. Tudo o que é dito ou
feito ali, apenas confirma as crenças e as interpretações adquiridas, corrobora, mais do que
contradiz, a tradição”. A reprodução dos discursos sobre a identidade paraense afirma e
reafirma constantemente o mesmo sentimento regional. Por mais que a maneira utilizada pela
marca seja universal, jovial e bem humorada, a mensagem tem o mesmo sentido: de manter a
tradição imagética local.
Todas as representações são sociocêntricas e tendem para o conservadorismo. As
memórias e experiências comuns de uma coletividade são fonte para a extração de imagens,
linguagem e gestos; tudo que faz significar. Mas essas experiências e memórias não estão
estagnadas, nem mortas. Para o uso delas, dois mecanismos funcionam como condição:
ancoragem e objetivação. Ancorar é o ato de classificar e nomear algo que não nos é familiar,
com intuito de familiarizá-lo, torná-lo reconhecível. Já a objetivação torna esse algo
familiarizado em realidade, em inteligível, tornando-o em “verdadeira essência da realidade”,
segundo Moscovici (2003). A objetivação sai do plano das idéias e concretiza-se no plano
material da realidade, de forma acessível.
O que antes estava no plano das idéias e, por meio de representações, ganhou o
significado de “verdade auto-evidente”. Certamente foi cristalizado de significâncias e
tacitamente aceito. Tal afirmação garante uma importante função representativa: “[...]
expressar primeiro a imagem e depois o conceito, como realidade”. (MOSCOVICI, 2003,
p.77). Músicas, propagandas, fotografias e as camisetas são exemplos da concretização dessas
“verdades”.
As representações são construídas diante dos sujeitos nos processos culturais, na
mídia, nos lugares públicos, por meio dos processos de comunicação. De acordo com o
idealizador da teoria (2003), a primeira finalidade delas é tornar a comunicação dentro de um
grupo não problemática, ou seja, facilitá-la, reduzindo o sentimento de vagacidade através de
certo grau de consenso entre seus membros.
Ninguém inventa uma representação social. Ela acontece nas interações cotidianas, por
meio das “[...] negociações implícitas no curso das conversações, onde as pessoas se orientam
para modelos simbólicos, imagens e valores compartilhados específicos” (MOSCOVICI,
2003, p.208). Dessa forma, os sujeitos passam a comungar de verdades que dão sentindo à
convivência na coletividade.
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Apesar de ter selecionado 32 imagens da marca Égua de Camiseta, publicadas pela
própria empresa em redes sociais, considero, para a análise das representações sociais mais
difundidas pela grife, 26 imagens, já que seis delas aparecem duas vezes.
Para compreender quais são as ideias mais recorrentes, elenquei quatro categorias e
pontuei elementos nas camisetas, a fim de quantificar as mensagens mais abordadas. As
categorias que criei, a partir das próprias camisetas, foram “natural”, “local”, “pop/universal”
e “linguagem”, e identifiquei 110 elementos. Não poderia criar categorias que não foram
identificadas nas estampas, como, por exemplo, “tecnologia”, a qual não teria nenhuma
representatividade.
O grupo “linguagem”, que engloba as expressões locais, como o “égua”, e o
significado delas, é o que possui maior representatividade, com 49 elementos, representando
44,54% do total. A partir disso, posso afirmar que a grife Égua de Camiseta considera o modo
de falar o diferencial e a marca dos paraenses. Não é a toa que o nome escolhido da empresa
leva a palavra “égua”.
A categoria “local” é a segunda com maior força. Entretanto, não está muito distante
da seguinte. Os elementos locais fazem referência aos territórios e aos lugares, integrando este
grupo as noções sobre Belém, Pará, Amazônia, Algodoal, Ajuruteua e pontos da capital
paraense, como o Bar do Parque e o Ver-o-Peso. São 26 elementos, o equivalente a 23,64%
do total, sendo que 12,73%, mais da metade (14 elementos), são sobre Belém. Dessa forma, é
possível constatar que a mensagem difundida sobre a identidade paraense está concentrada na
capital do Estado, negligenciando as manifestações e características das demais regiões e
cidades paraenses.
A categoria seguinte é a “natural”, com 25 elementos – bem próxima da anterior,
perfazendo 22,73% do total. Esse grupo inclui os aspectos da natureza não exclusivos do Pará
– como o sol, o calor e a chuva –, as frutas, os peixes e culinária, cuja base são os ingredientes
da natureza. As frutas são as mais recorrentes nessa série, aparecendo 14 vezes (12,73%),
sendo o açaí o líder, com 5 aparições.
Os elementos “pop/universais” foram os com menor destaque, aparecendo apenas 10
vezes, o correspondente a 9,09%. Esses elementos são usados pela marca para tornar a
estampa mais divertida, jovial e contemporânea.
As representações são formadas ao longo do tempo e assumidas publicamente pelos
sujeitos. Elas unem as ideias e o comportamento de uma coletividade. É válido lembrar que,
mesmo sendo construídas no âmbito do pensamento, as representações estão diretamente
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relacionadas às emoções coletivas. Estamos expostos às representações sociais por meio do
senso comum e do dito conhecimento popular. Elas nos chegam como algo natural, sem
estranhamento; assim, somos compelidos a perceber e dar sentido às nossas vivências sempre
por meio de um espectro representacional.
3. CONSIDERAÇÕES FINAIS
As representações sociais encontradas nas camisetas demarcam a ideia de identidade
paraense tanta da marca, quanto do público que consome. Mas de onde vem essa necessidade
de dizer o que é nosso? As discussões sobre identidade giram em torno das conseqüências da
globalização sobre as identidades regionais. Enquanto alguns crêem no esfacelamento delas -
por conta do contato com outras “identidades”, provocando uma miscigenação que
desembocaria numa cultura homogênea global -, há os que percebem justamente o oposto.
Com a expansão da hibridização das culturas, o que se tem observado é justamente a
valorização das culturas locais e até mesmo o ressurgimento de tradições já esquecidas.
Com uma cultura cada vez mais globalizada, as comunidades sentem a necessidade de
se afirmar pela diferença. Isso acontece porque nenhuma sociedade aceita transformações de
forma impositiva; elas sempre reagem - até o assentimento é uma reação. Independentemente
do posicionamento que assumam, o fato é que, na contemporaneidade, vivemos um processo
de hibridização cultural. “Se considerarmos as maneiras diversas pelas quais a globalização
incorpora diferentes nações, e diferentes setores dentro de cada nação, sua relação com as
culturas locais e regionais não pode ser pensada como se apenas procurasse homogeneizá-
las”. (CANCLINI, 1997:19).
A cultura paraense é contada de uma forma fixa, como se ela tivesse surgido pronta e
se mantido do mesmo modo até hoje. O que não é verdade, pois a cultura forma-se justamente
pelo movimento e o processo de hibridização cultural.
Diante da análise feita, a representação da identidade paraense é bastante ligada a uma
cultura de raiz, natural, fincada no território e que valoriza aquilo que a diferencia dos demais,
deixando a característica híbrida para pouco mais de 9% do todo analisado. As representações
mais enfatizadas são as da linguagem, do modo de falar do paraense.
O que me instiga na produção dessas estampas é a postura de seus protagonistas e toda
estrutura ideológica que dá suporte a ela. São agentes como músicos, publicitários, estilistas,
formadores de opinião em geral, que ajudam a manter e a exportar uma imagem do Pará
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carregada de tradicionalismo e purismo. Dentro dessa perspectiva, me recuso a ver o
paraense, nascido ou não no Estado, reduzido as representações aqui expostas. Essa relação
entre e o regional e o global gera uma concepção local que só conseguiremos ver na diferença
com o outro. A noção de identidade, por mais controversa que seja, não pode se limitar a
estereótipos solidificados culturalmente.
Não há regras e nem um manual que classifique ou não um paraense. Não há um
estatuto. As noções de identidade estão enrijecidas em representações tradicionais e que não
abarcam a dimensão cultural do Estado.
Torço para ver a cultura paraense representada com todas as nuances que merece,
incluindo as abordadas pela marca Égua de Camiseta, mas também com a diversidade e
complexidade que o Estado carrega, sem ignorar os hibridismos inerentes a este tempo. Quem
sabe dessa forma as identificações com o Pará sejam mais verdadeiras e representativas e
menos caricatas.
REFERÊNCIAS
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KUNSCH, Margarida M. Krohling (Org.). Indústrias culturais e os desafios da integração
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