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Teoria e Debate 69 janeiro/fevereiro 2007 22 O Brasil é rico em disponibilidade hídrica, como todos sabemos: 12% da disponibilidade de águas doces superficiais do planeta está aqui, em nosso país. A relação entre água e desenvolvi- mento, entre água e eqüidade social é tão óbvia, como nos mostra o recente relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que nada mais adequado do que nos valer- mos dessa riqueza hídrica como fator de propulsão para alcançar nosso tão sonhado desenvolvimento econômico- social, rompendo e superando o anta- gonismo ainda prevalecente que opõe crescimento econômico a preservação dos recursos naturais. Essa superação é possível pela incorporação do paradig- ma do desenvolvimento sustentável às ações de governo, do setor produtivo e da sociedade em geral, como bem nos tem lembrado a ministra Marina Silva em suas abordagens sobre o tema. O Brasil ainda tem enorme potencial de hidreletricidade para explorar e seria insensato não fazê-lo. Por outro lado, apenas cerca de 3,5 milhões de hectares de terras agricultáveis são irrigadas em nosso país, restando ainda quase 30 milhões de hectares passíveis de irri- gação em bases sustentáveis − e seria igualmente insensato não aproveitar esse potencial. É forçoso reconhecer, porém, que até recentemente nós, brasileiros, fomos muitos negligentes com nossas águas, como de resto com nossos recursos naturais em geral, pois permitimos vigorar no Brasil um padrão de sua utilização em bases não-sustentáveis, na esteira de um processo econômi- co-social voraz e predatório, carente de planejamento e de regras adequa- das. Como resultado desse padrão, acumulamos um formidável passivo ambiental, merecendo destaque, no caso dos recursos hídricos, a poluição de rios e lagos em várias regiões do país, sobretudo naquelas mais populosas e urbanizadas e mais ocupadas pela atividade econômica. Esses manan- ciais poluídos por esgotos domésticos, efluentes industriais e outras fontes difusas, tanto na zona urbana como na zona rural, comprometem a qualidade de vida dos brasileiros que habitam essas regiões e, mais que isso, a própria continuidade do desenvolvimento econômico-social, pois inviabilizam ou restringem a disponibilidade de água para seus usos múltiplos. Felizmente, desde a promulgação da Constituição de 1988, nosso país deu passos importantes para o enfrentamen- to desse quadro, instituindo, por meio da Lei n° 9.433, de 8 de janeiro de 1997, a conhecida Lei Nacional das Águas, a Política Nacional de Recursos Hídricos e o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos. Em 2000, como corolário, pode-se dizer, dessa lei nacional, foi aprovada e sancionada a Lei n° 9.984, que criou a Agência Nacional de Águas (ANA), autarquia incorporada ao Sistema Na- cional de Gerenciamento de Recursos Hídricos com a missão de coordenar a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos. Nesse mesmo contexto, os estados da Federação também foram instituindo suas pró- prias leis de recursos hídricos, alguns até mesmo antes da lei federal, e os comitês de bacia hidrográfica foram se disseminando pelo país. Esse vi- goroso processo em construção, que conta com a intensa participação dos usuários de água e da sociedade civil organizada, inclui-se, seguramente, no que há de mais avançado na gestão pública brasileira, pois se pauta pelos princípios da descentralização e da gestão integrada e compartilhada, tendo a bacia hidrográfica como uni- dade territorial para a implementação Uma década de c Fomos negligentes com nossas águas. No entanto, o Plano Nacional de Recursos Hídricos torna possível estabelecer programas e ações sob a ótica do desenvolvimento sustentável e da inclusão social José Machado 16.PINGUELI.indd 22 16.PINGUELI.indd 22 1/31/07 1:53:25 PM 1/31/07 1:53:25 PM

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O Brasil é rico em disponibilidade hídrica, como todos sabemos: 12% da disponibilidade de águas doces superfi ciais do planeta está aqui, em nosso país.

A relação entre água e desenvolvi-mento, entre água e eqüidade social é tão óbvia, como nos mostra o recente relatório do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, que nada mais adequado do que nos valer-mos dessa riqueza hídrica como fator de propulsão para alcançar nosso tão sonhado desenvolvimento econômico-social, rompendo e superando o anta-gonismo ainda prevalecente que opõe crescimento econômico a preservação dos recursos naturais. Essa superação é possível pela incorporação do paradig-ma do desenvolvimento sustentável às ações de governo, do setor produtivo e da sociedade em geral, como bem nos tem lembrado a ministra Marina Silva em suas abordagens sobre o tema.

O Brasil ainda tem enorme potencial de hidreletricidade para explorar e seria insensato não fazê-lo. Por outro lado, apenas cerca de 3,5 milhões de hectares de terras agricultáveis são irrigadas em nosso país, restando ainda quase 30 milhões de hectares passíveis de irri-gação em bases sustentáveis − e seria

igualmente insensato não aproveitar esse potencial.

É forçoso reconhecer, porém, que até recentemente nós, brasileiros, fomos muitos negligentes com nossas águas, como de resto com nossos recursos naturais em geral, pois permitimos vigorar no Brasil um padrão de sua utilização em bases não-sustentáveis, na esteira de um processo econômi-co-social voraz e predatório, carente de planejamento e de regras adequa-das. Como resultado desse padrão, acumulamos um formidável passivo ambiental, merecendo destaque, no caso dos recursos hídricos, a poluição de rios e lagos em várias regiões do país, sobretudo naquelas mais populosas e urbanizadas e mais ocupadas pela atividade econômica. Esses manan-ciais poluídos por esgotos domésticos, efl uentes industriais e outras fontes difusas, tanto na zona urbana como na zona rural, comprometem a qualidade de vida dos brasileiros que habitam essas regiões e, mais que isso, a própria continuidade do desenvolvimento econômico-social, pois inviabilizam ou restringem a disponibilidade de água para seus usos múltiplos.

Felizmente, desde a promulgação da Constituição de 1988, nosso país deu

passos importantes para o enfrentamen-to desse quadro, instituindo, por meio da Lei n° 9.433, de 8 de janeiro de 1997, a conhecida Lei Nacional das Águas, a Política Nacional de Recursos Hídricos e o Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos.

Em 2000, como corolário, pode-se dizer, dessa lei nacional, foi aprovada e sancionada a Lei n° 9.984, que criou a Agência Nacional de Águas (ANA), autarquia incorporada ao Sistema Na-cional de Gerenciamento de Recursos Hídricos com a missão de coordenar a implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos. Nesse mesmo contexto, os estados da Federação também foram instituindo suas pró-prias leis de recursos hídricos, alguns até mesmo antes da lei federal, e os comitês de bacia hidrográfi ca foram se disseminando pelo país. Esse vi-goroso processo em construção, que conta com a intensa participação dos usuários de água e da sociedade civil organizada, inclui-se, seguramente, no que há de mais avançado na gestão pública brasileira, pois se pauta pelos princípios da descentralização e da gestão integrada e compartilhada, tendo a bacia hidrográfi ca como uni-dade territorial para a implementação

Uma década de cFomos negligentes com nossas águas. No entanto, o Plano Nacional

de Recursos Hídricos torna possível estabelecer programas e ações sob a

ótica do desenvolvimento sustentável e da inclusão social José Machado

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da política e atuação do sistema de gestão.

Como ponto crucial desse processo de avanços, sob a coordenação da Se-cretaria Nacional de Recursos Hídricos do Ministério do Meio Ambiente e com a decisiva participação técnica da ANA, foi concluído e aprovado em 2006, pelo Conselho Nacional de Re-cursos Hídricos, o Plano Nacional de Recursos Hídricos. O presidente Lula fez seu lançamento público e tem reite-radamente mencionado esse trabalho como um dos feitos importantes de seu primeiro mandato.

A elaboração do Plano Nacional de Recursos Hídricos, um dos compromis-sos assumidos pelos países, entre eles o Brasil, para atingir os Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, repre-sentou um extraordinário exercício de governança. Sua natureza participativa e descentralizada tornou possível esta-belecer programas e ações para 2020 sob a ótica do desenvolvimento sustentável e da inclusão social, com consenso político e social, por meio de um amplo processo de discussão pública.

Todo esse amadurecimento nos indica que estamos no rumo certo. O planejamento e a gestão integrada e compartilhada, com o engajamento da sociedade, conforme previsto em nossa legislação das águas, são a garantia que temos de que o aproveitamento dos recursos hídricos não será predatório e unilateral, e sim atenderá às múltiplas

necessidades e às expectativas das atuais e futuras gerações. O aniversário de dez anos de promulgação da Lei Nacional das Águas, que ora se celebra, é uma excelente oportunidade para o governo e a sociedade brasileira avaliarem a efe-tividade da implementação da Política Nacional de Recursos Hídricos e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos e vislumbrarem quais os desafi os velhos e novos que se impõem.

A meu ver, tais desafios não são poucos nem quiméricos. Elencarei os que reputo mais importantes e mais complexos.

O Brasil, como sabemos, é uma Federação e conta com 27 estados. A Constituição Brasileira, nos seus artigos 20 e 26, atribuiu o domínio das águas à União e aos estados. As águas são da União quando se situam em terrenos do seu domínio ou quando banham mais de um estado, sirvam de limite com outros países ou se esten-dam a território estrangeiro ou dele provenham. As águas são de domínio estadual quando se situam estrita-mente nos limites de seu território. Ressalte-se que constitucionalmente as águas subterrâneas, independente-mente da sua abrangência territorial, são de domínio estadual, o que cons-titui um desafi o à gestão integrada, tendo em vista o ciclo hidrológico, que vincula as águas superfi ciais às subterrâneas.

Uma bacia hidrográfi ca se confi gura pela existência de um rio principal e pelos seus afluentes. Uma situação típica de bacia hidrográfi ca federal é aquela em que o rio principal é de do-mínio da União, porém seus afl uentes, em sua maioria, são estaduais. Nesse caso, impõe-se a gestão integrada, por meio da qual se estabelecerá um pacto federativo de gestão das águas, pois não faz nenhum sentido a adoção de critérios de gestão díspares numa mesma bacia hidrográfi ca. Essa é uma declaração teórica fácil de fazer, mas, na prática, signifi ca a necessidade de um exercício intenso e complexo de articulação e convergência político-institucional, uma vez que os governos estaduais gozam de autonomia políti-co-administrativa e nem sempre estão afi nados, em termos de visão política e de prioridades, entre si e com o governo federal. Vejamos o caso da Bacia do Rio Paraíba do Sul.

Trata-se de uma bacia de domínio federal, pois o Rio Paraíba do Sul, sua calha principal, banha os estados de São Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Afora alguns poucos afl uentes federais, a maioria deles é de domínio desses estados, os quais têm suas próprias leis de recursos hídricos e, portanto, suas próprias políticas e sistemas de recursos hídricos, guardando dife-renças signifi cativas entre si e com a própria situação federal. O Comitê da Bacia Hidrográfi ca do Rio Paraíba do

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Sul é o mecanismo participativo pelo qual se busca estruturar e harmoni-zar a gestão dos recursos hídricos no âmbito dessa bacia, estando em vigor desde 2002 um convênio de integração entre os três estados, assinado pelos respectivos governadores, pelo Comitê e pela Agência Nacional de Águas, com vistas a fazer convergir os objetivos e os instrumentos de gestão dos recursos hídricos da região.

Verifi ca-se, portanto, que, diferen-temente da França, que é um Estado unitário e cujo modelo de gestão das águas foi fonte de inspiração para o nosso, no Brasil a dupla dominialidade das águas, atribuída constitucional-mente à União e aos estados, faz da construção e implementação da Políti-ca Nacional de Recursos Hídricos e do Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos Hídricos uma tarefa de alta complexidade, exigindo perse-verança, habilidade e espírito público de todos os atores públicos e privados

envolvidos, além da sociedade civil organizada.

Nossa riqueza hídrica não é ho-mogênea, como sabemos, portanto permanece o desafio de garantir segurança hídrica às regiões de baixa disponibilidade, como o semi-árido nordestino. O passivo ambiental nas nossas bacias hidrográfi cas precisa ser solucionado, sobretudo com obras de saneamento ambiental e programas de uso e conservação do solo. As ações ne-cessárias exigem: a existência de órgãos gestores instituídos, quadros técnicos de carreira, capacitação técnica con-tínua, liderança e, como não poderia deixar de ser, recursos orçamentários e fi nanceiros sufi cientes.

Esses desafi os serão difíceis de ser equacionados se o tema dos recursos hídricos não galgar o topo da agenda nacional, fato que por si só constitui um formidável desafi o à parte, pois requer fi na percepção por parte das lideranças do papel estratégico da água em nosso

processo de desenvolvimento, sobretudo neste século. Já é alentador, todavia, verifi car que o tema vem sendo cres-centemente pautado na mídia, que os comitês de bacia estão se multiplicando e se fortalecendo, que em vários estados da Federação governos se esforçam para instituir e fazer avançar suas políticas de recursos hídricos, que instrumentos como a cobrança pelo uso da água já começa a deixar de ser tabu e se disse-mina em algumas bacias hidrográfi cas.

É alentador também constatar que o Conselho de Desenvolvimento Econô-mico e Social, fórum de assessoramento presidencial que congrega lideranças do mundo empresarial e sindical e da sociedade civil organizada, já trata o tema da gestão sustentável dos recursos naturais como desafi o a ser incorpora-do à agenda de desenvolvimento do nosso país. ✪

José Machado é diretor-presidente da Agência Nacional de Águas

Vala para escoamento de chorume do lixão até um riacho de água cristalina que deságua na Baía de Angra dos Reis

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