Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem...
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IacuteNDICE
Iacutendicehelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip1
Nota Preacuteviahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip2
Introduccedilatildeohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip3
I ndash Genealogia do Nadahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip6
II ndash Estudo sobre a Identidade (recensatildeo)helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip29
III ndash A Saudadehelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip36
Bibliografia52
Notas54
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Nota Preacutevia
Decidimos por comodidade mas tambeacutem para permitir uma melhor
continuidade de pensamento unir num soacute texto os vaacuterios trabalhos de Metafiacutesica (MF) e
de Filosofia em Portugal I (FPI) Assim a introduccedilatildeo constitui a reflexatildeo pessoal pedida
em FPI o primeiro capiacutetulo o trabalho de MF o segundo a recensatildeo tambeacutem para MF e
por fim o terceiro e uacuteltimo capiacutetulo o trabalho de FPI
As notas em numeraccedilatildeo romana encontram-se no final do texto
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Introduccedilatildeo
(Em jeito de reflexatildeo pessoal)
O texto que se segue natildeo eacute a nenhum momento sobre a filosofia de algueacutem nem
mesmo sobre a filosofia de quem o escreve Poderaacute enraizar-se por instantes em
pensamentos que se originaram num algueacutem a dado estaacutedio da longa tradiccedilatildeo filosoacutefica
Natildeo vemos a filosofia como algo meramente humano destinado exclusivamente agrave
humanidade A Humanidade eacute um passo como outro qualquer na perspectiva mais vasta
de um destino mais amplo a filosofia um dos complexos muacutesculos que arrasta a perna
que o daacute
No entanto estamos conscientes dos preceitos de um trabalho acadeacutemico Mas
estamos tambeacutem cientes das suas limitaccedilotildees Seguidos agrave letra desde o iniacutecio do pensar
filosoacutefico ainda estariacuteamos hoje glosando exclusivamente sobre os escritos de Tales
Lutar pela nossa ideia de filosofia natildeo seraacute tambeacutem filosofar Aliaacutes natildeo seraacute
derradeiramente isso que constitui a filosofia decidir qual eacute precisamente a perspectiva
do saber que se ama O filosofar eacute a colheita dos frutos que nos fortificam no pomar do
saber Ora o pomar da filosofia eacute jaacute suficientemente amplo para natildeo termos de comer
frutos que sabemos nos iratildeo enfraquecer envenenar A cada um os seus toacutenicos a cada
qual os seus venenos Natildeo seraacute a proacutepria escrita poacutes-moderna muito mais do que um
sinal de aumento de complexidade um sinal de envenenamento O espiacuterito deve
alimentar-se frugalmente para poder digerir e metabolizar natildeo indispor-se e vomitar1
Compreendemos que a generalizaccedilatildeo da educaccedilatildeo tenha levado agrave instituiccedilatildeo de
paracircmetros igualitaacuterios mas desejamos noacutes realmente que cada indiviacuteduo saia da escola
como de uma cadeia processual de nivelamento ou seja que todos saibam a mesma
coisa sobre as mesmas coisas Ou mais grave ainda que todos saibam o mesmo do
mesmo modo Acabaremos noacutes por dar razatildeo a Ladislav Klima2
1 Sobre a ignoracircncia calculada e o excesso de saber NIETZSCHE Friedrich A Gaia Ciecircncia Livro Quinto sect 381 2 laquo - Les eacutecoles usines agrave fabriquer des idiots raquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 207
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O problema mais profundo que enfrenta a filosofia eacute o do Nada Com efeito o
Nada tem accedilambarcado de tal forma o pensamento que de certa forma o paralisou ou
pelo menos atrofiou o seu desenvolvimento impediu que se ramificasse pelas mentes e
pelo proacuteprio substrato social Qualquer sobressalto filosoacutefico que teimamos em que natildeo
seja o do seu estertor eacute logo reprimido por um coro de ldquoPara quecircrdquo Eacute tarefa primordial
da filosofia reinserir o Ser na realidade Para tal eacute preciso primeiro retirar o Homem Ou
seja eacute preciso compreender que a humanidade natildeo eacute finalidade alguma eacute uma ponte3
uma condiccedilatildeo que eacute preciso no entanto amar como se ama a nossa matildee sem que a
tenhamos escolhido
Eacute preciso dizer que haacute em noacutes o poder de vencer o Nada embora natildeo passemos
derradeiramente de nadas Mesmo diremos noacutes somente quando formos reduzidos a
nadas poderemos estar aptos a perceber e construir o Ser Assim o niilismo natildeo eacute um
mal em si mas uma passagem obrigatoacuteria uma reduccedilatildeo ao essencial de toda a histoacuteria
do pensamento Trata-se de uma des-ilusatildeo salutar de um processo higieacutenico que se
revelaraacute proveitoso se for entendido e bem aproveitado
O papel do niilismo tem de ser visto como o de uma limpeza mas eacute no saber
colher o que sobra que se encontra a nosso ver o futuro da filosofia Podemos intitular
esse processo de Lacircmina Niilista em honra agrave de Ockham tambeacutem ela circunscreve o
essencial tambeacutem ela faz com menos
O primeiro passo eacute o de o aceitarmos Efectivamente enquanto negarmos o
niilismo e remarmos contra a sua mareacute nunca conseguiremos ver onde nos leva O
problema actual eacute o de natildeo sermos suficientemente niilistas Se nos deixarmos levar
pela corrente depressa veremos que atingimos a costa do Ser Eacute precisamente por tudo
ser nada que tudo eacute por fim Ser Mas este apenas se atinge nos limites do
despojamento do desapego Noacutes pelo contraacuterio temos acumulado temo-nos apegado
Haacute uma nobreza niilista que tem sido desconsiderada porque somente se vecirc o efeito que
provoca Apenas se considera a reacccedilatildeo ao niilismo ndash eacute deste tipo reactivo que
trataremos ndash natildeo a sua acccedilatildeo
3ldquoO que haacute de grande no homem eacute ser uma ponte e natildeo um fim o que se pode amar no homem eacute ser uma passagem e um decliacuteniordquo NIETZSCHE Friedrich Assim Falava Zaratustra I sect 4
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A finalidade do Ser natildeo eacute o Homem mas o contraacuterio eacute verdadeiro a finalidade
do Homem eacute o Ser ou pelo menos a de um aumento de Ser e subsequente reduccedilatildeo de
Nada Assim basta-nos substituir Ser a Deus quando Mestre Eckhart diz Deus eacute
oposiccedilatildeo ao Nada pela mediaccedilatildeo do ente4
Mas enquanto estrebucharmos contra a sangria da Lacircmina dificilmente
conseguiremos sair do marasmo ilusionista que a recente filosofia tem criado num surto
nunca antes visto de confusatildeo e turbilhatildeo de palavras de facto perante grande parte da
produccedilatildeo filosoacutefica do seacuteculo passado apetece exclamarmo-nos non liquet Esta falta
de clareza deve-se sobretudo ao medo de mergulhar no banho libertador do niilismo ao
receio de cortar as amarras
O banho niilista funciona como um aacutecido que descarna a carcaccedila das nossas
ilusotildees e a verdade eacute que soacute depois de desencarnados podemos reencarnar assim como
a larva soacute se torna borboleta abandonando o casulo Para que o Nada possa ser
transcendido eacute necessaacuterio identificar primeiro todos os nadas tudo aquilo que eacute Nada E
eacute isto que ningueacutem parece estar disposto a fazer aconchegados que estamos no nosso
recanto de tradiccedilotildees de subtis cantos de sereias
Julga-se que o processo seraacute o de anulaccedilatildeo pura e simples quando eacute de facto o
de reinterpretaccedilatildeo Outra funccedilatildeo importante do niilismo eacute a de ter anulado
definitivamente a transcendecircncia de nos ter forccedilado a gerir a nossa vida na imanecircncia
onde pertencemos A transcendecircncia do Nada de que falamos daacute-se na imanecircncia eacute uma
transimanecircncia
O propoacutesito do que se segue eacute assim de circunscrever claramente o Nada para
que seja possiacutevel abordar os meios de o ultrapassar
4 laquo Dieu est opposition au neacuteant par la meacutediation de lrsquoeacutetant raquo in Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997 Deo caritas est p 624
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I
Genealogia do Nada Uma essecircncia invisiacutevel e subtil eacute o Espiacuterito
de todo o universo Isso eacute a Realidade Isso eacute a Verdade TU EacuteS ISSO
Upanishades Chandogya 61214
Um eacute o saber conhecer o pensamento pelo
qual satildeo governadas todas as coisas atraveacutes de todas as coisas
Heraclito fragmento 41
Aleacutem disso considero a alma humana como
sendo esse mesmo poder de pensar natildeo como sendo infinito e apercebendo a natureza inteira mas como apercebendo somente uma coisa finita que eacute o corpo humano a alma humana eacute assim concebida por mim como uma parte do entendimento infinito
Espinosa Carta XXXII
No teatro dos nossos pensamentos uma personagem haacute que intriga e atormenta o
auditoacuterio natildeo tanto pela sua presenccedila como pela sua ausecircncia sendo para ela esta
uacuteltima aquela primeira Embora passe despercebida para a maioria do puacuteblico os mais
atentos natildeo teratildeo dificuldade em consideraacute-la a personagem principal Falamos ainda
que natildeo seja evidente do Nada O que nele mais atormenta e intriga eacute para quem leu a
peccedila ver que natildeo faz parte do elenco que nenhuma deixa foi escrita para ele e que no
entanto rouba a vedeta ali mesmo no palco
A sua presenccedila eacute como dissemos uma ausecircncia Esta uacuteltima implica sempre
uma falta e com esta se implica tambeacutem que saibamos se natildeo o que falta pelo menos
que algo falta Ora sabemos perfeitamente que o Nada fiacutesico eacute uma pura contradiccedilatildeo
basta a mais iacutenfima das mais minuacutesculas partiacuteculas subatoacutemicas para que o Nada natildeo
seja O Nada assim concebido seria uma ausecircncia de Tudo e sabemos que nem tudo estaacute
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ausente A pergunta ldquoPorquecirc algo e natildeo o Nadardquo eacute uma pergunta a nosso ver absurda
atavismo da visatildeo criacionista que precisa de ser ultrapassada Porque recuando de
causa em causa chegamos a um ponto onde temos de decidir entre criado e incriado Se
optarmos como se tem feito na nossa civilizaccedilatildeo pela criaccedilatildeo temos de pocircr a hipoacutetese
absurda de colocar algo fora do Todo que cria o Todo A dificuldade estaacute aqui em
compreender o Universo actual que percepcionamos como conjunto de entidades
separadas ndash um Tudo ndash como unidade perdida porque pensando o Universo no seu
iniacutecio como Todo e natildeo como Tudo eacute facilmente assimilaacutevel que natildeo teve de ser
criado que eacute precisamente incriado porque o Todo natildeo necessita por definiccedilatildeo de ser
criado o Todo eacute e natildeo pode deixar de ser por si O que tentaremos mostrar eacute que o
Nada natildeo eacute ausecircncia de Tudo mas ausecircncia de Todo ou seja muito mais do que um
mero conceito o Nada eacute uma intuiccedilatildeo um sentimento uma lembranccedila de unidade
perdida
1
Contrariando o evangelista diremos que no verbo estaacute o princiacutepio e assim para
abrir caminho agrave interpretaccedilatildeo da filosofia heracliteana analisaremos os termos que
seratildeo a base do presente trabalho nihilum exsistere χρησmicroοσύνη e angustiae
Quanto agrave palavra nihilum concordamos com Vladimir Biaggi5 na sua exegese
discordando no entanto no significado que lhe eacute atribuiacutedo Com efeito Biaggi divide a
palavra em ne + hilum ou seja em ausecircncia de hilo O hilo eacute como sabemos o ponto
onde uma semente ou uma viacutescera recebem o seu alimento o local onde se ligam ao
organismo de que fazem parte O autor traduz este facto dizendo-nos que a vida estaacute por
vezes presa por um fio por um Nada Esta visatildeo eacutetica faz sentido inserindo-se numa
obra que trata do niilismo (reactivo) precisamente numa perspectiva do Nada como
ausecircncia de valores sendo estes uacuteltimos o fio que manteacutem a unidade de uma sociedade
Parece-nos todavia que esta palavra merece um exame mais profundo uma visatildeo mais
arrojada Em nosso entender o Nada aparece como uma ausecircncia de ligaccedilatildeo O Nada 5 BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 pp 16-17
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natildeo eacute o teacutenue ponto onde algo se liga mas justamente a ausecircncia dessa ligaccedilatildeo Eacute
quando essa conexatildeo falta que o Nada aparece Resta-nos saber qual o algo que teima
em desligar-se
O Nada eacute o primeiro a oferecer-se ao desabrochar de uma consciecircncia no
mundo Aquilo que inicialmente define um qualquer ente aquilo que permite apreendecirc-
-lo como tal eacute o facto de este estar separado Efectivamente um ente soacute eacute ldquoumrdquo por
estar separado do resto do universo e a minha consciecircncia soacute eacute a ldquominha consciecircnciardquo
porque estaacute rodeada de passe-se o termo natildeo-eus A primeira coisa que sinto como
objecto deste mundo eacute a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros objectos Mas
simultaneamente opera-se nessa consciecircncia que aparece um instintivo devorar do
olhar um esticar de matildeo um instinto primordial para a ligaccedilatildeo com os outros entes que
se lhe apresentam ainda confusamente uma tendecircncia para a uniatildeo E eacute o confronto
entre essa uniatildeo que traz dentro de si e a separaccedilatildeo com o mundo fora dele que gera
nesse ente que aparece nesse aparecente o Nada O Nada eacute portanto aquilo que separa
um ente do mundo Como o exame de nihilum (ne + hilum) deixou transparecer Nada
significa assim numa primeira abordagem o espaccedilo entre dois entes a ausecircncia de
ligaccedilatildeo aquilo que faz com que dois entes natildeo sejam um
Quando as palavras evoluem perdem por vezes o seu significado primevo ou
deixam-no pelo menos enfraquecer O portuguecircs parece de forma curiosa natildeo soacute natildeo
ter deixado esmorecer o sentido de Nada (neste caso o que aqui vamos definindo como
Nada) como ainda o ter reforccedilado singularmente O dicionaacuterio6 diz-nos na zona
reservada agrave etimologia da palavra Nada o seguinte Do lat [rem] natam ldquocoisa
nascidardquo Natildeo deixa de ser curioso num primeiro vislumbre o contraste entre a
definiccedilatildeo da palavra (o que natildeo existe o que se opotildee ao ser) e a sua raiz (coisa
nascida) Quereraacute isto dizer que noacutes coisas nascidas natildeo somos Seria no miacutenimo
paradoxal Se recordarmos o que dissemos antes esta definiccedilatildeo tornar-se-aacute muito mais
niacutetida e clara Vimos que o Nada era uma ausecircncia de ligaccedilatildeo o espaccedilo entre dois entes
(a fortiori como veremos mais agrave frente o espaccedilo que separa todos os entes) O Nada
gera-se dos entes eacute porque me percepciono como eu e tu como tu que estamos
6 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida Costa A Sampaio e Melo Porto Editora
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separados eacute porque para noacutes aquela pedra eacute aquela pedra e aquela aacutervore eacute aquela
aacutervore que haacute nada entre elas Este Nada este espaccedilo natildeo eacute como se imagina somente
o espaccedilo fiacutesico entre as coisas mas o vazio de Ser que permite a definiccedilatildeo de dois entes
Diremos assim numa primeira aproximaccedilatildeo que o Nada nasce dos entes que o ente
segrega Nada
Tanto nos impressiona e ocupa o Nada e no fundo natildeo eacute de todo evidente que
nos ocupe e impressione De facto porquecirc este desejo de uniatildeo tatildeo forte que ateacute nos faz
criar um conceito que associamos agrave ausecircncia absurda de tudo que nos faz questionar
sobre a nossa presenccedila e desejar por vezes que natildeo focircssemos ou pelo menos natildeo desta
maneira assim separados Como pocircde por exemplo Camus mostrar tatildeo bem o
absurdo a estranheza a irredutibilidade que nascem do nosso confronto com uma
simples pedra ou uma pacata paisagem7
Para avanccedilarmos na nossa investigaccedilatildeo apelaremos agora ao termo ldquoexistirrdquo
Como sabemos este deriva da palavra latina existere Soacute por si o significado desta
uacuteltima seria suficientemente interessante sair de Mas para relevar ainda mais a sua
acepccedilatildeo iremos agrave sua proacutepria raiz existere vem do mais literal exsistere ou seja ex +
sisterei o que agrave letra daraacute aparecer fora Isto quer dizer que o existente eacute aquele que
estaacute fora A pergunta que logo nos surge eacute fora de quecirc Porque se existir eacute estar eacute pocircr-
-se fora tem de haver um algo de que saiacutemos A tradiccedilatildeo quer que saiamos do Nada
para o Ser Ora como vimos tudo aponta para que o Nada se encontre aqui na
existecircncia que o Nada nasccedila precisamente do contacto entre os entes que o Nada
apareccedila com o ente Analisando o termo Ser depressa resolveremos esta aparente
confusatildeo Ser provem como eacute normalmente aceite de sedere ou seja estar Como jaacute
observaacutemos existir eacute ex + sistere estar fora Assim Ser eacute estar e existir eacute estar fora Se
eacute como vimos o ente que segrega Nada a verdade eacute que existir se confunde com o
abandono do Ser
Aprofundando ainda mais a questatildeo abordaremos agora a anguacutestia Mas antes
de o fazermos teremos de a definir convenientemente envolta que estaacute numa multitude
de associaccedilotildees erroacuteneas Poucos concordaratildeo que a anguacutestia seja rara porque no fundo
todos jaacute se sentiram angustiados Mas daacute-se aqui um erro comum na confusatildeo entre 7 CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 p31
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anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja
estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A
anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado
nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica
porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por
exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado
passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se
desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do
objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do
Nada
A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo
angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o
mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si
mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro
decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que
segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que
vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo
E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre
aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido
fundamentalmente segregativo
A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos
satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma
realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada
como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda
a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de
preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de
provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e
como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes
8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss
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Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia
heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute
portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii
Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular
1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada
2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas
atraveacutes dos entes
3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo
Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da
separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua
separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas
fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para
uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o
Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o
Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da
reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute
neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem
sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e
esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir
inquietaccedilatildeo
A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute
essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo
possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo
semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo
assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo
mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma
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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente
iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso
de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem
aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo
poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse
esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana
poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente
do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o
desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em
uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9
Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a
Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis
aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia
como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os
entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer
animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes
partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute
permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da
mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas
como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na
visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a
eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute
tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela
sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo
jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o
mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva
que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer
9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188
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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute
lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a
uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas
exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a
vontade do Uno
Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num
dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades
eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no
ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se
percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade
Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e
obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar
Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma
constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute
presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus
eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute
λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por
excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a
uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus
natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada
ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo
fogo
No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a
primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde
jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma
indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae
Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito
Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se
sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou
seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera
Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do
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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se
pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno
Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender
isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto
a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois
de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como
conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela
similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu
lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui
que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de
espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia
Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um
existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo
incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute
a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo
consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do
homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de
todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela
constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a
nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe
para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por
isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo
e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de
se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso
em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi
dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como
daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos
grandes motores do niilismo ocidental
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Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos
primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma
separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer
latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente
Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora
Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma
falta Temos assim que o existente eacute
1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a
totalidade unida o Uno)
2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada
3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia
Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os
segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de
si mesmo e da sua condiccedilatildeo
Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que
cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis
O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas
tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro
de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio
Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que
tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente
para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos
Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre
o Nada
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No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o
Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que
para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que
nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou
a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12
Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da
totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a
totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de
que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as
objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o
Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14
Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade
a anguacutestia para o Nada15
Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira
abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no
entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual
a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como
dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a
sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se
encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem
senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque
eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos
11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56
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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os
entes o Todo
Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que
continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova
quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na
actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos
no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa
No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo
como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se
a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte
dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo
quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes
acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica
assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos
Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que
escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo
pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo
ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a
uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade
criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do
universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo
dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito
apenas o Uno possui o entendimento completo
Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao
domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o
universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-
-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um
a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas
eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)
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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu
ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a
Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos
satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado
como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e
vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo
temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de
panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim
ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute
tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de
aacutetomo22
Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos
de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias
astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que
esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o
nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas
partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos
assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo
da ciecircncia
Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se
esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente
tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute
consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo
agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23
18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
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II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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Nota Preacutevia
Decidimos por comodidade mas tambeacutem para permitir uma melhor
continuidade de pensamento unir num soacute texto os vaacuterios trabalhos de Metafiacutesica (MF) e
de Filosofia em Portugal I (FPI) Assim a introduccedilatildeo constitui a reflexatildeo pessoal pedida
em FPI o primeiro capiacutetulo o trabalho de MF o segundo a recensatildeo tambeacutem para MF e
por fim o terceiro e uacuteltimo capiacutetulo o trabalho de FPI
As notas em numeraccedilatildeo romana encontram-se no final do texto
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Introduccedilatildeo
(Em jeito de reflexatildeo pessoal)
O texto que se segue natildeo eacute a nenhum momento sobre a filosofia de algueacutem nem
mesmo sobre a filosofia de quem o escreve Poderaacute enraizar-se por instantes em
pensamentos que se originaram num algueacutem a dado estaacutedio da longa tradiccedilatildeo filosoacutefica
Natildeo vemos a filosofia como algo meramente humano destinado exclusivamente agrave
humanidade A Humanidade eacute um passo como outro qualquer na perspectiva mais vasta
de um destino mais amplo a filosofia um dos complexos muacutesculos que arrasta a perna
que o daacute
No entanto estamos conscientes dos preceitos de um trabalho acadeacutemico Mas
estamos tambeacutem cientes das suas limitaccedilotildees Seguidos agrave letra desde o iniacutecio do pensar
filosoacutefico ainda estariacuteamos hoje glosando exclusivamente sobre os escritos de Tales
Lutar pela nossa ideia de filosofia natildeo seraacute tambeacutem filosofar Aliaacutes natildeo seraacute
derradeiramente isso que constitui a filosofia decidir qual eacute precisamente a perspectiva
do saber que se ama O filosofar eacute a colheita dos frutos que nos fortificam no pomar do
saber Ora o pomar da filosofia eacute jaacute suficientemente amplo para natildeo termos de comer
frutos que sabemos nos iratildeo enfraquecer envenenar A cada um os seus toacutenicos a cada
qual os seus venenos Natildeo seraacute a proacutepria escrita poacutes-moderna muito mais do que um
sinal de aumento de complexidade um sinal de envenenamento O espiacuterito deve
alimentar-se frugalmente para poder digerir e metabolizar natildeo indispor-se e vomitar1
Compreendemos que a generalizaccedilatildeo da educaccedilatildeo tenha levado agrave instituiccedilatildeo de
paracircmetros igualitaacuterios mas desejamos noacutes realmente que cada indiviacuteduo saia da escola
como de uma cadeia processual de nivelamento ou seja que todos saibam a mesma
coisa sobre as mesmas coisas Ou mais grave ainda que todos saibam o mesmo do
mesmo modo Acabaremos noacutes por dar razatildeo a Ladislav Klima2
1 Sobre a ignoracircncia calculada e o excesso de saber NIETZSCHE Friedrich A Gaia Ciecircncia Livro Quinto sect 381 2 laquo - Les eacutecoles usines agrave fabriquer des idiots raquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 207
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O problema mais profundo que enfrenta a filosofia eacute o do Nada Com efeito o
Nada tem accedilambarcado de tal forma o pensamento que de certa forma o paralisou ou
pelo menos atrofiou o seu desenvolvimento impediu que se ramificasse pelas mentes e
pelo proacuteprio substrato social Qualquer sobressalto filosoacutefico que teimamos em que natildeo
seja o do seu estertor eacute logo reprimido por um coro de ldquoPara quecircrdquo Eacute tarefa primordial
da filosofia reinserir o Ser na realidade Para tal eacute preciso primeiro retirar o Homem Ou
seja eacute preciso compreender que a humanidade natildeo eacute finalidade alguma eacute uma ponte3
uma condiccedilatildeo que eacute preciso no entanto amar como se ama a nossa matildee sem que a
tenhamos escolhido
Eacute preciso dizer que haacute em noacutes o poder de vencer o Nada embora natildeo passemos
derradeiramente de nadas Mesmo diremos noacutes somente quando formos reduzidos a
nadas poderemos estar aptos a perceber e construir o Ser Assim o niilismo natildeo eacute um
mal em si mas uma passagem obrigatoacuteria uma reduccedilatildeo ao essencial de toda a histoacuteria
do pensamento Trata-se de uma des-ilusatildeo salutar de um processo higieacutenico que se
revelaraacute proveitoso se for entendido e bem aproveitado
O papel do niilismo tem de ser visto como o de uma limpeza mas eacute no saber
colher o que sobra que se encontra a nosso ver o futuro da filosofia Podemos intitular
esse processo de Lacircmina Niilista em honra agrave de Ockham tambeacutem ela circunscreve o
essencial tambeacutem ela faz com menos
O primeiro passo eacute o de o aceitarmos Efectivamente enquanto negarmos o
niilismo e remarmos contra a sua mareacute nunca conseguiremos ver onde nos leva O
problema actual eacute o de natildeo sermos suficientemente niilistas Se nos deixarmos levar
pela corrente depressa veremos que atingimos a costa do Ser Eacute precisamente por tudo
ser nada que tudo eacute por fim Ser Mas este apenas se atinge nos limites do
despojamento do desapego Noacutes pelo contraacuterio temos acumulado temo-nos apegado
Haacute uma nobreza niilista que tem sido desconsiderada porque somente se vecirc o efeito que
provoca Apenas se considera a reacccedilatildeo ao niilismo ndash eacute deste tipo reactivo que
trataremos ndash natildeo a sua acccedilatildeo
3ldquoO que haacute de grande no homem eacute ser uma ponte e natildeo um fim o que se pode amar no homem eacute ser uma passagem e um decliacuteniordquo NIETZSCHE Friedrich Assim Falava Zaratustra I sect 4
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A finalidade do Ser natildeo eacute o Homem mas o contraacuterio eacute verdadeiro a finalidade
do Homem eacute o Ser ou pelo menos a de um aumento de Ser e subsequente reduccedilatildeo de
Nada Assim basta-nos substituir Ser a Deus quando Mestre Eckhart diz Deus eacute
oposiccedilatildeo ao Nada pela mediaccedilatildeo do ente4
Mas enquanto estrebucharmos contra a sangria da Lacircmina dificilmente
conseguiremos sair do marasmo ilusionista que a recente filosofia tem criado num surto
nunca antes visto de confusatildeo e turbilhatildeo de palavras de facto perante grande parte da
produccedilatildeo filosoacutefica do seacuteculo passado apetece exclamarmo-nos non liquet Esta falta
de clareza deve-se sobretudo ao medo de mergulhar no banho libertador do niilismo ao
receio de cortar as amarras
O banho niilista funciona como um aacutecido que descarna a carcaccedila das nossas
ilusotildees e a verdade eacute que soacute depois de desencarnados podemos reencarnar assim como
a larva soacute se torna borboleta abandonando o casulo Para que o Nada possa ser
transcendido eacute necessaacuterio identificar primeiro todos os nadas tudo aquilo que eacute Nada E
eacute isto que ningueacutem parece estar disposto a fazer aconchegados que estamos no nosso
recanto de tradiccedilotildees de subtis cantos de sereias
Julga-se que o processo seraacute o de anulaccedilatildeo pura e simples quando eacute de facto o
de reinterpretaccedilatildeo Outra funccedilatildeo importante do niilismo eacute a de ter anulado
definitivamente a transcendecircncia de nos ter forccedilado a gerir a nossa vida na imanecircncia
onde pertencemos A transcendecircncia do Nada de que falamos daacute-se na imanecircncia eacute uma
transimanecircncia
O propoacutesito do que se segue eacute assim de circunscrever claramente o Nada para
que seja possiacutevel abordar os meios de o ultrapassar
4 laquo Dieu est opposition au neacuteant par la meacutediation de lrsquoeacutetant raquo in Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997 Deo caritas est p 624
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I
Genealogia do Nada Uma essecircncia invisiacutevel e subtil eacute o Espiacuterito
de todo o universo Isso eacute a Realidade Isso eacute a Verdade TU EacuteS ISSO
Upanishades Chandogya 61214
Um eacute o saber conhecer o pensamento pelo
qual satildeo governadas todas as coisas atraveacutes de todas as coisas
Heraclito fragmento 41
Aleacutem disso considero a alma humana como
sendo esse mesmo poder de pensar natildeo como sendo infinito e apercebendo a natureza inteira mas como apercebendo somente uma coisa finita que eacute o corpo humano a alma humana eacute assim concebida por mim como uma parte do entendimento infinito
Espinosa Carta XXXII
No teatro dos nossos pensamentos uma personagem haacute que intriga e atormenta o
auditoacuterio natildeo tanto pela sua presenccedila como pela sua ausecircncia sendo para ela esta
uacuteltima aquela primeira Embora passe despercebida para a maioria do puacuteblico os mais
atentos natildeo teratildeo dificuldade em consideraacute-la a personagem principal Falamos ainda
que natildeo seja evidente do Nada O que nele mais atormenta e intriga eacute para quem leu a
peccedila ver que natildeo faz parte do elenco que nenhuma deixa foi escrita para ele e que no
entanto rouba a vedeta ali mesmo no palco
A sua presenccedila eacute como dissemos uma ausecircncia Esta uacuteltima implica sempre
uma falta e com esta se implica tambeacutem que saibamos se natildeo o que falta pelo menos
que algo falta Ora sabemos perfeitamente que o Nada fiacutesico eacute uma pura contradiccedilatildeo
basta a mais iacutenfima das mais minuacutesculas partiacuteculas subatoacutemicas para que o Nada natildeo
seja O Nada assim concebido seria uma ausecircncia de Tudo e sabemos que nem tudo estaacute
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ausente A pergunta ldquoPorquecirc algo e natildeo o Nadardquo eacute uma pergunta a nosso ver absurda
atavismo da visatildeo criacionista que precisa de ser ultrapassada Porque recuando de
causa em causa chegamos a um ponto onde temos de decidir entre criado e incriado Se
optarmos como se tem feito na nossa civilizaccedilatildeo pela criaccedilatildeo temos de pocircr a hipoacutetese
absurda de colocar algo fora do Todo que cria o Todo A dificuldade estaacute aqui em
compreender o Universo actual que percepcionamos como conjunto de entidades
separadas ndash um Tudo ndash como unidade perdida porque pensando o Universo no seu
iniacutecio como Todo e natildeo como Tudo eacute facilmente assimilaacutevel que natildeo teve de ser
criado que eacute precisamente incriado porque o Todo natildeo necessita por definiccedilatildeo de ser
criado o Todo eacute e natildeo pode deixar de ser por si O que tentaremos mostrar eacute que o
Nada natildeo eacute ausecircncia de Tudo mas ausecircncia de Todo ou seja muito mais do que um
mero conceito o Nada eacute uma intuiccedilatildeo um sentimento uma lembranccedila de unidade
perdida
1
Contrariando o evangelista diremos que no verbo estaacute o princiacutepio e assim para
abrir caminho agrave interpretaccedilatildeo da filosofia heracliteana analisaremos os termos que
seratildeo a base do presente trabalho nihilum exsistere χρησmicroοσύνη e angustiae
Quanto agrave palavra nihilum concordamos com Vladimir Biaggi5 na sua exegese
discordando no entanto no significado que lhe eacute atribuiacutedo Com efeito Biaggi divide a
palavra em ne + hilum ou seja em ausecircncia de hilo O hilo eacute como sabemos o ponto
onde uma semente ou uma viacutescera recebem o seu alimento o local onde se ligam ao
organismo de que fazem parte O autor traduz este facto dizendo-nos que a vida estaacute por
vezes presa por um fio por um Nada Esta visatildeo eacutetica faz sentido inserindo-se numa
obra que trata do niilismo (reactivo) precisamente numa perspectiva do Nada como
ausecircncia de valores sendo estes uacuteltimos o fio que manteacutem a unidade de uma sociedade
Parece-nos todavia que esta palavra merece um exame mais profundo uma visatildeo mais
arrojada Em nosso entender o Nada aparece como uma ausecircncia de ligaccedilatildeo O Nada 5 BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 pp 16-17
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natildeo eacute o teacutenue ponto onde algo se liga mas justamente a ausecircncia dessa ligaccedilatildeo Eacute
quando essa conexatildeo falta que o Nada aparece Resta-nos saber qual o algo que teima
em desligar-se
O Nada eacute o primeiro a oferecer-se ao desabrochar de uma consciecircncia no
mundo Aquilo que inicialmente define um qualquer ente aquilo que permite apreendecirc-
-lo como tal eacute o facto de este estar separado Efectivamente um ente soacute eacute ldquoumrdquo por
estar separado do resto do universo e a minha consciecircncia soacute eacute a ldquominha consciecircnciardquo
porque estaacute rodeada de passe-se o termo natildeo-eus A primeira coisa que sinto como
objecto deste mundo eacute a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros objectos Mas
simultaneamente opera-se nessa consciecircncia que aparece um instintivo devorar do
olhar um esticar de matildeo um instinto primordial para a ligaccedilatildeo com os outros entes que
se lhe apresentam ainda confusamente uma tendecircncia para a uniatildeo E eacute o confronto
entre essa uniatildeo que traz dentro de si e a separaccedilatildeo com o mundo fora dele que gera
nesse ente que aparece nesse aparecente o Nada O Nada eacute portanto aquilo que separa
um ente do mundo Como o exame de nihilum (ne + hilum) deixou transparecer Nada
significa assim numa primeira abordagem o espaccedilo entre dois entes a ausecircncia de
ligaccedilatildeo aquilo que faz com que dois entes natildeo sejam um
Quando as palavras evoluem perdem por vezes o seu significado primevo ou
deixam-no pelo menos enfraquecer O portuguecircs parece de forma curiosa natildeo soacute natildeo
ter deixado esmorecer o sentido de Nada (neste caso o que aqui vamos definindo como
Nada) como ainda o ter reforccedilado singularmente O dicionaacuterio6 diz-nos na zona
reservada agrave etimologia da palavra Nada o seguinte Do lat [rem] natam ldquocoisa
nascidardquo Natildeo deixa de ser curioso num primeiro vislumbre o contraste entre a
definiccedilatildeo da palavra (o que natildeo existe o que se opotildee ao ser) e a sua raiz (coisa
nascida) Quereraacute isto dizer que noacutes coisas nascidas natildeo somos Seria no miacutenimo
paradoxal Se recordarmos o que dissemos antes esta definiccedilatildeo tornar-se-aacute muito mais
niacutetida e clara Vimos que o Nada era uma ausecircncia de ligaccedilatildeo o espaccedilo entre dois entes
(a fortiori como veremos mais agrave frente o espaccedilo que separa todos os entes) O Nada
gera-se dos entes eacute porque me percepciono como eu e tu como tu que estamos
6 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida Costa A Sampaio e Melo Porto Editora
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separados eacute porque para noacutes aquela pedra eacute aquela pedra e aquela aacutervore eacute aquela
aacutervore que haacute nada entre elas Este Nada este espaccedilo natildeo eacute como se imagina somente
o espaccedilo fiacutesico entre as coisas mas o vazio de Ser que permite a definiccedilatildeo de dois entes
Diremos assim numa primeira aproximaccedilatildeo que o Nada nasce dos entes que o ente
segrega Nada
Tanto nos impressiona e ocupa o Nada e no fundo natildeo eacute de todo evidente que
nos ocupe e impressione De facto porquecirc este desejo de uniatildeo tatildeo forte que ateacute nos faz
criar um conceito que associamos agrave ausecircncia absurda de tudo que nos faz questionar
sobre a nossa presenccedila e desejar por vezes que natildeo focircssemos ou pelo menos natildeo desta
maneira assim separados Como pocircde por exemplo Camus mostrar tatildeo bem o
absurdo a estranheza a irredutibilidade que nascem do nosso confronto com uma
simples pedra ou uma pacata paisagem7
Para avanccedilarmos na nossa investigaccedilatildeo apelaremos agora ao termo ldquoexistirrdquo
Como sabemos este deriva da palavra latina existere Soacute por si o significado desta
uacuteltima seria suficientemente interessante sair de Mas para relevar ainda mais a sua
acepccedilatildeo iremos agrave sua proacutepria raiz existere vem do mais literal exsistere ou seja ex +
sisterei o que agrave letra daraacute aparecer fora Isto quer dizer que o existente eacute aquele que
estaacute fora A pergunta que logo nos surge eacute fora de quecirc Porque se existir eacute estar eacute pocircr-
-se fora tem de haver um algo de que saiacutemos A tradiccedilatildeo quer que saiamos do Nada
para o Ser Ora como vimos tudo aponta para que o Nada se encontre aqui na
existecircncia que o Nada nasccedila precisamente do contacto entre os entes que o Nada
apareccedila com o ente Analisando o termo Ser depressa resolveremos esta aparente
confusatildeo Ser provem como eacute normalmente aceite de sedere ou seja estar Como jaacute
observaacutemos existir eacute ex + sistere estar fora Assim Ser eacute estar e existir eacute estar fora Se
eacute como vimos o ente que segrega Nada a verdade eacute que existir se confunde com o
abandono do Ser
Aprofundando ainda mais a questatildeo abordaremos agora a anguacutestia Mas antes
de o fazermos teremos de a definir convenientemente envolta que estaacute numa multitude
de associaccedilotildees erroacuteneas Poucos concordaratildeo que a anguacutestia seja rara porque no fundo
todos jaacute se sentiram angustiados Mas daacute-se aqui um erro comum na confusatildeo entre 7 CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 p31
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anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja
estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A
anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado
nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica
porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por
exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado
passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se
desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do
objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do
Nada
A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo
angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o
mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si
mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro
decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que
segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que
vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo
E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre
aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido
fundamentalmente segregativo
A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos
satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma
realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada
como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda
a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de
preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de
provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e
como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes
8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss
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2
Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia
heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute
portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii
Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular
1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada
2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas
atraveacutes dos entes
3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo
Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da
separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua
separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas
fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para
uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o
Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o
Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da
reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute
neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem
sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e
esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir
inquietaccedilatildeo
A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute
essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo
possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo
semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo
assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo
mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma
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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente
iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso
de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem
aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo
poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse
esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana
poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente
do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o
desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em
uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9
Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a
Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis
aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia
como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os
entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer
animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes
partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute
permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da
mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas
como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na
visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a
eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute
tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela
sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo
jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o
mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva
que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer
9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188
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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute
lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a
uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas
exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a
vontade do Uno
Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num
dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades
eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no
ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se
percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade
Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e
obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar
Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma
constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute
presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus
eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute
λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por
excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a
uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus
natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada
ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo
fogo
No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a
primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde
jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma
indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae
Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito
Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se
sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou
seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera
Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do
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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se
pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno
Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender
isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto
a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois
de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como
conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela
similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu
lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui
que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de
espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia
Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um
existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo
incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute
a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo
consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do
homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de
todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela
constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a
nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe
para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por
isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo
e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de
se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso
em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi
dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como
daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos
grandes motores do niilismo ocidental
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3
Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos
primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma
separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer
latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente
Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora
Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma
falta Temos assim que o existente eacute
1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a
totalidade unida o Uno)
2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada
3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia
Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os
segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de
si mesmo e da sua condiccedilatildeo
Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que
cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis
O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas
tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro
de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio
Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que
tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente
para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos
Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre
o Nada
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4
No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o
Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que
para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que
nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou
a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12
Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da
totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a
totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de
que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as
objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o
Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14
Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade
a anguacutestia para o Nada15
Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira
abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no
entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual
a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como
dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a
sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se
encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem
senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque
eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos
11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56
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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os
entes o Todo
Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que
continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova
quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na
actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos
no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa
No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo
como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se
a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte
dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo
quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes
acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica
assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos
Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que
escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo
pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo
ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a
uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade
criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do
universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo
dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito
apenas o Uno possui o entendimento completo
Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao
domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o
universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-
-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um
a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas
eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)
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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu
ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a
Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos
satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado
como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e
vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo
temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de
panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim
ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute
tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de
aacutetomo22
Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos
de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias
astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que
esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o
nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas
partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos
assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo
da ciecircncia
Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se
esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente
tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute
consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo
agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23
18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
- 29 -
4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
- 30 -
II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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Schefer Editions Allia Paris 1998 - PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 - SCHOPENHAUER Arthur Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora
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Lisboa 1999 - HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad
Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise
- Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997
- BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 - Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida
Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland
Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos
Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994
- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition
1999 Paris
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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika
Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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Introduccedilatildeo
(Em jeito de reflexatildeo pessoal)
O texto que se segue natildeo eacute a nenhum momento sobre a filosofia de algueacutem nem
mesmo sobre a filosofia de quem o escreve Poderaacute enraizar-se por instantes em
pensamentos que se originaram num algueacutem a dado estaacutedio da longa tradiccedilatildeo filosoacutefica
Natildeo vemos a filosofia como algo meramente humano destinado exclusivamente agrave
humanidade A Humanidade eacute um passo como outro qualquer na perspectiva mais vasta
de um destino mais amplo a filosofia um dos complexos muacutesculos que arrasta a perna
que o daacute
No entanto estamos conscientes dos preceitos de um trabalho acadeacutemico Mas
estamos tambeacutem cientes das suas limitaccedilotildees Seguidos agrave letra desde o iniacutecio do pensar
filosoacutefico ainda estariacuteamos hoje glosando exclusivamente sobre os escritos de Tales
Lutar pela nossa ideia de filosofia natildeo seraacute tambeacutem filosofar Aliaacutes natildeo seraacute
derradeiramente isso que constitui a filosofia decidir qual eacute precisamente a perspectiva
do saber que se ama O filosofar eacute a colheita dos frutos que nos fortificam no pomar do
saber Ora o pomar da filosofia eacute jaacute suficientemente amplo para natildeo termos de comer
frutos que sabemos nos iratildeo enfraquecer envenenar A cada um os seus toacutenicos a cada
qual os seus venenos Natildeo seraacute a proacutepria escrita poacutes-moderna muito mais do que um
sinal de aumento de complexidade um sinal de envenenamento O espiacuterito deve
alimentar-se frugalmente para poder digerir e metabolizar natildeo indispor-se e vomitar1
Compreendemos que a generalizaccedilatildeo da educaccedilatildeo tenha levado agrave instituiccedilatildeo de
paracircmetros igualitaacuterios mas desejamos noacutes realmente que cada indiviacuteduo saia da escola
como de uma cadeia processual de nivelamento ou seja que todos saibam a mesma
coisa sobre as mesmas coisas Ou mais grave ainda que todos saibam o mesmo do
mesmo modo Acabaremos noacutes por dar razatildeo a Ladislav Klima2
1 Sobre a ignoracircncia calculada e o excesso de saber NIETZSCHE Friedrich A Gaia Ciecircncia Livro Quinto sect 381 2 laquo - Les eacutecoles usines agrave fabriquer des idiots raquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 207
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O problema mais profundo que enfrenta a filosofia eacute o do Nada Com efeito o
Nada tem accedilambarcado de tal forma o pensamento que de certa forma o paralisou ou
pelo menos atrofiou o seu desenvolvimento impediu que se ramificasse pelas mentes e
pelo proacuteprio substrato social Qualquer sobressalto filosoacutefico que teimamos em que natildeo
seja o do seu estertor eacute logo reprimido por um coro de ldquoPara quecircrdquo Eacute tarefa primordial
da filosofia reinserir o Ser na realidade Para tal eacute preciso primeiro retirar o Homem Ou
seja eacute preciso compreender que a humanidade natildeo eacute finalidade alguma eacute uma ponte3
uma condiccedilatildeo que eacute preciso no entanto amar como se ama a nossa matildee sem que a
tenhamos escolhido
Eacute preciso dizer que haacute em noacutes o poder de vencer o Nada embora natildeo passemos
derradeiramente de nadas Mesmo diremos noacutes somente quando formos reduzidos a
nadas poderemos estar aptos a perceber e construir o Ser Assim o niilismo natildeo eacute um
mal em si mas uma passagem obrigatoacuteria uma reduccedilatildeo ao essencial de toda a histoacuteria
do pensamento Trata-se de uma des-ilusatildeo salutar de um processo higieacutenico que se
revelaraacute proveitoso se for entendido e bem aproveitado
O papel do niilismo tem de ser visto como o de uma limpeza mas eacute no saber
colher o que sobra que se encontra a nosso ver o futuro da filosofia Podemos intitular
esse processo de Lacircmina Niilista em honra agrave de Ockham tambeacutem ela circunscreve o
essencial tambeacutem ela faz com menos
O primeiro passo eacute o de o aceitarmos Efectivamente enquanto negarmos o
niilismo e remarmos contra a sua mareacute nunca conseguiremos ver onde nos leva O
problema actual eacute o de natildeo sermos suficientemente niilistas Se nos deixarmos levar
pela corrente depressa veremos que atingimos a costa do Ser Eacute precisamente por tudo
ser nada que tudo eacute por fim Ser Mas este apenas se atinge nos limites do
despojamento do desapego Noacutes pelo contraacuterio temos acumulado temo-nos apegado
Haacute uma nobreza niilista que tem sido desconsiderada porque somente se vecirc o efeito que
provoca Apenas se considera a reacccedilatildeo ao niilismo ndash eacute deste tipo reactivo que
trataremos ndash natildeo a sua acccedilatildeo
3ldquoO que haacute de grande no homem eacute ser uma ponte e natildeo um fim o que se pode amar no homem eacute ser uma passagem e um decliacuteniordquo NIETZSCHE Friedrich Assim Falava Zaratustra I sect 4
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A finalidade do Ser natildeo eacute o Homem mas o contraacuterio eacute verdadeiro a finalidade
do Homem eacute o Ser ou pelo menos a de um aumento de Ser e subsequente reduccedilatildeo de
Nada Assim basta-nos substituir Ser a Deus quando Mestre Eckhart diz Deus eacute
oposiccedilatildeo ao Nada pela mediaccedilatildeo do ente4
Mas enquanto estrebucharmos contra a sangria da Lacircmina dificilmente
conseguiremos sair do marasmo ilusionista que a recente filosofia tem criado num surto
nunca antes visto de confusatildeo e turbilhatildeo de palavras de facto perante grande parte da
produccedilatildeo filosoacutefica do seacuteculo passado apetece exclamarmo-nos non liquet Esta falta
de clareza deve-se sobretudo ao medo de mergulhar no banho libertador do niilismo ao
receio de cortar as amarras
O banho niilista funciona como um aacutecido que descarna a carcaccedila das nossas
ilusotildees e a verdade eacute que soacute depois de desencarnados podemos reencarnar assim como
a larva soacute se torna borboleta abandonando o casulo Para que o Nada possa ser
transcendido eacute necessaacuterio identificar primeiro todos os nadas tudo aquilo que eacute Nada E
eacute isto que ningueacutem parece estar disposto a fazer aconchegados que estamos no nosso
recanto de tradiccedilotildees de subtis cantos de sereias
Julga-se que o processo seraacute o de anulaccedilatildeo pura e simples quando eacute de facto o
de reinterpretaccedilatildeo Outra funccedilatildeo importante do niilismo eacute a de ter anulado
definitivamente a transcendecircncia de nos ter forccedilado a gerir a nossa vida na imanecircncia
onde pertencemos A transcendecircncia do Nada de que falamos daacute-se na imanecircncia eacute uma
transimanecircncia
O propoacutesito do que se segue eacute assim de circunscrever claramente o Nada para
que seja possiacutevel abordar os meios de o ultrapassar
4 laquo Dieu est opposition au neacuteant par la meacutediation de lrsquoeacutetant raquo in Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997 Deo caritas est p 624
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I
Genealogia do Nada Uma essecircncia invisiacutevel e subtil eacute o Espiacuterito
de todo o universo Isso eacute a Realidade Isso eacute a Verdade TU EacuteS ISSO
Upanishades Chandogya 61214
Um eacute o saber conhecer o pensamento pelo
qual satildeo governadas todas as coisas atraveacutes de todas as coisas
Heraclito fragmento 41
Aleacutem disso considero a alma humana como
sendo esse mesmo poder de pensar natildeo como sendo infinito e apercebendo a natureza inteira mas como apercebendo somente uma coisa finita que eacute o corpo humano a alma humana eacute assim concebida por mim como uma parte do entendimento infinito
Espinosa Carta XXXII
No teatro dos nossos pensamentos uma personagem haacute que intriga e atormenta o
auditoacuterio natildeo tanto pela sua presenccedila como pela sua ausecircncia sendo para ela esta
uacuteltima aquela primeira Embora passe despercebida para a maioria do puacuteblico os mais
atentos natildeo teratildeo dificuldade em consideraacute-la a personagem principal Falamos ainda
que natildeo seja evidente do Nada O que nele mais atormenta e intriga eacute para quem leu a
peccedila ver que natildeo faz parte do elenco que nenhuma deixa foi escrita para ele e que no
entanto rouba a vedeta ali mesmo no palco
A sua presenccedila eacute como dissemos uma ausecircncia Esta uacuteltima implica sempre
uma falta e com esta se implica tambeacutem que saibamos se natildeo o que falta pelo menos
que algo falta Ora sabemos perfeitamente que o Nada fiacutesico eacute uma pura contradiccedilatildeo
basta a mais iacutenfima das mais minuacutesculas partiacuteculas subatoacutemicas para que o Nada natildeo
seja O Nada assim concebido seria uma ausecircncia de Tudo e sabemos que nem tudo estaacute
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ausente A pergunta ldquoPorquecirc algo e natildeo o Nadardquo eacute uma pergunta a nosso ver absurda
atavismo da visatildeo criacionista que precisa de ser ultrapassada Porque recuando de
causa em causa chegamos a um ponto onde temos de decidir entre criado e incriado Se
optarmos como se tem feito na nossa civilizaccedilatildeo pela criaccedilatildeo temos de pocircr a hipoacutetese
absurda de colocar algo fora do Todo que cria o Todo A dificuldade estaacute aqui em
compreender o Universo actual que percepcionamos como conjunto de entidades
separadas ndash um Tudo ndash como unidade perdida porque pensando o Universo no seu
iniacutecio como Todo e natildeo como Tudo eacute facilmente assimilaacutevel que natildeo teve de ser
criado que eacute precisamente incriado porque o Todo natildeo necessita por definiccedilatildeo de ser
criado o Todo eacute e natildeo pode deixar de ser por si O que tentaremos mostrar eacute que o
Nada natildeo eacute ausecircncia de Tudo mas ausecircncia de Todo ou seja muito mais do que um
mero conceito o Nada eacute uma intuiccedilatildeo um sentimento uma lembranccedila de unidade
perdida
1
Contrariando o evangelista diremos que no verbo estaacute o princiacutepio e assim para
abrir caminho agrave interpretaccedilatildeo da filosofia heracliteana analisaremos os termos que
seratildeo a base do presente trabalho nihilum exsistere χρησmicroοσύνη e angustiae
Quanto agrave palavra nihilum concordamos com Vladimir Biaggi5 na sua exegese
discordando no entanto no significado que lhe eacute atribuiacutedo Com efeito Biaggi divide a
palavra em ne + hilum ou seja em ausecircncia de hilo O hilo eacute como sabemos o ponto
onde uma semente ou uma viacutescera recebem o seu alimento o local onde se ligam ao
organismo de que fazem parte O autor traduz este facto dizendo-nos que a vida estaacute por
vezes presa por um fio por um Nada Esta visatildeo eacutetica faz sentido inserindo-se numa
obra que trata do niilismo (reactivo) precisamente numa perspectiva do Nada como
ausecircncia de valores sendo estes uacuteltimos o fio que manteacutem a unidade de uma sociedade
Parece-nos todavia que esta palavra merece um exame mais profundo uma visatildeo mais
arrojada Em nosso entender o Nada aparece como uma ausecircncia de ligaccedilatildeo O Nada 5 BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 pp 16-17
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natildeo eacute o teacutenue ponto onde algo se liga mas justamente a ausecircncia dessa ligaccedilatildeo Eacute
quando essa conexatildeo falta que o Nada aparece Resta-nos saber qual o algo que teima
em desligar-se
O Nada eacute o primeiro a oferecer-se ao desabrochar de uma consciecircncia no
mundo Aquilo que inicialmente define um qualquer ente aquilo que permite apreendecirc-
-lo como tal eacute o facto de este estar separado Efectivamente um ente soacute eacute ldquoumrdquo por
estar separado do resto do universo e a minha consciecircncia soacute eacute a ldquominha consciecircnciardquo
porque estaacute rodeada de passe-se o termo natildeo-eus A primeira coisa que sinto como
objecto deste mundo eacute a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros objectos Mas
simultaneamente opera-se nessa consciecircncia que aparece um instintivo devorar do
olhar um esticar de matildeo um instinto primordial para a ligaccedilatildeo com os outros entes que
se lhe apresentam ainda confusamente uma tendecircncia para a uniatildeo E eacute o confronto
entre essa uniatildeo que traz dentro de si e a separaccedilatildeo com o mundo fora dele que gera
nesse ente que aparece nesse aparecente o Nada O Nada eacute portanto aquilo que separa
um ente do mundo Como o exame de nihilum (ne + hilum) deixou transparecer Nada
significa assim numa primeira abordagem o espaccedilo entre dois entes a ausecircncia de
ligaccedilatildeo aquilo que faz com que dois entes natildeo sejam um
Quando as palavras evoluem perdem por vezes o seu significado primevo ou
deixam-no pelo menos enfraquecer O portuguecircs parece de forma curiosa natildeo soacute natildeo
ter deixado esmorecer o sentido de Nada (neste caso o que aqui vamos definindo como
Nada) como ainda o ter reforccedilado singularmente O dicionaacuterio6 diz-nos na zona
reservada agrave etimologia da palavra Nada o seguinte Do lat [rem] natam ldquocoisa
nascidardquo Natildeo deixa de ser curioso num primeiro vislumbre o contraste entre a
definiccedilatildeo da palavra (o que natildeo existe o que se opotildee ao ser) e a sua raiz (coisa
nascida) Quereraacute isto dizer que noacutes coisas nascidas natildeo somos Seria no miacutenimo
paradoxal Se recordarmos o que dissemos antes esta definiccedilatildeo tornar-se-aacute muito mais
niacutetida e clara Vimos que o Nada era uma ausecircncia de ligaccedilatildeo o espaccedilo entre dois entes
(a fortiori como veremos mais agrave frente o espaccedilo que separa todos os entes) O Nada
gera-se dos entes eacute porque me percepciono como eu e tu como tu que estamos
6 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida Costa A Sampaio e Melo Porto Editora
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separados eacute porque para noacutes aquela pedra eacute aquela pedra e aquela aacutervore eacute aquela
aacutervore que haacute nada entre elas Este Nada este espaccedilo natildeo eacute como se imagina somente
o espaccedilo fiacutesico entre as coisas mas o vazio de Ser que permite a definiccedilatildeo de dois entes
Diremos assim numa primeira aproximaccedilatildeo que o Nada nasce dos entes que o ente
segrega Nada
Tanto nos impressiona e ocupa o Nada e no fundo natildeo eacute de todo evidente que
nos ocupe e impressione De facto porquecirc este desejo de uniatildeo tatildeo forte que ateacute nos faz
criar um conceito que associamos agrave ausecircncia absurda de tudo que nos faz questionar
sobre a nossa presenccedila e desejar por vezes que natildeo focircssemos ou pelo menos natildeo desta
maneira assim separados Como pocircde por exemplo Camus mostrar tatildeo bem o
absurdo a estranheza a irredutibilidade que nascem do nosso confronto com uma
simples pedra ou uma pacata paisagem7
Para avanccedilarmos na nossa investigaccedilatildeo apelaremos agora ao termo ldquoexistirrdquo
Como sabemos este deriva da palavra latina existere Soacute por si o significado desta
uacuteltima seria suficientemente interessante sair de Mas para relevar ainda mais a sua
acepccedilatildeo iremos agrave sua proacutepria raiz existere vem do mais literal exsistere ou seja ex +
sisterei o que agrave letra daraacute aparecer fora Isto quer dizer que o existente eacute aquele que
estaacute fora A pergunta que logo nos surge eacute fora de quecirc Porque se existir eacute estar eacute pocircr-
-se fora tem de haver um algo de que saiacutemos A tradiccedilatildeo quer que saiamos do Nada
para o Ser Ora como vimos tudo aponta para que o Nada se encontre aqui na
existecircncia que o Nada nasccedila precisamente do contacto entre os entes que o Nada
apareccedila com o ente Analisando o termo Ser depressa resolveremos esta aparente
confusatildeo Ser provem como eacute normalmente aceite de sedere ou seja estar Como jaacute
observaacutemos existir eacute ex + sistere estar fora Assim Ser eacute estar e existir eacute estar fora Se
eacute como vimos o ente que segrega Nada a verdade eacute que existir se confunde com o
abandono do Ser
Aprofundando ainda mais a questatildeo abordaremos agora a anguacutestia Mas antes
de o fazermos teremos de a definir convenientemente envolta que estaacute numa multitude
de associaccedilotildees erroacuteneas Poucos concordaratildeo que a anguacutestia seja rara porque no fundo
todos jaacute se sentiram angustiados Mas daacute-se aqui um erro comum na confusatildeo entre 7 CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 p31
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anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja
estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A
anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado
nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica
porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por
exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado
passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se
desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do
objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do
Nada
A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo
angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o
mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si
mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro
decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que
segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que
vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo
E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre
aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido
fundamentalmente segregativo
A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos
satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma
realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada
como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda
a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de
preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de
provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e
como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes
8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss
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Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia
heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute
portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii
Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular
1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada
2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas
atraveacutes dos entes
3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo
Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da
separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua
separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas
fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para
uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o
Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o
Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da
reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute
neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem
sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e
esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir
inquietaccedilatildeo
A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute
essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo
possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo
semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo
assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo
mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma
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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente
iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso
de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem
aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo
poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse
esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana
poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente
do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o
desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em
uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9
Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a
Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis
aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia
como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os
entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer
animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes
partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute
permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da
mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas
como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na
visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a
eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute
tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela
sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo
jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o
mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva
que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer
9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188
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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute
lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a
uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas
exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a
vontade do Uno
Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num
dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades
eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no
ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se
percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade
Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e
obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar
Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma
constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute
presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus
eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute
λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por
excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a
uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus
natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada
ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo
fogo
No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a
primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde
jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma
indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae
Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito
Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se
sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou
seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera
Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do
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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se
pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno
Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender
isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto
a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois
de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como
conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela
similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu
lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui
que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de
espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia
Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um
existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo
incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute
a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo
consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do
homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de
todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela
constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a
nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe
para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por
isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo
e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de
se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso
em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi
dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como
daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos
grandes motores do niilismo ocidental
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3
Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos
primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma
separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer
latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente
Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora
Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma
falta Temos assim que o existente eacute
1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a
totalidade unida o Uno)
2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada
3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia
Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os
segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de
si mesmo e da sua condiccedilatildeo
Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que
cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis
O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas
tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro
de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio
Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que
tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente
para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos
Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre
o Nada
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4
No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o
Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que
para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que
nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou
a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12
Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da
totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a
totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de
que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as
objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o
Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14
Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade
a anguacutestia para o Nada15
Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira
abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no
entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual
a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como
dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a
sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se
encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem
senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque
eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos
11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56
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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os
entes o Todo
Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que
continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova
quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na
actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos
no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa
No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo
como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se
a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte
dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo
quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes
acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica
assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos
Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que
escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo
pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo
ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a
uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade
criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do
universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo
dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito
apenas o Uno possui o entendimento completo
Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao
domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o
universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-
-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um
a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas
eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)
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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu
ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a
Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos
satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado
como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e
vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo
temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de
panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim
ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute
tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de
aacutetomo22
Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos
de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias
astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que
esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o
nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas
partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos
assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo
da ciecircncia
Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se
esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente
tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute
consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo
agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23
18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
- 29 -
4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
- 30 -
II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
- 31 -
descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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O problema mais profundo que enfrenta a filosofia eacute o do Nada Com efeito o
Nada tem accedilambarcado de tal forma o pensamento que de certa forma o paralisou ou
pelo menos atrofiou o seu desenvolvimento impediu que se ramificasse pelas mentes e
pelo proacuteprio substrato social Qualquer sobressalto filosoacutefico que teimamos em que natildeo
seja o do seu estertor eacute logo reprimido por um coro de ldquoPara quecircrdquo Eacute tarefa primordial
da filosofia reinserir o Ser na realidade Para tal eacute preciso primeiro retirar o Homem Ou
seja eacute preciso compreender que a humanidade natildeo eacute finalidade alguma eacute uma ponte3
uma condiccedilatildeo que eacute preciso no entanto amar como se ama a nossa matildee sem que a
tenhamos escolhido
Eacute preciso dizer que haacute em noacutes o poder de vencer o Nada embora natildeo passemos
derradeiramente de nadas Mesmo diremos noacutes somente quando formos reduzidos a
nadas poderemos estar aptos a perceber e construir o Ser Assim o niilismo natildeo eacute um
mal em si mas uma passagem obrigatoacuteria uma reduccedilatildeo ao essencial de toda a histoacuteria
do pensamento Trata-se de uma des-ilusatildeo salutar de um processo higieacutenico que se
revelaraacute proveitoso se for entendido e bem aproveitado
O papel do niilismo tem de ser visto como o de uma limpeza mas eacute no saber
colher o que sobra que se encontra a nosso ver o futuro da filosofia Podemos intitular
esse processo de Lacircmina Niilista em honra agrave de Ockham tambeacutem ela circunscreve o
essencial tambeacutem ela faz com menos
O primeiro passo eacute o de o aceitarmos Efectivamente enquanto negarmos o
niilismo e remarmos contra a sua mareacute nunca conseguiremos ver onde nos leva O
problema actual eacute o de natildeo sermos suficientemente niilistas Se nos deixarmos levar
pela corrente depressa veremos que atingimos a costa do Ser Eacute precisamente por tudo
ser nada que tudo eacute por fim Ser Mas este apenas se atinge nos limites do
despojamento do desapego Noacutes pelo contraacuterio temos acumulado temo-nos apegado
Haacute uma nobreza niilista que tem sido desconsiderada porque somente se vecirc o efeito que
provoca Apenas se considera a reacccedilatildeo ao niilismo ndash eacute deste tipo reactivo que
trataremos ndash natildeo a sua acccedilatildeo
3ldquoO que haacute de grande no homem eacute ser uma ponte e natildeo um fim o que se pode amar no homem eacute ser uma passagem e um decliacuteniordquo NIETZSCHE Friedrich Assim Falava Zaratustra I sect 4
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A finalidade do Ser natildeo eacute o Homem mas o contraacuterio eacute verdadeiro a finalidade
do Homem eacute o Ser ou pelo menos a de um aumento de Ser e subsequente reduccedilatildeo de
Nada Assim basta-nos substituir Ser a Deus quando Mestre Eckhart diz Deus eacute
oposiccedilatildeo ao Nada pela mediaccedilatildeo do ente4
Mas enquanto estrebucharmos contra a sangria da Lacircmina dificilmente
conseguiremos sair do marasmo ilusionista que a recente filosofia tem criado num surto
nunca antes visto de confusatildeo e turbilhatildeo de palavras de facto perante grande parte da
produccedilatildeo filosoacutefica do seacuteculo passado apetece exclamarmo-nos non liquet Esta falta
de clareza deve-se sobretudo ao medo de mergulhar no banho libertador do niilismo ao
receio de cortar as amarras
O banho niilista funciona como um aacutecido que descarna a carcaccedila das nossas
ilusotildees e a verdade eacute que soacute depois de desencarnados podemos reencarnar assim como
a larva soacute se torna borboleta abandonando o casulo Para que o Nada possa ser
transcendido eacute necessaacuterio identificar primeiro todos os nadas tudo aquilo que eacute Nada E
eacute isto que ningueacutem parece estar disposto a fazer aconchegados que estamos no nosso
recanto de tradiccedilotildees de subtis cantos de sereias
Julga-se que o processo seraacute o de anulaccedilatildeo pura e simples quando eacute de facto o
de reinterpretaccedilatildeo Outra funccedilatildeo importante do niilismo eacute a de ter anulado
definitivamente a transcendecircncia de nos ter forccedilado a gerir a nossa vida na imanecircncia
onde pertencemos A transcendecircncia do Nada de que falamos daacute-se na imanecircncia eacute uma
transimanecircncia
O propoacutesito do que se segue eacute assim de circunscrever claramente o Nada para
que seja possiacutevel abordar os meios de o ultrapassar
4 laquo Dieu est opposition au neacuteant par la meacutediation de lrsquoeacutetant raquo in Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997 Deo caritas est p 624
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I
Genealogia do Nada Uma essecircncia invisiacutevel e subtil eacute o Espiacuterito
de todo o universo Isso eacute a Realidade Isso eacute a Verdade TU EacuteS ISSO
Upanishades Chandogya 61214
Um eacute o saber conhecer o pensamento pelo
qual satildeo governadas todas as coisas atraveacutes de todas as coisas
Heraclito fragmento 41
Aleacutem disso considero a alma humana como
sendo esse mesmo poder de pensar natildeo como sendo infinito e apercebendo a natureza inteira mas como apercebendo somente uma coisa finita que eacute o corpo humano a alma humana eacute assim concebida por mim como uma parte do entendimento infinito
Espinosa Carta XXXII
No teatro dos nossos pensamentos uma personagem haacute que intriga e atormenta o
auditoacuterio natildeo tanto pela sua presenccedila como pela sua ausecircncia sendo para ela esta
uacuteltima aquela primeira Embora passe despercebida para a maioria do puacuteblico os mais
atentos natildeo teratildeo dificuldade em consideraacute-la a personagem principal Falamos ainda
que natildeo seja evidente do Nada O que nele mais atormenta e intriga eacute para quem leu a
peccedila ver que natildeo faz parte do elenco que nenhuma deixa foi escrita para ele e que no
entanto rouba a vedeta ali mesmo no palco
A sua presenccedila eacute como dissemos uma ausecircncia Esta uacuteltima implica sempre
uma falta e com esta se implica tambeacutem que saibamos se natildeo o que falta pelo menos
que algo falta Ora sabemos perfeitamente que o Nada fiacutesico eacute uma pura contradiccedilatildeo
basta a mais iacutenfima das mais minuacutesculas partiacuteculas subatoacutemicas para que o Nada natildeo
seja O Nada assim concebido seria uma ausecircncia de Tudo e sabemos que nem tudo estaacute
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ausente A pergunta ldquoPorquecirc algo e natildeo o Nadardquo eacute uma pergunta a nosso ver absurda
atavismo da visatildeo criacionista que precisa de ser ultrapassada Porque recuando de
causa em causa chegamos a um ponto onde temos de decidir entre criado e incriado Se
optarmos como se tem feito na nossa civilizaccedilatildeo pela criaccedilatildeo temos de pocircr a hipoacutetese
absurda de colocar algo fora do Todo que cria o Todo A dificuldade estaacute aqui em
compreender o Universo actual que percepcionamos como conjunto de entidades
separadas ndash um Tudo ndash como unidade perdida porque pensando o Universo no seu
iniacutecio como Todo e natildeo como Tudo eacute facilmente assimilaacutevel que natildeo teve de ser
criado que eacute precisamente incriado porque o Todo natildeo necessita por definiccedilatildeo de ser
criado o Todo eacute e natildeo pode deixar de ser por si O que tentaremos mostrar eacute que o
Nada natildeo eacute ausecircncia de Tudo mas ausecircncia de Todo ou seja muito mais do que um
mero conceito o Nada eacute uma intuiccedilatildeo um sentimento uma lembranccedila de unidade
perdida
1
Contrariando o evangelista diremos que no verbo estaacute o princiacutepio e assim para
abrir caminho agrave interpretaccedilatildeo da filosofia heracliteana analisaremos os termos que
seratildeo a base do presente trabalho nihilum exsistere χρησmicroοσύνη e angustiae
Quanto agrave palavra nihilum concordamos com Vladimir Biaggi5 na sua exegese
discordando no entanto no significado que lhe eacute atribuiacutedo Com efeito Biaggi divide a
palavra em ne + hilum ou seja em ausecircncia de hilo O hilo eacute como sabemos o ponto
onde uma semente ou uma viacutescera recebem o seu alimento o local onde se ligam ao
organismo de que fazem parte O autor traduz este facto dizendo-nos que a vida estaacute por
vezes presa por um fio por um Nada Esta visatildeo eacutetica faz sentido inserindo-se numa
obra que trata do niilismo (reactivo) precisamente numa perspectiva do Nada como
ausecircncia de valores sendo estes uacuteltimos o fio que manteacutem a unidade de uma sociedade
Parece-nos todavia que esta palavra merece um exame mais profundo uma visatildeo mais
arrojada Em nosso entender o Nada aparece como uma ausecircncia de ligaccedilatildeo O Nada 5 BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 pp 16-17
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natildeo eacute o teacutenue ponto onde algo se liga mas justamente a ausecircncia dessa ligaccedilatildeo Eacute
quando essa conexatildeo falta que o Nada aparece Resta-nos saber qual o algo que teima
em desligar-se
O Nada eacute o primeiro a oferecer-se ao desabrochar de uma consciecircncia no
mundo Aquilo que inicialmente define um qualquer ente aquilo que permite apreendecirc-
-lo como tal eacute o facto de este estar separado Efectivamente um ente soacute eacute ldquoumrdquo por
estar separado do resto do universo e a minha consciecircncia soacute eacute a ldquominha consciecircnciardquo
porque estaacute rodeada de passe-se o termo natildeo-eus A primeira coisa que sinto como
objecto deste mundo eacute a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros objectos Mas
simultaneamente opera-se nessa consciecircncia que aparece um instintivo devorar do
olhar um esticar de matildeo um instinto primordial para a ligaccedilatildeo com os outros entes que
se lhe apresentam ainda confusamente uma tendecircncia para a uniatildeo E eacute o confronto
entre essa uniatildeo que traz dentro de si e a separaccedilatildeo com o mundo fora dele que gera
nesse ente que aparece nesse aparecente o Nada O Nada eacute portanto aquilo que separa
um ente do mundo Como o exame de nihilum (ne + hilum) deixou transparecer Nada
significa assim numa primeira abordagem o espaccedilo entre dois entes a ausecircncia de
ligaccedilatildeo aquilo que faz com que dois entes natildeo sejam um
Quando as palavras evoluem perdem por vezes o seu significado primevo ou
deixam-no pelo menos enfraquecer O portuguecircs parece de forma curiosa natildeo soacute natildeo
ter deixado esmorecer o sentido de Nada (neste caso o que aqui vamos definindo como
Nada) como ainda o ter reforccedilado singularmente O dicionaacuterio6 diz-nos na zona
reservada agrave etimologia da palavra Nada o seguinte Do lat [rem] natam ldquocoisa
nascidardquo Natildeo deixa de ser curioso num primeiro vislumbre o contraste entre a
definiccedilatildeo da palavra (o que natildeo existe o que se opotildee ao ser) e a sua raiz (coisa
nascida) Quereraacute isto dizer que noacutes coisas nascidas natildeo somos Seria no miacutenimo
paradoxal Se recordarmos o que dissemos antes esta definiccedilatildeo tornar-se-aacute muito mais
niacutetida e clara Vimos que o Nada era uma ausecircncia de ligaccedilatildeo o espaccedilo entre dois entes
(a fortiori como veremos mais agrave frente o espaccedilo que separa todos os entes) O Nada
gera-se dos entes eacute porque me percepciono como eu e tu como tu que estamos
6 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida Costa A Sampaio e Melo Porto Editora
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separados eacute porque para noacutes aquela pedra eacute aquela pedra e aquela aacutervore eacute aquela
aacutervore que haacute nada entre elas Este Nada este espaccedilo natildeo eacute como se imagina somente
o espaccedilo fiacutesico entre as coisas mas o vazio de Ser que permite a definiccedilatildeo de dois entes
Diremos assim numa primeira aproximaccedilatildeo que o Nada nasce dos entes que o ente
segrega Nada
Tanto nos impressiona e ocupa o Nada e no fundo natildeo eacute de todo evidente que
nos ocupe e impressione De facto porquecirc este desejo de uniatildeo tatildeo forte que ateacute nos faz
criar um conceito que associamos agrave ausecircncia absurda de tudo que nos faz questionar
sobre a nossa presenccedila e desejar por vezes que natildeo focircssemos ou pelo menos natildeo desta
maneira assim separados Como pocircde por exemplo Camus mostrar tatildeo bem o
absurdo a estranheza a irredutibilidade que nascem do nosso confronto com uma
simples pedra ou uma pacata paisagem7
Para avanccedilarmos na nossa investigaccedilatildeo apelaremos agora ao termo ldquoexistirrdquo
Como sabemos este deriva da palavra latina existere Soacute por si o significado desta
uacuteltima seria suficientemente interessante sair de Mas para relevar ainda mais a sua
acepccedilatildeo iremos agrave sua proacutepria raiz existere vem do mais literal exsistere ou seja ex +
sisterei o que agrave letra daraacute aparecer fora Isto quer dizer que o existente eacute aquele que
estaacute fora A pergunta que logo nos surge eacute fora de quecirc Porque se existir eacute estar eacute pocircr-
-se fora tem de haver um algo de que saiacutemos A tradiccedilatildeo quer que saiamos do Nada
para o Ser Ora como vimos tudo aponta para que o Nada se encontre aqui na
existecircncia que o Nada nasccedila precisamente do contacto entre os entes que o Nada
apareccedila com o ente Analisando o termo Ser depressa resolveremos esta aparente
confusatildeo Ser provem como eacute normalmente aceite de sedere ou seja estar Como jaacute
observaacutemos existir eacute ex + sistere estar fora Assim Ser eacute estar e existir eacute estar fora Se
eacute como vimos o ente que segrega Nada a verdade eacute que existir se confunde com o
abandono do Ser
Aprofundando ainda mais a questatildeo abordaremos agora a anguacutestia Mas antes
de o fazermos teremos de a definir convenientemente envolta que estaacute numa multitude
de associaccedilotildees erroacuteneas Poucos concordaratildeo que a anguacutestia seja rara porque no fundo
todos jaacute se sentiram angustiados Mas daacute-se aqui um erro comum na confusatildeo entre 7 CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 p31
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anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja
estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A
anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado
nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica
porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por
exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado
passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se
desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do
objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do
Nada
A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo
angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o
mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si
mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro
decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que
segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que
vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo
E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre
aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido
fundamentalmente segregativo
A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos
satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma
realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada
como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda
a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de
preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de
provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e
como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes
8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss
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2
Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia
heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute
portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii
Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular
1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada
2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas
atraveacutes dos entes
3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo
Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da
separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua
separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas
fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para
uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o
Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o
Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da
reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute
neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem
sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e
esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir
inquietaccedilatildeo
A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute
essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo
possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo
semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo
assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo
mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma
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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente
iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso
de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem
aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo
poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse
esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana
poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente
do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o
desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em
uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9
Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a
Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis
aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia
como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os
entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer
animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes
partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute
permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da
mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas
como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na
visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a
eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute
tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela
sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo
jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o
mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva
que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer
9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188
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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute
lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a
uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas
exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a
vontade do Uno
Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num
dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades
eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no
ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se
percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade
Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e
obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar
Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma
constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute
presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus
eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute
λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por
excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a
uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus
natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada
ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo
fogo
No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a
primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde
jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma
indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae
Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito
Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se
sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou
seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera
Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do
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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se
pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno
Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender
isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto
a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois
de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como
conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela
similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu
lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui
que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de
espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia
Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um
existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo
incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute
a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo
consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do
homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de
todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela
constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a
nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe
para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por
isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo
e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de
se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso
em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi
dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como
daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos
grandes motores do niilismo ocidental
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3
Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos
primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma
separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer
latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente
Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora
Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma
falta Temos assim que o existente eacute
1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a
totalidade unida o Uno)
2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada
3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia
Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os
segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de
si mesmo e da sua condiccedilatildeo
Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que
cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis
O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas
tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro
de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio
Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que
tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente
para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos
Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre
o Nada
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4
No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o
Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que
para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que
nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou
a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12
Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da
totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a
totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de
que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as
objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o
Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14
Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade
a anguacutestia para o Nada15
Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira
abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no
entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual
a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como
dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a
sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se
encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem
senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque
eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos
11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56
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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os
entes o Todo
Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que
continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova
quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na
actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos
no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa
No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo
como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se
a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte
dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo
quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes
acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica
assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos
Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que
escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo
pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo
ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a
uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade
criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do
universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo
dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito
apenas o Uno possui o entendimento completo
Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao
domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o
universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-
-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um
a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas
eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)
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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu
ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a
Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos
satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado
como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e
vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo
temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de
panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim
ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute
tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de
aacutetomo22
Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos
de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias
astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que
esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o
nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas
partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos
assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo
da ciecircncia
Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se
esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente
tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute
consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo
agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23
18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
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II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
- 37 -
III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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A finalidade do Ser natildeo eacute o Homem mas o contraacuterio eacute verdadeiro a finalidade
do Homem eacute o Ser ou pelo menos a de um aumento de Ser e subsequente reduccedilatildeo de
Nada Assim basta-nos substituir Ser a Deus quando Mestre Eckhart diz Deus eacute
oposiccedilatildeo ao Nada pela mediaccedilatildeo do ente4
Mas enquanto estrebucharmos contra a sangria da Lacircmina dificilmente
conseguiremos sair do marasmo ilusionista que a recente filosofia tem criado num surto
nunca antes visto de confusatildeo e turbilhatildeo de palavras de facto perante grande parte da
produccedilatildeo filosoacutefica do seacuteculo passado apetece exclamarmo-nos non liquet Esta falta
de clareza deve-se sobretudo ao medo de mergulhar no banho libertador do niilismo ao
receio de cortar as amarras
O banho niilista funciona como um aacutecido que descarna a carcaccedila das nossas
ilusotildees e a verdade eacute que soacute depois de desencarnados podemos reencarnar assim como
a larva soacute se torna borboleta abandonando o casulo Para que o Nada possa ser
transcendido eacute necessaacuterio identificar primeiro todos os nadas tudo aquilo que eacute Nada E
eacute isto que ningueacutem parece estar disposto a fazer aconchegados que estamos no nosso
recanto de tradiccedilotildees de subtis cantos de sereias
Julga-se que o processo seraacute o de anulaccedilatildeo pura e simples quando eacute de facto o
de reinterpretaccedilatildeo Outra funccedilatildeo importante do niilismo eacute a de ter anulado
definitivamente a transcendecircncia de nos ter forccedilado a gerir a nossa vida na imanecircncia
onde pertencemos A transcendecircncia do Nada de que falamos daacute-se na imanecircncia eacute uma
transimanecircncia
O propoacutesito do que se segue eacute assim de circunscrever claramente o Nada para
que seja possiacutevel abordar os meios de o ultrapassar
4 laquo Dieu est opposition au neacuteant par la meacutediation de lrsquoeacutetant raquo in Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997 Deo caritas est p 624
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I
Genealogia do Nada Uma essecircncia invisiacutevel e subtil eacute o Espiacuterito
de todo o universo Isso eacute a Realidade Isso eacute a Verdade TU EacuteS ISSO
Upanishades Chandogya 61214
Um eacute o saber conhecer o pensamento pelo
qual satildeo governadas todas as coisas atraveacutes de todas as coisas
Heraclito fragmento 41
Aleacutem disso considero a alma humana como
sendo esse mesmo poder de pensar natildeo como sendo infinito e apercebendo a natureza inteira mas como apercebendo somente uma coisa finita que eacute o corpo humano a alma humana eacute assim concebida por mim como uma parte do entendimento infinito
Espinosa Carta XXXII
No teatro dos nossos pensamentos uma personagem haacute que intriga e atormenta o
auditoacuterio natildeo tanto pela sua presenccedila como pela sua ausecircncia sendo para ela esta
uacuteltima aquela primeira Embora passe despercebida para a maioria do puacuteblico os mais
atentos natildeo teratildeo dificuldade em consideraacute-la a personagem principal Falamos ainda
que natildeo seja evidente do Nada O que nele mais atormenta e intriga eacute para quem leu a
peccedila ver que natildeo faz parte do elenco que nenhuma deixa foi escrita para ele e que no
entanto rouba a vedeta ali mesmo no palco
A sua presenccedila eacute como dissemos uma ausecircncia Esta uacuteltima implica sempre
uma falta e com esta se implica tambeacutem que saibamos se natildeo o que falta pelo menos
que algo falta Ora sabemos perfeitamente que o Nada fiacutesico eacute uma pura contradiccedilatildeo
basta a mais iacutenfima das mais minuacutesculas partiacuteculas subatoacutemicas para que o Nada natildeo
seja O Nada assim concebido seria uma ausecircncia de Tudo e sabemos que nem tudo estaacute
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ausente A pergunta ldquoPorquecirc algo e natildeo o Nadardquo eacute uma pergunta a nosso ver absurda
atavismo da visatildeo criacionista que precisa de ser ultrapassada Porque recuando de
causa em causa chegamos a um ponto onde temos de decidir entre criado e incriado Se
optarmos como se tem feito na nossa civilizaccedilatildeo pela criaccedilatildeo temos de pocircr a hipoacutetese
absurda de colocar algo fora do Todo que cria o Todo A dificuldade estaacute aqui em
compreender o Universo actual que percepcionamos como conjunto de entidades
separadas ndash um Tudo ndash como unidade perdida porque pensando o Universo no seu
iniacutecio como Todo e natildeo como Tudo eacute facilmente assimilaacutevel que natildeo teve de ser
criado que eacute precisamente incriado porque o Todo natildeo necessita por definiccedilatildeo de ser
criado o Todo eacute e natildeo pode deixar de ser por si O que tentaremos mostrar eacute que o
Nada natildeo eacute ausecircncia de Tudo mas ausecircncia de Todo ou seja muito mais do que um
mero conceito o Nada eacute uma intuiccedilatildeo um sentimento uma lembranccedila de unidade
perdida
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Contrariando o evangelista diremos que no verbo estaacute o princiacutepio e assim para
abrir caminho agrave interpretaccedilatildeo da filosofia heracliteana analisaremos os termos que
seratildeo a base do presente trabalho nihilum exsistere χρησmicroοσύνη e angustiae
Quanto agrave palavra nihilum concordamos com Vladimir Biaggi5 na sua exegese
discordando no entanto no significado que lhe eacute atribuiacutedo Com efeito Biaggi divide a
palavra em ne + hilum ou seja em ausecircncia de hilo O hilo eacute como sabemos o ponto
onde uma semente ou uma viacutescera recebem o seu alimento o local onde se ligam ao
organismo de que fazem parte O autor traduz este facto dizendo-nos que a vida estaacute por
vezes presa por um fio por um Nada Esta visatildeo eacutetica faz sentido inserindo-se numa
obra que trata do niilismo (reactivo) precisamente numa perspectiva do Nada como
ausecircncia de valores sendo estes uacuteltimos o fio que manteacutem a unidade de uma sociedade
Parece-nos todavia que esta palavra merece um exame mais profundo uma visatildeo mais
arrojada Em nosso entender o Nada aparece como uma ausecircncia de ligaccedilatildeo O Nada 5 BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 pp 16-17
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natildeo eacute o teacutenue ponto onde algo se liga mas justamente a ausecircncia dessa ligaccedilatildeo Eacute
quando essa conexatildeo falta que o Nada aparece Resta-nos saber qual o algo que teima
em desligar-se
O Nada eacute o primeiro a oferecer-se ao desabrochar de uma consciecircncia no
mundo Aquilo que inicialmente define um qualquer ente aquilo que permite apreendecirc-
-lo como tal eacute o facto de este estar separado Efectivamente um ente soacute eacute ldquoumrdquo por
estar separado do resto do universo e a minha consciecircncia soacute eacute a ldquominha consciecircnciardquo
porque estaacute rodeada de passe-se o termo natildeo-eus A primeira coisa que sinto como
objecto deste mundo eacute a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros objectos Mas
simultaneamente opera-se nessa consciecircncia que aparece um instintivo devorar do
olhar um esticar de matildeo um instinto primordial para a ligaccedilatildeo com os outros entes que
se lhe apresentam ainda confusamente uma tendecircncia para a uniatildeo E eacute o confronto
entre essa uniatildeo que traz dentro de si e a separaccedilatildeo com o mundo fora dele que gera
nesse ente que aparece nesse aparecente o Nada O Nada eacute portanto aquilo que separa
um ente do mundo Como o exame de nihilum (ne + hilum) deixou transparecer Nada
significa assim numa primeira abordagem o espaccedilo entre dois entes a ausecircncia de
ligaccedilatildeo aquilo que faz com que dois entes natildeo sejam um
Quando as palavras evoluem perdem por vezes o seu significado primevo ou
deixam-no pelo menos enfraquecer O portuguecircs parece de forma curiosa natildeo soacute natildeo
ter deixado esmorecer o sentido de Nada (neste caso o que aqui vamos definindo como
Nada) como ainda o ter reforccedilado singularmente O dicionaacuterio6 diz-nos na zona
reservada agrave etimologia da palavra Nada o seguinte Do lat [rem] natam ldquocoisa
nascidardquo Natildeo deixa de ser curioso num primeiro vislumbre o contraste entre a
definiccedilatildeo da palavra (o que natildeo existe o que se opotildee ao ser) e a sua raiz (coisa
nascida) Quereraacute isto dizer que noacutes coisas nascidas natildeo somos Seria no miacutenimo
paradoxal Se recordarmos o que dissemos antes esta definiccedilatildeo tornar-se-aacute muito mais
niacutetida e clara Vimos que o Nada era uma ausecircncia de ligaccedilatildeo o espaccedilo entre dois entes
(a fortiori como veremos mais agrave frente o espaccedilo que separa todos os entes) O Nada
gera-se dos entes eacute porque me percepciono como eu e tu como tu que estamos
6 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida Costa A Sampaio e Melo Porto Editora
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separados eacute porque para noacutes aquela pedra eacute aquela pedra e aquela aacutervore eacute aquela
aacutervore que haacute nada entre elas Este Nada este espaccedilo natildeo eacute como se imagina somente
o espaccedilo fiacutesico entre as coisas mas o vazio de Ser que permite a definiccedilatildeo de dois entes
Diremos assim numa primeira aproximaccedilatildeo que o Nada nasce dos entes que o ente
segrega Nada
Tanto nos impressiona e ocupa o Nada e no fundo natildeo eacute de todo evidente que
nos ocupe e impressione De facto porquecirc este desejo de uniatildeo tatildeo forte que ateacute nos faz
criar um conceito que associamos agrave ausecircncia absurda de tudo que nos faz questionar
sobre a nossa presenccedila e desejar por vezes que natildeo focircssemos ou pelo menos natildeo desta
maneira assim separados Como pocircde por exemplo Camus mostrar tatildeo bem o
absurdo a estranheza a irredutibilidade que nascem do nosso confronto com uma
simples pedra ou uma pacata paisagem7
Para avanccedilarmos na nossa investigaccedilatildeo apelaremos agora ao termo ldquoexistirrdquo
Como sabemos este deriva da palavra latina existere Soacute por si o significado desta
uacuteltima seria suficientemente interessante sair de Mas para relevar ainda mais a sua
acepccedilatildeo iremos agrave sua proacutepria raiz existere vem do mais literal exsistere ou seja ex +
sisterei o que agrave letra daraacute aparecer fora Isto quer dizer que o existente eacute aquele que
estaacute fora A pergunta que logo nos surge eacute fora de quecirc Porque se existir eacute estar eacute pocircr-
-se fora tem de haver um algo de que saiacutemos A tradiccedilatildeo quer que saiamos do Nada
para o Ser Ora como vimos tudo aponta para que o Nada se encontre aqui na
existecircncia que o Nada nasccedila precisamente do contacto entre os entes que o Nada
apareccedila com o ente Analisando o termo Ser depressa resolveremos esta aparente
confusatildeo Ser provem como eacute normalmente aceite de sedere ou seja estar Como jaacute
observaacutemos existir eacute ex + sistere estar fora Assim Ser eacute estar e existir eacute estar fora Se
eacute como vimos o ente que segrega Nada a verdade eacute que existir se confunde com o
abandono do Ser
Aprofundando ainda mais a questatildeo abordaremos agora a anguacutestia Mas antes
de o fazermos teremos de a definir convenientemente envolta que estaacute numa multitude
de associaccedilotildees erroacuteneas Poucos concordaratildeo que a anguacutestia seja rara porque no fundo
todos jaacute se sentiram angustiados Mas daacute-se aqui um erro comum na confusatildeo entre 7 CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 p31
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anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja
estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A
anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado
nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica
porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por
exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado
passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se
desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do
objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do
Nada
A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo
angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o
mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si
mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro
decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que
segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que
vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo
E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre
aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido
fundamentalmente segregativo
A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos
satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma
realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada
como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda
a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de
preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de
provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e
como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes
8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss
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Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia
heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute
portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii
Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular
1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada
2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas
atraveacutes dos entes
3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo
Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da
separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua
separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas
fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para
uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o
Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o
Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da
reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute
neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem
sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e
esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir
inquietaccedilatildeo
A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute
essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo
possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo
semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo
assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo
mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma
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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente
iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso
de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem
aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo
poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse
esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana
poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente
do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o
desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em
uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9
Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a
Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis
aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia
como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os
entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer
animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes
partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute
permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da
mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas
como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na
visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a
eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute
tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela
sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo
jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o
mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva
que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer
9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188
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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute
lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a
uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas
exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a
vontade do Uno
Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num
dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades
eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no
ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se
percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade
Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e
obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar
Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma
constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute
presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus
eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute
λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por
excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a
uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus
natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada
ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo
fogo
No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a
primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde
jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma
indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae
Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito
Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se
sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou
seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera
Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do
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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se
pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno
Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender
isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto
a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois
de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como
conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela
similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu
lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui
que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de
espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia
Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um
existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo
incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute
a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo
consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do
homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de
todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela
constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a
nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe
para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por
isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo
e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de
se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso
em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi
dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como
daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos
grandes motores do niilismo ocidental
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Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos
primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma
separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer
latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente
Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora
Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma
falta Temos assim que o existente eacute
1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a
totalidade unida o Uno)
2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada
3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia
Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os
segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de
si mesmo e da sua condiccedilatildeo
Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que
cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis
O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas
tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro
de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio
Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que
tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente
para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos
Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre
o Nada
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No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o
Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que
para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que
nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou
a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12
Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da
totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a
totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de
que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as
objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o
Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14
Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade
a anguacutestia para o Nada15
Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira
abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no
entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual
a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como
dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a
sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se
encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem
senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque
eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos
11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56
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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os
entes o Todo
Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que
continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova
quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na
actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos
no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa
No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo
como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se
a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte
dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo
quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes
acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica
assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos
Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que
escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo
pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo
ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a
uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade
criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do
universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo
dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito
apenas o Uno possui o entendimento completo
Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao
domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o
universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-
-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um
a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas
eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)
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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu
ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a
Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos
satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado
como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e
vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo
temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de
panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim
ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute
tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de
aacutetomo22
Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos
de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias
astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que
esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o
nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas
partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos
assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo
da ciecircncia
Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se
esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente
tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute
consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo
agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23
18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
- 29 -
4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
- 30 -
II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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I
Genealogia do Nada Uma essecircncia invisiacutevel e subtil eacute o Espiacuterito
de todo o universo Isso eacute a Realidade Isso eacute a Verdade TU EacuteS ISSO
Upanishades Chandogya 61214
Um eacute o saber conhecer o pensamento pelo
qual satildeo governadas todas as coisas atraveacutes de todas as coisas
Heraclito fragmento 41
Aleacutem disso considero a alma humana como
sendo esse mesmo poder de pensar natildeo como sendo infinito e apercebendo a natureza inteira mas como apercebendo somente uma coisa finita que eacute o corpo humano a alma humana eacute assim concebida por mim como uma parte do entendimento infinito
Espinosa Carta XXXII
No teatro dos nossos pensamentos uma personagem haacute que intriga e atormenta o
auditoacuterio natildeo tanto pela sua presenccedila como pela sua ausecircncia sendo para ela esta
uacuteltima aquela primeira Embora passe despercebida para a maioria do puacuteblico os mais
atentos natildeo teratildeo dificuldade em consideraacute-la a personagem principal Falamos ainda
que natildeo seja evidente do Nada O que nele mais atormenta e intriga eacute para quem leu a
peccedila ver que natildeo faz parte do elenco que nenhuma deixa foi escrita para ele e que no
entanto rouba a vedeta ali mesmo no palco
A sua presenccedila eacute como dissemos uma ausecircncia Esta uacuteltima implica sempre
uma falta e com esta se implica tambeacutem que saibamos se natildeo o que falta pelo menos
que algo falta Ora sabemos perfeitamente que o Nada fiacutesico eacute uma pura contradiccedilatildeo
basta a mais iacutenfima das mais minuacutesculas partiacuteculas subatoacutemicas para que o Nada natildeo
seja O Nada assim concebido seria uma ausecircncia de Tudo e sabemos que nem tudo estaacute
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ausente A pergunta ldquoPorquecirc algo e natildeo o Nadardquo eacute uma pergunta a nosso ver absurda
atavismo da visatildeo criacionista que precisa de ser ultrapassada Porque recuando de
causa em causa chegamos a um ponto onde temos de decidir entre criado e incriado Se
optarmos como se tem feito na nossa civilizaccedilatildeo pela criaccedilatildeo temos de pocircr a hipoacutetese
absurda de colocar algo fora do Todo que cria o Todo A dificuldade estaacute aqui em
compreender o Universo actual que percepcionamos como conjunto de entidades
separadas ndash um Tudo ndash como unidade perdida porque pensando o Universo no seu
iniacutecio como Todo e natildeo como Tudo eacute facilmente assimilaacutevel que natildeo teve de ser
criado que eacute precisamente incriado porque o Todo natildeo necessita por definiccedilatildeo de ser
criado o Todo eacute e natildeo pode deixar de ser por si O que tentaremos mostrar eacute que o
Nada natildeo eacute ausecircncia de Tudo mas ausecircncia de Todo ou seja muito mais do que um
mero conceito o Nada eacute uma intuiccedilatildeo um sentimento uma lembranccedila de unidade
perdida
1
Contrariando o evangelista diremos que no verbo estaacute o princiacutepio e assim para
abrir caminho agrave interpretaccedilatildeo da filosofia heracliteana analisaremos os termos que
seratildeo a base do presente trabalho nihilum exsistere χρησmicroοσύνη e angustiae
Quanto agrave palavra nihilum concordamos com Vladimir Biaggi5 na sua exegese
discordando no entanto no significado que lhe eacute atribuiacutedo Com efeito Biaggi divide a
palavra em ne + hilum ou seja em ausecircncia de hilo O hilo eacute como sabemos o ponto
onde uma semente ou uma viacutescera recebem o seu alimento o local onde se ligam ao
organismo de que fazem parte O autor traduz este facto dizendo-nos que a vida estaacute por
vezes presa por um fio por um Nada Esta visatildeo eacutetica faz sentido inserindo-se numa
obra que trata do niilismo (reactivo) precisamente numa perspectiva do Nada como
ausecircncia de valores sendo estes uacuteltimos o fio que manteacutem a unidade de uma sociedade
Parece-nos todavia que esta palavra merece um exame mais profundo uma visatildeo mais
arrojada Em nosso entender o Nada aparece como uma ausecircncia de ligaccedilatildeo O Nada 5 BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 pp 16-17
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natildeo eacute o teacutenue ponto onde algo se liga mas justamente a ausecircncia dessa ligaccedilatildeo Eacute
quando essa conexatildeo falta que o Nada aparece Resta-nos saber qual o algo que teima
em desligar-se
O Nada eacute o primeiro a oferecer-se ao desabrochar de uma consciecircncia no
mundo Aquilo que inicialmente define um qualquer ente aquilo que permite apreendecirc-
-lo como tal eacute o facto de este estar separado Efectivamente um ente soacute eacute ldquoumrdquo por
estar separado do resto do universo e a minha consciecircncia soacute eacute a ldquominha consciecircnciardquo
porque estaacute rodeada de passe-se o termo natildeo-eus A primeira coisa que sinto como
objecto deste mundo eacute a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros objectos Mas
simultaneamente opera-se nessa consciecircncia que aparece um instintivo devorar do
olhar um esticar de matildeo um instinto primordial para a ligaccedilatildeo com os outros entes que
se lhe apresentam ainda confusamente uma tendecircncia para a uniatildeo E eacute o confronto
entre essa uniatildeo que traz dentro de si e a separaccedilatildeo com o mundo fora dele que gera
nesse ente que aparece nesse aparecente o Nada O Nada eacute portanto aquilo que separa
um ente do mundo Como o exame de nihilum (ne + hilum) deixou transparecer Nada
significa assim numa primeira abordagem o espaccedilo entre dois entes a ausecircncia de
ligaccedilatildeo aquilo que faz com que dois entes natildeo sejam um
Quando as palavras evoluem perdem por vezes o seu significado primevo ou
deixam-no pelo menos enfraquecer O portuguecircs parece de forma curiosa natildeo soacute natildeo
ter deixado esmorecer o sentido de Nada (neste caso o que aqui vamos definindo como
Nada) como ainda o ter reforccedilado singularmente O dicionaacuterio6 diz-nos na zona
reservada agrave etimologia da palavra Nada o seguinte Do lat [rem] natam ldquocoisa
nascidardquo Natildeo deixa de ser curioso num primeiro vislumbre o contraste entre a
definiccedilatildeo da palavra (o que natildeo existe o que se opotildee ao ser) e a sua raiz (coisa
nascida) Quereraacute isto dizer que noacutes coisas nascidas natildeo somos Seria no miacutenimo
paradoxal Se recordarmos o que dissemos antes esta definiccedilatildeo tornar-se-aacute muito mais
niacutetida e clara Vimos que o Nada era uma ausecircncia de ligaccedilatildeo o espaccedilo entre dois entes
(a fortiori como veremos mais agrave frente o espaccedilo que separa todos os entes) O Nada
gera-se dos entes eacute porque me percepciono como eu e tu como tu que estamos
6 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida Costa A Sampaio e Melo Porto Editora
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separados eacute porque para noacutes aquela pedra eacute aquela pedra e aquela aacutervore eacute aquela
aacutervore que haacute nada entre elas Este Nada este espaccedilo natildeo eacute como se imagina somente
o espaccedilo fiacutesico entre as coisas mas o vazio de Ser que permite a definiccedilatildeo de dois entes
Diremos assim numa primeira aproximaccedilatildeo que o Nada nasce dos entes que o ente
segrega Nada
Tanto nos impressiona e ocupa o Nada e no fundo natildeo eacute de todo evidente que
nos ocupe e impressione De facto porquecirc este desejo de uniatildeo tatildeo forte que ateacute nos faz
criar um conceito que associamos agrave ausecircncia absurda de tudo que nos faz questionar
sobre a nossa presenccedila e desejar por vezes que natildeo focircssemos ou pelo menos natildeo desta
maneira assim separados Como pocircde por exemplo Camus mostrar tatildeo bem o
absurdo a estranheza a irredutibilidade que nascem do nosso confronto com uma
simples pedra ou uma pacata paisagem7
Para avanccedilarmos na nossa investigaccedilatildeo apelaremos agora ao termo ldquoexistirrdquo
Como sabemos este deriva da palavra latina existere Soacute por si o significado desta
uacuteltima seria suficientemente interessante sair de Mas para relevar ainda mais a sua
acepccedilatildeo iremos agrave sua proacutepria raiz existere vem do mais literal exsistere ou seja ex +
sisterei o que agrave letra daraacute aparecer fora Isto quer dizer que o existente eacute aquele que
estaacute fora A pergunta que logo nos surge eacute fora de quecirc Porque se existir eacute estar eacute pocircr-
-se fora tem de haver um algo de que saiacutemos A tradiccedilatildeo quer que saiamos do Nada
para o Ser Ora como vimos tudo aponta para que o Nada se encontre aqui na
existecircncia que o Nada nasccedila precisamente do contacto entre os entes que o Nada
apareccedila com o ente Analisando o termo Ser depressa resolveremos esta aparente
confusatildeo Ser provem como eacute normalmente aceite de sedere ou seja estar Como jaacute
observaacutemos existir eacute ex + sistere estar fora Assim Ser eacute estar e existir eacute estar fora Se
eacute como vimos o ente que segrega Nada a verdade eacute que existir se confunde com o
abandono do Ser
Aprofundando ainda mais a questatildeo abordaremos agora a anguacutestia Mas antes
de o fazermos teremos de a definir convenientemente envolta que estaacute numa multitude
de associaccedilotildees erroacuteneas Poucos concordaratildeo que a anguacutestia seja rara porque no fundo
todos jaacute se sentiram angustiados Mas daacute-se aqui um erro comum na confusatildeo entre 7 CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 p31
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anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja
estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A
anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado
nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica
porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por
exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado
passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se
desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do
objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do
Nada
A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo
angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o
mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si
mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro
decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que
segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que
vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo
E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre
aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido
fundamentalmente segregativo
A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos
satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma
realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada
como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda
a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de
preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de
provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e
como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes
8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss
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Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia
heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute
portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii
Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular
1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada
2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas
atraveacutes dos entes
3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo
Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da
separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua
separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas
fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para
uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o
Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o
Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da
reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute
neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem
sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e
esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir
inquietaccedilatildeo
A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute
essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo
possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo
semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo
assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo
mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma
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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente
iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso
de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem
aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo
poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse
esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana
poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente
do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o
desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em
uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9
Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a
Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis
aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia
como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os
entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer
animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes
partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute
permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da
mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas
como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na
visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a
eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute
tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela
sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo
jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o
mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva
que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer
9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188
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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute
lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a
uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas
exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a
vontade do Uno
Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num
dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades
eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no
ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se
percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade
Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e
obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar
Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma
constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute
presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus
eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute
λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por
excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a
uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus
natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada
ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo
fogo
No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a
primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde
jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma
indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae
Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito
Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se
sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou
seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera
Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do
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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se
pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno
Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender
isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto
a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois
de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como
conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela
similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu
lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui
que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de
espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia
Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um
existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo
incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute
a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo
consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do
homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de
todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela
constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a
nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe
para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por
isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo
e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de
se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso
em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi
dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como
daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos
grandes motores do niilismo ocidental
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Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos
primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma
separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer
latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente
Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora
Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma
falta Temos assim que o existente eacute
1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a
totalidade unida o Uno)
2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada
3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia
Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os
segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de
si mesmo e da sua condiccedilatildeo
Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que
cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis
O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas
tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro
de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio
Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que
tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente
para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos
Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre
o Nada
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No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o
Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que
para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que
nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou
a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12
Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da
totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a
totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de
que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as
objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o
Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14
Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade
a anguacutestia para o Nada15
Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira
abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no
entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual
a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como
dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a
sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se
encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem
senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque
eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos
11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56
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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os
entes o Todo
Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que
continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova
quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na
actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos
no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa
No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo
como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se
a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte
dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo
quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes
acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica
assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos
Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que
escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo
pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo
ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a
uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade
criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do
universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo
dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito
apenas o Uno possui o entendimento completo
Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao
domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o
universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-
-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um
a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas
eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)
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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu
ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a
Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos
satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado
como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e
vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo
temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de
panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim
ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute
tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de
aacutetomo22
Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos
de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias
astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que
esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o
nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas
partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos
assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo
da ciecircncia
Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se
esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente
tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute
consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo
agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23
18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
- 30 -
II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
- 32 -
destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
- 37 -
III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
- 38 -
1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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ausente A pergunta ldquoPorquecirc algo e natildeo o Nadardquo eacute uma pergunta a nosso ver absurda
atavismo da visatildeo criacionista que precisa de ser ultrapassada Porque recuando de
causa em causa chegamos a um ponto onde temos de decidir entre criado e incriado Se
optarmos como se tem feito na nossa civilizaccedilatildeo pela criaccedilatildeo temos de pocircr a hipoacutetese
absurda de colocar algo fora do Todo que cria o Todo A dificuldade estaacute aqui em
compreender o Universo actual que percepcionamos como conjunto de entidades
separadas ndash um Tudo ndash como unidade perdida porque pensando o Universo no seu
iniacutecio como Todo e natildeo como Tudo eacute facilmente assimilaacutevel que natildeo teve de ser
criado que eacute precisamente incriado porque o Todo natildeo necessita por definiccedilatildeo de ser
criado o Todo eacute e natildeo pode deixar de ser por si O que tentaremos mostrar eacute que o
Nada natildeo eacute ausecircncia de Tudo mas ausecircncia de Todo ou seja muito mais do que um
mero conceito o Nada eacute uma intuiccedilatildeo um sentimento uma lembranccedila de unidade
perdida
1
Contrariando o evangelista diremos que no verbo estaacute o princiacutepio e assim para
abrir caminho agrave interpretaccedilatildeo da filosofia heracliteana analisaremos os termos que
seratildeo a base do presente trabalho nihilum exsistere χρησmicroοσύνη e angustiae
Quanto agrave palavra nihilum concordamos com Vladimir Biaggi5 na sua exegese
discordando no entanto no significado que lhe eacute atribuiacutedo Com efeito Biaggi divide a
palavra em ne + hilum ou seja em ausecircncia de hilo O hilo eacute como sabemos o ponto
onde uma semente ou uma viacutescera recebem o seu alimento o local onde se ligam ao
organismo de que fazem parte O autor traduz este facto dizendo-nos que a vida estaacute por
vezes presa por um fio por um Nada Esta visatildeo eacutetica faz sentido inserindo-se numa
obra que trata do niilismo (reactivo) precisamente numa perspectiva do Nada como
ausecircncia de valores sendo estes uacuteltimos o fio que manteacutem a unidade de uma sociedade
Parece-nos todavia que esta palavra merece um exame mais profundo uma visatildeo mais
arrojada Em nosso entender o Nada aparece como uma ausecircncia de ligaccedilatildeo O Nada 5 BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 pp 16-17
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natildeo eacute o teacutenue ponto onde algo se liga mas justamente a ausecircncia dessa ligaccedilatildeo Eacute
quando essa conexatildeo falta que o Nada aparece Resta-nos saber qual o algo que teima
em desligar-se
O Nada eacute o primeiro a oferecer-se ao desabrochar de uma consciecircncia no
mundo Aquilo que inicialmente define um qualquer ente aquilo que permite apreendecirc-
-lo como tal eacute o facto de este estar separado Efectivamente um ente soacute eacute ldquoumrdquo por
estar separado do resto do universo e a minha consciecircncia soacute eacute a ldquominha consciecircnciardquo
porque estaacute rodeada de passe-se o termo natildeo-eus A primeira coisa que sinto como
objecto deste mundo eacute a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros objectos Mas
simultaneamente opera-se nessa consciecircncia que aparece um instintivo devorar do
olhar um esticar de matildeo um instinto primordial para a ligaccedilatildeo com os outros entes que
se lhe apresentam ainda confusamente uma tendecircncia para a uniatildeo E eacute o confronto
entre essa uniatildeo que traz dentro de si e a separaccedilatildeo com o mundo fora dele que gera
nesse ente que aparece nesse aparecente o Nada O Nada eacute portanto aquilo que separa
um ente do mundo Como o exame de nihilum (ne + hilum) deixou transparecer Nada
significa assim numa primeira abordagem o espaccedilo entre dois entes a ausecircncia de
ligaccedilatildeo aquilo que faz com que dois entes natildeo sejam um
Quando as palavras evoluem perdem por vezes o seu significado primevo ou
deixam-no pelo menos enfraquecer O portuguecircs parece de forma curiosa natildeo soacute natildeo
ter deixado esmorecer o sentido de Nada (neste caso o que aqui vamos definindo como
Nada) como ainda o ter reforccedilado singularmente O dicionaacuterio6 diz-nos na zona
reservada agrave etimologia da palavra Nada o seguinte Do lat [rem] natam ldquocoisa
nascidardquo Natildeo deixa de ser curioso num primeiro vislumbre o contraste entre a
definiccedilatildeo da palavra (o que natildeo existe o que se opotildee ao ser) e a sua raiz (coisa
nascida) Quereraacute isto dizer que noacutes coisas nascidas natildeo somos Seria no miacutenimo
paradoxal Se recordarmos o que dissemos antes esta definiccedilatildeo tornar-se-aacute muito mais
niacutetida e clara Vimos que o Nada era uma ausecircncia de ligaccedilatildeo o espaccedilo entre dois entes
(a fortiori como veremos mais agrave frente o espaccedilo que separa todos os entes) O Nada
gera-se dos entes eacute porque me percepciono como eu e tu como tu que estamos
6 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida Costa A Sampaio e Melo Porto Editora
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separados eacute porque para noacutes aquela pedra eacute aquela pedra e aquela aacutervore eacute aquela
aacutervore que haacute nada entre elas Este Nada este espaccedilo natildeo eacute como se imagina somente
o espaccedilo fiacutesico entre as coisas mas o vazio de Ser que permite a definiccedilatildeo de dois entes
Diremos assim numa primeira aproximaccedilatildeo que o Nada nasce dos entes que o ente
segrega Nada
Tanto nos impressiona e ocupa o Nada e no fundo natildeo eacute de todo evidente que
nos ocupe e impressione De facto porquecirc este desejo de uniatildeo tatildeo forte que ateacute nos faz
criar um conceito que associamos agrave ausecircncia absurda de tudo que nos faz questionar
sobre a nossa presenccedila e desejar por vezes que natildeo focircssemos ou pelo menos natildeo desta
maneira assim separados Como pocircde por exemplo Camus mostrar tatildeo bem o
absurdo a estranheza a irredutibilidade que nascem do nosso confronto com uma
simples pedra ou uma pacata paisagem7
Para avanccedilarmos na nossa investigaccedilatildeo apelaremos agora ao termo ldquoexistirrdquo
Como sabemos este deriva da palavra latina existere Soacute por si o significado desta
uacuteltima seria suficientemente interessante sair de Mas para relevar ainda mais a sua
acepccedilatildeo iremos agrave sua proacutepria raiz existere vem do mais literal exsistere ou seja ex +
sisterei o que agrave letra daraacute aparecer fora Isto quer dizer que o existente eacute aquele que
estaacute fora A pergunta que logo nos surge eacute fora de quecirc Porque se existir eacute estar eacute pocircr-
-se fora tem de haver um algo de que saiacutemos A tradiccedilatildeo quer que saiamos do Nada
para o Ser Ora como vimos tudo aponta para que o Nada se encontre aqui na
existecircncia que o Nada nasccedila precisamente do contacto entre os entes que o Nada
apareccedila com o ente Analisando o termo Ser depressa resolveremos esta aparente
confusatildeo Ser provem como eacute normalmente aceite de sedere ou seja estar Como jaacute
observaacutemos existir eacute ex + sistere estar fora Assim Ser eacute estar e existir eacute estar fora Se
eacute como vimos o ente que segrega Nada a verdade eacute que existir se confunde com o
abandono do Ser
Aprofundando ainda mais a questatildeo abordaremos agora a anguacutestia Mas antes
de o fazermos teremos de a definir convenientemente envolta que estaacute numa multitude
de associaccedilotildees erroacuteneas Poucos concordaratildeo que a anguacutestia seja rara porque no fundo
todos jaacute se sentiram angustiados Mas daacute-se aqui um erro comum na confusatildeo entre 7 CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 p31
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anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja
estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A
anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado
nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica
porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por
exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado
passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se
desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do
objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do
Nada
A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo
angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o
mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si
mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro
decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que
segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que
vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo
E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre
aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido
fundamentalmente segregativo
A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos
satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma
realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada
como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda
a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de
preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de
provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e
como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes
8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss
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Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia
heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute
portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii
Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular
1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada
2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas
atraveacutes dos entes
3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo
Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da
separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua
separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas
fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para
uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o
Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o
Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da
reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute
neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem
sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e
esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir
inquietaccedilatildeo
A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute
essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo
possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo
semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo
assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo
mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma
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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente
iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso
de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem
aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo
poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse
esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana
poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente
do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o
desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em
uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9
Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a
Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis
aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia
como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os
entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer
animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes
partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute
permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da
mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas
como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na
visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a
eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute
tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela
sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo
jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o
mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva
que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer
9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188
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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute
lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a
uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas
exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a
vontade do Uno
Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num
dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades
eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no
ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se
percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade
Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e
obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar
Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma
constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute
presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus
eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute
λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por
excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a
uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus
natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada
ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo
fogo
No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a
primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde
jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma
indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae
Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito
Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se
sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou
seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera
Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do
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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se
pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno
Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender
isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto
a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois
de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como
conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela
similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu
lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui
que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de
espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia
Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um
existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo
incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute
a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo
consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do
homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de
todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela
constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a
nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe
para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por
isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo
e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de
se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso
em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi
dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como
daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos
grandes motores do niilismo ocidental
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Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos
primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma
separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer
latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente
Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora
Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma
falta Temos assim que o existente eacute
1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a
totalidade unida o Uno)
2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada
3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia
Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os
segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de
si mesmo e da sua condiccedilatildeo
Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que
cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis
O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas
tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro
de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio
Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que
tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente
para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos
Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre
o Nada
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4
No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o
Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que
para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que
nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou
a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12
Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da
totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a
totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de
que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as
objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o
Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14
Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade
a anguacutestia para o Nada15
Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira
abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no
entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual
a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como
dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a
sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se
encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem
senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque
eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos
11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56
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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os
entes o Todo
Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que
continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova
quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na
actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos
no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa
No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo
como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se
a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte
dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo
quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes
acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica
assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos
Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que
escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo
pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo
ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a
uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade
criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do
universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo
dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito
apenas o Uno possui o entendimento completo
Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao
domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o
universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-
-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um
a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas
eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)
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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu
ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a
Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos
satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado
como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e
vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo
temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de
panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim
ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute
tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de
aacutetomo22
Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos
de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias
astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que
esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o
nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas
partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos
assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo
da ciecircncia
Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se
esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente
tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute
consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo
agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23
18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
- 29 -
4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
- 30 -
II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
- 31 -
descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
- 32 -
destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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natildeo eacute o teacutenue ponto onde algo se liga mas justamente a ausecircncia dessa ligaccedilatildeo Eacute
quando essa conexatildeo falta que o Nada aparece Resta-nos saber qual o algo que teima
em desligar-se
O Nada eacute o primeiro a oferecer-se ao desabrochar de uma consciecircncia no
mundo Aquilo que inicialmente define um qualquer ente aquilo que permite apreendecirc-
-lo como tal eacute o facto de este estar separado Efectivamente um ente soacute eacute ldquoumrdquo por
estar separado do resto do universo e a minha consciecircncia soacute eacute a ldquominha consciecircnciardquo
porque estaacute rodeada de passe-se o termo natildeo-eus A primeira coisa que sinto como
objecto deste mundo eacute a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros objectos Mas
simultaneamente opera-se nessa consciecircncia que aparece um instintivo devorar do
olhar um esticar de matildeo um instinto primordial para a ligaccedilatildeo com os outros entes que
se lhe apresentam ainda confusamente uma tendecircncia para a uniatildeo E eacute o confronto
entre essa uniatildeo que traz dentro de si e a separaccedilatildeo com o mundo fora dele que gera
nesse ente que aparece nesse aparecente o Nada O Nada eacute portanto aquilo que separa
um ente do mundo Como o exame de nihilum (ne + hilum) deixou transparecer Nada
significa assim numa primeira abordagem o espaccedilo entre dois entes a ausecircncia de
ligaccedilatildeo aquilo que faz com que dois entes natildeo sejam um
Quando as palavras evoluem perdem por vezes o seu significado primevo ou
deixam-no pelo menos enfraquecer O portuguecircs parece de forma curiosa natildeo soacute natildeo
ter deixado esmorecer o sentido de Nada (neste caso o que aqui vamos definindo como
Nada) como ainda o ter reforccedilado singularmente O dicionaacuterio6 diz-nos na zona
reservada agrave etimologia da palavra Nada o seguinte Do lat [rem] natam ldquocoisa
nascidardquo Natildeo deixa de ser curioso num primeiro vislumbre o contraste entre a
definiccedilatildeo da palavra (o que natildeo existe o que se opotildee ao ser) e a sua raiz (coisa
nascida) Quereraacute isto dizer que noacutes coisas nascidas natildeo somos Seria no miacutenimo
paradoxal Se recordarmos o que dissemos antes esta definiccedilatildeo tornar-se-aacute muito mais
niacutetida e clara Vimos que o Nada era uma ausecircncia de ligaccedilatildeo o espaccedilo entre dois entes
(a fortiori como veremos mais agrave frente o espaccedilo que separa todos os entes) O Nada
gera-se dos entes eacute porque me percepciono como eu e tu como tu que estamos
6 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida Costa A Sampaio e Melo Porto Editora
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separados eacute porque para noacutes aquela pedra eacute aquela pedra e aquela aacutervore eacute aquela
aacutervore que haacute nada entre elas Este Nada este espaccedilo natildeo eacute como se imagina somente
o espaccedilo fiacutesico entre as coisas mas o vazio de Ser que permite a definiccedilatildeo de dois entes
Diremos assim numa primeira aproximaccedilatildeo que o Nada nasce dos entes que o ente
segrega Nada
Tanto nos impressiona e ocupa o Nada e no fundo natildeo eacute de todo evidente que
nos ocupe e impressione De facto porquecirc este desejo de uniatildeo tatildeo forte que ateacute nos faz
criar um conceito que associamos agrave ausecircncia absurda de tudo que nos faz questionar
sobre a nossa presenccedila e desejar por vezes que natildeo focircssemos ou pelo menos natildeo desta
maneira assim separados Como pocircde por exemplo Camus mostrar tatildeo bem o
absurdo a estranheza a irredutibilidade que nascem do nosso confronto com uma
simples pedra ou uma pacata paisagem7
Para avanccedilarmos na nossa investigaccedilatildeo apelaremos agora ao termo ldquoexistirrdquo
Como sabemos este deriva da palavra latina existere Soacute por si o significado desta
uacuteltima seria suficientemente interessante sair de Mas para relevar ainda mais a sua
acepccedilatildeo iremos agrave sua proacutepria raiz existere vem do mais literal exsistere ou seja ex +
sisterei o que agrave letra daraacute aparecer fora Isto quer dizer que o existente eacute aquele que
estaacute fora A pergunta que logo nos surge eacute fora de quecirc Porque se existir eacute estar eacute pocircr-
-se fora tem de haver um algo de que saiacutemos A tradiccedilatildeo quer que saiamos do Nada
para o Ser Ora como vimos tudo aponta para que o Nada se encontre aqui na
existecircncia que o Nada nasccedila precisamente do contacto entre os entes que o Nada
apareccedila com o ente Analisando o termo Ser depressa resolveremos esta aparente
confusatildeo Ser provem como eacute normalmente aceite de sedere ou seja estar Como jaacute
observaacutemos existir eacute ex + sistere estar fora Assim Ser eacute estar e existir eacute estar fora Se
eacute como vimos o ente que segrega Nada a verdade eacute que existir se confunde com o
abandono do Ser
Aprofundando ainda mais a questatildeo abordaremos agora a anguacutestia Mas antes
de o fazermos teremos de a definir convenientemente envolta que estaacute numa multitude
de associaccedilotildees erroacuteneas Poucos concordaratildeo que a anguacutestia seja rara porque no fundo
todos jaacute se sentiram angustiados Mas daacute-se aqui um erro comum na confusatildeo entre 7 CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 p31
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anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja
estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A
anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado
nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica
porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por
exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado
passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se
desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do
objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do
Nada
A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo
angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o
mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si
mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro
decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que
segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que
vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo
E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre
aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido
fundamentalmente segregativo
A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos
satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma
realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada
como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda
a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de
preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de
provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e
como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes
8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss
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Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia
heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute
portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii
Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular
1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada
2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas
atraveacutes dos entes
3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo
Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da
separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua
separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas
fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para
uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o
Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o
Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da
reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute
neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem
sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e
esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir
inquietaccedilatildeo
A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute
essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo
possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo
semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo
assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo
mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma
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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente
iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso
de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem
aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo
poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse
esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana
poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente
do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o
desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em
uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9
Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a
Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis
aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia
como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os
entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer
animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes
partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute
permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da
mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas
como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na
visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a
eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute
tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela
sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo
jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o
mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva
que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer
9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188
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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute
lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a
uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas
exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a
vontade do Uno
Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num
dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades
eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no
ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se
percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade
Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e
obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar
Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma
constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute
presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus
eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute
λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por
excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a
uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus
natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada
ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo
fogo
No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a
primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde
jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma
indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae
Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito
Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se
sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou
seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera
Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do
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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se
pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno
Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender
isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto
a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois
de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como
conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela
similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu
lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui
que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de
espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia
Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um
existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo
incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute
a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo
consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do
homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de
todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela
constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a
nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe
para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por
isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo
e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de
se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso
em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi
dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como
daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos
grandes motores do niilismo ocidental
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Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos
primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma
separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer
latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente
Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora
Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma
falta Temos assim que o existente eacute
1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a
totalidade unida o Uno)
2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada
3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia
Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os
segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de
si mesmo e da sua condiccedilatildeo
Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que
cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis
O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas
tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro
de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio
Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que
tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente
para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos
Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre
o Nada
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No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o
Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que
para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que
nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou
a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12
Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da
totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a
totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de
que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as
objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o
Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14
Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade
a anguacutestia para o Nada15
Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira
abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no
entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual
a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como
dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a
sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se
encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem
senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque
eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos
11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56
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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os
entes o Todo
Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que
continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova
quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na
actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos
no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa
No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo
como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se
a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte
dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo
quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes
acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica
assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos
Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que
escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo
pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo
ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a
uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade
criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do
universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo
dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito
apenas o Uno possui o entendimento completo
Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao
domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o
universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-
-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um
a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas
eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)
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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu
ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a
Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos
satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado
como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e
vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo
temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de
panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim
ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute
tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de
aacutetomo22
Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos
de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias
astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que
esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o
nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas
partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos
assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo
da ciecircncia
Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se
esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente
tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute
consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo
agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23
18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
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II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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separados eacute porque para noacutes aquela pedra eacute aquela pedra e aquela aacutervore eacute aquela
aacutervore que haacute nada entre elas Este Nada este espaccedilo natildeo eacute como se imagina somente
o espaccedilo fiacutesico entre as coisas mas o vazio de Ser que permite a definiccedilatildeo de dois entes
Diremos assim numa primeira aproximaccedilatildeo que o Nada nasce dos entes que o ente
segrega Nada
Tanto nos impressiona e ocupa o Nada e no fundo natildeo eacute de todo evidente que
nos ocupe e impressione De facto porquecirc este desejo de uniatildeo tatildeo forte que ateacute nos faz
criar um conceito que associamos agrave ausecircncia absurda de tudo que nos faz questionar
sobre a nossa presenccedila e desejar por vezes que natildeo focircssemos ou pelo menos natildeo desta
maneira assim separados Como pocircde por exemplo Camus mostrar tatildeo bem o
absurdo a estranheza a irredutibilidade que nascem do nosso confronto com uma
simples pedra ou uma pacata paisagem7
Para avanccedilarmos na nossa investigaccedilatildeo apelaremos agora ao termo ldquoexistirrdquo
Como sabemos este deriva da palavra latina existere Soacute por si o significado desta
uacuteltima seria suficientemente interessante sair de Mas para relevar ainda mais a sua
acepccedilatildeo iremos agrave sua proacutepria raiz existere vem do mais literal exsistere ou seja ex +
sisterei o que agrave letra daraacute aparecer fora Isto quer dizer que o existente eacute aquele que
estaacute fora A pergunta que logo nos surge eacute fora de quecirc Porque se existir eacute estar eacute pocircr-
-se fora tem de haver um algo de que saiacutemos A tradiccedilatildeo quer que saiamos do Nada
para o Ser Ora como vimos tudo aponta para que o Nada se encontre aqui na
existecircncia que o Nada nasccedila precisamente do contacto entre os entes que o Nada
apareccedila com o ente Analisando o termo Ser depressa resolveremos esta aparente
confusatildeo Ser provem como eacute normalmente aceite de sedere ou seja estar Como jaacute
observaacutemos existir eacute ex + sistere estar fora Assim Ser eacute estar e existir eacute estar fora Se
eacute como vimos o ente que segrega Nada a verdade eacute que existir se confunde com o
abandono do Ser
Aprofundando ainda mais a questatildeo abordaremos agora a anguacutestia Mas antes
de o fazermos teremos de a definir convenientemente envolta que estaacute numa multitude
de associaccedilotildees erroacuteneas Poucos concordaratildeo que a anguacutestia seja rara porque no fundo
todos jaacute se sentiram angustiados Mas daacute-se aqui um erro comum na confusatildeo entre 7 CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 p31
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anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja
estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A
anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado
nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica
porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por
exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado
passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se
desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do
objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do
Nada
A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo
angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o
mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si
mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro
decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que
segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que
vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo
E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre
aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido
fundamentalmente segregativo
A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos
satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma
realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada
como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda
a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de
preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de
provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e
como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes
8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss
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Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia
heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute
portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii
Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular
1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada
2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas
atraveacutes dos entes
3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo
Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da
separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua
separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas
fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para
uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o
Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o
Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da
reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute
neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem
sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e
esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir
inquietaccedilatildeo
A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute
essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo
possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo
semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo
assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo
mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma
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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente
iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso
de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem
aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo
poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse
esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana
poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente
do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o
desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em
uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9
Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a
Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis
aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia
como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os
entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer
animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes
partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute
permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da
mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas
como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na
visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a
eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute
tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela
sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo
jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o
mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva
que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer
9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188
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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute
lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a
uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas
exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a
vontade do Uno
Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num
dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades
eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no
ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se
percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade
Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e
obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar
Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma
constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute
presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus
eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute
λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por
excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a
uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus
natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada
ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo
fogo
No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a
primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde
jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma
indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae
Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito
Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se
sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou
seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera
Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do
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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se
pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno
Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender
isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto
a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois
de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como
conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela
similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu
lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui
que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de
espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia
Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um
existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo
incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute
a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo
consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do
homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de
todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela
constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a
nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe
para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por
isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo
e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de
se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso
em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi
dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como
daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos
grandes motores do niilismo ocidental
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Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos
primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma
separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer
latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente
Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora
Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma
falta Temos assim que o existente eacute
1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a
totalidade unida o Uno)
2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada
3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia
Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os
segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de
si mesmo e da sua condiccedilatildeo
Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que
cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis
O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas
tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro
de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio
Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que
tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente
para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos
Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre
o Nada
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4
No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o
Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que
para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que
nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou
a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12
Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da
totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a
totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de
que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as
objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o
Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14
Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade
a anguacutestia para o Nada15
Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira
abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no
entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual
a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como
dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a
sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se
encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem
senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque
eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos
11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56
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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os
entes o Todo
Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que
continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova
quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na
actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos
no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa
No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo
como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se
a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte
dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo
quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes
acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica
assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos
Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que
escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo
pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo
ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a
uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade
criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do
universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo
dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito
apenas o Uno possui o entendimento completo
Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao
domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o
universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-
-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um
a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas
eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)
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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu
ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a
Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos
satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado
como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e
vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo
temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de
panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim
ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute
tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de
aacutetomo22
Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos
de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias
astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que
esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o
nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas
partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos
assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo
da ciecircncia
Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se
esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente
tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute
consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo
agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23
18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
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II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja
estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A
anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado
nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica
porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por
exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado
passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se
desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do
objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do
Nada
A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo
angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o
mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si
mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro
decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que
segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que
vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo
E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre
aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido
fundamentalmente segregativo
A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos
satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma
realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada
como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda
a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de
preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de
provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e
como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes
8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss
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Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia
heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute
portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii
Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular
1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada
2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas
atraveacutes dos entes
3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo
Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da
separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua
separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas
fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para
uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o
Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o
Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da
reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute
neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem
sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e
esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir
inquietaccedilatildeo
A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute
essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo
possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo
semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo
assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo
mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma
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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente
iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso
de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem
aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo
poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse
esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana
poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente
do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o
desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em
uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9
Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a
Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis
aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia
como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os
entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer
animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes
partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute
permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da
mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas
como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na
visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a
eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute
tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela
sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo
jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o
mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva
que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer
9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188
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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute
lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a
uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas
exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a
vontade do Uno
Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num
dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades
eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no
ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se
percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade
Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e
obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar
Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma
constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute
presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus
eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute
λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por
excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a
uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus
natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada
ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo
fogo
No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a
primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde
jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma
indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae
Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito
Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se
sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou
seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera
Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do
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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se
pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno
Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender
isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto
a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois
de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como
conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela
similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu
lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui
que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de
espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia
Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um
existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo
incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute
a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo
consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do
homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de
todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela
constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a
nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe
para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por
isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo
e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de
se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso
em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi
dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como
daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos
grandes motores do niilismo ocidental
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Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos
primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma
separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer
latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente
Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora
Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma
falta Temos assim que o existente eacute
1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a
totalidade unida o Uno)
2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada
3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia
Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os
segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de
si mesmo e da sua condiccedilatildeo
Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que
cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis
O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas
tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro
de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio
Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que
tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente
para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos
Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre
o Nada
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No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o
Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que
para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que
nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou
a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12
Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da
totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a
totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de
que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as
objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o
Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14
Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade
a anguacutestia para o Nada15
Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira
abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no
entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual
a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como
dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a
sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se
encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem
senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque
eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos
11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56
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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os
entes o Todo
Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que
continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova
quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na
actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos
no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa
No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo
como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se
a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte
dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo
quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes
acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica
assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos
Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que
escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo
pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo
ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a
uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade
criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do
universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo
dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito
apenas o Uno possui o entendimento completo
Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao
domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o
universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-
-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um
a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas
eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)
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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu
ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a
Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos
satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado
como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e
vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo
temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de
panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim
ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute
tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de
aacutetomo22
Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos
de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias
astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que
esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o
nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas
partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos
assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo
da ciecircncia
Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se
esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente
tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute
consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo
agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23
18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
- 29 -
4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
- 30 -
II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
- 31 -
descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
- 32 -
destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia
heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute
portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii
Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular
1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada
2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas
atraveacutes dos entes
3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo
Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da
separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua
separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas
fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para
uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o
Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o
Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da
reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute
neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem
sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e
esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir
inquietaccedilatildeo
A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute
essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo
possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo
semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo
assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo
mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma
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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente
iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso
de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem
aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo
poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse
esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana
poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente
do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o
desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em
uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9
Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a
Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis
aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia
como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os
entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer
animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes
partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute
permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da
mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas
como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na
visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a
eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute
tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela
sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo
jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o
mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva
que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer
9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188
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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute
lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a
uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas
exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a
vontade do Uno
Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num
dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades
eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no
ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se
percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade
Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e
obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar
Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma
constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute
presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus
eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute
λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por
excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a
uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus
natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada
ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo
fogo
No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a
primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde
jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma
indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae
Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito
Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se
sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou
seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera
Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do
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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se
pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno
Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender
isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto
a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois
de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como
conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela
similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu
lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui
que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de
espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia
Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um
existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo
incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute
a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo
consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do
homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de
todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela
constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a
nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe
para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por
isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo
e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de
se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso
em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi
dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como
daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos
grandes motores do niilismo ocidental
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Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos
primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma
separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer
latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente
Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora
Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma
falta Temos assim que o existente eacute
1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a
totalidade unida o Uno)
2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada
3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia
Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os
segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de
si mesmo e da sua condiccedilatildeo
Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que
cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis
O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas
tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro
de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio
Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que
tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente
para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos
Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre
o Nada
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No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o
Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que
para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que
nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou
a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12
Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da
totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a
totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de
que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as
objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o
Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14
Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade
a anguacutestia para o Nada15
Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira
abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no
entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual
a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como
dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a
sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se
encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem
senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque
eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos
11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56
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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os
entes o Todo
Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que
continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova
quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na
actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos
no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa
No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo
como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se
a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte
dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo
quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes
acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica
assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos
Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que
escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo
pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo
ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a
uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade
criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do
universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo
dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito
apenas o Uno possui o entendimento completo
Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao
domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o
universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-
-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um
a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas
eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)
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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu
ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a
Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos
satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado
como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e
vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo
temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de
panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim
ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute
tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de
aacutetomo22
Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos
de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias
astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que
esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o
nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas
partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos
assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo
da ciecircncia
Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se
esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente
tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute
consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo
agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23
18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
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II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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BIBLIOGRAFIA
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- LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107 para os fragmentos de Heraclito
- SPINOZA Baruch LrsquoEacutetique Trad Roland Caillois Eacuteditions Gallimard 1954
- SPINOZA Baruch Traiteacute Politique Lettres Trad Charles Appuhn GF Flammarion 1996 Paris
- LAO TSE Tao Te King Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo - NIETZSCHE Friedrich Oeuvres I e II Bouquins Robert Laffont Paris
1993 - NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Volume I O Niilismo
Europeu Trad Isabel Henninger Ferreira Porto 2004 - JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 - LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand
Schefer Editions Allia Paris 1998 - PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 - SCHOPENHAUER Arthur Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora
Lisboa 2002 - PESSOA Fernando O Livro do Desassossego AssiacuterioampAlvim Lisboa 1998 - SILVA Agostinho da Textos e Ensaios Filosoacuteficos I e II Acircncora Editora
Lisboa 1999 - HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad
Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise
- Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997
- BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 - Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida
Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland
Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos
Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994
- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition
1999 Paris
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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika
Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente
iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso
de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem
aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo
poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse
esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana
poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente
do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o
desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em
uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9
Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a
Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis
aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia
como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os
entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer
animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes
partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute
permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da
mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas
como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na
visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a
eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute
tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela
sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo
jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o
mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva
que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer
9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188
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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute
lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a
uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas
exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a
vontade do Uno
Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num
dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades
eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no
ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se
percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade
Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e
obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar
Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma
constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute
presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus
eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute
λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por
excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a
uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus
natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada
ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo
fogo
No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a
primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde
jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma
indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae
Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito
Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se
sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou
seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera
Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do
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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se
pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno
Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender
isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto
a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois
de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como
conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela
similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu
lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui
que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de
espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia
Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um
existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo
incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute
a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo
consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do
homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de
todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela
constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a
nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe
para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por
isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo
e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de
se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso
em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi
dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como
daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos
grandes motores do niilismo ocidental
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Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos
primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma
separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer
latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente
Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora
Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma
falta Temos assim que o existente eacute
1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a
totalidade unida o Uno)
2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada
3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia
Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os
segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de
si mesmo e da sua condiccedilatildeo
Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que
cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis
O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas
tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro
de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio
Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que
tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente
para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos
Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre
o Nada
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4
No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o
Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que
para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que
nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou
a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12
Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da
totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a
totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de
que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as
objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o
Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14
Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade
a anguacutestia para o Nada15
Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira
abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no
entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual
a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como
dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a
sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se
encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem
senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque
eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos
11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56
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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os
entes o Todo
Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que
continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova
quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na
actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos
no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa
No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo
como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se
a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte
dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo
quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes
acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica
assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos
Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que
escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo
pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo
ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a
uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade
criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do
universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo
dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito
apenas o Uno possui o entendimento completo
Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao
domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o
universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-
-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um
a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas
eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)
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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu
ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a
Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos
satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado
como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e
vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo
temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de
panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim
ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute
tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de
aacutetomo22
Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos
de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias
astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que
esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o
nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas
partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos
assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo
da ciecircncia
Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se
esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente
tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute
consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo
agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23
18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
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II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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BIBLIOGRAFIA
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- LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107 para os fragmentos de Heraclito
- SPINOZA Baruch LrsquoEacutetique Trad Roland Caillois Eacuteditions Gallimard 1954
- SPINOZA Baruch Traiteacute Politique Lettres Trad Charles Appuhn GF Flammarion 1996 Paris
- LAO TSE Tao Te King Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo - NIETZSCHE Friedrich Oeuvres I e II Bouquins Robert Laffont Paris
1993 - NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Volume I O Niilismo
Europeu Trad Isabel Henninger Ferreira Porto 2004 - JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 - LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand
Schefer Editions Allia Paris 1998 - PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 - SCHOPENHAUER Arthur Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora
Lisboa 2002 - PESSOA Fernando O Livro do Desassossego AssiacuterioampAlvim Lisboa 1998 - SILVA Agostinho da Textos e Ensaios Filosoacuteficos I e II Acircncora Editora
Lisboa 1999 - HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad
Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise
- Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997
- BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 - Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida
Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland
Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos
Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994
- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition
1999 Paris
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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika
Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute
lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a
uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas
exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a
vontade do Uno
Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num
dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades
eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no
ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se
percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade
Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e
obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar
Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma
constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute
presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus
eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute
λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por
excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a
uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus
natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada
ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo
fogo
No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a
primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde
jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma
indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae
Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito
Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se
sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou
seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera
Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do
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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se
pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno
Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender
isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto
a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois
de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como
conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela
similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu
lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui
que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de
espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia
Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um
existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo
incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute
a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo
consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do
homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de
todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela
constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a
nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe
para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por
isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo
e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de
se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso
em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi
dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como
daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos
grandes motores do niilismo ocidental
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Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos
primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma
separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer
latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente
Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora
Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma
falta Temos assim que o existente eacute
1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a
totalidade unida o Uno)
2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada
3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia
Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os
segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de
si mesmo e da sua condiccedilatildeo
Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que
cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis
O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas
tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro
de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio
Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que
tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente
para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos
Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre
o Nada
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No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o
Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que
para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que
nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou
a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12
Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da
totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a
totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de
que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as
objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o
Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14
Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade
a anguacutestia para o Nada15
Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira
abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no
entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual
a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como
dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a
sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se
encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem
senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque
eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos
11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56
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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os
entes o Todo
Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que
continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova
quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na
actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos
no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa
No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo
como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se
a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte
dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo
quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes
acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica
assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos
Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que
escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo
pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo
ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a
uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade
criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do
universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo
dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito
apenas o Uno possui o entendimento completo
Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao
domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o
universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-
-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um
a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas
eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)
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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu
ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a
Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos
satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado
como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e
vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo
temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de
panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim
ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute
tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de
aacutetomo22
Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos
de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias
astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que
esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o
nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas
partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos
assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo
da ciecircncia
Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se
esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente
tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute
consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo
agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23
18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
- 29 -
4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
- 30 -
II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se
pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno
Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender
isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto
a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois
de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como
conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela
similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu
lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui
que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de
espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia
Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um
existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo
incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute
a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo
consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do
homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de
todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela
constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a
nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe
para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por
isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo
e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de
se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso
em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi
dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como
daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos
grandes motores do niilismo ocidental
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Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos
primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma
separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer
latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente
Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora
Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma
falta Temos assim que o existente eacute
1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a
totalidade unida o Uno)
2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada
3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia
Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os
segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de
si mesmo e da sua condiccedilatildeo
Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que
cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis
O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas
tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro
de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio
Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que
tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente
para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos
Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre
o Nada
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No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o
Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que
para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que
nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou
a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12
Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da
totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a
totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de
que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as
objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o
Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14
Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade
a anguacutestia para o Nada15
Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira
abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no
entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual
a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como
dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a
sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se
encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem
senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque
eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos
11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56
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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os
entes o Todo
Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que
continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova
quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na
actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos
no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa
No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo
como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se
a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte
dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo
quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes
acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica
assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos
Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que
escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo
pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo
ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a
uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade
criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do
universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo
dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito
apenas o Uno possui o entendimento completo
Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao
domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o
universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-
-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um
a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas
eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)
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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu
ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a
Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos
satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado
como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e
vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo
temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de
panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim
ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute
tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de
aacutetomo22
Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos
de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias
astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que
esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o
nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas
partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos
assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo
da ciecircncia
Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se
esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente
tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute
consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo
agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23
18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
- 30 -
II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos
primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma
separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer
latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente
Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora
Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma
falta Temos assim que o existente eacute
1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a
totalidade unida o Uno)
2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada
3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia
Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os
segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de
si mesmo e da sua condiccedilatildeo
Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que
cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis
O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas
tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro
de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio
Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que
tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente
para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos
Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre
o Nada
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No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o
Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que
para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que
nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou
a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12
Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da
totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a
totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de
que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as
objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o
Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14
Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade
a anguacutestia para o Nada15
Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira
abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no
entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual
a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como
dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a
sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se
encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem
senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque
eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos
11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56
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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os
entes o Todo
Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que
continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova
quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na
actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos
no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa
No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo
como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se
a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte
dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo
quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes
acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica
assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos
Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que
escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo
pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo
ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a
uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade
criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do
universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo
dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito
apenas o Uno possui o entendimento completo
Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao
domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o
universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-
-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um
a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas
eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)
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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu
ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a
Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos
satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado
como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e
vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo
temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de
panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim
ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute
tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de
aacutetomo22
Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos
de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias
astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que
esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o
nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas
partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos
assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo
da ciecircncia
Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se
esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente
tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute
consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo
agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23
18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
- 30 -
II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o
Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que
para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que
nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou
a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12
Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da
totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a
totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de
que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as
objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o
Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14
Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade
a anguacutestia para o Nada15
Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira
abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no
entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual
a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como
dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a
sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se
encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem
senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque
eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos
11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56
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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os
entes o Todo
Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que
continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova
quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na
actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos
no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa
No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo
como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se
a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte
dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo
quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes
acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica
assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos
Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que
escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo
pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo
ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a
uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade
criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do
universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo
dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito
apenas o Uno possui o entendimento completo
Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao
domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o
universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-
-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um
a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas
eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)
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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu
ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a
Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos
satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado
como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e
vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo
temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de
panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim
ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute
tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de
aacutetomo22
Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos
de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias
astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que
esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o
nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas
partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos
assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo
da ciecircncia
Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se
esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente
tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute
consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo
agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23
18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
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II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os
entes o Todo
Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que
continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova
quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na
actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos
no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa
No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo
como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se
a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte
dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo
quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes
acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica
assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos
Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que
escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo
pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo
ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a
uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade
criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do
universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo
dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito
apenas o Uno possui o entendimento completo
Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao
domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o
universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-
-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um
a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas
eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)
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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu
ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a
Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos
satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado
como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e
vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo
temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de
panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim
ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute
tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de
aacutetomo22
Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos
de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias
astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que
esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o
nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas
partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos
assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo
da ciecircncia
Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se
esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente
tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute
consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo
agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23
18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
- 29 -
4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
- 30 -
II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu
ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a
Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos
satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado
como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e
vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo
temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de
panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim
ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute
tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de
aacutetomo22
Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos
de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias
astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que
esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o
nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas
partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos
assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo
da ciecircncia
Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se
esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente
tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute
consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo
agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23
18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
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II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de
Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo
estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o
Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as
coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para
reaparecer aquilo
Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha
consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute
como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma
unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que
poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da
Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua
acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante
se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter
anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores
Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese
ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer
dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta
cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)
conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade
reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um
resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na
consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos
agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute
assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo
ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas
vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-
-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute
ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante
O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo
permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
- 29 -
4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
- 30 -
II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que
estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista
em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de
Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um
porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a
consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria
tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o
λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se
pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia
de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si
sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto
consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de
ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como
Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica
Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se
apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque
banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao
ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que
entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que
nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio
de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro
porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua
remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O
24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
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II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
- 39 -
a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E
eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28
Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a
revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente
eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito
no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se
explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre
escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem
diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta
dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do
existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos
remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave
nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que
se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma
unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o
proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma
como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a
histoacuteria humana
O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o
desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno
Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga
e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -
ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de
ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos
amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a
existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo
entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em
que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O
28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
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II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento
de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes
Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a
de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a
de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada
que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se
qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso
dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute
consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave
consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal
por aquele que tem a capacidade do Natildeo
Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando
contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa
consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria
sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir
comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si
proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente
como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo
seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de
processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da
consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma
unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade
natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave
consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a
aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos
satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo
modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade
particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um
conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
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II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
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Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada
paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na
consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a
uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a
consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na
consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o
seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo
em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que
convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar
particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de
Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe
havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo
natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue
o presente trabalho)
Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos
o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de
inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute
ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo
afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura
t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo
estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada
aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum
corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto
um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as
encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim
30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
- 30 -
II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria
mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei
verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou
natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar
ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal
coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar
uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado
conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O
que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me
aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas
teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo
eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso
apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento
nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por
exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo
trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia
Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter
compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma
que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de
uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali
um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute
fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se
afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se
todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse
preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como
tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a
minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em
mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante
mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico
para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero
vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
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II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia
consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me
dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha
remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como
dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o
mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo
eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam
revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a
existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser
separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo
posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural
Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a
fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo
sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo
de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E
natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim
como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que
existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma
presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia
porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia
de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute
como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa
de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do
mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A
anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se
angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser
Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O
Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este
uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e
tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da
razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
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II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que
entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que
faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um
conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a
perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute
perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que
fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre
o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o
verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees
como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas
quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo
existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de
evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe
numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe
Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo
lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a
nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora
anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o
Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de
novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto
natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute
autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as
possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica
diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os
actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo
necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste
Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa
questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo
Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se
busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia
da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
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II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo
Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a
afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31
O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o
acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)
particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos
pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que
uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre
lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a
do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do
UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser
conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento
da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de
outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo
eacute um instante fora do Ser
5
Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos
1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes
sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo
ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo
2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao
nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente
3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria
que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria
31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
- 30 -
II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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BIBLIOGRAFIA
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- LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107 para os fragmentos de Heraclito
- SPINOZA Baruch LrsquoEacutetique Trad Roland Caillois Eacuteditions Gallimard 1954
- SPINOZA Baruch Traiteacute Politique Lettres Trad Charles Appuhn GF Flammarion 1996 Paris
- LAO TSE Tao Te King Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo - NIETZSCHE Friedrich Oeuvres I e II Bouquins Robert Laffont Paris
1993 - NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Volume I O Niilismo
Europeu Trad Isabel Henninger Ferreira Porto 2004 - JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 - LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand
Schefer Editions Allia Paris 1998 - PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 - SCHOPENHAUER Arthur Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora
Lisboa 2002 - PESSOA Fernando O Livro do Desassossego AssiacuterioampAlvim Lisboa 1998 - SILVA Agostinho da Textos e Ensaios Filosoacuteficos I e II Acircncora Editora
Lisboa 1999 - HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad
Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise
- Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997
- BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 - Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida
Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland
Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos
Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994
- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition
1999 Paris
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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika
Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o
campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo
a partir dela
5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si
unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor
intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em
movimento
O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo
Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser
como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja
como ruptura dessa unidade
Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas
perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo
se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da
ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia
de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma
possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos
responder no presente trabalho
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II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
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Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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II
Um estudo sobre a Identidade
(Recensatildeo)
No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que
natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do
sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute
precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que
temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na
transcendecircncia do Nada
O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute
completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu
verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico
termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos
documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar
Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio
pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas
uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade
social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor
diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta
identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria
uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social
A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute
sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser
esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a
identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo
O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade
do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana
de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos
naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc
nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e
definida nunca achamos tal princiacutepio
Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir
entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo
mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de
que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir
dele uma ideia34
A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto
de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que
se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua
memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu
social35
A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a
pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente
La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel
mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real
diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca
uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor
de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo
Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis
dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e
elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo
foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas
33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se
passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope
cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida
ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37
Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer
que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada
situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se
repetem as etiquetas no envelope do impressor38
O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente
em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e
a identificaccedilatildeo com um animal
A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a
incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a
psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila
imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim
pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para
que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A
identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram
outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A
reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita
z etc39
Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando
primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a
impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador
do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma
desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz
Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou
36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise
- Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997
- BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 - Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida
Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland
Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos
Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994
- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition
1999 Paris
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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika
Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a
quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev
Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para
imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a
sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na
realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz
aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo
seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma
estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra
escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como
sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por
escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade
sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua
substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42
O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O
sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser
amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou
seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no
final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de
uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a
reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria
Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de
mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida
acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha
Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui
resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute
41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado
dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44
O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um
animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em
estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo
autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou
um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o
ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir
a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que
desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa
identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas
possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da
identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da
identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas
emprestada46
Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde
repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma
profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem
ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser
ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social
continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-
-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo
da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade
pessoal48
A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer
substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que
44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
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Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a
personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma
rede de construccedilotildees infindaacutevel
O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica
da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade
pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees
que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As
questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de
certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral
Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos
definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada
avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor
passamos49
A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou
mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave
moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador
essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel
Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de
responsabilidade pessoal
Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em
uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto
procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um
facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas
apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas
qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute
que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a
essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que
nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades
49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o
diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo
aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo
haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset
citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a
dizer51
51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
1
Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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III
A Saudade como motor universal de Uniatildeo
A sede de ser completo deixou-me neste
estado de maacutegoa inuacutetil
Bernardo Soares Livro do Desassossego 244
Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila
Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI
La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur
Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII
O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no
fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e
por fim o de Saudade
O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute
que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como
processo que possibilita a transcendecircncia do Nada
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Comecemos portanto por expor o susodito
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
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Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
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Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia
(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)
2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e
do proveito (Πόρος)52
3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre
solidatildeo e salvaccedilatildeo53
Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de
cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais
Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa
transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que
consiste e como se opera
Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute
para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos
tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o
mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente
tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo
em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial
Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος
tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-
uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e
riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se
atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος
Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este
conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo
contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano
Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado
objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e
mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo
acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do
termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes
da razatildeo
O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute
que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente
falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa
plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja
perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute
em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser
Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem
duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por
Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta
uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira
Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e
sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os
acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade
(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua
metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus
tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)
Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que
foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor
aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas
essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela
falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea
Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa
mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o
facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados
apelar a Hefaiacutestos deus do fogo
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)
diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom
nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo
tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)
Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude
duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de
maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do
belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a
ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio
(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser
mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor
tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da
imortalidade atraveacutes do Amor (208b)
Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as
concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo
aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal
atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do
belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal
Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela
perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das
Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel
para atingir a Ideia de Belo
Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes
ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro
da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima
contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua
proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria
55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
2
Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A
plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος
tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas
as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel
Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos
salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser
agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute
tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto
o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade
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Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade
propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o
muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo
Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma
forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode
ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais
difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos
definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute
esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute
Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada
natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos
antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de
Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de
saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute
o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade
tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade
de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute
saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de
novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
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Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado
elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute
a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a
paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma
perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu
aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua
diminuiccedilatildeo
O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade
que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que
eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos
transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada
Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se
pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de
Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)
O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela
geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do
sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do
outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo
Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute
interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a
posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo
natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do
Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia
(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me
observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o
meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no
fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la
transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se
me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes
dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a
uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma
era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria
uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da
capacidade de as adquirir
Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O
que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a
outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio
tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se
daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a
diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no
segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57
Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos
aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e
na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar
com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente
seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela
Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a
Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao
resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos
onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em
1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em
que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)
Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi
instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em
cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a
um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem
temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde
logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em
57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio
para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de
dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente
concebido para as classes populares58
Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do
niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus
judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)
e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai
sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move
sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus
transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes
criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais
negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia
Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de
Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um
ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de
atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a
distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus
modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou
Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que
satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo
passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim
dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas
58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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BIBLIOGRAFIA
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave
transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser
Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao
niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo
existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero
objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da
concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que
seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de
negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia
de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este
Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de
Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo
Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual
me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia
tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos
unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-
-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem
poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a
acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada
tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das
coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida
por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela
vergonha de natildeo ser
Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos
mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada
Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos
criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo
eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos
criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute
63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez
quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc
mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada
vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute
nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio
corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser
Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto
gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa
apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido
falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o
Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva
Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a
fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-
-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se
colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a
de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser
Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber
Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo
a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do
saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou
mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas
isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia
era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia
tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo
O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja
filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode
fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do
sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou
seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma
64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
4
Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O
que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em
conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-
-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor
dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o
que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas
O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de
perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder
receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida
como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada
em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o
contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que
acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio
bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc
Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos
princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc
(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um
veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso
dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por
indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele
Nada mais nada menos
Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de
valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma
guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute
antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo
confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma
coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de
princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como
natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal
O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois
princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
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Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso
abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos
princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de
propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio
anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua
pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as
leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum
princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o
facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de
conflitos65
A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer
outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica
Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam
ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do
mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o
filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico
3
O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos
avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele
O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no
sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes
do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o
Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute
para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da
substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica
isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser
65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
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Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia
de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo
Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da
Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de
plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples
rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por
conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por
bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o
sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo
conceptualizada
O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos
tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser
sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o
primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do
que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora
aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de
Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta
Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo
me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento
eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o
Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender
alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele
Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo
mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o
intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia
em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao
estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute
indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para
compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para
boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
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Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se
faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a
seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como
tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa
Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas
esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que
consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio
Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa
exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma
perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de
uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior
uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem
sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro
que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade
Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter
ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos
acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade
ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam
Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais
se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais
distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser
Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com
quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se
educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em
conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as
qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem
67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
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Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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BIBLIOGRAFIA
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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika
Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de
tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas
Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa
como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e
continuaraacute o seu caminho71
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Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como
mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que
tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo
fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a
ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por
exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um
possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que
costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos
determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um
reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus
possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo
anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma
duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures
entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore
sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute
no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo
Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma
liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao
seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees
Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade
71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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BIBLIOGRAFIA
- PLATON Oeuvres Complegravetes Tome IV 2e Partie Le Banquet Trad Paul Vicaire Les Belles Lettres Paris 1992
- LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107 para os fragmentos de Heraclito
- SPINOZA Baruch LrsquoEacutetique Trad Roland Caillois Eacuteditions Gallimard 1954
- SPINOZA Baruch Traiteacute Politique Lettres Trad Charles Appuhn GF Flammarion 1996 Paris
- LAO TSE Tao Te King Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo - NIETZSCHE Friedrich Oeuvres I e II Bouquins Robert Laffont Paris
1993 - NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Volume I O Niilismo
Europeu Trad Isabel Henninger Ferreira Porto 2004 - JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 - LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand
Schefer Editions Allia Paris 1998 - PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 - SCHOPENHAUER Arthur Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora
Lisboa 2002 - PESSOA Fernando O Livro do Desassossego AssiacuterioampAlvim Lisboa 1998 - SILVA Agostinho da Textos e Ensaios Filosoacuteficos I e II Acircncora Editora
Lisboa 1999 - HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad
Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise
- Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997
- BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 - Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida
Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland
Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos
Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994
- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition
1999 Paris
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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika
Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de
menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou
seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche
quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo
Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o
segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos
modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse
Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o
reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque
se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros
estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o
meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo
em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo
verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se
pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a
impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma
coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O
Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma
quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho
ofuscado por faroacuteis
O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por
excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser
Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o
verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum
eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao
Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute
completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o
Ser sente de si proacuteprio
73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15
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- LAO TSE Tao Te King Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo - NIETZSCHE Friedrich Oeuvres I e II Bouquins Robert Laffont Paris
1993 - NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Volume I O Niilismo
Europeu Trad Isabel Henninger Ferreira Porto 2004 - JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 - LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand
Schefer Editions Allia Paris 1998 - PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 - SCHOPENHAUER Arthur Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora
Lisboa 2002 - PESSOA Fernando O Livro do Desassossego AssiacuterioampAlvim Lisboa 1998 - SILVA Agostinho da Textos e Ensaios Filosoacuteficos I e II Acircncora Editora
Lisboa 1999 - HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad
Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise
- Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997
- BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 - Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida
Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland
Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos
Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994
- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition
1999 Paris
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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika
Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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BIBLIOGRAFIA
- PLATON Oeuvres Complegravetes Tome IV 2e Partie Le Banquet Trad Paul Vicaire Les Belles Lettres Paris 1992
- LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107 para os fragmentos de Heraclito
- SPINOZA Baruch LrsquoEacutetique Trad Roland Caillois Eacuteditions Gallimard 1954
- SPINOZA Baruch Traiteacute Politique Lettres Trad Charles Appuhn GF Flammarion 1996 Paris
- LAO TSE Tao Te King Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo - NIETZSCHE Friedrich Oeuvres I e II Bouquins Robert Laffont Paris
1993 - NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Volume I O Niilismo
Europeu Trad Isabel Henninger Ferreira Porto 2004 - JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 - LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand
Schefer Editions Allia Paris 1998 - PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 - SCHOPENHAUER Arthur Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora
Lisboa 2002 - PESSOA Fernando O Livro do Desassossego AssiacuterioampAlvim Lisboa 1998 - SILVA Agostinho da Textos e Ensaios Filosoacuteficos I e II Acircncora Editora
Lisboa 1999 - HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad
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- Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997
- BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 - Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida
Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland
Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos
Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994
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1999 Paris
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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika
Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika
Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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NOTAS
i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107
Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que
eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm
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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm