Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem...

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- 2 - ÍNDICE Índice…………………………………………………………………………………….1 Nota Prévia………………………………………………………………………………2 Introdução………………………………………………………………………………..3 I – Genealogia do Nada………………………………………………………………….6 II – Estudo sobre a Identidade (recensão)...…………………………………………....29 III – A Saudade…………………………………………………………………………36 Bibliografia......................................................................................................................52 Notas................................................................................................................................54

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IacuteNDICE

Iacutendicehelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip1

Nota Preacuteviahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip2

Introduccedilatildeohelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip3

I ndash Genealogia do Nadahelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip6

II ndash Estudo sobre a Identidade (recensatildeo)helliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip29

III ndash A Saudadehelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphelliphellip36

Bibliografia52

Notas54

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Nota Preacutevia

Decidimos por comodidade mas tambeacutem para permitir uma melhor

continuidade de pensamento unir num soacute texto os vaacuterios trabalhos de Metafiacutesica (MF) e

de Filosofia em Portugal I (FPI) Assim a introduccedilatildeo constitui a reflexatildeo pessoal pedida

em FPI o primeiro capiacutetulo o trabalho de MF o segundo a recensatildeo tambeacutem para MF e

por fim o terceiro e uacuteltimo capiacutetulo o trabalho de FPI

As notas em numeraccedilatildeo romana encontram-se no final do texto

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Introduccedilatildeo

(Em jeito de reflexatildeo pessoal)

O texto que se segue natildeo eacute a nenhum momento sobre a filosofia de algueacutem nem

mesmo sobre a filosofia de quem o escreve Poderaacute enraizar-se por instantes em

pensamentos que se originaram num algueacutem a dado estaacutedio da longa tradiccedilatildeo filosoacutefica

Natildeo vemos a filosofia como algo meramente humano destinado exclusivamente agrave

humanidade A Humanidade eacute um passo como outro qualquer na perspectiva mais vasta

de um destino mais amplo a filosofia um dos complexos muacutesculos que arrasta a perna

que o daacute

No entanto estamos conscientes dos preceitos de um trabalho acadeacutemico Mas

estamos tambeacutem cientes das suas limitaccedilotildees Seguidos agrave letra desde o iniacutecio do pensar

filosoacutefico ainda estariacuteamos hoje glosando exclusivamente sobre os escritos de Tales

Lutar pela nossa ideia de filosofia natildeo seraacute tambeacutem filosofar Aliaacutes natildeo seraacute

derradeiramente isso que constitui a filosofia decidir qual eacute precisamente a perspectiva

do saber que se ama O filosofar eacute a colheita dos frutos que nos fortificam no pomar do

saber Ora o pomar da filosofia eacute jaacute suficientemente amplo para natildeo termos de comer

frutos que sabemos nos iratildeo enfraquecer envenenar A cada um os seus toacutenicos a cada

qual os seus venenos Natildeo seraacute a proacutepria escrita poacutes-moderna muito mais do que um

sinal de aumento de complexidade um sinal de envenenamento O espiacuterito deve

alimentar-se frugalmente para poder digerir e metabolizar natildeo indispor-se e vomitar1

Compreendemos que a generalizaccedilatildeo da educaccedilatildeo tenha levado agrave instituiccedilatildeo de

paracircmetros igualitaacuterios mas desejamos noacutes realmente que cada indiviacuteduo saia da escola

como de uma cadeia processual de nivelamento ou seja que todos saibam a mesma

coisa sobre as mesmas coisas Ou mais grave ainda que todos saibam o mesmo do

mesmo modo Acabaremos noacutes por dar razatildeo a Ladislav Klima2

1 Sobre a ignoracircncia calculada e o excesso de saber NIETZSCHE Friedrich A Gaia Ciecircncia Livro Quinto sect 381 2 laquo - Les eacutecoles usines agrave fabriquer des idiots raquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 207

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O problema mais profundo que enfrenta a filosofia eacute o do Nada Com efeito o

Nada tem accedilambarcado de tal forma o pensamento que de certa forma o paralisou ou

pelo menos atrofiou o seu desenvolvimento impediu que se ramificasse pelas mentes e

pelo proacuteprio substrato social Qualquer sobressalto filosoacutefico que teimamos em que natildeo

seja o do seu estertor eacute logo reprimido por um coro de ldquoPara quecircrdquo Eacute tarefa primordial

da filosofia reinserir o Ser na realidade Para tal eacute preciso primeiro retirar o Homem Ou

seja eacute preciso compreender que a humanidade natildeo eacute finalidade alguma eacute uma ponte3

uma condiccedilatildeo que eacute preciso no entanto amar como se ama a nossa matildee sem que a

tenhamos escolhido

Eacute preciso dizer que haacute em noacutes o poder de vencer o Nada embora natildeo passemos

derradeiramente de nadas Mesmo diremos noacutes somente quando formos reduzidos a

nadas poderemos estar aptos a perceber e construir o Ser Assim o niilismo natildeo eacute um

mal em si mas uma passagem obrigatoacuteria uma reduccedilatildeo ao essencial de toda a histoacuteria

do pensamento Trata-se de uma des-ilusatildeo salutar de um processo higieacutenico que se

revelaraacute proveitoso se for entendido e bem aproveitado

O papel do niilismo tem de ser visto como o de uma limpeza mas eacute no saber

colher o que sobra que se encontra a nosso ver o futuro da filosofia Podemos intitular

esse processo de Lacircmina Niilista em honra agrave de Ockham tambeacutem ela circunscreve o

essencial tambeacutem ela faz com menos

O primeiro passo eacute o de o aceitarmos Efectivamente enquanto negarmos o

niilismo e remarmos contra a sua mareacute nunca conseguiremos ver onde nos leva O

problema actual eacute o de natildeo sermos suficientemente niilistas Se nos deixarmos levar

pela corrente depressa veremos que atingimos a costa do Ser Eacute precisamente por tudo

ser nada que tudo eacute por fim Ser Mas este apenas se atinge nos limites do

despojamento do desapego Noacutes pelo contraacuterio temos acumulado temo-nos apegado

Haacute uma nobreza niilista que tem sido desconsiderada porque somente se vecirc o efeito que

provoca Apenas se considera a reacccedilatildeo ao niilismo ndash eacute deste tipo reactivo que

trataremos ndash natildeo a sua acccedilatildeo

3ldquoO que haacute de grande no homem eacute ser uma ponte e natildeo um fim o que se pode amar no homem eacute ser uma passagem e um decliacuteniordquo NIETZSCHE Friedrich Assim Falava Zaratustra I sect 4

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A finalidade do Ser natildeo eacute o Homem mas o contraacuterio eacute verdadeiro a finalidade

do Homem eacute o Ser ou pelo menos a de um aumento de Ser e subsequente reduccedilatildeo de

Nada Assim basta-nos substituir Ser a Deus quando Mestre Eckhart diz Deus eacute

oposiccedilatildeo ao Nada pela mediaccedilatildeo do ente4

Mas enquanto estrebucharmos contra a sangria da Lacircmina dificilmente

conseguiremos sair do marasmo ilusionista que a recente filosofia tem criado num surto

nunca antes visto de confusatildeo e turbilhatildeo de palavras de facto perante grande parte da

produccedilatildeo filosoacutefica do seacuteculo passado apetece exclamarmo-nos non liquet Esta falta

de clareza deve-se sobretudo ao medo de mergulhar no banho libertador do niilismo ao

receio de cortar as amarras

O banho niilista funciona como um aacutecido que descarna a carcaccedila das nossas

ilusotildees e a verdade eacute que soacute depois de desencarnados podemos reencarnar assim como

a larva soacute se torna borboleta abandonando o casulo Para que o Nada possa ser

transcendido eacute necessaacuterio identificar primeiro todos os nadas tudo aquilo que eacute Nada E

eacute isto que ningueacutem parece estar disposto a fazer aconchegados que estamos no nosso

recanto de tradiccedilotildees de subtis cantos de sereias

Julga-se que o processo seraacute o de anulaccedilatildeo pura e simples quando eacute de facto o

de reinterpretaccedilatildeo Outra funccedilatildeo importante do niilismo eacute a de ter anulado

definitivamente a transcendecircncia de nos ter forccedilado a gerir a nossa vida na imanecircncia

onde pertencemos A transcendecircncia do Nada de que falamos daacute-se na imanecircncia eacute uma

transimanecircncia

O propoacutesito do que se segue eacute assim de circunscrever claramente o Nada para

que seja possiacutevel abordar os meios de o ultrapassar

4 laquo Dieu est opposition au neacuteant par la meacutediation de lrsquoeacutetant raquo in Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997 Deo caritas est p 624

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I

Genealogia do Nada Uma essecircncia invisiacutevel e subtil eacute o Espiacuterito

de todo o universo Isso eacute a Realidade Isso eacute a Verdade TU EacuteS ISSO

Upanishades Chandogya 61214

Um eacute o saber conhecer o pensamento pelo

qual satildeo governadas todas as coisas atraveacutes de todas as coisas

Heraclito fragmento 41

Aleacutem disso considero a alma humana como

sendo esse mesmo poder de pensar natildeo como sendo infinito e apercebendo a natureza inteira mas como apercebendo somente uma coisa finita que eacute o corpo humano a alma humana eacute assim concebida por mim como uma parte do entendimento infinito

Espinosa Carta XXXII

No teatro dos nossos pensamentos uma personagem haacute que intriga e atormenta o

auditoacuterio natildeo tanto pela sua presenccedila como pela sua ausecircncia sendo para ela esta

uacuteltima aquela primeira Embora passe despercebida para a maioria do puacuteblico os mais

atentos natildeo teratildeo dificuldade em consideraacute-la a personagem principal Falamos ainda

que natildeo seja evidente do Nada O que nele mais atormenta e intriga eacute para quem leu a

peccedila ver que natildeo faz parte do elenco que nenhuma deixa foi escrita para ele e que no

entanto rouba a vedeta ali mesmo no palco

A sua presenccedila eacute como dissemos uma ausecircncia Esta uacuteltima implica sempre

uma falta e com esta se implica tambeacutem que saibamos se natildeo o que falta pelo menos

que algo falta Ora sabemos perfeitamente que o Nada fiacutesico eacute uma pura contradiccedilatildeo

basta a mais iacutenfima das mais minuacutesculas partiacuteculas subatoacutemicas para que o Nada natildeo

seja O Nada assim concebido seria uma ausecircncia de Tudo e sabemos que nem tudo estaacute

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ausente A pergunta ldquoPorquecirc algo e natildeo o Nadardquo eacute uma pergunta a nosso ver absurda

atavismo da visatildeo criacionista que precisa de ser ultrapassada Porque recuando de

causa em causa chegamos a um ponto onde temos de decidir entre criado e incriado Se

optarmos como se tem feito na nossa civilizaccedilatildeo pela criaccedilatildeo temos de pocircr a hipoacutetese

absurda de colocar algo fora do Todo que cria o Todo A dificuldade estaacute aqui em

compreender o Universo actual que percepcionamos como conjunto de entidades

separadas ndash um Tudo ndash como unidade perdida porque pensando o Universo no seu

iniacutecio como Todo e natildeo como Tudo eacute facilmente assimilaacutevel que natildeo teve de ser

criado que eacute precisamente incriado porque o Todo natildeo necessita por definiccedilatildeo de ser

criado o Todo eacute e natildeo pode deixar de ser por si O que tentaremos mostrar eacute que o

Nada natildeo eacute ausecircncia de Tudo mas ausecircncia de Todo ou seja muito mais do que um

mero conceito o Nada eacute uma intuiccedilatildeo um sentimento uma lembranccedila de unidade

perdida

1

Contrariando o evangelista diremos que no verbo estaacute o princiacutepio e assim para

abrir caminho agrave interpretaccedilatildeo da filosofia heracliteana analisaremos os termos que

seratildeo a base do presente trabalho nihilum exsistere χρησmicroοσύνη e angustiae

Quanto agrave palavra nihilum concordamos com Vladimir Biaggi5 na sua exegese

discordando no entanto no significado que lhe eacute atribuiacutedo Com efeito Biaggi divide a

palavra em ne + hilum ou seja em ausecircncia de hilo O hilo eacute como sabemos o ponto

onde uma semente ou uma viacutescera recebem o seu alimento o local onde se ligam ao

organismo de que fazem parte O autor traduz este facto dizendo-nos que a vida estaacute por

vezes presa por um fio por um Nada Esta visatildeo eacutetica faz sentido inserindo-se numa

obra que trata do niilismo (reactivo) precisamente numa perspectiva do Nada como

ausecircncia de valores sendo estes uacuteltimos o fio que manteacutem a unidade de uma sociedade

Parece-nos todavia que esta palavra merece um exame mais profundo uma visatildeo mais

arrojada Em nosso entender o Nada aparece como uma ausecircncia de ligaccedilatildeo O Nada 5 BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 pp 16-17

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natildeo eacute o teacutenue ponto onde algo se liga mas justamente a ausecircncia dessa ligaccedilatildeo Eacute

quando essa conexatildeo falta que o Nada aparece Resta-nos saber qual o algo que teima

em desligar-se

O Nada eacute o primeiro a oferecer-se ao desabrochar de uma consciecircncia no

mundo Aquilo que inicialmente define um qualquer ente aquilo que permite apreendecirc-

-lo como tal eacute o facto de este estar separado Efectivamente um ente soacute eacute ldquoumrdquo por

estar separado do resto do universo e a minha consciecircncia soacute eacute a ldquominha consciecircnciardquo

porque estaacute rodeada de passe-se o termo natildeo-eus A primeira coisa que sinto como

objecto deste mundo eacute a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros objectos Mas

simultaneamente opera-se nessa consciecircncia que aparece um instintivo devorar do

olhar um esticar de matildeo um instinto primordial para a ligaccedilatildeo com os outros entes que

se lhe apresentam ainda confusamente uma tendecircncia para a uniatildeo E eacute o confronto

entre essa uniatildeo que traz dentro de si e a separaccedilatildeo com o mundo fora dele que gera

nesse ente que aparece nesse aparecente o Nada O Nada eacute portanto aquilo que separa

um ente do mundo Como o exame de nihilum (ne + hilum) deixou transparecer Nada

significa assim numa primeira abordagem o espaccedilo entre dois entes a ausecircncia de

ligaccedilatildeo aquilo que faz com que dois entes natildeo sejam um

Quando as palavras evoluem perdem por vezes o seu significado primevo ou

deixam-no pelo menos enfraquecer O portuguecircs parece de forma curiosa natildeo soacute natildeo

ter deixado esmorecer o sentido de Nada (neste caso o que aqui vamos definindo como

Nada) como ainda o ter reforccedilado singularmente O dicionaacuterio6 diz-nos na zona

reservada agrave etimologia da palavra Nada o seguinte Do lat [rem] natam ldquocoisa

nascidardquo Natildeo deixa de ser curioso num primeiro vislumbre o contraste entre a

definiccedilatildeo da palavra (o que natildeo existe o que se opotildee ao ser) e a sua raiz (coisa

nascida) Quereraacute isto dizer que noacutes coisas nascidas natildeo somos Seria no miacutenimo

paradoxal Se recordarmos o que dissemos antes esta definiccedilatildeo tornar-se-aacute muito mais

niacutetida e clara Vimos que o Nada era uma ausecircncia de ligaccedilatildeo o espaccedilo entre dois entes

(a fortiori como veremos mais agrave frente o espaccedilo que separa todos os entes) O Nada

gera-se dos entes eacute porque me percepciono como eu e tu como tu que estamos

6 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida Costa A Sampaio e Melo Porto Editora

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separados eacute porque para noacutes aquela pedra eacute aquela pedra e aquela aacutervore eacute aquela

aacutervore que haacute nada entre elas Este Nada este espaccedilo natildeo eacute como se imagina somente

o espaccedilo fiacutesico entre as coisas mas o vazio de Ser que permite a definiccedilatildeo de dois entes

Diremos assim numa primeira aproximaccedilatildeo que o Nada nasce dos entes que o ente

segrega Nada

Tanto nos impressiona e ocupa o Nada e no fundo natildeo eacute de todo evidente que

nos ocupe e impressione De facto porquecirc este desejo de uniatildeo tatildeo forte que ateacute nos faz

criar um conceito que associamos agrave ausecircncia absurda de tudo que nos faz questionar

sobre a nossa presenccedila e desejar por vezes que natildeo focircssemos ou pelo menos natildeo desta

maneira assim separados Como pocircde por exemplo Camus mostrar tatildeo bem o

absurdo a estranheza a irredutibilidade que nascem do nosso confronto com uma

simples pedra ou uma pacata paisagem7

Para avanccedilarmos na nossa investigaccedilatildeo apelaremos agora ao termo ldquoexistirrdquo

Como sabemos este deriva da palavra latina existere Soacute por si o significado desta

uacuteltima seria suficientemente interessante sair de Mas para relevar ainda mais a sua

acepccedilatildeo iremos agrave sua proacutepria raiz existere vem do mais literal exsistere ou seja ex +

sisterei o que agrave letra daraacute aparecer fora Isto quer dizer que o existente eacute aquele que

estaacute fora A pergunta que logo nos surge eacute fora de quecirc Porque se existir eacute estar eacute pocircr-

-se fora tem de haver um algo de que saiacutemos A tradiccedilatildeo quer que saiamos do Nada

para o Ser Ora como vimos tudo aponta para que o Nada se encontre aqui na

existecircncia que o Nada nasccedila precisamente do contacto entre os entes que o Nada

apareccedila com o ente Analisando o termo Ser depressa resolveremos esta aparente

confusatildeo Ser provem como eacute normalmente aceite de sedere ou seja estar Como jaacute

observaacutemos existir eacute ex + sistere estar fora Assim Ser eacute estar e existir eacute estar fora Se

eacute como vimos o ente que segrega Nada a verdade eacute que existir se confunde com o

abandono do Ser

Aprofundando ainda mais a questatildeo abordaremos agora a anguacutestia Mas antes

de o fazermos teremos de a definir convenientemente envolta que estaacute numa multitude

de associaccedilotildees erroacuteneas Poucos concordaratildeo que a anguacutestia seja rara porque no fundo

todos jaacute se sentiram angustiados Mas daacute-se aqui um erro comum na confusatildeo entre 7 CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 p31

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anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja

estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A

anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado

nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica

porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por

exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado

passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se

desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do

objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do

Nada

A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo

angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o

mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si

mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro

decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que

segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que

vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo

E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre

aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido

fundamentalmente segregativo

A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos

satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma

realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada

como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda

a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de

preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de

provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e

como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes

8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss

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2

Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia

heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute

portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii

Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular

1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada

2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas

atraveacutes dos entes

3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo

Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da

separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua

separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas

fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para

uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o

Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o

Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da

reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute

neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem

sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e

esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir

inquietaccedilatildeo

A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute

essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo

possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo

semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo

assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo

mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma

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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente

iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso

de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem

aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo

poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse

esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana

poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente

do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o

desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em

uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9

Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a

Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis

aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia

como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os

entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer

animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes

partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute

permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da

mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas

como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na

visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a

eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute

tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela

sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo

jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o

mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva

que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer

9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188

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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute

lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a

uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas

exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a

vontade do Uno

Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num

dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades

eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no

ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se

percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade

Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e

obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar

Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma

constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute

presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus

eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute

λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por

excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a

uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus

natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada

ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo

fogo

No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a

primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde

jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma

indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae

Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito

Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se

sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou

seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera

Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do

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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se

pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno

Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender

isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto

a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois

de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como

conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela

similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu

lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui

que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de

espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia

Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um

existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo

incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute

a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo

consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do

homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de

todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela

constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a

nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe

para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por

isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo

e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de

se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso

em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi

dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como

daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos

grandes motores do niilismo ocidental

- 16 -

3

Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos

primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma

separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer

latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente

Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora

Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma

falta Temos assim que o existente eacute

1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a

totalidade unida o Uno)

2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada

3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia

Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os

segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de

si mesmo e da sua condiccedilatildeo

Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que

cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis

O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas

tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro

de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio

Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que

tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente

para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos

Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre

o Nada

- 17 -

4

No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o

Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que

para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que

nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou

a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12

Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da

totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a

totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de

que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as

objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o

Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14

Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade

a anguacutestia para o Nada15

Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira

abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no

entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual

a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como

dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a

sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se

encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem

senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque

eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos

11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56

- 18 -

os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os

entes o Todo

Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que

continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova

quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na

actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos

no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa

No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo

como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se

a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte

dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo

quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes

acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica

assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos

Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que

escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo

pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo

ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a

uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade

criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do

universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo

dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito

apenas o Uno possui o entendimento completo

Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao

domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o

universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-

-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um

a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas

eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)

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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu

ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a

Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos

satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado

como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e

vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo

temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de

panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim

ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute

tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de

aacutetomo22

Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos

de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias

astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que

esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o

nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas

partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos

assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo

da ciecircncia

Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se

esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente

tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute

consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo

agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23

18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente

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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

- 27 -

concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

- 28 -

dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

- 33 -

seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

- 34 -

ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

- 39 -

a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika

Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 2: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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Nota Preacutevia

Decidimos por comodidade mas tambeacutem para permitir uma melhor

continuidade de pensamento unir num soacute texto os vaacuterios trabalhos de Metafiacutesica (MF) e

de Filosofia em Portugal I (FPI) Assim a introduccedilatildeo constitui a reflexatildeo pessoal pedida

em FPI o primeiro capiacutetulo o trabalho de MF o segundo a recensatildeo tambeacutem para MF e

por fim o terceiro e uacuteltimo capiacutetulo o trabalho de FPI

As notas em numeraccedilatildeo romana encontram-se no final do texto

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Introduccedilatildeo

(Em jeito de reflexatildeo pessoal)

O texto que se segue natildeo eacute a nenhum momento sobre a filosofia de algueacutem nem

mesmo sobre a filosofia de quem o escreve Poderaacute enraizar-se por instantes em

pensamentos que se originaram num algueacutem a dado estaacutedio da longa tradiccedilatildeo filosoacutefica

Natildeo vemos a filosofia como algo meramente humano destinado exclusivamente agrave

humanidade A Humanidade eacute um passo como outro qualquer na perspectiva mais vasta

de um destino mais amplo a filosofia um dos complexos muacutesculos que arrasta a perna

que o daacute

No entanto estamos conscientes dos preceitos de um trabalho acadeacutemico Mas

estamos tambeacutem cientes das suas limitaccedilotildees Seguidos agrave letra desde o iniacutecio do pensar

filosoacutefico ainda estariacuteamos hoje glosando exclusivamente sobre os escritos de Tales

Lutar pela nossa ideia de filosofia natildeo seraacute tambeacutem filosofar Aliaacutes natildeo seraacute

derradeiramente isso que constitui a filosofia decidir qual eacute precisamente a perspectiva

do saber que se ama O filosofar eacute a colheita dos frutos que nos fortificam no pomar do

saber Ora o pomar da filosofia eacute jaacute suficientemente amplo para natildeo termos de comer

frutos que sabemos nos iratildeo enfraquecer envenenar A cada um os seus toacutenicos a cada

qual os seus venenos Natildeo seraacute a proacutepria escrita poacutes-moderna muito mais do que um

sinal de aumento de complexidade um sinal de envenenamento O espiacuterito deve

alimentar-se frugalmente para poder digerir e metabolizar natildeo indispor-se e vomitar1

Compreendemos que a generalizaccedilatildeo da educaccedilatildeo tenha levado agrave instituiccedilatildeo de

paracircmetros igualitaacuterios mas desejamos noacutes realmente que cada indiviacuteduo saia da escola

como de uma cadeia processual de nivelamento ou seja que todos saibam a mesma

coisa sobre as mesmas coisas Ou mais grave ainda que todos saibam o mesmo do

mesmo modo Acabaremos noacutes por dar razatildeo a Ladislav Klima2

1 Sobre a ignoracircncia calculada e o excesso de saber NIETZSCHE Friedrich A Gaia Ciecircncia Livro Quinto sect 381 2 laquo - Les eacutecoles usines agrave fabriquer des idiots raquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 207

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O problema mais profundo que enfrenta a filosofia eacute o do Nada Com efeito o

Nada tem accedilambarcado de tal forma o pensamento que de certa forma o paralisou ou

pelo menos atrofiou o seu desenvolvimento impediu que se ramificasse pelas mentes e

pelo proacuteprio substrato social Qualquer sobressalto filosoacutefico que teimamos em que natildeo

seja o do seu estertor eacute logo reprimido por um coro de ldquoPara quecircrdquo Eacute tarefa primordial

da filosofia reinserir o Ser na realidade Para tal eacute preciso primeiro retirar o Homem Ou

seja eacute preciso compreender que a humanidade natildeo eacute finalidade alguma eacute uma ponte3

uma condiccedilatildeo que eacute preciso no entanto amar como se ama a nossa matildee sem que a

tenhamos escolhido

Eacute preciso dizer que haacute em noacutes o poder de vencer o Nada embora natildeo passemos

derradeiramente de nadas Mesmo diremos noacutes somente quando formos reduzidos a

nadas poderemos estar aptos a perceber e construir o Ser Assim o niilismo natildeo eacute um

mal em si mas uma passagem obrigatoacuteria uma reduccedilatildeo ao essencial de toda a histoacuteria

do pensamento Trata-se de uma des-ilusatildeo salutar de um processo higieacutenico que se

revelaraacute proveitoso se for entendido e bem aproveitado

O papel do niilismo tem de ser visto como o de uma limpeza mas eacute no saber

colher o que sobra que se encontra a nosso ver o futuro da filosofia Podemos intitular

esse processo de Lacircmina Niilista em honra agrave de Ockham tambeacutem ela circunscreve o

essencial tambeacutem ela faz com menos

O primeiro passo eacute o de o aceitarmos Efectivamente enquanto negarmos o

niilismo e remarmos contra a sua mareacute nunca conseguiremos ver onde nos leva O

problema actual eacute o de natildeo sermos suficientemente niilistas Se nos deixarmos levar

pela corrente depressa veremos que atingimos a costa do Ser Eacute precisamente por tudo

ser nada que tudo eacute por fim Ser Mas este apenas se atinge nos limites do

despojamento do desapego Noacutes pelo contraacuterio temos acumulado temo-nos apegado

Haacute uma nobreza niilista que tem sido desconsiderada porque somente se vecirc o efeito que

provoca Apenas se considera a reacccedilatildeo ao niilismo ndash eacute deste tipo reactivo que

trataremos ndash natildeo a sua acccedilatildeo

3ldquoO que haacute de grande no homem eacute ser uma ponte e natildeo um fim o que se pode amar no homem eacute ser uma passagem e um decliacuteniordquo NIETZSCHE Friedrich Assim Falava Zaratustra I sect 4

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A finalidade do Ser natildeo eacute o Homem mas o contraacuterio eacute verdadeiro a finalidade

do Homem eacute o Ser ou pelo menos a de um aumento de Ser e subsequente reduccedilatildeo de

Nada Assim basta-nos substituir Ser a Deus quando Mestre Eckhart diz Deus eacute

oposiccedilatildeo ao Nada pela mediaccedilatildeo do ente4

Mas enquanto estrebucharmos contra a sangria da Lacircmina dificilmente

conseguiremos sair do marasmo ilusionista que a recente filosofia tem criado num surto

nunca antes visto de confusatildeo e turbilhatildeo de palavras de facto perante grande parte da

produccedilatildeo filosoacutefica do seacuteculo passado apetece exclamarmo-nos non liquet Esta falta

de clareza deve-se sobretudo ao medo de mergulhar no banho libertador do niilismo ao

receio de cortar as amarras

O banho niilista funciona como um aacutecido que descarna a carcaccedila das nossas

ilusotildees e a verdade eacute que soacute depois de desencarnados podemos reencarnar assim como

a larva soacute se torna borboleta abandonando o casulo Para que o Nada possa ser

transcendido eacute necessaacuterio identificar primeiro todos os nadas tudo aquilo que eacute Nada E

eacute isto que ningueacutem parece estar disposto a fazer aconchegados que estamos no nosso

recanto de tradiccedilotildees de subtis cantos de sereias

Julga-se que o processo seraacute o de anulaccedilatildeo pura e simples quando eacute de facto o

de reinterpretaccedilatildeo Outra funccedilatildeo importante do niilismo eacute a de ter anulado

definitivamente a transcendecircncia de nos ter forccedilado a gerir a nossa vida na imanecircncia

onde pertencemos A transcendecircncia do Nada de que falamos daacute-se na imanecircncia eacute uma

transimanecircncia

O propoacutesito do que se segue eacute assim de circunscrever claramente o Nada para

que seja possiacutevel abordar os meios de o ultrapassar

4 laquo Dieu est opposition au neacuteant par la meacutediation de lrsquoeacutetant raquo in Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997 Deo caritas est p 624

- 7 -

I

Genealogia do Nada Uma essecircncia invisiacutevel e subtil eacute o Espiacuterito

de todo o universo Isso eacute a Realidade Isso eacute a Verdade TU EacuteS ISSO

Upanishades Chandogya 61214

Um eacute o saber conhecer o pensamento pelo

qual satildeo governadas todas as coisas atraveacutes de todas as coisas

Heraclito fragmento 41

Aleacutem disso considero a alma humana como

sendo esse mesmo poder de pensar natildeo como sendo infinito e apercebendo a natureza inteira mas como apercebendo somente uma coisa finita que eacute o corpo humano a alma humana eacute assim concebida por mim como uma parte do entendimento infinito

Espinosa Carta XXXII

No teatro dos nossos pensamentos uma personagem haacute que intriga e atormenta o

auditoacuterio natildeo tanto pela sua presenccedila como pela sua ausecircncia sendo para ela esta

uacuteltima aquela primeira Embora passe despercebida para a maioria do puacuteblico os mais

atentos natildeo teratildeo dificuldade em consideraacute-la a personagem principal Falamos ainda

que natildeo seja evidente do Nada O que nele mais atormenta e intriga eacute para quem leu a

peccedila ver que natildeo faz parte do elenco que nenhuma deixa foi escrita para ele e que no

entanto rouba a vedeta ali mesmo no palco

A sua presenccedila eacute como dissemos uma ausecircncia Esta uacuteltima implica sempre

uma falta e com esta se implica tambeacutem que saibamos se natildeo o que falta pelo menos

que algo falta Ora sabemos perfeitamente que o Nada fiacutesico eacute uma pura contradiccedilatildeo

basta a mais iacutenfima das mais minuacutesculas partiacuteculas subatoacutemicas para que o Nada natildeo

seja O Nada assim concebido seria uma ausecircncia de Tudo e sabemos que nem tudo estaacute

- 8 -

ausente A pergunta ldquoPorquecirc algo e natildeo o Nadardquo eacute uma pergunta a nosso ver absurda

atavismo da visatildeo criacionista que precisa de ser ultrapassada Porque recuando de

causa em causa chegamos a um ponto onde temos de decidir entre criado e incriado Se

optarmos como se tem feito na nossa civilizaccedilatildeo pela criaccedilatildeo temos de pocircr a hipoacutetese

absurda de colocar algo fora do Todo que cria o Todo A dificuldade estaacute aqui em

compreender o Universo actual que percepcionamos como conjunto de entidades

separadas ndash um Tudo ndash como unidade perdida porque pensando o Universo no seu

iniacutecio como Todo e natildeo como Tudo eacute facilmente assimilaacutevel que natildeo teve de ser

criado que eacute precisamente incriado porque o Todo natildeo necessita por definiccedilatildeo de ser

criado o Todo eacute e natildeo pode deixar de ser por si O que tentaremos mostrar eacute que o

Nada natildeo eacute ausecircncia de Tudo mas ausecircncia de Todo ou seja muito mais do que um

mero conceito o Nada eacute uma intuiccedilatildeo um sentimento uma lembranccedila de unidade

perdida

1

Contrariando o evangelista diremos que no verbo estaacute o princiacutepio e assim para

abrir caminho agrave interpretaccedilatildeo da filosofia heracliteana analisaremos os termos que

seratildeo a base do presente trabalho nihilum exsistere χρησmicroοσύνη e angustiae

Quanto agrave palavra nihilum concordamos com Vladimir Biaggi5 na sua exegese

discordando no entanto no significado que lhe eacute atribuiacutedo Com efeito Biaggi divide a

palavra em ne + hilum ou seja em ausecircncia de hilo O hilo eacute como sabemos o ponto

onde uma semente ou uma viacutescera recebem o seu alimento o local onde se ligam ao

organismo de que fazem parte O autor traduz este facto dizendo-nos que a vida estaacute por

vezes presa por um fio por um Nada Esta visatildeo eacutetica faz sentido inserindo-se numa

obra que trata do niilismo (reactivo) precisamente numa perspectiva do Nada como

ausecircncia de valores sendo estes uacuteltimos o fio que manteacutem a unidade de uma sociedade

Parece-nos todavia que esta palavra merece um exame mais profundo uma visatildeo mais

arrojada Em nosso entender o Nada aparece como uma ausecircncia de ligaccedilatildeo O Nada 5 BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 pp 16-17

- 9 -

natildeo eacute o teacutenue ponto onde algo se liga mas justamente a ausecircncia dessa ligaccedilatildeo Eacute

quando essa conexatildeo falta que o Nada aparece Resta-nos saber qual o algo que teima

em desligar-se

O Nada eacute o primeiro a oferecer-se ao desabrochar de uma consciecircncia no

mundo Aquilo que inicialmente define um qualquer ente aquilo que permite apreendecirc-

-lo como tal eacute o facto de este estar separado Efectivamente um ente soacute eacute ldquoumrdquo por

estar separado do resto do universo e a minha consciecircncia soacute eacute a ldquominha consciecircnciardquo

porque estaacute rodeada de passe-se o termo natildeo-eus A primeira coisa que sinto como

objecto deste mundo eacute a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros objectos Mas

simultaneamente opera-se nessa consciecircncia que aparece um instintivo devorar do

olhar um esticar de matildeo um instinto primordial para a ligaccedilatildeo com os outros entes que

se lhe apresentam ainda confusamente uma tendecircncia para a uniatildeo E eacute o confronto

entre essa uniatildeo que traz dentro de si e a separaccedilatildeo com o mundo fora dele que gera

nesse ente que aparece nesse aparecente o Nada O Nada eacute portanto aquilo que separa

um ente do mundo Como o exame de nihilum (ne + hilum) deixou transparecer Nada

significa assim numa primeira abordagem o espaccedilo entre dois entes a ausecircncia de

ligaccedilatildeo aquilo que faz com que dois entes natildeo sejam um

Quando as palavras evoluem perdem por vezes o seu significado primevo ou

deixam-no pelo menos enfraquecer O portuguecircs parece de forma curiosa natildeo soacute natildeo

ter deixado esmorecer o sentido de Nada (neste caso o que aqui vamos definindo como

Nada) como ainda o ter reforccedilado singularmente O dicionaacuterio6 diz-nos na zona

reservada agrave etimologia da palavra Nada o seguinte Do lat [rem] natam ldquocoisa

nascidardquo Natildeo deixa de ser curioso num primeiro vislumbre o contraste entre a

definiccedilatildeo da palavra (o que natildeo existe o que se opotildee ao ser) e a sua raiz (coisa

nascida) Quereraacute isto dizer que noacutes coisas nascidas natildeo somos Seria no miacutenimo

paradoxal Se recordarmos o que dissemos antes esta definiccedilatildeo tornar-se-aacute muito mais

niacutetida e clara Vimos que o Nada era uma ausecircncia de ligaccedilatildeo o espaccedilo entre dois entes

(a fortiori como veremos mais agrave frente o espaccedilo que separa todos os entes) O Nada

gera-se dos entes eacute porque me percepciono como eu e tu como tu que estamos

6 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida Costa A Sampaio e Melo Porto Editora

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separados eacute porque para noacutes aquela pedra eacute aquela pedra e aquela aacutervore eacute aquela

aacutervore que haacute nada entre elas Este Nada este espaccedilo natildeo eacute como se imagina somente

o espaccedilo fiacutesico entre as coisas mas o vazio de Ser que permite a definiccedilatildeo de dois entes

Diremos assim numa primeira aproximaccedilatildeo que o Nada nasce dos entes que o ente

segrega Nada

Tanto nos impressiona e ocupa o Nada e no fundo natildeo eacute de todo evidente que

nos ocupe e impressione De facto porquecirc este desejo de uniatildeo tatildeo forte que ateacute nos faz

criar um conceito que associamos agrave ausecircncia absurda de tudo que nos faz questionar

sobre a nossa presenccedila e desejar por vezes que natildeo focircssemos ou pelo menos natildeo desta

maneira assim separados Como pocircde por exemplo Camus mostrar tatildeo bem o

absurdo a estranheza a irredutibilidade que nascem do nosso confronto com uma

simples pedra ou uma pacata paisagem7

Para avanccedilarmos na nossa investigaccedilatildeo apelaremos agora ao termo ldquoexistirrdquo

Como sabemos este deriva da palavra latina existere Soacute por si o significado desta

uacuteltima seria suficientemente interessante sair de Mas para relevar ainda mais a sua

acepccedilatildeo iremos agrave sua proacutepria raiz existere vem do mais literal exsistere ou seja ex +

sisterei o que agrave letra daraacute aparecer fora Isto quer dizer que o existente eacute aquele que

estaacute fora A pergunta que logo nos surge eacute fora de quecirc Porque se existir eacute estar eacute pocircr-

-se fora tem de haver um algo de que saiacutemos A tradiccedilatildeo quer que saiamos do Nada

para o Ser Ora como vimos tudo aponta para que o Nada se encontre aqui na

existecircncia que o Nada nasccedila precisamente do contacto entre os entes que o Nada

apareccedila com o ente Analisando o termo Ser depressa resolveremos esta aparente

confusatildeo Ser provem como eacute normalmente aceite de sedere ou seja estar Como jaacute

observaacutemos existir eacute ex + sistere estar fora Assim Ser eacute estar e existir eacute estar fora Se

eacute como vimos o ente que segrega Nada a verdade eacute que existir se confunde com o

abandono do Ser

Aprofundando ainda mais a questatildeo abordaremos agora a anguacutestia Mas antes

de o fazermos teremos de a definir convenientemente envolta que estaacute numa multitude

de associaccedilotildees erroacuteneas Poucos concordaratildeo que a anguacutestia seja rara porque no fundo

todos jaacute se sentiram angustiados Mas daacute-se aqui um erro comum na confusatildeo entre 7 CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 p31

- 11 -

anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja

estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A

anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado

nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica

porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por

exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado

passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se

desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do

objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do

Nada

A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo

angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o

mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si

mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro

decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que

segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que

vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo

E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre

aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido

fundamentalmente segregativo

A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos

satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma

realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada

como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda

a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de

preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de

provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e

como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes

8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss

- 12 -

2

Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia

heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute

portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii

Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular

1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada

2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas

atraveacutes dos entes

3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo

Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da

separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua

separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas

fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para

uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o

Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o

Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da

reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute

neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem

sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e

esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir

inquietaccedilatildeo

A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute

essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo

possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo

semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo

assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo

mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma

- 13 -

diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente

iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso

de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem

aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo

poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse

esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana

poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente

do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o

desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em

uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9

Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a

Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis

aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia

como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os

entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer

animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes

partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute

permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da

mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas

como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na

visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a

eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute

tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela

sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo

jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o

mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva

que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer

9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188

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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute

lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a

uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas

exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a

vontade do Uno

Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num

dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades

eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no

ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se

percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade

Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e

obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar

Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma

constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute

presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus

eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute

λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por

excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a

uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus

natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada

ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo

fogo

No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a

primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde

jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma

indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae

Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito

Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se

sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou

seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera

Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do

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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se

pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno

Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender

isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto

a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois

de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como

conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela

similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu

lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui

que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de

espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia

Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um

existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo

incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute

a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo

consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do

homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de

todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela

constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a

nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe

para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por

isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo

e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de

se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso

em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi

dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como

daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos

grandes motores do niilismo ocidental

- 16 -

3

Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos

primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma

separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer

latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente

Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora

Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma

falta Temos assim que o existente eacute

1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a

totalidade unida o Uno)

2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada

3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia

Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os

segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de

si mesmo e da sua condiccedilatildeo

Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que

cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis

O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas

tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro

de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio

Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que

tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente

para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos

Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre

o Nada

- 17 -

4

No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o

Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que

para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que

nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou

a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12

Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da

totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a

totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de

que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as

objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o

Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14

Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade

a anguacutestia para o Nada15

Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira

abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no

entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual

a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como

dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a

sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se

encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem

senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque

eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos

11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56

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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os

entes o Todo

Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que

continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova

quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na

actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos

no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa

No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo

como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se

a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte

dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo

quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes

acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica

assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos

Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que

escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo

pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo

ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a

uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade

criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do

universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo

dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito

apenas o Uno possui o entendimento completo

Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao

domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o

universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-

-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um

a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas

eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)

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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu

ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a

Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos

satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado

como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e

vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo

temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de

panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim

ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute

tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de

aacutetomo22

Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos

de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias

astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que

esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o

nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas

partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos

assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo

da ciecircncia

Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se

esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente

tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute

consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo

agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23

18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente

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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

- 31 -

descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

- 40 -

Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

- 41 -

Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

- 42 -

Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

- 53 -

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Schefer Editions Allia Paris 1998 - PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 - SCHOPENHAUER Arthur Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora

Lisboa 2002 - PESSOA Fernando O Livro do Desassossego AssiacuterioampAlvim Lisboa 1998 - SILVA Agostinho da Textos e Ensaios Filosoacuteficos I e II Acircncora Editora

Lisboa 1999 - HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad

Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise

- Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997

- BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 - Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida

Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland

Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos

Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994

- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition

1999 Paris

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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika

Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 3: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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Introduccedilatildeo

(Em jeito de reflexatildeo pessoal)

O texto que se segue natildeo eacute a nenhum momento sobre a filosofia de algueacutem nem

mesmo sobre a filosofia de quem o escreve Poderaacute enraizar-se por instantes em

pensamentos que se originaram num algueacutem a dado estaacutedio da longa tradiccedilatildeo filosoacutefica

Natildeo vemos a filosofia como algo meramente humano destinado exclusivamente agrave

humanidade A Humanidade eacute um passo como outro qualquer na perspectiva mais vasta

de um destino mais amplo a filosofia um dos complexos muacutesculos que arrasta a perna

que o daacute

No entanto estamos conscientes dos preceitos de um trabalho acadeacutemico Mas

estamos tambeacutem cientes das suas limitaccedilotildees Seguidos agrave letra desde o iniacutecio do pensar

filosoacutefico ainda estariacuteamos hoje glosando exclusivamente sobre os escritos de Tales

Lutar pela nossa ideia de filosofia natildeo seraacute tambeacutem filosofar Aliaacutes natildeo seraacute

derradeiramente isso que constitui a filosofia decidir qual eacute precisamente a perspectiva

do saber que se ama O filosofar eacute a colheita dos frutos que nos fortificam no pomar do

saber Ora o pomar da filosofia eacute jaacute suficientemente amplo para natildeo termos de comer

frutos que sabemos nos iratildeo enfraquecer envenenar A cada um os seus toacutenicos a cada

qual os seus venenos Natildeo seraacute a proacutepria escrita poacutes-moderna muito mais do que um

sinal de aumento de complexidade um sinal de envenenamento O espiacuterito deve

alimentar-se frugalmente para poder digerir e metabolizar natildeo indispor-se e vomitar1

Compreendemos que a generalizaccedilatildeo da educaccedilatildeo tenha levado agrave instituiccedilatildeo de

paracircmetros igualitaacuterios mas desejamos noacutes realmente que cada indiviacuteduo saia da escola

como de uma cadeia processual de nivelamento ou seja que todos saibam a mesma

coisa sobre as mesmas coisas Ou mais grave ainda que todos saibam o mesmo do

mesmo modo Acabaremos noacutes por dar razatildeo a Ladislav Klima2

1 Sobre a ignoracircncia calculada e o excesso de saber NIETZSCHE Friedrich A Gaia Ciecircncia Livro Quinto sect 381 2 laquo - Les eacutecoles usines agrave fabriquer des idiots raquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 207

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O problema mais profundo que enfrenta a filosofia eacute o do Nada Com efeito o

Nada tem accedilambarcado de tal forma o pensamento que de certa forma o paralisou ou

pelo menos atrofiou o seu desenvolvimento impediu que se ramificasse pelas mentes e

pelo proacuteprio substrato social Qualquer sobressalto filosoacutefico que teimamos em que natildeo

seja o do seu estertor eacute logo reprimido por um coro de ldquoPara quecircrdquo Eacute tarefa primordial

da filosofia reinserir o Ser na realidade Para tal eacute preciso primeiro retirar o Homem Ou

seja eacute preciso compreender que a humanidade natildeo eacute finalidade alguma eacute uma ponte3

uma condiccedilatildeo que eacute preciso no entanto amar como se ama a nossa matildee sem que a

tenhamos escolhido

Eacute preciso dizer que haacute em noacutes o poder de vencer o Nada embora natildeo passemos

derradeiramente de nadas Mesmo diremos noacutes somente quando formos reduzidos a

nadas poderemos estar aptos a perceber e construir o Ser Assim o niilismo natildeo eacute um

mal em si mas uma passagem obrigatoacuteria uma reduccedilatildeo ao essencial de toda a histoacuteria

do pensamento Trata-se de uma des-ilusatildeo salutar de um processo higieacutenico que se

revelaraacute proveitoso se for entendido e bem aproveitado

O papel do niilismo tem de ser visto como o de uma limpeza mas eacute no saber

colher o que sobra que se encontra a nosso ver o futuro da filosofia Podemos intitular

esse processo de Lacircmina Niilista em honra agrave de Ockham tambeacutem ela circunscreve o

essencial tambeacutem ela faz com menos

O primeiro passo eacute o de o aceitarmos Efectivamente enquanto negarmos o

niilismo e remarmos contra a sua mareacute nunca conseguiremos ver onde nos leva O

problema actual eacute o de natildeo sermos suficientemente niilistas Se nos deixarmos levar

pela corrente depressa veremos que atingimos a costa do Ser Eacute precisamente por tudo

ser nada que tudo eacute por fim Ser Mas este apenas se atinge nos limites do

despojamento do desapego Noacutes pelo contraacuterio temos acumulado temo-nos apegado

Haacute uma nobreza niilista que tem sido desconsiderada porque somente se vecirc o efeito que

provoca Apenas se considera a reacccedilatildeo ao niilismo ndash eacute deste tipo reactivo que

trataremos ndash natildeo a sua acccedilatildeo

3ldquoO que haacute de grande no homem eacute ser uma ponte e natildeo um fim o que se pode amar no homem eacute ser uma passagem e um decliacuteniordquo NIETZSCHE Friedrich Assim Falava Zaratustra I sect 4

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A finalidade do Ser natildeo eacute o Homem mas o contraacuterio eacute verdadeiro a finalidade

do Homem eacute o Ser ou pelo menos a de um aumento de Ser e subsequente reduccedilatildeo de

Nada Assim basta-nos substituir Ser a Deus quando Mestre Eckhart diz Deus eacute

oposiccedilatildeo ao Nada pela mediaccedilatildeo do ente4

Mas enquanto estrebucharmos contra a sangria da Lacircmina dificilmente

conseguiremos sair do marasmo ilusionista que a recente filosofia tem criado num surto

nunca antes visto de confusatildeo e turbilhatildeo de palavras de facto perante grande parte da

produccedilatildeo filosoacutefica do seacuteculo passado apetece exclamarmo-nos non liquet Esta falta

de clareza deve-se sobretudo ao medo de mergulhar no banho libertador do niilismo ao

receio de cortar as amarras

O banho niilista funciona como um aacutecido que descarna a carcaccedila das nossas

ilusotildees e a verdade eacute que soacute depois de desencarnados podemos reencarnar assim como

a larva soacute se torna borboleta abandonando o casulo Para que o Nada possa ser

transcendido eacute necessaacuterio identificar primeiro todos os nadas tudo aquilo que eacute Nada E

eacute isto que ningueacutem parece estar disposto a fazer aconchegados que estamos no nosso

recanto de tradiccedilotildees de subtis cantos de sereias

Julga-se que o processo seraacute o de anulaccedilatildeo pura e simples quando eacute de facto o

de reinterpretaccedilatildeo Outra funccedilatildeo importante do niilismo eacute a de ter anulado

definitivamente a transcendecircncia de nos ter forccedilado a gerir a nossa vida na imanecircncia

onde pertencemos A transcendecircncia do Nada de que falamos daacute-se na imanecircncia eacute uma

transimanecircncia

O propoacutesito do que se segue eacute assim de circunscrever claramente o Nada para

que seja possiacutevel abordar os meios de o ultrapassar

4 laquo Dieu est opposition au neacuteant par la meacutediation de lrsquoeacutetant raquo in Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997 Deo caritas est p 624

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I

Genealogia do Nada Uma essecircncia invisiacutevel e subtil eacute o Espiacuterito

de todo o universo Isso eacute a Realidade Isso eacute a Verdade TU EacuteS ISSO

Upanishades Chandogya 61214

Um eacute o saber conhecer o pensamento pelo

qual satildeo governadas todas as coisas atraveacutes de todas as coisas

Heraclito fragmento 41

Aleacutem disso considero a alma humana como

sendo esse mesmo poder de pensar natildeo como sendo infinito e apercebendo a natureza inteira mas como apercebendo somente uma coisa finita que eacute o corpo humano a alma humana eacute assim concebida por mim como uma parte do entendimento infinito

Espinosa Carta XXXII

No teatro dos nossos pensamentos uma personagem haacute que intriga e atormenta o

auditoacuterio natildeo tanto pela sua presenccedila como pela sua ausecircncia sendo para ela esta

uacuteltima aquela primeira Embora passe despercebida para a maioria do puacuteblico os mais

atentos natildeo teratildeo dificuldade em consideraacute-la a personagem principal Falamos ainda

que natildeo seja evidente do Nada O que nele mais atormenta e intriga eacute para quem leu a

peccedila ver que natildeo faz parte do elenco que nenhuma deixa foi escrita para ele e que no

entanto rouba a vedeta ali mesmo no palco

A sua presenccedila eacute como dissemos uma ausecircncia Esta uacuteltima implica sempre

uma falta e com esta se implica tambeacutem que saibamos se natildeo o que falta pelo menos

que algo falta Ora sabemos perfeitamente que o Nada fiacutesico eacute uma pura contradiccedilatildeo

basta a mais iacutenfima das mais minuacutesculas partiacuteculas subatoacutemicas para que o Nada natildeo

seja O Nada assim concebido seria uma ausecircncia de Tudo e sabemos que nem tudo estaacute

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ausente A pergunta ldquoPorquecirc algo e natildeo o Nadardquo eacute uma pergunta a nosso ver absurda

atavismo da visatildeo criacionista que precisa de ser ultrapassada Porque recuando de

causa em causa chegamos a um ponto onde temos de decidir entre criado e incriado Se

optarmos como se tem feito na nossa civilizaccedilatildeo pela criaccedilatildeo temos de pocircr a hipoacutetese

absurda de colocar algo fora do Todo que cria o Todo A dificuldade estaacute aqui em

compreender o Universo actual que percepcionamos como conjunto de entidades

separadas ndash um Tudo ndash como unidade perdida porque pensando o Universo no seu

iniacutecio como Todo e natildeo como Tudo eacute facilmente assimilaacutevel que natildeo teve de ser

criado que eacute precisamente incriado porque o Todo natildeo necessita por definiccedilatildeo de ser

criado o Todo eacute e natildeo pode deixar de ser por si O que tentaremos mostrar eacute que o

Nada natildeo eacute ausecircncia de Tudo mas ausecircncia de Todo ou seja muito mais do que um

mero conceito o Nada eacute uma intuiccedilatildeo um sentimento uma lembranccedila de unidade

perdida

1

Contrariando o evangelista diremos que no verbo estaacute o princiacutepio e assim para

abrir caminho agrave interpretaccedilatildeo da filosofia heracliteana analisaremos os termos que

seratildeo a base do presente trabalho nihilum exsistere χρησmicroοσύνη e angustiae

Quanto agrave palavra nihilum concordamos com Vladimir Biaggi5 na sua exegese

discordando no entanto no significado que lhe eacute atribuiacutedo Com efeito Biaggi divide a

palavra em ne + hilum ou seja em ausecircncia de hilo O hilo eacute como sabemos o ponto

onde uma semente ou uma viacutescera recebem o seu alimento o local onde se ligam ao

organismo de que fazem parte O autor traduz este facto dizendo-nos que a vida estaacute por

vezes presa por um fio por um Nada Esta visatildeo eacutetica faz sentido inserindo-se numa

obra que trata do niilismo (reactivo) precisamente numa perspectiva do Nada como

ausecircncia de valores sendo estes uacuteltimos o fio que manteacutem a unidade de uma sociedade

Parece-nos todavia que esta palavra merece um exame mais profundo uma visatildeo mais

arrojada Em nosso entender o Nada aparece como uma ausecircncia de ligaccedilatildeo O Nada 5 BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 pp 16-17

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natildeo eacute o teacutenue ponto onde algo se liga mas justamente a ausecircncia dessa ligaccedilatildeo Eacute

quando essa conexatildeo falta que o Nada aparece Resta-nos saber qual o algo que teima

em desligar-se

O Nada eacute o primeiro a oferecer-se ao desabrochar de uma consciecircncia no

mundo Aquilo que inicialmente define um qualquer ente aquilo que permite apreendecirc-

-lo como tal eacute o facto de este estar separado Efectivamente um ente soacute eacute ldquoumrdquo por

estar separado do resto do universo e a minha consciecircncia soacute eacute a ldquominha consciecircnciardquo

porque estaacute rodeada de passe-se o termo natildeo-eus A primeira coisa que sinto como

objecto deste mundo eacute a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros objectos Mas

simultaneamente opera-se nessa consciecircncia que aparece um instintivo devorar do

olhar um esticar de matildeo um instinto primordial para a ligaccedilatildeo com os outros entes que

se lhe apresentam ainda confusamente uma tendecircncia para a uniatildeo E eacute o confronto

entre essa uniatildeo que traz dentro de si e a separaccedilatildeo com o mundo fora dele que gera

nesse ente que aparece nesse aparecente o Nada O Nada eacute portanto aquilo que separa

um ente do mundo Como o exame de nihilum (ne + hilum) deixou transparecer Nada

significa assim numa primeira abordagem o espaccedilo entre dois entes a ausecircncia de

ligaccedilatildeo aquilo que faz com que dois entes natildeo sejam um

Quando as palavras evoluem perdem por vezes o seu significado primevo ou

deixam-no pelo menos enfraquecer O portuguecircs parece de forma curiosa natildeo soacute natildeo

ter deixado esmorecer o sentido de Nada (neste caso o que aqui vamos definindo como

Nada) como ainda o ter reforccedilado singularmente O dicionaacuterio6 diz-nos na zona

reservada agrave etimologia da palavra Nada o seguinte Do lat [rem] natam ldquocoisa

nascidardquo Natildeo deixa de ser curioso num primeiro vislumbre o contraste entre a

definiccedilatildeo da palavra (o que natildeo existe o que se opotildee ao ser) e a sua raiz (coisa

nascida) Quereraacute isto dizer que noacutes coisas nascidas natildeo somos Seria no miacutenimo

paradoxal Se recordarmos o que dissemos antes esta definiccedilatildeo tornar-se-aacute muito mais

niacutetida e clara Vimos que o Nada era uma ausecircncia de ligaccedilatildeo o espaccedilo entre dois entes

(a fortiori como veremos mais agrave frente o espaccedilo que separa todos os entes) O Nada

gera-se dos entes eacute porque me percepciono como eu e tu como tu que estamos

6 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida Costa A Sampaio e Melo Porto Editora

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separados eacute porque para noacutes aquela pedra eacute aquela pedra e aquela aacutervore eacute aquela

aacutervore que haacute nada entre elas Este Nada este espaccedilo natildeo eacute como se imagina somente

o espaccedilo fiacutesico entre as coisas mas o vazio de Ser que permite a definiccedilatildeo de dois entes

Diremos assim numa primeira aproximaccedilatildeo que o Nada nasce dos entes que o ente

segrega Nada

Tanto nos impressiona e ocupa o Nada e no fundo natildeo eacute de todo evidente que

nos ocupe e impressione De facto porquecirc este desejo de uniatildeo tatildeo forte que ateacute nos faz

criar um conceito que associamos agrave ausecircncia absurda de tudo que nos faz questionar

sobre a nossa presenccedila e desejar por vezes que natildeo focircssemos ou pelo menos natildeo desta

maneira assim separados Como pocircde por exemplo Camus mostrar tatildeo bem o

absurdo a estranheza a irredutibilidade que nascem do nosso confronto com uma

simples pedra ou uma pacata paisagem7

Para avanccedilarmos na nossa investigaccedilatildeo apelaremos agora ao termo ldquoexistirrdquo

Como sabemos este deriva da palavra latina existere Soacute por si o significado desta

uacuteltima seria suficientemente interessante sair de Mas para relevar ainda mais a sua

acepccedilatildeo iremos agrave sua proacutepria raiz existere vem do mais literal exsistere ou seja ex +

sisterei o que agrave letra daraacute aparecer fora Isto quer dizer que o existente eacute aquele que

estaacute fora A pergunta que logo nos surge eacute fora de quecirc Porque se existir eacute estar eacute pocircr-

-se fora tem de haver um algo de que saiacutemos A tradiccedilatildeo quer que saiamos do Nada

para o Ser Ora como vimos tudo aponta para que o Nada se encontre aqui na

existecircncia que o Nada nasccedila precisamente do contacto entre os entes que o Nada

apareccedila com o ente Analisando o termo Ser depressa resolveremos esta aparente

confusatildeo Ser provem como eacute normalmente aceite de sedere ou seja estar Como jaacute

observaacutemos existir eacute ex + sistere estar fora Assim Ser eacute estar e existir eacute estar fora Se

eacute como vimos o ente que segrega Nada a verdade eacute que existir se confunde com o

abandono do Ser

Aprofundando ainda mais a questatildeo abordaremos agora a anguacutestia Mas antes

de o fazermos teremos de a definir convenientemente envolta que estaacute numa multitude

de associaccedilotildees erroacuteneas Poucos concordaratildeo que a anguacutestia seja rara porque no fundo

todos jaacute se sentiram angustiados Mas daacute-se aqui um erro comum na confusatildeo entre 7 CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 p31

- 11 -

anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja

estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A

anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado

nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica

porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por

exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado

passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se

desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do

objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do

Nada

A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo

angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o

mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si

mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro

decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que

segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que

vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo

E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre

aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido

fundamentalmente segregativo

A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos

satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma

realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada

como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda

a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de

preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de

provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e

como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes

8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss

- 12 -

2

Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia

heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute

portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii

Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular

1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada

2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas

atraveacutes dos entes

3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo

Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da

separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua

separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas

fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para

uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o

Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o

Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da

reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute

neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem

sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e

esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir

inquietaccedilatildeo

A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute

essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo

possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo

semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo

assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo

mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma

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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente

iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso

de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem

aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo

poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse

esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana

poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente

do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o

desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em

uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9

Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a

Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis

aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia

como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os

entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer

animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes

partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute

permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da

mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas

como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na

visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a

eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute

tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela

sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo

jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o

mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva

que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer

9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188

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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute

lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a

uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas

exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a

vontade do Uno

Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num

dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades

eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no

ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se

percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade

Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e

obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar

Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma

constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute

presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus

eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute

λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por

excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a

uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus

natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada

ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo

fogo

No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a

primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde

jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma

indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae

Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito

Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se

sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou

seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera

Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do

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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se

pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno

Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender

isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto

a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois

de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como

conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela

similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu

lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui

que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de

espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia

Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um

existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo

incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute

a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo

consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do

homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de

todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela

constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a

nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe

para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por

isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo

e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de

se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso

em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi

dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como

daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos

grandes motores do niilismo ocidental

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3

Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos

primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma

separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer

latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente

Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora

Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma

falta Temos assim que o existente eacute

1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a

totalidade unida o Uno)

2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada

3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia

Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os

segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de

si mesmo e da sua condiccedilatildeo

Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que

cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis

O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas

tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro

de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio

Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que

tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente

para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos

Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre

o Nada

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4

No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o

Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que

para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que

nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou

a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12

Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da

totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a

totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de

que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as

objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o

Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14

Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade

a anguacutestia para o Nada15

Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira

abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no

entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual

a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como

dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a

sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se

encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem

senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque

eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos

11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56

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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os

entes o Todo

Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que

continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova

quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na

actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos

no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa

No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo

como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se

a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte

dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo

quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes

acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica

assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos

Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que

escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo

pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo

ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a

uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade

criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do

universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo

dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito

apenas o Uno possui o entendimento completo

Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao

domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o

universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-

-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um

a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas

eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)

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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu

ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a

Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos

satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado

como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e

vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo

temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de

panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim

ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute

tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de

aacutetomo22

Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos

de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias

astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que

esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o

nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas

partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos

assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo

da ciecircncia

Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se

esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente

tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute

consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo

agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23

18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente

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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

- 23 -

amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

- 24 -

no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

- 26 -

consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

- 27 -

concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

- 28 -

dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

- 31 -

descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

- 33 -

seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

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III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 4: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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O problema mais profundo que enfrenta a filosofia eacute o do Nada Com efeito o

Nada tem accedilambarcado de tal forma o pensamento que de certa forma o paralisou ou

pelo menos atrofiou o seu desenvolvimento impediu que se ramificasse pelas mentes e

pelo proacuteprio substrato social Qualquer sobressalto filosoacutefico que teimamos em que natildeo

seja o do seu estertor eacute logo reprimido por um coro de ldquoPara quecircrdquo Eacute tarefa primordial

da filosofia reinserir o Ser na realidade Para tal eacute preciso primeiro retirar o Homem Ou

seja eacute preciso compreender que a humanidade natildeo eacute finalidade alguma eacute uma ponte3

uma condiccedilatildeo que eacute preciso no entanto amar como se ama a nossa matildee sem que a

tenhamos escolhido

Eacute preciso dizer que haacute em noacutes o poder de vencer o Nada embora natildeo passemos

derradeiramente de nadas Mesmo diremos noacutes somente quando formos reduzidos a

nadas poderemos estar aptos a perceber e construir o Ser Assim o niilismo natildeo eacute um

mal em si mas uma passagem obrigatoacuteria uma reduccedilatildeo ao essencial de toda a histoacuteria

do pensamento Trata-se de uma des-ilusatildeo salutar de um processo higieacutenico que se

revelaraacute proveitoso se for entendido e bem aproveitado

O papel do niilismo tem de ser visto como o de uma limpeza mas eacute no saber

colher o que sobra que se encontra a nosso ver o futuro da filosofia Podemos intitular

esse processo de Lacircmina Niilista em honra agrave de Ockham tambeacutem ela circunscreve o

essencial tambeacutem ela faz com menos

O primeiro passo eacute o de o aceitarmos Efectivamente enquanto negarmos o

niilismo e remarmos contra a sua mareacute nunca conseguiremos ver onde nos leva O

problema actual eacute o de natildeo sermos suficientemente niilistas Se nos deixarmos levar

pela corrente depressa veremos que atingimos a costa do Ser Eacute precisamente por tudo

ser nada que tudo eacute por fim Ser Mas este apenas se atinge nos limites do

despojamento do desapego Noacutes pelo contraacuterio temos acumulado temo-nos apegado

Haacute uma nobreza niilista que tem sido desconsiderada porque somente se vecirc o efeito que

provoca Apenas se considera a reacccedilatildeo ao niilismo ndash eacute deste tipo reactivo que

trataremos ndash natildeo a sua acccedilatildeo

3ldquoO que haacute de grande no homem eacute ser uma ponte e natildeo um fim o que se pode amar no homem eacute ser uma passagem e um decliacuteniordquo NIETZSCHE Friedrich Assim Falava Zaratustra I sect 4

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A finalidade do Ser natildeo eacute o Homem mas o contraacuterio eacute verdadeiro a finalidade

do Homem eacute o Ser ou pelo menos a de um aumento de Ser e subsequente reduccedilatildeo de

Nada Assim basta-nos substituir Ser a Deus quando Mestre Eckhart diz Deus eacute

oposiccedilatildeo ao Nada pela mediaccedilatildeo do ente4

Mas enquanto estrebucharmos contra a sangria da Lacircmina dificilmente

conseguiremos sair do marasmo ilusionista que a recente filosofia tem criado num surto

nunca antes visto de confusatildeo e turbilhatildeo de palavras de facto perante grande parte da

produccedilatildeo filosoacutefica do seacuteculo passado apetece exclamarmo-nos non liquet Esta falta

de clareza deve-se sobretudo ao medo de mergulhar no banho libertador do niilismo ao

receio de cortar as amarras

O banho niilista funciona como um aacutecido que descarna a carcaccedila das nossas

ilusotildees e a verdade eacute que soacute depois de desencarnados podemos reencarnar assim como

a larva soacute se torna borboleta abandonando o casulo Para que o Nada possa ser

transcendido eacute necessaacuterio identificar primeiro todos os nadas tudo aquilo que eacute Nada E

eacute isto que ningueacutem parece estar disposto a fazer aconchegados que estamos no nosso

recanto de tradiccedilotildees de subtis cantos de sereias

Julga-se que o processo seraacute o de anulaccedilatildeo pura e simples quando eacute de facto o

de reinterpretaccedilatildeo Outra funccedilatildeo importante do niilismo eacute a de ter anulado

definitivamente a transcendecircncia de nos ter forccedilado a gerir a nossa vida na imanecircncia

onde pertencemos A transcendecircncia do Nada de que falamos daacute-se na imanecircncia eacute uma

transimanecircncia

O propoacutesito do que se segue eacute assim de circunscrever claramente o Nada para

que seja possiacutevel abordar os meios de o ultrapassar

4 laquo Dieu est opposition au neacuteant par la meacutediation de lrsquoeacutetant raquo in Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997 Deo caritas est p 624

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I

Genealogia do Nada Uma essecircncia invisiacutevel e subtil eacute o Espiacuterito

de todo o universo Isso eacute a Realidade Isso eacute a Verdade TU EacuteS ISSO

Upanishades Chandogya 61214

Um eacute o saber conhecer o pensamento pelo

qual satildeo governadas todas as coisas atraveacutes de todas as coisas

Heraclito fragmento 41

Aleacutem disso considero a alma humana como

sendo esse mesmo poder de pensar natildeo como sendo infinito e apercebendo a natureza inteira mas como apercebendo somente uma coisa finita que eacute o corpo humano a alma humana eacute assim concebida por mim como uma parte do entendimento infinito

Espinosa Carta XXXII

No teatro dos nossos pensamentos uma personagem haacute que intriga e atormenta o

auditoacuterio natildeo tanto pela sua presenccedila como pela sua ausecircncia sendo para ela esta

uacuteltima aquela primeira Embora passe despercebida para a maioria do puacuteblico os mais

atentos natildeo teratildeo dificuldade em consideraacute-la a personagem principal Falamos ainda

que natildeo seja evidente do Nada O que nele mais atormenta e intriga eacute para quem leu a

peccedila ver que natildeo faz parte do elenco que nenhuma deixa foi escrita para ele e que no

entanto rouba a vedeta ali mesmo no palco

A sua presenccedila eacute como dissemos uma ausecircncia Esta uacuteltima implica sempre

uma falta e com esta se implica tambeacutem que saibamos se natildeo o que falta pelo menos

que algo falta Ora sabemos perfeitamente que o Nada fiacutesico eacute uma pura contradiccedilatildeo

basta a mais iacutenfima das mais minuacutesculas partiacuteculas subatoacutemicas para que o Nada natildeo

seja O Nada assim concebido seria uma ausecircncia de Tudo e sabemos que nem tudo estaacute

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ausente A pergunta ldquoPorquecirc algo e natildeo o Nadardquo eacute uma pergunta a nosso ver absurda

atavismo da visatildeo criacionista que precisa de ser ultrapassada Porque recuando de

causa em causa chegamos a um ponto onde temos de decidir entre criado e incriado Se

optarmos como se tem feito na nossa civilizaccedilatildeo pela criaccedilatildeo temos de pocircr a hipoacutetese

absurda de colocar algo fora do Todo que cria o Todo A dificuldade estaacute aqui em

compreender o Universo actual que percepcionamos como conjunto de entidades

separadas ndash um Tudo ndash como unidade perdida porque pensando o Universo no seu

iniacutecio como Todo e natildeo como Tudo eacute facilmente assimilaacutevel que natildeo teve de ser

criado que eacute precisamente incriado porque o Todo natildeo necessita por definiccedilatildeo de ser

criado o Todo eacute e natildeo pode deixar de ser por si O que tentaremos mostrar eacute que o

Nada natildeo eacute ausecircncia de Tudo mas ausecircncia de Todo ou seja muito mais do que um

mero conceito o Nada eacute uma intuiccedilatildeo um sentimento uma lembranccedila de unidade

perdida

1

Contrariando o evangelista diremos que no verbo estaacute o princiacutepio e assim para

abrir caminho agrave interpretaccedilatildeo da filosofia heracliteana analisaremos os termos que

seratildeo a base do presente trabalho nihilum exsistere χρησmicroοσύνη e angustiae

Quanto agrave palavra nihilum concordamos com Vladimir Biaggi5 na sua exegese

discordando no entanto no significado que lhe eacute atribuiacutedo Com efeito Biaggi divide a

palavra em ne + hilum ou seja em ausecircncia de hilo O hilo eacute como sabemos o ponto

onde uma semente ou uma viacutescera recebem o seu alimento o local onde se ligam ao

organismo de que fazem parte O autor traduz este facto dizendo-nos que a vida estaacute por

vezes presa por um fio por um Nada Esta visatildeo eacutetica faz sentido inserindo-se numa

obra que trata do niilismo (reactivo) precisamente numa perspectiva do Nada como

ausecircncia de valores sendo estes uacuteltimos o fio que manteacutem a unidade de uma sociedade

Parece-nos todavia que esta palavra merece um exame mais profundo uma visatildeo mais

arrojada Em nosso entender o Nada aparece como uma ausecircncia de ligaccedilatildeo O Nada 5 BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 pp 16-17

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natildeo eacute o teacutenue ponto onde algo se liga mas justamente a ausecircncia dessa ligaccedilatildeo Eacute

quando essa conexatildeo falta que o Nada aparece Resta-nos saber qual o algo que teima

em desligar-se

O Nada eacute o primeiro a oferecer-se ao desabrochar de uma consciecircncia no

mundo Aquilo que inicialmente define um qualquer ente aquilo que permite apreendecirc-

-lo como tal eacute o facto de este estar separado Efectivamente um ente soacute eacute ldquoumrdquo por

estar separado do resto do universo e a minha consciecircncia soacute eacute a ldquominha consciecircnciardquo

porque estaacute rodeada de passe-se o termo natildeo-eus A primeira coisa que sinto como

objecto deste mundo eacute a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros objectos Mas

simultaneamente opera-se nessa consciecircncia que aparece um instintivo devorar do

olhar um esticar de matildeo um instinto primordial para a ligaccedilatildeo com os outros entes que

se lhe apresentam ainda confusamente uma tendecircncia para a uniatildeo E eacute o confronto

entre essa uniatildeo que traz dentro de si e a separaccedilatildeo com o mundo fora dele que gera

nesse ente que aparece nesse aparecente o Nada O Nada eacute portanto aquilo que separa

um ente do mundo Como o exame de nihilum (ne + hilum) deixou transparecer Nada

significa assim numa primeira abordagem o espaccedilo entre dois entes a ausecircncia de

ligaccedilatildeo aquilo que faz com que dois entes natildeo sejam um

Quando as palavras evoluem perdem por vezes o seu significado primevo ou

deixam-no pelo menos enfraquecer O portuguecircs parece de forma curiosa natildeo soacute natildeo

ter deixado esmorecer o sentido de Nada (neste caso o que aqui vamos definindo como

Nada) como ainda o ter reforccedilado singularmente O dicionaacuterio6 diz-nos na zona

reservada agrave etimologia da palavra Nada o seguinte Do lat [rem] natam ldquocoisa

nascidardquo Natildeo deixa de ser curioso num primeiro vislumbre o contraste entre a

definiccedilatildeo da palavra (o que natildeo existe o que se opotildee ao ser) e a sua raiz (coisa

nascida) Quereraacute isto dizer que noacutes coisas nascidas natildeo somos Seria no miacutenimo

paradoxal Se recordarmos o que dissemos antes esta definiccedilatildeo tornar-se-aacute muito mais

niacutetida e clara Vimos que o Nada era uma ausecircncia de ligaccedilatildeo o espaccedilo entre dois entes

(a fortiori como veremos mais agrave frente o espaccedilo que separa todos os entes) O Nada

gera-se dos entes eacute porque me percepciono como eu e tu como tu que estamos

6 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida Costa A Sampaio e Melo Porto Editora

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separados eacute porque para noacutes aquela pedra eacute aquela pedra e aquela aacutervore eacute aquela

aacutervore que haacute nada entre elas Este Nada este espaccedilo natildeo eacute como se imagina somente

o espaccedilo fiacutesico entre as coisas mas o vazio de Ser que permite a definiccedilatildeo de dois entes

Diremos assim numa primeira aproximaccedilatildeo que o Nada nasce dos entes que o ente

segrega Nada

Tanto nos impressiona e ocupa o Nada e no fundo natildeo eacute de todo evidente que

nos ocupe e impressione De facto porquecirc este desejo de uniatildeo tatildeo forte que ateacute nos faz

criar um conceito que associamos agrave ausecircncia absurda de tudo que nos faz questionar

sobre a nossa presenccedila e desejar por vezes que natildeo focircssemos ou pelo menos natildeo desta

maneira assim separados Como pocircde por exemplo Camus mostrar tatildeo bem o

absurdo a estranheza a irredutibilidade que nascem do nosso confronto com uma

simples pedra ou uma pacata paisagem7

Para avanccedilarmos na nossa investigaccedilatildeo apelaremos agora ao termo ldquoexistirrdquo

Como sabemos este deriva da palavra latina existere Soacute por si o significado desta

uacuteltima seria suficientemente interessante sair de Mas para relevar ainda mais a sua

acepccedilatildeo iremos agrave sua proacutepria raiz existere vem do mais literal exsistere ou seja ex +

sisterei o que agrave letra daraacute aparecer fora Isto quer dizer que o existente eacute aquele que

estaacute fora A pergunta que logo nos surge eacute fora de quecirc Porque se existir eacute estar eacute pocircr-

-se fora tem de haver um algo de que saiacutemos A tradiccedilatildeo quer que saiamos do Nada

para o Ser Ora como vimos tudo aponta para que o Nada se encontre aqui na

existecircncia que o Nada nasccedila precisamente do contacto entre os entes que o Nada

apareccedila com o ente Analisando o termo Ser depressa resolveremos esta aparente

confusatildeo Ser provem como eacute normalmente aceite de sedere ou seja estar Como jaacute

observaacutemos existir eacute ex + sistere estar fora Assim Ser eacute estar e existir eacute estar fora Se

eacute como vimos o ente que segrega Nada a verdade eacute que existir se confunde com o

abandono do Ser

Aprofundando ainda mais a questatildeo abordaremos agora a anguacutestia Mas antes

de o fazermos teremos de a definir convenientemente envolta que estaacute numa multitude

de associaccedilotildees erroacuteneas Poucos concordaratildeo que a anguacutestia seja rara porque no fundo

todos jaacute se sentiram angustiados Mas daacute-se aqui um erro comum na confusatildeo entre 7 CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 p31

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anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja

estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A

anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado

nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica

porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por

exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado

passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se

desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do

objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do

Nada

A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo

angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o

mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si

mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro

decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que

segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que

vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo

E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre

aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido

fundamentalmente segregativo

A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos

satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma

realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada

como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda

a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de

preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de

provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e

como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes

8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss

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Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia

heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute

portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii

Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular

1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada

2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas

atraveacutes dos entes

3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo

Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da

separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua

separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas

fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para

uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o

Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o

Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da

reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute

neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem

sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e

esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir

inquietaccedilatildeo

A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute

essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo

possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo

semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo

assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo

mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma

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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente

iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso

de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem

aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo

poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse

esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana

poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente

do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o

desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em

uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9

Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a

Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis

aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia

como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os

entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer

animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes

partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute

permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da

mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas

como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na

visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a

eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute

tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela

sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo

jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o

mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva

que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer

9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188

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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute

lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a

uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas

exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a

vontade do Uno

Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num

dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades

eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no

ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se

percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade

Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e

obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar

Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma

constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute

presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus

eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute

λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por

excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a

uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus

natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada

ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo

fogo

No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a

primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde

jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma

indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae

Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito

Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se

sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou

seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera

Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do

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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se

pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno

Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender

isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto

a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois

de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como

conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela

similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu

lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui

que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de

espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia

Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um

existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo

incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute

a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo

consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do

homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de

todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela

constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a

nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe

para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por

isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo

e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de

se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso

em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi

dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como

daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos

grandes motores do niilismo ocidental

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3

Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos

primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma

separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer

latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente

Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora

Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma

falta Temos assim que o existente eacute

1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a

totalidade unida o Uno)

2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada

3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia

Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os

segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de

si mesmo e da sua condiccedilatildeo

Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que

cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis

O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas

tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro

de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio

Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que

tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente

para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos

Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre

o Nada

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4

No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o

Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que

para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que

nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou

a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12

Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da

totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a

totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de

que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as

objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o

Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14

Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade

a anguacutestia para o Nada15

Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira

abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no

entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual

a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como

dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a

sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se

encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem

senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque

eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos

11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56

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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os

entes o Todo

Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que

continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova

quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na

actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos

no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa

No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo

como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se

a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte

dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo

quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes

acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica

assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos

Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que

escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo

pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo

ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a

uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade

criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do

universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo

dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito

apenas o Uno possui o entendimento completo

Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao

domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o

universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-

-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um

a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas

eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)

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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu

ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a

Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos

satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado

como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e

vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo

temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de

panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim

ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute

tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de

aacutetomo22

Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos

de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias

astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que

esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o

nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas

partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos

assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo

da ciecircncia

Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se

esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente

tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute

consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo

agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23

18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente

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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

- 26 -

consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

- 27 -

concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

- 28 -

dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

- 31 -

descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

- 33 -

seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

- 34 -

ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

- 35 -

assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 5: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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A finalidade do Ser natildeo eacute o Homem mas o contraacuterio eacute verdadeiro a finalidade

do Homem eacute o Ser ou pelo menos a de um aumento de Ser e subsequente reduccedilatildeo de

Nada Assim basta-nos substituir Ser a Deus quando Mestre Eckhart diz Deus eacute

oposiccedilatildeo ao Nada pela mediaccedilatildeo do ente4

Mas enquanto estrebucharmos contra a sangria da Lacircmina dificilmente

conseguiremos sair do marasmo ilusionista que a recente filosofia tem criado num surto

nunca antes visto de confusatildeo e turbilhatildeo de palavras de facto perante grande parte da

produccedilatildeo filosoacutefica do seacuteculo passado apetece exclamarmo-nos non liquet Esta falta

de clareza deve-se sobretudo ao medo de mergulhar no banho libertador do niilismo ao

receio de cortar as amarras

O banho niilista funciona como um aacutecido que descarna a carcaccedila das nossas

ilusotildees e a verdade eacute que soacute depois de desencarnados podemos reencarnar assim como

a larva soacute se torna borboleta abandonando o casulo Para que o Nada possa ser

transcendido eacute necessaacuterio identificar primeiro todos os nadas tudo aquilo que eacute Nada E

eacute isto que ningueacutem parece estar disposto a fazer aconchegados que estamos no nosso

recanto de tradiccedilotildees de subtis cantos de sereias

Julga-se que o processo seraacute o de anulaccedilatildeo pura e simples quando eacute de facto o

de reinterpretaccedilatildeo Outra funccedilatildeo importante do niilismo eacute a de ter anulado

definitivamente a transcendecircncia de nos ter forccedilado a gerir a nossa vida na imanecircncia

onde pertencemos A transcendecircncia do Nada de que falamos daacute-se na imanecircncia eacute uma

transimanecircncia

O propoacutesito do que se segue eacute assim de circunscrever claramente o Nada para

que seja possiacutevel abordar os meios de o ultrapassar

4 laquo Dieu est opposition au neacuteant par la meacutediation de lrsquoeacutetant raquo in Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997 Deo caritas est p 624

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I

Genealogia do Nada Uma essecircncia invisiacutevel e subtil eacute o Espiacuterito

de todo o universo Isso eacute a Realidade Isso eacute a Verdade TU EacuteS ISSO

Upanishades Chandogya 61214

Um eacute o saber conhecer o pensamento pelo

qual satildeo governadas todas as coisas atraveacutes de todas as coisas

Heraclito fragmento 41

Aleacutem disso considero a alma humana como

sendo esse mesmo poder de pensar natildeo como sendo infinito e apercebendo a natureza inteira mas como apercebendo somente uma coisa finita que eacute o corpo humano a alma humana eacute assim concebida por mim como uma parte do entendimento infinito

Espinosa Carta XXXII

No teatro dos nossos pensamentos uma personagem haacute que intriga e atormenta o

auditoacuterio natildeo tanto pela sua presenccedila como pela sua ausecircncia sendo para ela esta

uacuteltima aquela primeira Embora passe despercebida para a maioria do puacuteblico os mais

atentos natildeo teratildeo dificuldade em consideraacute-la a personagem principal Falamos ainda

que natildeo seja evidente do Nada O que nele mais atormenta e intriga eacute para quem leu a

peccedila ver que natildeo faz parte do elenco que nenhuma deixa foi escrita para ele e que no

entanto rouba a vedeta ali mesmo no palco

A sua presenccedila eacute como dissemos uma ausecircncia Esta uacuteltima implica sempre

uma falta e com esta se implica tambeacutem que saibamos se natildeo o que falta pelo menos

que algo falta Ora sabemos perfeitamente que o Nada fiacutesico eacute uma pura contradiccedilatildeo

basta a mais iacutenfima das mais minuacutesculas partiacuteculas subatoacutemicas para que o Nada natildeo

seja O Nada assim concebido seria uma ausecircncia de Tudo e sabemos que nem tudo estaacute

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ausente A pergunta ldquoPorquecirc algo e natildeo o Nadardquo eacute uma pergunta a nosso ver absurda

atavismo da visatildeo criacionista que precisa de ser ultrapassada Porque recuando de

causa em causa chegamos a um ponto onde temos de decidir entre criado e incriado Se

optarmos como se tem feito na nossa civilizaccedilatildeo pela criaccedilatildeo temos de pocircr a hipoacutetese

absurda de colocar algo fora do Todo que cria o Todo A dificuldade estaacute aqui em

compreender o Universo actual que percepcionamos como conjunto de entidades

separadas ndash um Tudo ndash como unidade perdida porque pensando o Universo no seu

iniacutecio como Todo e natildeo como Tudo eacute facilmente assimilaacutevel que natildeo teve de ser

criado que eacute precisamente incriado porque o Todo natildeo necessita por definiccedilatildeo de ser

criado o Todo eacute e natildeo pode deixar de ser por si O que tentaremos mostrar eacute que o

Nada natildeo eacute ausecircncia de Tudo mas ausecircncia de Todo ou seja muito mais do que um

mero conceito o Nada eacute uma intuiccedilatildeo um sentimento uma lembranccedila de unidade

perdida

1

Contrariando o evangelista diremos que no verbo estaacute o princiacutepio e assim para

abrir caminho agrave interpretaccedilatildeo da filosofia heracliteana analisaremos os termos que

seratildeo a base do presente trabalho nihilum exsistere χρησmicroοσύνη e angustiae

Quanto agrave palavra nihilum concordamos com Vladimir Biaggi5 na sua exegese

discordando no entanto no significado que lhe eacute atribuiacutedo Com efeito Biaggi divide a

palavra em ne + hilum ou seja em ausecircncia de hilo O hilo eacute como sabemos o ponto

onde uma semente ou uma viacutescera recebem o seu alimento o local onde se ligam ao

organismo de que fazem parte O autor traduz este facto dizendo-nos que a vida estaacute por

vezes presa por um fio por um Nada Esta visatildeo eacutetica faz sentido inserindo-se numa

obra que trata do niilismo (reactivo) precisamente numa perspectiva do Nada como

ausecircncia de valores sendo estes uacuteltimos o fio que manteacutem a unidade de uma sociedade

Parece-nos todavia que esta palavra merece um exame mais profundo uma visatildeo mais

arrojada Em nosso entender o Nada aparece como uma ausecircncia de ligaccedilatildeo O Nada 5 BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 pp 16-17

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natildeo eacute o teacutenue ponto onde algo se liga mas justamente a ausecircncia dessa ligaccedilatildeo Eacute

quando essa conexatildeo falta que o Nada aparece Resta-nos saber qual o algo que teima

em desligar-se

O Nada eacute o primeiro a oferecer-se ao desabrochar de uma consciecircncia no

mundo Aquilo que inicialmente define um qualquer ente aquilo que permite apreendecirc-

-lo como tal eacute o facto de este estar separado Efectivamente um ente soacute eacute ldquoumrdquo por

estar separado do resto do universo e a minha consciecircncia soacute eacute a ldquominha consciecircnciardquo

porque estaacute rodeada de passe-se o termo natildeo-eus A primeira coisa que sinto como

objecto deste mundo eacute a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros objectos Mas

simultaneamente opera-se nessa consciecircncia que aparece um instintivo devorar do

olhar um esticar de matildeo um instinto primordial para a ligaccedilatildeo com os outros entes que

se lhe apresentam ainda confusamente uma tendecircncia para a uniatildeo E eacute o confronto

entre essa uniatildeo que traz dentro de si e a separaccedilatildeo com o mundo fora dele que gera

nesse ente que aparece nesse aparecente o Nada O Nada eacute portanto aquilo que separa

um ente do mundo Como o exame de nihilum (ne + hilum) deixou transparecer Nada

significa assim numa primeira abordagem o espaccedilo entre dois entes a ausecircncia de

ligaccedilatildeo aquilo que faz com que dois entes natildeo sejam um

Quando as palavras evoluem perdem por vezes o seu significado primevo ou

deixam-no pelo menos enfraquecer O portuguecircs parece de forma curiosa natildeo soacute natildeo

ter deixado esmorecer o sentido de Nada (neste caso o que aqui vamos definindo como

Nada) como ainda o ter reforccedilado singularmente O dicionaacuterio6 diz-nos na zona

reservada agrave etimologia da palavra Nada o seguinte Do lat [rem] natam ldquocoisa

nascidardquo Natildeo deixa de ser curioso num primeiro vislumbre o contraste entre a

definiccedilatildeo da palavra (o que natildeo existe o que se opotildee ao ser) e a sua raiz (coisa

nascida) Quereraacute isto dizer que noacutes coisas nascidas natildeo somos Seria no miacutenimo

paradoxal Se recordarmos o que dissemos antes esta definiccedilatildeo tornar-se-aacute muito mais

niacutetida e clara Vimos que o Nada era uma ausecircncia de ligaccedilatildeo o espaccedilo entre dois entes

(a fortiori como veremos mais agrave frente o espaccedilo que separa todos os entes) O Nada

gera-se dos entes eacute porque me percepciono como eu e tu como tu que estamos

6 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida Costa A Sampaio e Melo Porto Editora

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separados eacute porque para noacutes aquela pedra eacute aquela pedra e aquela aacutervore eacute aquela

aacutervore que haacute nada entre elas Este Nada este espaccedilo natildeo eacute como se imagina somente

o espaccedilo fiacutesico entre as coisas mas o vazio de Ser que permite a definiccedilatildeo de dois entes

Diremos assim numa primeira aproximaccedilatildeo que o Nada nasce dos entes que o ente

segrega Nada

Tanto nos impressiona e ocupa o Nada e no fundo natildeo eacute de todo evidente que

nos ocupe e impressione De facto porquecirc este desejo de uniatildeo tatildeo forte que ateacute nos faz

criar um conceito que associamos agrave ausecircncia absurda de tudo que nos faz questionar

sobre a nossa presenccedila e desejar por vezes que natildeo focircssemos ou pelo menos natildeo desta

maneira assim separados Como pocircde por exemplo Camus mostrar tatildeo bem o

absurdo a estranheza a irredutibilidade que nascem do nosso confronto com uma

simples pedra ou uma pacata paisagem7

Para avanccedilarmos na nossa investigaccedilatildeo apelaremos agora ao termo ldquoexistirrdquo

Como sabemos este deriva da palavra latina existere Soacute por si o significado desta

uacuteltima seria suficientemente interessante sair de Mas para relevar ainda mais a sua

acepccedilatildeo iremos agrave sua proacutepria raiz existere vem do mais literal exsistere ou seja ex +

sisterei o que agrave letra daraacute aparecer fora Isto quer dizer que o existente eacute aquele que

estaacute fora A pergunta que logo nos surge eacute fora de quecirc Porque se existir eacute estar eacute pocircr-

-se fora tem de haver um algo de que saiacutemos A tradiccedilatildeo quer que saiamos do Nada

para o Ser Ora como vimos tudo aponta para que o Nada se encontre aqui na

existecircncia que o Nada nasccedila precisamente do contacto entre os entes que o Nada

apareccedila com o ente Analisando o termo Ser depressa resolveremos esta aparente

confusatildeo Ser provem como eacute normalmente aceite de sedere ou seja estar Como jaacute

observaacutemos existir eacute ex + sistere estar fora Assim Ser eacute estar e existir eacute estar fora Se

eacute como vimos o ente que segrega Nada a verdade eacute que existir se confunde com o

abandono do Ser

Aprofundando ainda mais a questatildeo abordaremos agora a anguacutestia Mas antes

de o fazermos teremos de a definir convenientemente envolta que estaacute numa multitude

de associaccedilotildees erroacuteneas Poucos concordaratildeo que a anguacutestia seja rara porque no fundo

todos jaacute se sentiram angustiados Mas daacute-se aqui um erro comum na confusatildeo entre 7 CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 p31

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anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja

estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A

anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado

nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica

porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por

exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado

passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se

desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do

objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do

Nada

A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo

angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o

mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si

mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro

decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que

segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que

vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo

E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre

aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido

fundamentalmente segregativo

A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos

satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma

realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada

como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda

a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de

preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de

provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e

como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes

8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss

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2

Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia

heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute

portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii

Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular

1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada

2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas

atraveacutes dos entes

3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo

Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da

separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua

separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas

fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para

uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o

Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o

Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da

reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute

neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem

sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e

esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir

inquietaccedilatildeo

A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute

essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo

possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo

semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo

assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo

mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma

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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente

iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso

de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem

aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo

poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse

esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana

poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente

do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o

desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em

uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9

Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a

Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis

aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia

como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os

entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer

animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes

partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute

permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da

mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas

como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na

visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a

eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute

tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela

sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo

jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o

mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva

que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer

9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188

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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute

lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a

uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas

exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a

vontade do Uno

Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num

dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades

eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no

ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se

percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade

Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e

obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar

Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma

constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute

presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus

eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute

λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por

excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a

uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus

natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada

ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo

fogo

No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a

primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde

jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma

indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae

Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito

Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se

sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou

seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera

Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do

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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se

pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno

Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender

isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto

a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois

de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como

conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela

similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu

lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui

que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de

espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia

Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um

existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo

incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute

a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo

consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do

homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de

todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela

constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a

nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe

para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por

isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo

e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de

se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso

em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi

dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como

daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos

grandes motores do niilismo ocidental

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3

Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos

primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma

separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer

latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente

Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora

Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma

falta Temos assim que o existente eacute

1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a

totalidade unida o Uno)

2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada

3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia

Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os

segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de

si mesmo e da sua condiccedilatildeo

Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que

cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis

O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas

tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro

de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio

Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que

tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente

para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos

Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre

o Nada

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4

No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o

Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que

para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que

nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou

a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12

Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da

totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a

totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de

que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as

objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o

Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14

Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade

a anguacutestia para o Nada15

Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira

abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no

entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual

a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como

dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a

sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se

encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem

senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque

eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos

11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56

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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os

entes o Todo

Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que

continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova

quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na

actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos

no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa

No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo

como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se

a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte

dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo

quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes

acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica

assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos

Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que

escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo

pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo

ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a

uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade

criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do

universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo

dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito

apenas o Uno possui o entendimento completo

Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao

domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o

universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-

-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um

a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas

eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)

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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu

ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a

Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos

satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado

como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e

vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo

temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de

panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim

ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute

tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de

aacutetomo22

Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos

de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias

astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que

esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o

nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas

partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos

assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo

da ciecircncia

Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se

esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente

tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute

consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo

agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23

18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente

- 20 -

Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

- 21 -

Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

- 23 -

amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

- 24 -

no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

- 26 -

consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

- 27 -

concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

- 28 -

dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

- 31 -

descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

- 33 -

seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

- 40 -

Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

- 41 -

Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

- 42 -

Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

- 53 -

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Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland

Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos

Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994

- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition

1999 Paris

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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika

Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 6: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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I

Genealogia do Nada Uma essecircncia invisiacutevel e subtil eacute o Espiacuterito

de todo o universo Isso eacute a Realidade Isso eacute a Verdade TU EacuteS ISSO

Upanishades Chandogya 61214

Um eacute o saber conhecer o pensamento pelo

qual satildeo governadas todas as coisas atraveacutes de todas as coisas

Heraclito fragmento 41

Aleacutem disso considero a alma humana como

sendo esse mesmo poder de pensar natildeo como sendo infinito e apercebendo a natureza inteira mas como apercebendo somente uma coisa finita que eacute o corpo humano a alma humana eacute assim concebida por mim como uma parte do entendimento infinito

Espinosa Carta XXXII

No teatro dos nossos pensamentos uma personagem haacute que intriga e atormenta o

auditoacuterio natildeo tanto pela sua presenccedila como pela sua ausecircncia sendo para ela esta

uacuteltima aquela primeira Embora passe despercebida para a maioria do puacuteblico os mais

atentos natildeo teratildeo dificuldade em consideraacute-la a personagem principal Falamos ainda

que natildeo seja evidente do Nada O que nele mais atormenta e intriga eacute para quem leu a

peccedila ver que natildeo faz parte do elenco que nenhuma deixa foi escrita para ele e que no

entanto rouba a vedeta ali mesmo no palco

A sua presenccedila eacute como dissemos uma ausecircncia Esta uacuteltima implica sempre

uma falta e com esta se implica tambeacutem que saibamos se natildeo o que falta pelo menos

que algo falta Ora sabemos perfeitamente que o Nada fiacutesico eacute uma pura contradiccedilatildeo

basta a mais iacutenfima das mais minuacutesculas partiacuteculas subatoacutemicas para que o Nada natildeo

seja O Nada assim concebido seria uma ausecircncia de Tudo e sabemos que nem tudo estaacute

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ausente A pergunta ldquoPorquecirc algo e natildeo o Nadardquo eacute uma pergunta a nosso ver absurda

atavismo da visatildeo criacionista que precisa de ser ultrapassada Porque recuando de

causa em causa chegamos a um ponto onde temos de decidir entre criado e incriado Se

optarmos como se tem feito na nossa civilizaccedilatildeo pela criaccedilatildeo temos de pocircr a hipoacutetese

absurda de colocar algo fora do Todo que cria o Todo A dificuldade estaacute aqui em

compreender o Universo actual que percepcionamos como conjunto de entidades

separadas ndash um Tudo ndash como unidade perdida porque pensando o Universo no seu

iniacutecio como Todo e natildeo como Tudo eacute facilmente assimilaacutevel que natildeo teve de ser

criado que eacute precisamente incriado porque o Todo natildeo necessita por definiccedilatildeo de ser

criado o Todo eacute e natildeo pode deixar de ser por si O que tentaremos mostrar eacute que o

Nada natildeo eacute ausecircncia de Tudo mas ausecircncia de Todo ou seja muito mais do que um

mero conceito o Nada eacute uma intuiccedilatildeo um sentimento uma lembranccedila de unidade

perdida

1

Contrariando o evangelista diremos que no verbo estaacute o princiacutepio e assim para

abrir caminho agrave interpretaccedilatildeo da filosofia heracliteana analisaremos os termos que

seratildeo a base do presente trabalho nihilum exsistere χρησmicroοσύνη e angustiae

Quanto agrave palavra nihilum concordamos com Vladimir Biaggi5 na sua exegese

discordando no entanto no significado que lhe eacute atribuiacutedo Com efeito Biaggi divide a

palavra em ne + hilum ou seja em ausecircncia de hilo O hilo eacute como sabemos o ponto

onde uma semente ou uma viacutescera recebem o seu alimento o local onde se ligam ao

organismo de que fazem parte O autor traduz este facto dizendo-nos que a vida estaacute por

vezes presa por um fio por um Nada Esta visatildeo eacutetica faz sentido inserindo-se numa

obra que trata do niilismo (reactivo) precisamente numa perspectiva do Nada como

ausecircncia de valores sendo estes uacuteltimos o fio que manteacutem a unidade de uma sociedade

Parece-nos todavia que esta palavra merece um exame mais profundo uma visatildeo mais

arrojada Em nosso entender o Nada aparece como uma ausecircncia de ligaccedilatildeo O Nada 5 BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 pp 16-17

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natildeo eacute o teacutenue ponto onde algo se liga mas justamente a ausecircncia dessa ligaccedilatildeo Eacute

quando essa conexatildeo falta que o Nada aparece Resta-nos saber qual o algo que teima

em desligar-se

O Nada eacute o primeiro a oferecer-se ao desabrochar de uma consciecircncia no

mundo Aquilo que inicialmente define um qualquer ente aquilo que permite apreendecirc-

-lo como tal eacute o facto de este estar separado Efectivamente um ente soacute eacute ldquoumrdquo por

estar separado do resto do universo e a minha consciecircncia soacute eacute a ldquominha consciecircnciardquo

porque estaacute rodeada de passe-se o termo natildeo-eus A primeira coisa que sinto como

objecto deste mundo eacute a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros objectos Mas

simultaneamente opera-se nessa consciecircncia que aparece um instintivo devorar do

olhar um esticar de matildeo um instinto primordial para a ligaccedilatildeo com os outros entes que

se lhe apresentam ainda confusamente uma tendecircncia para a uniatildeo E eacute o confronto

entre essa uniatildeo que traz dentro de si e a separaccedilatildeo com o mundo fora dele que gera

nesse ente que aparece nesse aparecente o Nada O Nada eacute portanto aquilo que separa

um ente do mundo Como o exame de nihilum (ne + hilum) deixou transparecer Nada

significa assim numa primeira abordagem o espaccedilo entre dois entes a ausecircncia de

ligaccedilatildeo aquilo que faz com que dois entes natildeo sejam um

Quando as palavras evoluem perdem por vezes o seu significado primevo ou

deixam-no pelo menos enfraquecer O portuguecircs parece de forma curiosa natildeo soacute natildeo

ter deixado esmorecer o sentido de Nada (neste caso o que aqui vamos definindo como

Nada) como ainda o ter reforccedilado singularmente O dicionaacuterio6 diz-nos na zona

reservada agrave etimologia da palavra Nada o seguinte Do lat [rem] natam ldquocoisa

nascidardquo Natildeo deixa de ser curioso num primeiro vislumbre o contraste entre a

definiccedilatildeo da palavra (o que natildeo existe o que se opotildee ao ser) e a sua raiz (coisa

nascida) Quereraacute isto dizer que noacutes coisas nascidas natildeo somos Seria no miacutenimo

paradoxal Se recordarmos o que dissemos antes esta definiccedilatildeo tornar-se-aacute muito mais

niacutetida e clara Vimos que o Nada era uma ausecircncia de ligaccedilatildeo o espaccedilo entre dois entes

(a fortiori como veremos mais agrave frente o espaccedilo que separa todos os entes) O Nada

gera-se dos entes eacute porque me percepciono como eu e tu como tu que estamos

6 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida Costa A Sampaio e Melo Porto Editora

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separados eacute porque para noacutes aquela pedra eacute aquela pedra e aquela aacutervore eacute aquela

aacutervore que haacute nada entre elas Este Nada este espaccedilo natildeo eacute como se imagina somente

o espaccedilo fiacutesico entre as coisas mas o vazio de Ser que permite a definiccedilatildeo de dois entes

Diremos assim numa primeira aproximaccedilatildeo que o Nada nasce dos entes que o ente

segrega Nada

Tanto nos impressiona e ocupa o Nada e no fundo natildeo eacute de todo evidente que

nos ocupe e impressione De facto porquecirc este desejo de uniatildeo tatildeo forte que ateacute nos faz

criar um conceito que associamos agrave ausecircncia absurda de tudo que nos faz questionar

sobre a nossa presenccedila e desejar por vezes que natildeo focircssemos ou pelo menos natildeo desta

maneira assim separados Como pocircde por exemplo Camus mostrar tatildeo bem o

absurdo a estranheza a irredutibilidade que nascem do nosso confronto com uma

simples pedra ou uma pacata paisagem7

Para avanccedilarmos na nossa investigaccedilatildeo apelaremos agora ao termo ldquoexistirrdquo

Como sabemos este deriva da palavra latina existere Soacute por si o significado desta

uacuteltima seria suficientemente interessante sair de Mas para relevar ainda mais a sua

acepccedilatildeo iremos agrave sua proacutepria raiz existere vem do mais literal exsistere ou seja ex +

sisterei o que agrave letra daraacute aparecer fora Isto quer dizer que o existente eacute aquele que

estaacute fora A pergunta que logo nos surge eacute fora de quecirc Porque se existir eacute estar eacute pocircr-

-se fora tem de haver um algo de que saiacutemos A tradiccedilatildeo quer que saiamos do Nada

para o Ser Ora como vimos tudo aponta para que o Nada se encontre aqui na

existecircncia que o Nada nasccedila precisamente do contacto entre os entes que o Nada

apareccedila com o ente Analisando o termo Ser depressa resolveremos esta aparente

confusatildeo Ser provem como eacute normalmente aceite de sedere ou seja estar Como jaacute

observaacutemos existir eacute ex + sistere estar fora Assim Ser eacute estar e existir eacute estar fora Se

eacute como vimos o ente que segrega Nada a verdade eacute que existir se confunde com o

abandono do Ser

Aprofundando ainda mais a questatildeo abordaremos agora a anguacutestia Mas antes

de o fazermos teremos de a definir convenientemente envolta que estaacute numa multitude

de associaccedilotildees erroacuteneas Poucos concordaratildeo que a anguacutestia seja rara porque no fundo

todos jaacute se sentiram angustiados Mas daacute-se aqui um erro comum na confusatildeo entre 7 CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 p31

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anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja

estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A

anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado

nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica

porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por

exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado

passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se

desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do

objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do

Nada

A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo

angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o

mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si

mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro

decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que

segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que

vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo

E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre

aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido

fundamentalmente segregativo

A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos

satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma

realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada

como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda

a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de

preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de

provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e

como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes

8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss

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2

Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia

heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute

portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii

Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular

1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada

2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas

atraveacutes dos entes

3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo

Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da

separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua

separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas

fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para

uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o

Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o

Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da

reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute

neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem

sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e

esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir

inquietaccedilatildeo

A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute

essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo

possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo

semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo

assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo

mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma

- 13 -

diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente

iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso

de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem

aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo

poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse

esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana

poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente

do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o

desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em

uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9

Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a

Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis

aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia

como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os

entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer

animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes

partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute

permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da

mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas

como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na

visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a

eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute

tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela

sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo

jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o

mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva

que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer

9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188

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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute

lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a

uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas

exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a

vontade do Uno

Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num

dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades

eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no

ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se

percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade

Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e

obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar

Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma

constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute

presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus

eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute

λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por

excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a

uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus

natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada

ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo

fogo

No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a

primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde

jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma

indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae

Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito

Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se

sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou

seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera

Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do

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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se

pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno

Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender

isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto

a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois

de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como

conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela

similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu

lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui

que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de

espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia

Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um

existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo

incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute

a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo

consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do

homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de

todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela

constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a

nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe

para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por

isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo

e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de

se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso

em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi

dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como

daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos

grandes motores do niilismo ocidental

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3

Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos

primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma

separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer

latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente

Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora

Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma

falta Temos assim que o existente eacute

1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a

totalidade unida o Uno)

2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada

3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia

Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os

segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de

si mesmo e da sua condiccedilatildeo

Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que

cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis

O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas

tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro

de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio

Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que

tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente

para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos

Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre

o Nada

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4

No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o

Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que

para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que

nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou

a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12

Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da

totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a

totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de

que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as

objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o

Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14

Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade

a anguacutestia para o Nada15

Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira

abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no

entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual

a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como

dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a

sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se

encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem

senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque

eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos

11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56

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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os

entes o Todo

Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que

continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova

quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na

actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos

no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa

No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo

como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se

a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte

dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo

quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes

acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica

assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos

Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que

escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo

pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo

ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a

uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade

criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do

universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo

dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito

apenas o Uno possui o entendimento completo

Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao

domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o

universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-

-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um

a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas

eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)

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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu

ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a

Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos

satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado

como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e

vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo

temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de

panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim

ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute

tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de

aacutetomo22

Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos

de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias

astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que

esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o

nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas

partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos

assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo

da ciecircncia

Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se

esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente

tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute

consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo

agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23

18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente

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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

- 25 -

absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

- 26 -

consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

- 27 -

concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

- 28 -

dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 7: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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ausente A pergunta ldquoPorquecirc algo e natildeo o Nadardquo eacute uma pergunta a nosso ver absurda

atavismo da visatildeo criacionista que precisa de ser ultrapassada Porque recuando de

causa em causa chegamos a um ponto onde temos de decidir entre criado e incriado Se

optarmos como se tem feito na nossa civilizaccedilatildeo pela criaccedilatildeo temos de pocircr a hipoacutetese

absurda de colocar algo fora do Todo que cria o Todo A dificuldade estaacute aqui em

compreender o Universo actual que percepcionamos como conjunto de entidades

separadas ndash um Tudo ndash como unidade perdida porque pensando o Universo no seu

iniacutecio como Todo e natildeo como Tudo eacute facilmente assimilaacutevel que natildeo teve de ser

criado que eacute precisamente incriado porque o Todo natildeo necessita por definiccedilatildeo de ser

criado o Todo eacute e natildeo pode deixar de ser por si O que tentaremos mostrar eacute que o

Nada natildeo eacute ausecircncia de Tudo mas ausecircncia de Todo ou seja muito mais do que um

mero conceito o Nada eacute uma intuiccedilatildeo um sentimento uma lembranccedila de unidade

perdida

1

Contrariando o evangelista diremos que no verbo estaacute o princiacutepio e assim para

abrir caminho agrave interpretaccedilatildeo da filosofia heracliteana analisaremos os termos que

seratildeo a base do presente trabalho nihilum exsistere χρησmicroοσύνη e angustiae

Quanto agrave palavra nihilum concordamos com Vladimir Biaggi5 na sua exegese

discordando no entanto no significado que lhe eacute atribuiacutedo Com efeito Biaggi divide a

palavra em ne + hilum ou seja em ausecircncia de hilo O hilo eacute como sabemos o ponto

onde uma semente ou uma viacutescera recebem o seu alimento o local onde se ligam ao

organismo de que fazem parte O autor traduz este facto dizendo-nos que a vida estaacute por

vezes presa por um fio por um Nada Esta visatildeo eacutetica faz sentido inserindo-se numa

obra que trata do niilismo (reactivo) precisamente numa perspectiva do Nada como

ausecircncia de valores sendo estes uacuteltimos o fio que manteacutem a unidade de uma sociedade

Parece-nos todavia que esta palavra merece um exame mais profundo uma visatildeo mais

arrojada Em nosso entender o Nada aparece como uma ausecircncia de ligaccedilatildeo O Nada 5 BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 pp 16-17

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natildeo eacute o teacutenue ponto onde algo se liga mas justamente a ausecircncia dessa ligaccedilatildeo Eacute

quando essa conexatildeo falta que o Nada aparece Resta-nos saber qual o algo que teima

em desligar-se

O Nada eacute o primeiro a oferecer-se ao desabrochar de uma consciecircncia no

mundo Aquilo que inicialmente define um qualquer ente aquilo que permite apreendecirc-

-lo como tal eacute o facto de este estar separado Efectivamente um ente soacute eacute ldquoumrdquo por

estar separado do resto do universo e a minha consciecircncia soacute eacute a ldquominha consciecircnciardquo

porque estaacute rodeada de passe-se o termo natildeo-eus A primeira coisa que sinto como

objecto deste mundo eacute a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros objectos Mas

simultaneamente opera-se nessa consciecircncia que aparece um instintivo devorar do

olhar um esticar de matildeo um instinto primordial para a ligaccedilatildeo com os outros entes que

se lhe apresentam ainda confusamente uma tendecircncia para a uniatildeo E eacute o confronto

entre essa uniatildeo que traz dentro de si e a separaccedilatildeo com o mundo fora dele que gera

nesse ente que aparece nesse aparecente o Nada O Nada eacute portanto aquilo que separa

um ente do mundo Como o exame de nihilum (ne + hilum) deixou transparecer Nada

significa assim numa primeira abordagem o espaccedilo entre dois entes a ausecircncia de

ligaccedilatildeo aquilo que faz com que dois entes natildeo sejam um

Quando as palavras evoluem perdem por vezes o seu significado primevo ou

deixam-no pelo menos enfraquecer O portuguecircs parece de forma curiosa natildeo soacute natildeo

ter deixado esmorecer o sentido de Nada (neste caso o que aqui vamos definindo como

Nada) como ainda o ter reforccedilado singularmente O dicionaacuterio6 diz-nos na zona

reservada agrave etimologia da palavra Nada o seguinte Do lat [rem] natam ldquocoisa

nascidardquo Natildeo deixa de ser curioso num primeiro vislumbre o contraste entre a

definiccedilatildeo da palavra (o que natildeo existe o que se opotildee ao ser) e a sua raiz (coisa

nascida) Quereraacute isto dizer que noacutes coisas nascidas natildeo somos Seria no miacutenimo

paradoxal Se recordarmos o que dissemos antes esta definiccedilatildeo tornar-se-aacute muito mais

niacutetida e clara Vimos que o Nada era uma ausecircncia de ligaccedilatildeo o espaccedilo entre dois entes

(a fortiori como veremos mais agrave frente o espaccedilo que separa todos os entes) O Nada

gera-se dos entes eacute porque me percepciono como eu e tu como tu que estamos

6 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida Costa A Sampaio e Melo Porto Editora

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separados eacute porque para noacutes aquela pedra eacute aquela pedra e aquela aacutervore eacute aquela

aacutervore que haacute nada entre elas Este Nada este espaccedilo natildeo eacute como se imagina somente

o espaccedilo fiacutesico entre as coisas mas o vazio de Ser que permite a definiccedilatildeo de dois entes

Diremos assim numa primeira aproximaccedilatildeo que o Nada nasce dos entes que o ente

segrega Nada

Tanto nos impressiona e ocupa o Nada e no fundo natildeo eacute de todo evidente que

nos ocupe e impressione De facto porquecirc este desejo de uniatildeo tatildeo forte que ateacute nos faz

criar um conceito que associamos agrave ausecircncia absurda de tudo que nos faz questionar

sobre a nossa presenccedila e desejar por vezes que natildeo focircssemos ou pelo menos natildeo desta

maneira assim separados Como pocircde por exemplo Camus mostrar tatildeo bem o

absurdo a estranheza a irredutibilidade que nascem do nosso confronto com uma

simples pedra ou uma pacata paisagem7

Para avanccedilarmos na nossa investigaccedilatildeo apelaremos agora ao termo ldquoexistirrdquo

Como sabemos este deriva da palavra latina existere Soacute por si o significado desta

uacuteltima seria suficientemente interessante sair de Mas para relevar ainda mais a sua

acepccedilatildeo iremos agrave sua proacutepria raiz existere vem do mais literal exsistere ou seja ex +

sisterei o que agrave letra daraacute aparecer fora Isto quer dizer que o existente eacute aquele que

estaacute fora A pergunta que logo nos surge eacute fora de quecirc Porque se existir eacute estar eacute pocircr-

-se fora tem de haver um algo de que saiacutemos A tradiccedilatildeo quer que saiamos do Nada

para o Ser Ora como vimos tudo aponta para que o Nada se encontre aqui na

existecircncia que o Nada nasccedila precisamente do contacto entre os entes que o Nada

apareccedila com o ente Analisando o termo Ser depressa resolveremos esta aparente

confusatildeo Ser provem como eacute normalmente aceite de sedere ou seja estar Como jaacute

observaacutemos existir eacute ex + sistere estar fora Assim Ser eacute estar e existir eacute estar fora Se

eacute como vimos o ente que segrega Nada a verdade eacute que existir se confunde com o

abandono do Ser

Aprofundando ainda mais a questatildeo abordaremos agora a anguacutestia Mas antes

de o fazermos teremos de a definir convenientemente envolta que estaacute numa multitude

de associaccedilotildees erroacuteneas Poucos concordaratildeo que a anguacutestia seja rara porque no fundo

todos jaacute se sentiram angustiados Mas daacute-se aqui um erro comum na confusatildeo entre 7 CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 p31

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anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja

estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A

anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado

nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica

porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por

exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado

passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se

desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do

objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do

Nada

A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo

angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o

mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si

mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro

decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que

segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que

vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo

E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre

aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido

fundamentalmente segregativo

A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos

satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma

realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada

como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda

a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de

preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de

provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e

como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes

8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss

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2

Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia

heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute

portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii

Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular

1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada

2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas

atraveacutes dos entes

3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo

Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da

separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua

separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas

fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para

uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o

Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o

Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da

reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute

neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem

sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e

esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir

inquietaccedilatildeo

A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute

essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo

possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo

semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo

assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo

mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma

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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente

iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso

de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem

aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo

poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse

esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana

poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente

do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o

desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em

uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9

Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a

Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis

aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia

como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os

entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer

animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes

partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute

permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da

mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas

como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na

visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a

eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute

tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela

sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo

jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o

mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva

que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer

9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188

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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute

lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a

uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas

exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a

vontade do Uno

Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num

dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades

eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no

ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se

percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade

Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e

obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar

Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma

constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute

presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus

eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute

λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por

excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a

uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus

natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada

ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo

fogo

No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a

primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde

jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma

indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae

Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito

Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se

sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou

seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera

Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do

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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se

pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno

Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender

isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto

a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois

de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como

conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela

similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu

lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui

que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de

espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia

Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um

existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo

incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute

a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo

consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do

homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de

todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela

constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a

nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe

para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por

isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo

e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de

se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso

em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi

dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como

daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos

grandes motores do niilismo ocidental

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3

Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos

primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma

separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer

latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente

Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora

Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma

falta Temos assim que o existente eacute

1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a

totalidade unida o Uno)

2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada

3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia

Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os

segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de

si mesmo e da sua condiccedilatildeo

Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que

cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis

O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas

tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro

de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio

Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que

tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente

para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos

Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre

o Nada

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4

No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o

Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que

para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que

nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou

a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12

Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da

totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a

totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de

que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as

objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o

Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14

Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade

a anguacutestia para o Nada15

Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira

abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no

entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual

a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como

dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a

sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se

encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem

senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque

eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos

11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56

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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os

entes o Todo

Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que

continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova

quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na

actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos

no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa

No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo

como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se

a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte

dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo

quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes

acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica

assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos

Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que

escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo

pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo

ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a

uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade

criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do

universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo

dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito

apenas o Uno possui o entendimento completo

Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao

domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o

universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-

-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um

a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas

eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)

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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu

ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a

Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos

satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado

como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e

vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo

temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de

panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim

ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute

tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de

aacutetomo22

Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos

de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias

astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que

esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o

nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas

partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos

assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo

da ciecircncia

Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se

esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente

tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute

consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo

agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23

18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente

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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

- 21 -

Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

- 22 -

Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

- 23 -

amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

- 24 -

no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

- 25 -

absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

- 26 -

consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

- 27 -

concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

- 28 -

dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

- 31 -

descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

- 33 -

seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

- 39 -

a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

- 41 -

Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

- 42 -

Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

- 43 -

transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 8: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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natildeo eacute o teacutenue ponto onde algo se liga mas justamente a ausecircncia dessa ligaccedilatildeo Eacute

quando essa conexatildeo falta que o Nada aparece Resta-nos saber qual o algo que teima

em desligar-se

O Nada eacute o primeiro a oferecer-se ao desabrochar de uma consciecircncia no

mundo Aquilo que inicialmente define um qualquer ente aquilo que permite apreendecirc-

-lo como tal eacute o facto de este estar separado Efectivamente um ente soacute eacute ldquoumrdquo por

estar separado do resto do universo e a minha consciecircncia soacute eacute a ldquominha consciecircnciardquo

porque estaacute rodeada de passe-se o termo natildeo-eus A primeira coisa que sinto como

objecto deste mundo eacute a separaccedilatildeo em relaccedilatildeo aos outros objectos Mas

simultaneamente opera-se nessa consciecircncia que aparece um instintivo devorar do

olhar um esticar de matildeo um instinto primordial para a ligaccedilatildeo com os outros entes que

se lhe apresentam ainda confusamente uma tendecircncia para a uniatildeo E eacute o confronto

entre essa uniatildeo que traz dentro de si e a separaccedilatildeo com o mundo fora dele que gera

nesse ente que aparece nesse aparecente o Nada O Nada eacute portanto aquilo que separa

um ente do mundo Como o exame de nihilum (ne + hilum) deixou transparecer Nada

significa assim numa primeira abordagem o espaccedilo entre dois entes a ausecircncia de

ligaccedilatildeo aquilo que faz com que dois entes natildeo sejam um

Quando as palavras evoluem perdem por vezes o seu significado primevo ou

deixam-no pelo menos enfraquecer O portuguecircs parece de forma curiosa natildeo soacute natildeo

ter deixado esmorecer o sentido de Nada (neste caso o que aqui vamos definindo como

Nada) como ainda o ter reforccedilado singularmente O dicionaacuterio6 diz-nos na zona

reservada agrave etimologia da palavra Nada o seguinte Do lat [rem] natam ldquocoisa

nascidardquo Natildeo deixa de ser curioso num primeiro vislumbre o contraste entre a

definiccedilatildeo da palavra (o que natildeo existe o que se opotildee ao ser) e a sua raiz (coisa

nascida) Quereraacute isto dizer que noacutes coisas nascidas natildeo somos Seria no miacutenimo

paradoxal Se recordarmos o que dissemos antes esta definiccedilatildeo tornar-se-aacute muito mais

niacutetida e clara Vimos que o Nada era uma ausecircncia de ligaccedilatildeo o espaccedilo entre dois entes

(a fortiori como veremos mais agrave frente o espaccedilo que separa todos os entes) O Nada

gera-se dos entes eacute porque me percepciono como eu e tu como tu que estamos

6 Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida Costa A Sampaio e Melo Porto Editora

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separados eacute porque para noacutes aquela pedra eacute aquela pedra e aquela aacutervore eacute aquela

aacutervore que haacute nada entre elas Este Nada este espaccedilo natildeo eacute como se imagina somente

o espaccedilo fiacutesico entre as coisas mas o vazio de Ser que permite a definiccedilatildeo de dois entes

Diremos assim numa primeira aproximaccedilatildeo que o Nada nasce dos entes que o ente

segrega Nada

Tanto nos impressiona e ocupa o Nada e no fundo natildeo eacute de todo evidente que

nos ocupe e impressione De facto porquecirc este desejo de uniatildeo tatildeo forte que ateacute nos faz

criar um conceito que associamos agrave ausecircncia absurda de tudo que nos faz questionar

sobre a nossa presenccedila e desejar por vezes que natildeo focircssemos ou pelo menos natildeo desta

maneira assim separados Como pocircde por exemplo Camus mostrar tatildeo bem o

absurdo a estranheza a irredutibilidade que nascem do nosso confronto com uma

simples pedra ou uma pacata paisagem7

Para avanccedilarmos na nossa investigaccedilatildeo apelaremos agora ao termo ldquoexistirrdquo

Como sabemos este deriva da palavra latina existere Soacute por si o significado desta

uacuteltima seria suficientemente interessante sair de Mas para relevar ainda mais a sua

acepccedilatildeo iremos agrave sua proacutepria raiz existere vem do mais literal exsistere ou seja ex +

sisterei o que agrave letra daraacute aparecer fora Isto quer dizer que o existente eacute aquele que

estaacute fora A pergunta que logo nos surge eacute fora de quecirc Porque se existir eacute estar eacute pocircr-

-se fora tem de haver um algo de que saiacutemos A tradiccedilatildeo quer que saiamos do Nada

para o Ser Ora como vimos tudo aponta para que o Nada se encontre aqui na

existecircncia que o Nada nasccedila precisamente do contacto entre os entes que o Nada

apareccedila com o ente Analisando o termo Ser depressa resolveremos esta aparente

confusatildeo Ser provem como eacute normalmente aceite de sedere ou seja estar Como jaacute

observaacutemos existir eacute ex + sistere estar fora Assim Ser eacute estar e existir eacute estar fora Se

eacute como vimos o ente que segrega Nada a verdade eacute que existir se confunde com o

abandono do Ser

Aprofundando ainda mais a questatildeo abordaremos agora a anguacutestia Mas antes

de o fazermos teremos de a definir convenientemente envolta que estaacute numa multitude

de associaccedilotildees erroacuteneas Poucos concordaratildeo que a anguacutestia seja rara porque no fundo

todos jaacute se sentiram angustiados Mas daacute-se aqui um erro comum na confusatildeo entre 7 CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 p31

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anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja

estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A

anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado

nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica

porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por

exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado

passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se

desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do

objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do

Nada

A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo

angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o

mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si

mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro

decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que

segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que

vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo

E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre

aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido

fundamentalmente segregativo

A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos

satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma

realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada

como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda

a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de

preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de

provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e

como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes

8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss

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Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia

heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute

portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii

Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular

1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada

2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas

atraveacutes dos entes

3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo

Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da

separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua

separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas

fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para

uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o

Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o

Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da

reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute

neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem

sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e

esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir

inquietaccedilatildeo

A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute

essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo

possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo

semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo

assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo

mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma

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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente

iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso

de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem

aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo

poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse

esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana

poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente

do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o

desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em

uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9

Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a

Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis

aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia

como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os

entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer

animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes

partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute

permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da

mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas

como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na

visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a

eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute

tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela

sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo

jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o

mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva

que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer

9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188

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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute

lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a

uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas

exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a

vontade do Uno

Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num

dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades

eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no

ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se

percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade

Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e

obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar

Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma

constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute

presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus

eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute

λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por

excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a

uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus

natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada

ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo

fogo

No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a

primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde

jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma

indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae

Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito

Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se

sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou

seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera

Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do

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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se

pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno

Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender

isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto

a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois

de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como

conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela

similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu

lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui

que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de

espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia

Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um

existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo

incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute

a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo

consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do

homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de

todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela

constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a

nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe

para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por

isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo

e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de

se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso

em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi

dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como

daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos

grandes motores do niilismo ocidental

- 16 -

3

Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos

primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma

separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer

latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente

Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora

Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma

falta Temos assim que o existente eacute

1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a

totalidade unida o Uno)

2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada

3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia

Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os

segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de

si mesmo e da sua condiccedilatildeo

Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que

cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis

O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas

tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro

de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio

Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que

tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente

para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos

Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre

o Nada

- 17 -

4

No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o

Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que

para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que

nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou

a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12

Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da

totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a

totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de

que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as

objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o

Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14

Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade

a anguacutestia para o Nada15

Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira

abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no

entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual

a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como

dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a

sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se

encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem

senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque

eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos

11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56

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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os

entes o Todo

Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que

continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova

quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na

actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos

no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa

No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo

como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se

a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte

dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo

quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes

acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica

assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos

Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que

escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo

pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo

ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a

uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade

criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do

universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo

dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito

apenas o Uno possui o entendimento completo

Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao

domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o

universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-

-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um

a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas

eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)

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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu

ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a

Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos

satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado

como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e

vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo

temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de

panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim

ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute

tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de

aacutetomo22

Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos

de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias

astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que

esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o

nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas

partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos

assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo

da ciecircncia

Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se

esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente

tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute

consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo

agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23

18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente

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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

- 27 -

concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

- 28 -

dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

- 33 -

seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

- 34 -

ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

- 35 -

assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

- 39 -

a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 9: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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separados eacute porque para noacutes aquela pedra eacute aquela pedra e aquela aacutervore eacute aquela

aacutervore que haacute nada entre elas Este Nada este espaccedilo natildeo eacute como se imagina somente

o espaccedilo fiacutesico entre as coisas mas o vazio de Ser que permite a definiccedilatildeo de dois entes

Diremos assim numa primeira aproximaccedilatildeo que o Nada nasce dos entes que o ente

segrega Nada

Tanto nos impressiona e ocupa o Nada e no fundo natildeo eacute de todo evidente que

nos ocupe e impressione De facto porquecirc este desejo de uniatildeo tatildeo forte que ateacute nos faz

criar um conceito que associamos agrave ausecircncia absurda de tudo que nos faz questionar

sobre a nossa presenccedila e desejar por vezes que natildeo focircssemos ou pelo menos natildeo desta

maneira assim separados Como pocircde por exemplo Camus mostrar tatildeo bem o

absurdo a estranheza a irredutibilidade que nascem do nosso confronto com uma

simples pedra ou uma pacata paisagem7

Para avanccedilarmos na nossa investigaccedilatildeo apelaremos agora ao termo ldquoexistirrdquo

Como sabemos este deriva da palavra latina existere Soacute por si o significado desta

uacuteltima seria suficientemente interessante sair de Mas para relevar ainda mais a sua

acepccedilatildeo iremos agrave sua proacutepria raiz existere vem do mais literal exsistere ou seja ex +

sisterei o que agrave letra daraacute aparecer fora Isto quer dizer que o existente eacute aquele que

estaacute fora A pergunta que logo nos surge eacute fora de quecirc Porque se existir eacute estar eacute pocircr-

-se fora tem de haver um algo de que saiacutemos A tradiccedilatildeo quer que saiamos do Nada

para o Ser Ora como vimos tudo aponta para que o Nada se encontre aqui na

existecircncia que o Nada nasccedila precisamente do contacto entre os entes que o Nada

apareccedila com o ente Analisando o termo Ser depressa resolveremos esta aparente

confusatildeo Ser provem como eacute normalmente aceite de sedere ou seja estar Como jaacute

observaacutemos existir eacute ex + sistere estar fora Assim Ser eacute estar e existir eacute estar fora Se

eacute como vimos o ente que segrega Nada a verdade eacute que existir se confunde com o

abandono do Ser

Aprofundando ainda mais a questatildeo abordaremos agora a anguacutestia Mas antes

de o fazermos teremos de a definir convenientemente envolta que estaacute numa multitude

de associaccedilotildees erroacuteneas Poucos concordaratildeo que a anguacutestia seja rara porque no fundo

todos jaacute se sentiram angustiados Mas daacute-se aqui um erro comum na confusatildeo entre 7 CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 p31

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anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja

estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A

anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado

nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica

porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por

exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado

passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se

desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do

objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do

Nada

A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo

angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o

mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si

mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro

decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que

segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que

vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo

E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre

aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido

fundamentalmente segregativo

A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos

satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma

realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada

como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda

a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de

preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de

provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e

como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes

8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss

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2

Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia

heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute

portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii

Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular

1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada

2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas

atraveacutes dos entes

3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo

Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da

separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua

separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas

fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para

uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o

Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o

Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da

reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute

neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem

sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e

esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir

inquietaccedilatildeo

A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute

essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo

possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo

semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo

assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo

mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma

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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente

iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso

de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem

aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo

poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse

esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana

poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente

do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o

desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em

uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9

Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a

Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis

aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia

como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os

entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer

animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes

partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute

permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da

mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas

como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na

visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a

eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute

tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela

sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo

jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o

mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva

que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer

9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188

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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute

lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a

uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas

exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a

vontade do Uno

Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num

dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades

eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no

ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se

percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade

Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e

obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar

Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma

constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute

presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus

eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute

λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por

excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a

uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus

natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada

ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo

fogo

No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a

primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde

jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma

indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae

Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito

Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se

sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou

seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera

Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do

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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se

pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno

Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender

isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto

a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois

de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como

conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela

similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu

lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui

que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de

espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia

Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um

existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo

incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute

a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo

consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do

homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de

todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela

constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a

nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe

para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por

isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo

e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de

se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso

em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi

dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como

daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos

grandes motores do niilismo ocidental

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3

Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos

primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma

separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer

latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente

Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora

Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma

falta Temos assim que o existente eacute

1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a

totalidade unida o Uno)

2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada

3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia

Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os

segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de

si mesmo e da sua condiccedilatildeo

Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que

cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis

O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas

tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro

de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio

Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que

tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente

para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos

Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre

o Nada

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4

No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o

Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que

para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que

nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou

a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12

Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da

totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a

totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de

que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as

objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o

Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14

Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade

a anguacutestia para o Nada15

Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira

abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no

entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual

a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como

dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a

sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se

encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem

senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque

eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos

11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56

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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os

entes o Todo

Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que

continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova

quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na

actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos

no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa

No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo

como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se

a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte

dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo

quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes

acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica

assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos

Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que

escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo

pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo

ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a

uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade

criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do

universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo

dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito

apenas o Uno possui o entendimento completo

Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao

domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o

universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-

-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um

a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas

eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)

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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu

ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a

Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos

satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado

como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e

vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo

temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de

panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim

ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute

tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de

aacutetomo22

Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos

de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias

astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que

esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o

nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas

partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos

assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo

da ciecircncia

Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se

esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente

tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute

consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo

agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23

18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente

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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

- 26 -

consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

- 27 -

concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

- 31 -

descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

- 33 -

seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

- 34 -

ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

- 35 -

assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

- 39 -

a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

- 40 -

Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 10: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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anguacutestia e ansiedade Como sabemos esta uacuteltima tem sempre um objecto ou seja

estamos ansiosos por alguma coisa A anguacutestia por seu lado carece de objecto A

anguacutestia real natildeo estaacute relacionada com o que quer que seja de tangiacutevel nem passado

nem presente nem futuro (de um certo existente que a sinta) Natildeo eacute tambeacutem patoloacutegica

porque nesse caso estaria sempre ligada a um trauma ou a um qualquer perigo por

exemplo a castraccedilatildeo8 esta uacuteltima sendo algo a que o sentimento estaria ligado

passando por isso a ser ansiedade A confusatildeo daacute-se porque muitas vezes se

desconhece a razatildeo porque estamos ansiosos Associamos assim essa ignoracircncia do

objecto agrave sua ausecircncia Reservamos a partir daqui o termo anguacutestia para o sentimento do

Nada

A anguacutestia eacute sensaccedilatildeo de falta de constriccedilatildeo de indigecircncia mesmo O termo

angustiaeii aponta sempre para uma pequeneza um estreitamento uma falta Eacute sentir o

mais profundo do que somos gritar uma fome impossiacutevel como se fosse apetite de si

mesmo E soacute eacute anseio no sentido de desejar como desejaria o corpo um membro

decepado A anguacutestia eacute antes de mais incompletude eacute ter consciecircncia de que

segregamos o Nada que nos separa do resto do mundo O ente angustiado eacute aquele que

vislumbra na sua segregaccedilatildeo de Nada os dois sentidos da palavra secreccedilatildeo e separaccedilatildeo

E depois de se ter sentido a verdadeira anguacutestia deixa de haver confusatildeo possiacutevel entre

aquilo que pode ser uma ansiedade velada e a anguacutestia revelada O ente eacute neste sentido

fundamentalmente segregativo

A anguacutestia estaacute para o Nada como o desejo estaacute para o instinto sexual Ambos

satildeo fenoacutemenos de uma raiz arraigada e imemorial apariccedilotildees travestidas de uma

realidade mais profunda de um peacutelago numenal E podemos agora dizer que o Nada

como o entendemos ndash o espaccedilo vazio de ser entre os entes ndash eacute o proacuteprio motor de toda

a existecircncia pois por exemplo o instinto sexual nada mais eacute do que a tentativa de

preenchimento desse Nada basilar E se o homem eacute homo faber eacute numa tentativa de

provimento desse Nada num esforccedilo de anulaccedilatildeo do Nada pela criaccedilatildeo sistemaacutetica e

como veremos no caso Ocidental neuroacutetica de entes

8 FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland Doron Quadrige PUF 1993 pp 62 e ss

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2

Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia

heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute

portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii

Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular

1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada

2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas

atraveacutes dos entes

3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo

Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da

separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua

separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas

fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para

uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o

Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o

Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da

reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute

neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem

sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e

esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir

inquietaccedilatildeo

A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute

essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo

possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo

semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo

assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo

mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma

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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente

iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso

de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem

aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo

poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse

esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana

poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente

do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o

desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em

uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9

Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a

Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis

aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia

como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os

entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer

animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes

partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute

permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da

mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas

como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na

visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a

eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute

tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela

sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo

jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o

mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva

que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer

9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188

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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute

lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a

uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas

exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a

vontade do Uno

Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num

dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades

eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no

ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se

percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade

Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e

obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar

Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma

constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute

presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus

eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute

λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por

excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a

uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus

natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada

ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo

fogo

No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a

primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde

jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma

indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae

Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito

Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se

sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou

seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera

Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do

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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se

pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno

Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender

isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto

a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois

de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como

conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela

similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu

lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui

que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de

espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia

Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um

existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo

incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute

a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo

consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do

homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de

todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela

constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a

nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe

para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por

isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo

e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de

se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso

em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi

dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como

daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos

grandes motores do niilismo ocidental

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3

Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos

primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma

separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer

latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente

Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora

Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma

falta Temos assim que o existente eacute

1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a

totalidade unida o Uno)

2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada

3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia

Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os

segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de

si mesmo e da sua condiccedilatildeo

Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que

cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis

O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas

tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro

de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio

Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que

tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente

para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos

Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre

o Nada

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4

No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o

Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que

para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que

nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou

a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12

Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da

totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a

totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de

que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as

objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o

Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14

Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade

a anguacutestia para o Nada15

Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira

abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no

entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual

a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como

dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a

sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se

encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem

senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque

eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos

11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56

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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os

entes o Todo

Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que

continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova

quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na

actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos

no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa

No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo

como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se

a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte

dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo

quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes

acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica

assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos

Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que

escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo

pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo

ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a

uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade

criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do

universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo

dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito

apenas o Uno possui o entendimento completo

Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao

domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o

universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-

-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um

a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas

eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)

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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu

ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a

Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos

satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado

como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e

vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo

temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de

panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim

ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute

tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de

aacutetomo22

Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos

de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias

astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que

esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o

nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas

partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos

assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo

da ciecircncia

Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se

esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente

tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute

consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo

agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23

18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente

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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

- 26 -

consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

- 27 -

concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

- 31 -

descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

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III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 11: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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2

Numa primeira fase admitimos de bom grado que a relaccedilatildeo entre a filosofia

heracliteana e o tema do Nada natildeo seja evidente O nosso elementar trabalho seraacute

portanto o de evidenciar essa relaccedilatildeo tornaacute-la visiacutevel e pertinenteiii

Para o nosso projecto actual dedicar-nos-emos a alguns pontos em particular

1- Haacute uma unidade perdida que pode e seraacute recuperada

2- A recuperaccedilatildeo dessa unidade passa por uma recolecccedilatildeo de perspectivas

atraveacutes dos entes

3- O λoacuteγος presente um tudo eacute o motor dessa re-uniatildeo

Onde estaacute aqui o Nada que nos ocupa O Nada eacute aquilo que aparece aquando da

separaccedilatildeo do λoacuteγος Eacute a consciecircncia separada a consciecircncia consciente da sua

separaccedilatildeo Usando a terminologia heracliteana o Nada eacute a distacircncia que separa duas

fagulhas de uma chama maior O existente sendo aquele que estaacute fora tende sempre para

uma reentrada uma re-uniatildeo O Ser eacute natildeo somente a totalidade o Tudo (isso seria o

Universo neste momento) mas a totalidade unida ligada una parada fora do tempo o

Todo O tempo eacute o espaccedilo que separa o estilhaccedilamento da essecircncia em existentes da

reuniatildeo dos existentes numa essecircncia Saber se o estilhaccedilamento se repete ou natildeo eacute

neste momento ainda acessoacuterio O tempo separa dois estados Se os existentes tivessem

sido postos tais quais satildeo na existecircncia natildeo haveria sequer tempo Tempo eacute mutaccedilatildeo e

esta implica um tender para algo diferente O Ser eacute portanto quietude e o existir

inquietaccedilatildeo

A unidade que se perdeu implica num plano mais vasto que cada existente eacute

essencialmente o mesmo que outro e apenas acidentalmente diferente Cada ente natildeo

possui uma essecircncia particular que o distingue dos restantes mas uma essecircncia em tudo

semelhante agrave dos outros que difere acidentalmente na sua manifestaccedilatildeo Os entes satildeo

assim modalidades diversas de uma mesma essecircncia A diferenccedila daacute-se pelo quinhatildeo

mais ou menos avultado de λoacuteγος que recebe Entre eu e os meus gatos haacute assim uma

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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente

iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso

de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem

aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo

poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse

esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana

poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente

do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o

desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em

uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9

Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a

Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis

aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia

como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os

entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer

animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes

partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute

permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da

mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas

como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na

visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a

eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute

tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela

sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo

jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o

mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva

que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer

9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188

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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute

lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a

uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas

exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a

vontade do Uno

Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num

dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades

eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no

ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se

percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade

Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e

obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar

Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma

constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute

presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus

eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute

λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por

excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a

uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus

natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada

ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo

fogo

No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a

primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde

jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma

indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae

Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito

Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se

sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou

seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera

Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do

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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se

pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno

Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender

isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto

a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois

de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como

conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela

similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu

lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui

que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de

espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia

Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um

existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo

incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute

a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo

consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do

homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de

todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela

constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a

nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe

para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por

isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo

e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de

se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso

em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi

dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como

daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos

grandes motores do niilismo ocidental

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3

Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos

primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma

separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer

latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente

Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora

Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma

falta Temos assim que o existente eacute

1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a

totalidade unida o Uno)

2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada

3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia

Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os

segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de

si mesmo e da sua condiccedilatildeo

Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que

cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis

O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas

tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro

de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio

Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que

tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente

para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos

Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre

o Nada

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4

No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o

Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que

para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que

nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou

a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12

Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da

totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a

totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de

que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as

objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o

Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14

Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade

a anguacutestia para o Nada15

Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira

abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no

entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual

a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como

dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a

sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se

encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem

senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque

eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos

11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56

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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os

entes o Todo

Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que

continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova

quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na

actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos

no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa

No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo

como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se

a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte

dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo

quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes

acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica

assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos

Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que

escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo

pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo

ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a

uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade

criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do

universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo

dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito

apenas o Uno possui o entendimento completo

Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao

domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o

universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-

-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um

a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas

eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)

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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu

ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a

Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos

satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado

como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e

vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo

temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de

panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim

ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute

tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de

aacutetomo22

Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos

de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias

astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que

esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o

nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas

partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos

assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo

da ciecircncia

Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se

esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente

tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute

consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo

agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23

18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente

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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

- 39 -

a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

- 40 -

Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

- 41 -

Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

- 42 -

Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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BIBLIOGRAFIA

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- SPINOZA Baruch LrsquoEacutetique Trad Roland Caillois Eacuteditions Gallimard 1954

- SPINOZA Baruch Traiteacute Politique Lettres Trad Charles Appuhn GF Flammarion 1996 Paris

- LAO TSE Tao Te King Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo - NIETZSCHE Friedrich Oeuvres I e II Bouquins Robert Laffont Paris

1993 - NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Volume I O Niilismo

Europeu Trad Isabel Henninger Ferreira Porto 2004 - JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 - LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand

Schefer Editions Allia Paris 1998 - PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 - SCHOPENHAUER Arthur Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora

Lisboa 2002 - PESSOA Fernando O Livro do Desassossego AssiacuterioampAlvim Lisboa 1998 - SILVA Agostinho da Textos e Ensaios Filosoacuteficos I e II Acircncora Editora

Lisboa 1999 - HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad

Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise

- Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997

- BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 - Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida

Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland

Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos

Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994

- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition

1999 Paris

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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika

Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 12: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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diferenccedila acidental natildeo essencial Somos acidentalmente diferentes mas essencialmente

iguais Os gatos entre eles diferem tambeacutem de forma acidental dando-se somente o caso

de os acidentes entre eles diferirem menos do que dos meus Usando a linguagem

aristoteacutelica diremos que o indiviacuteduo eacute acidente da sua espeacutecie (eu por exemplo

poderia existir ou natildeo enquanto indiviacuteduo da espeacutecie humana sem que isso afectasse

esta uacuteltima) que a espeacutecie eacute acidente do seu geacutenero (com efeito a espeacutecie humana

poderia desaparecer sem por isso desaparecer o geacutenero animal) que o geacutenero eacute acidente

do Ser (o desaparecimento do geacutenero animal natildeo afectaria o Ser ou mesmo o

desaparecimento de todos eles o Ser manifestar-se-ia apenas de modo diferente) Em

uacuteltima instacircncia Tudo eacute manifestaccedilatildeo do Ser9

Aquilo a que alguns autores chamam ldquoficccedilotildees biograacuteficasrdquo10 no que respeita a

Heraclito o vegeterianismo e o facto de preferir brincar com crianccedilas do que fazer leis

aparecem-nos a noacutes como manifestaccedilotildees evidentes e congruentes com a sua filosofia

como a apresentaacutemos na nota iii O vegeterianismo eacute flagrante com efeito se todos os

entes possuem a mesma essecircncia diferindo apenas acidentalmente o acto de comer

animais eacute basicamente um canibalismo Poderaacute responder-se que se todos os entes

partilham da mesma essecircncia ateacute o vegeterianismo eacute canibal no entanto achamos que eacute

permitido pensar agrave luz desta filosofia que embora o vegetal e o animal partilhem da

mesma base loacutegica o vegetal natildeo se apresenta ainda como colector de perspectivas mas

como uma perspectiva a ser colectada Ao comermos um animal estamos assim na

visatildeo heracliteana a diminuir a concretizaccedilatildeo da unidade a mutilar o Uno estamos a

eliminar uma perspectiva a ser logofaacutegicos Entre a Lei e a filosofia heracliteana haacute

tambeacutem uma oposiccedilatildeo gritante a Lei eacute uma perspectiva petrificada que se opotildee pela

sua proacutepria natureza agrave emergecircncia da diferenccedila Contrariamente agraves crianccedilas que pelo

jogo criam incessantemente novas perspectivas reinterpretam de forma constante o

mundo Poder-se-aacute dizer que o pensamento de Heraclito eacute tambeacutem ele uma perspectiva

que se fixou uma Lei e com isso eacute difiacutecil natildeo concordar mas natildeo devemos esquecer

9 Fragmento 10 de Heraclito laquohellipκαὶ ἐκ πάντων ἓν καὶ ἐξ ἑνὸς πάντα raquo laquo De todas as coisas Um e de Um todas as coisasrdquo 10 KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994 p188

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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute

lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a

uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas

exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a

vontade do Uno

Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num

dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades

eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no

ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se

percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade

Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e

obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar

Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma

constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute

presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus

eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute

λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por

excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a

uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus

natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada

ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo

fogo

No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a

primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde

jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma

indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae

Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito

Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se

sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou

seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera

Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do

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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se

pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno

Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender

isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto

a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois

de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como

conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela

similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu

lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui

que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de

espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia

Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um

existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo

incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute

a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo

consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do

homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de

todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela

constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a

nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe

para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por

isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo

e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de

se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso

em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi

dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como

daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos

grandes motores do niilismo ocidental

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3

Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos

primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma

separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer

latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente

Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora

Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma

falta Temos assim que o existente eacute

1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a

totalidade unida o Uno)

2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada

3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia

Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os

segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de

si mesmo e da sua condiccedilatildeo

Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que

cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis

O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas

tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro

de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio

Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que

tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente

para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos

Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre

o Nada

- 17 -

4

No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o

Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que

para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que

nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou

a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12

Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da

totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a

totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de

que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as

objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o

Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14

Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade

a anguacutestia para o Nada15

Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira

abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no

entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual

a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como

dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a

sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se

encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem

senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque

eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos

11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56

- 18 -

os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os

entes o Todo

Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que

continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova

quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na

actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos

no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa

No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo

como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se

a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte

dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo

quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes

acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica

assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos

Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que

escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo

pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo

ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a

uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade

criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do

universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo

dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito

apenas o Uno possui o entendimento completo

Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao

domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o

universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-

-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um

a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas

eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)

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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu

ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a

Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos

satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado

como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e

vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo

temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de

panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim

ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute

tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de

aacutetomo22

Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos

de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias

astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que

esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o

nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas

partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos

assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo

da ciecircncia

Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se

esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente

tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute

consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo

agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23

18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente

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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

- 31 -

descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

- 39 -

a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

- 40 -

Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

- 41 -

Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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BIBLIOGRAFIA

- PLATON Oeuvres Complegravetes Tome IV 2e Partie Le Banquet Trad Paul Vicaire Les Belles Lettres Paris 1992

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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 13: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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que Heraclito no fragmento 50 nos diz que natildeo eacute ele que fala mas o λoacuteγος e no 33 que eacute

lei seguir a vontade do Uno portanto a uacutenica Lei que eacute a proacutepria lei da totalidade a

uacutenica lei natural eacute a da natildeo imposiccedilatildeo de leis a da natildeo fixaccedilatildeo de perspectivas

exceptuando a uacutenica que no fundo deixa de ser perspectiva por englobar a totalidade a

vontade do Uno

Antes de avanccedilarmos diremos tambeacutem que um ente eacute uma reuniatildeo de forccedilas num

dado ponto criando aparentemente uma unidade Cada uma dessas pequenas unidades

eacute a parte visiacutevel de um esforccedilo maior para a unidade total E eacute esse resiacuteduo que gera no

ente percepcionante a ilusatildeo das unidades que o rodeiam e como ente que se

percepciona a si mesmo a ilusatildeo da sua proacutepria unidade

Analisaremos agora o fragmento 65iv que nos parece conter na forma lapidar e

obscura a que nos habituou Heraclito a suma absconsa do que acabaacutemos de explanar

Antes de mais tentaremos mostrar porque haacute nos fragmentos heracliteanos uma

constante associaccedilatildeo do fogo do λoacuteγος e de Deus Como jaacute vimos o λoacuteγος estaacute

presente em todas as coisas em maior ou menor quantidade e vimos tambeacutem que Deus

eacute precisamente a uniatildeo de todos os λoacuteγοι de todas as coisas todos os entes num soacute

λoacuteγος Todas as coisas unidas fundidas originam o Todo Deus Aquilo que por

excelecircncia funde eacute o fogo e eacute precisamente por isso que Heraclito busca a con-fusatildeo a

uniatildeo por contacto dos seus λoacuteγοι de todos os entes no Uno no Ser em Deus Deus

natildeo sendo assim uma entidade separada do mundo mas o proacuteprio mundo unido Se cada

ente separado eacute uma fagulha de um fogo maior a sua uniatildeo eacute exactamente esse sumo

fogo

No fragmento 65 eacute-nos dito portanto que o fogo eacute indigecircncia e riqueza que a

primeira eacute ordenaccedilatildeo e a segunda abrasamento acrescenta Hipoacutelito Notaremos desde

jaacute que associaacutemos a anguacutestia justamente a uma pobreza um acanhamento uma

indigecircncia A palavra χρησmicroοσύνην eacute portanto neste sentido sinoacutenima de angustiae

Podemos dizer entatildeo que se a indigecircncia eacute anguacutestia a riqueza seraacute plenitude de espiacuterito

Estaacute assim associada a anguacutestia a uma pobreza de λoacuteγος ou melhor a um λoacuteγος que se

sente pobre A anguacutestia diminuir-se-aacute seguindo esta linha com o aumento de λoacuteγος ou

seja pela uniatildeo crescente de λoacuteγοι ateacute ao total abrasamento ateacute agrave uniatildeo global que gera

Deus o Todo a plenitude de espiacuterito Isto numa cosmovisatildeo ou seja no movimento do

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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se

pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno

Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender

isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto

a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois

de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como

conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela

similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu

lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui

que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de

espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia

Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um

existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo

incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute

a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo

consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do

homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de

todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela

constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a

nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe

para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por

isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo

e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de

se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso

em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi

dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como

daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos

grandes motores do niilismo ocidental

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3

Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos

primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma

separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer

latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente

Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora

Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma

falta Temos assim que o existente eacute

1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a

totalidade unida o Uno)

2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada

3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia

Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os

segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de

si mesmo e da sua condiccedilatildeo

Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que

cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis

O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas

tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro

de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio

Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que

tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente

para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos

Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre

o Nada

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4

No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o

Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que

para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que

nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou

a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12

Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da

totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a

totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de

que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as

objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o

Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14

Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade

a anguacutestia para o Nada15

Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira

abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no

entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual

a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como

dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a

sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se

encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem

senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque

eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos

11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56

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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os

entes o Todo

Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que

continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova

quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na

actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos

no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa

No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo

como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se

a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte

dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo

quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes

acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica

assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos

Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que

escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo

pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo

ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a

uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade

criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do

universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo

dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito

apenas o Uno possui o entendimento completo

Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao

domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o

universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-

-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um

a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas

eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)

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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu

ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a

Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos

satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado

como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e

vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo

temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de

panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim

ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute

tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de

aacutetomo22

Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos

de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias

astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que

esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o

nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas

partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos

assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo

da ciecircncia

Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se

esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente

tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute

consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo

agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23

18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente

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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

- 27 -

concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

- 31 -

descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

- 33 -

seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

- 40 -

Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

- 41 -

Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

- 42 -

Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

- 53 -

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Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994

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1999 Paris

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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika

Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 14: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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universo para a sua proacutepria uniatildeo No ente que conhece a diminuiccedilatildeo da anguacutestia faz-se

pela compreensatildeo desse movimento pelo entendimento da vontade do Uno

Interessante de notar eacute o facto de a indigecircncia ser ordenaccedilatildeo Como compreender

isto A ordenaccedilatildeo eacute a disposiccedilatildeo ordenada de objectos entes 1 + 1 + 1 etc Eacute portanto

a pobreza de λoacuteγος que gera a visatildeo do mundo em entidades separadas que trata depois

de ordenar Essa escassez eacute a que cria a ilusatildeo de um mundo ordenado ou seja como

conjunto de objectos dissociaacuteveis em essecircncias dissemelhantes agrupaacuteveis pela

similitude dos seus acidentes (que satildeo vistos como essecircncias) O abrasamento por seu

lado eacute como vimos a uniatildeo de todas as coisas numa essecircncia una Temos portanto aqui

que a pura loacutegica aquela que ordena que divide e subdivide o mundo eacute pobreza de

espiacuterito (de λoacuteγος) geradora de anguacutestia

Existe aqui uma singular falha do λoacuteγος que eacute a proacutepria perspectiva de um

existente Ou seja eacute dado a cada ente uma porccedilatildeo de λoacuteγος que eacute por definiccedilatildeo

incompleto Essa incompletude gera uma perspectiva diferente (nunca errada porque eacute

a sua possiacutevel somente diferente) do mundo Chega ao ponto em que esse quinhatildeo

consegue ter jaacute de si proacuteprio a sua proacutepria perspectiva falamos evidentemente do

homem Neste caso em noacutes o λoacuteγος atingiu uma certa maturidade e acha-se detentor de

todos os dados e de todas as razotildees deixando de ouvir o Uno Por isso Heraclito apela

constantemente agrave vontade do Uno ao λoacuteγος agrave lei divina etc para nos lembrar que a

nossa perspectiva natildeo passa disso mesmo que haacute uma lei maior a seguir Por isso existe

para os despertos um mundo uno e comum e natildeo para os que dormem (frag 89) por

isso as opiniotildees humanas satildeo como brincadeiras de crianccedilas (frag 70) por isso Hesiacuteodo

e Homero nada sabiam O uacutenico erro eacute assim o de julgar possuir todas as respostas de

se crer o centro do mundo eacute no fundo o erro humano querer reduzir todo o diverso

em si mesmo sem a noccedilatildeo de que ele proacuteprio eacute parte desse diverso Este erro foi

dramaticamente agravado pelas religiotildees monoteiacutestas que apresentam o mundo como

daacutediva de uma entidade criadora ao homem Como veremos mais tarde este eacute um dos

grandes motores do niilismo ocidental

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3

Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos

primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma

separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer

latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente

Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora

Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma

falta Temos assim que o existente eacute

1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a

totalidade unida o Uno)

2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada

3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia

Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os

segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de

si mesmo e da sua condiccedilatildeo

Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que

cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis

O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas

tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro

de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio

Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que

tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente

para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos

Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre

o Nada

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4

No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o

Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que

para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que

nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou

a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12

Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da

totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a

totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de

que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as

objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o

Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14

Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade

a anguacutestia para o Nada15

Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira

abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no

entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual

a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como

dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a

sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se

encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem

senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque

eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos

11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56

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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os

entes o Todo

Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que

continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova

quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na

actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos

no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa

No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo

como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se

a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte

dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo

quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes

acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica

assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos

Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que

escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo

pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo

ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a

uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade

criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do

universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo

dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito

apenas o Uno possui o entendimento completo

Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao

domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o

universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-

-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um

a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas

eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)

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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu

ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a

Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos

satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado

como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e

vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo

temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de

panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim

ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute

tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de

aacutetomo22

Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos

de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias

astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que

esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o

nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas

partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos

assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo

da ciecircncia

Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se

esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente

tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute

consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo

agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23

18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente

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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

- 22 -

Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

- 23 -

amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

- 24 -

no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

- 25 -

absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

- 26 -

consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

- 27 -

concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

- 28 -

dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

- 31 -

descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

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III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 15: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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3

Para efeitos de resumo observemos os passos dados ateacute aqui analisaacutemos

primeiro a palavra nihilum e identificaacutemos o seu significado como sendo o de uma

separaccedilatildeo Vimos depois que a nossa palavra Nada estava associada ao verbo nascer

latino que o nosso Nada apontava para a coisa nascida (rem natam) para o existente

Examinando existere e Ser desvelaacutemos que Ser era estar e existir estar fora

Investigando a anguacutestia descobrimos que esta designava sempre uma pobreza uma

falta Temos assim que o existente eacute

1- Aquele que estaacute separado do Ser (sendo que reservamos Ser para designar a

totalidade unida o Uno)

2- Aquele que identifica essa separaccedilatildeo com o Nada

3- Aquele em quem esse Nada gera a anguacutestia

Como eacute oacutebvio apenas o primeiro ponto diz respeito aos entes em geral sendo os

segundo e terceiro tanto quanto sabemos exclusivos do homem enquanto consciente de

si mesmo e da sua condiccedilatildeo

Quando nos debruccedilaacutemos sobre a filosofia heracliteana vimos precisamente que

cada ente recebe o seu lote de λoacuteγος gerando a partir daiacute as suas perspectivas possiacuteveis

O homem tem em si o dom natildeo soacute de colectar todos os entes como perspectivas mas

tambeacutem de se perspectivar a si proacuteprio Daqui nasceu como pudemos observar o erro

de se considerar o centro do mundo erro vigorosamente combatido pelo proacuteprio

Heraclito Mas o Homem eacute tambeacutem aquele que realmente ex-siste ou seja aquele que

tem consciecircncia de estar separado A partir deste ponto usaremos a palavra existente

para designar exclusivamente o Homem e a palavra ente para todos os outros objectos

Feita esta pequena siacutentese dedicar-nos-emos ao pensamento de Heidegger sobre

o Nada

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4

No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o

Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que

para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que

nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou

a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12

Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da

totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a

totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de

que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as

objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o

Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14

Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade

a anguacutestia para o Nada15

Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira

abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no

entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual

a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como

dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a

sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se

encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem

senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque

eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos

11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56

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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os

entes o Todo

Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que

continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova

quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na

actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos

no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa

No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo

como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se

a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte

dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo

quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes

acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica

assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos

Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que

escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo

pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo

ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a

uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade

criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do

universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo

dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito

apenas o Uno possui o entendimento completo

Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao

domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o

universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-

-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um

a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas

eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)

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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu

ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a

Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos

satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado

como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e

vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo

temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de

panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim

ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute

tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de

aacutetomo22

Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos

de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias

astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que

esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o

nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas

partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos

assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo

da ciecircncia

Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se

esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente

tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute

consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo

agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23

18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente

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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

- 23 -

amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

- 24 -

no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

- 26 -

consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

- 27 -

concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

- 28 -

dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

- 31 -

descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

- 33 -

seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

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III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 16: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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4

No sentido de evitar os percalccedilos da loacutegica Heidegger afirma o seguinte o

Nada eacute originariamente anterior ao ldquoNatildeordquo e agrave negaccedilatildeo11 Para explicar tal diz-nos que

para que o Nada possa ser questionado seja conteuacutedo de uma questatildeo eacute necessaacuterio que

nos seja jaacute dado pois o homem soacute investiga usualmente aquilo sobre o qual jaacute antecipou

a realidade assim diz-nos de qualquer forma que seja conhecemos o Nada12

Quando trata de definir o Nada faacute-lo assim O Nada eacute a negaccedilatildeo radical da

totalidade do existente13 Eacute preciso continua Heidegger que primeiro nos seja dada a

totalidade do existente para que depois se faccedila a sua negaccedilatildeo mas levanta a pergunta de

que como pode tal totalidade nos ser dada a noacutes seres finitos Pondo de lado as

objecccedilotildees do entendimento acaba por dizer que a legitimidade da investigaccedilatildeo sobre o

Nada soacute poderaacute ser estabelecida atraveacutes de uma experiecircncia fundamental do Nada14

Remeteraacute essa experiecircncia fundamental para dois sentimentos o teacutedio para a totalidade

a anguacutestia para o Nada15

Como vimos a nossa proacutepria investigaccedilatildeo leva-nos a concordar numa primeira

abordagem com a anterioridade do Nada em relaccedilatildeo agrave negaccedilatildeo Natildeo concordamos no

entanto com a definiccedilatildeo do Nada De facto se o definirmos como faz Heidegger qual

a negaccedilatildeo da totalidade do existente estamos na realidade a negar o Tudo como

dissemos logo de iniacutecio Notaacutemos jaacute que o existente era aquele que se encontrava fora a

sua totalidade seria o conjunto diferenciado de tudo o que existe Devido a isto se

encontrou Heidegger na impossibilidade de explicar a noccedilatildeo de totalidade no Homem

senatildeo apelando ao teacutedio numa passagem que nos pareceu no miacutenimo obscura16 Porque

eacute oacutebvio que natildeo conseguimos pensar a totalidade do existente o Tudo cada um e todos

11 laquo helliple Neacuteant est originairement anteacuterieur au laquo Non raquo et agrave la neacutegation raquo HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise p 54 12 IDEM Op Cit Ibidem 13 laquo Le Neacuteant est la neacutegation radicale de la totaliteacute de lrsquoexistant raquo IDEM Op Cit p 55 14 IDEM Op Cit Ibidem 15 IDEM Op Cit pp 56-59 16 IDEM Op Cit p56

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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os

entes o Todo

Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que

continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova

quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na

actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos

no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa

No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo

como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se

a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte

dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo

quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes

acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica

assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos

Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que

escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo

pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo

ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a

uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade

criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do

universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo

dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito

apenas o Uno possui o entendimento completo

Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao

domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o

universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-

-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um

a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas

eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)

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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu

ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a

Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos

satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado

como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e

vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo

temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de

panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim

ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute

tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de

aacutetomo22

Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos

de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias

astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que

esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o

nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas

partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos

assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo

da ciecircncia

Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se

esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente

tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute

consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo

agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23

18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente

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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

- 25 -

absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

- 26 -

consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

- 27 -

concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

- 28 -

dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 17: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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os entes mas conseguimos por outro lado pensar a unidade o Uno a uniatildeo de todos os

entes o Todo

Chegou o momento de definir um pouco melhor esta tecla em que

continuamente batemos O Universo enquanto Uno (Todo) natildeo eacute uma perspectiva nova

quer seja nas religiotildees orientais quer nos preacute-socraacuteticos na miacutestica em geral ou e na

actualidade seraacute o que para noacutes faz mais sentido na proacutepria ciecircncia na fiacutesica Temos

no entanto de destrinccedilar as diferentes perspectivas para melhor fazer sobressair a nossa

No Hinduiacutesmo por exemplo o Universo eacute jaacute Todo apenas percepcionado como Tudo

como conjunto de entes separados pela ilusatildeo do veacuteu de Maya Rompido este atinge-se

a sageza a verdade e vemos que o Tudo eacute um Todo e que noacutes mesmos somos parte

dele a fusatildeo de Atman em Brahman O objectivo do misticismo eacute o ecircxtase a uniatildeo

quer seja em Deus que estaacute presente em tudo quer no Cosmos qualquer um destes

acabando por ser uma uniatildeo no Todo Estes dois casos o hinduiacutesmo e a miacutestica

assemelham-se no facto de a unidade estar jaacute presente mas absconsa aos olhos humanos

Mais do que uma uniatildeo pelo intelecto eacute uma uniatildeo pelo sentimento Na filosofia que

escolhemos a de Heraclito o Uno natildeo estaacute presente mas latente e a sua compreensatildeo

pode ser atingida pelo intelecto E a verdade eacute que apenas podemos compreendecirc-lo natildeo

ainda atingi-lo Pois esta uniatildeo eacute natildeo soacute a uniatildeo intelectual (do λόγος) mas tambeacutem a

uniatildeo fiacutesica (pelo fogo) A partir do momento em que se prescinde de uma entidade

criadora o λόγος a Razatildeo tem de ser uma possibilidade do real da mateacuteria do

universo e se este uacuteltimo estava a dado momento unido comprimido a concentraccedilatildeo

dessa possibilidade da Razatildeo era a sua concentraccedilatildeo maacutexima Por isso para Heraclito

apenas o Uno possui o entendimento completo

Tentando apresentar uma perspectiva mais concreta apelaremos agora ao

domiacutenio da fiacutesica Michel Casseacute diz-nos de forma bastante poeacutetica Nascido Uno o

universo morre muacuteltiplo com cada um de noacutes17 (Para renascer Uno novamente dir-nos-

-ia Heraclito) Logo de seguida nos diz que quando o nuacutemero de objectos tende para um

a linguagem tende para zero que a razatildeo impotildee silecircncio A razatildeo cientiacutefica talvez mas

eacute precisamente a funccedilatildeo da metafiacutesica falar quando a fiacutesica se cala A fiacutesica serve-nos 17 laquo Neacute Un lrsquounivers meurt multiple avec chacun de nous raquo CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 p 143 O autor eacute astrofiacutesico no Comissariado da Energia Atoacutemica (CEA)

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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu

ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a

Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos

satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado

como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e

vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo

temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de

panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim

ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute

tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de

aacutetomo22

Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos

de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias

astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que

esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o

nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas

partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos

assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo

da ciecircncia

Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se

esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente

tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute

consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo

agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23

18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente

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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

- 28 -

dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

- 31 -

descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

- 39 -

a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

- 40 -

Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

- 41 -

Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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BIBLIOGRAFIA

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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 18: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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aqui assim como marco de iniacutecio a fiacutesica natildeo limita a metafiacutesica vai afastando o seu

ponto de partida natildeo a circunscreve expande-a

Mais agrave frente18 diz-nos o autor que no grande calor inicial todos os seres fiacutesicos

satildeo intermutaacuteveis as partiacuteculas vestem-se de indiferenciaccedilatildeo Denomina este estado

como Uno-Vazio Uno porque conteacutem concentrado em si tudo o que seraacute separado e

vazio porque indiferenciado19 Este estado era perfeito espacialmente mas natildeo

temporalmente Esta nova cosmologia diz-nos ainda faz renascer uma forma de

panteiacutesmo do tipo materialista20 Quanto ao tempo eacute-nos dito O tempo estaacute assim

ligado ao mundo jaacute que exprime a mudanccedila geomeacutetrica global21 O universo eacute

tambeacutem perto do tempo zero de certo modo inferior em tamanho a um nuacutecleo de

aacutetomo22

Evitando pocircr Heraclito a dizer aquilo que natildeo disse nem poderia ter dito temos

de reconhecer que a sua intuiccedilatildeo filosoacutefica tem bastantes paralelos com as teorias

astrofiacutesicas hodiernas O nosso filoacutesofo fala de um Uno inicial de fogo e diz-nos que

esse fogo depois se separou em todos os existentes que se entrechocam no tempo o

nosso astrofiacutesico revela-nos um uno de calor em que as partiacuteculas estatildeo indiferenciadas

partiacuteculas essas que diferenciando-se viratildeo a expandir-se com o tempo Retiraacutemos

assim o Todo como iniacutecio do campo da pura especulaccedilatildeo e trouxemo-lo para o universo

da ciecircncia

Mas o interesse deste campo do saber para a nossa investigaccedilatildeo ainda natildeo se

esgotou Pelo contraacuterio muito nos interessaraacute aqui a questatildeo do vazio abundantemente

tratada na obra em questatildeo O vazio eacute vazio de alguma coisa como a consciecircncia eacute

consciecircncia de alguma coisa Natildeo haacute portanto vazio sem essa coisa O vazio eacute relativo

agrave coisa real E mais agrave frente Do vazio diremos (hellip) que eacute o estado minimal de ser23

18 IDEM Op Cit p 173 19 laquo Le vide fut plein de tout ce qui eacutetait agrave naicirctre raquo IDEM Op Cit p 167 20 laquo hellipla nouvelle cosmologie fait renaicirctre une forme de pantheacuteisme de type mateacuterialiste raquo IDEM Op Cit p 176 21 laquo Le temps est ainsi lieacute au monde puisqursquoil exprime le changement geacuteomeacutetrique global raquo laquo helliple temps srsquoeacuteteint avec la distance laquo au temps zeacutero raquo les distances sont nulles et la densiteacute infinie raquo IDEM Op Cit pp 31 e 159 respectivamente 22 IDEM Op Cit p 193 23 laquo Le vide est vide de quelque chose comme la conscience est conscience de quelque chose Il nrsquoy a donc pas de vide sans cette chose-lagrave Le vide est relatif agrave la chose reacuteelle raquo laquo Du vide on dira (hellip) qursquoil est lrsquoeacutetat minimal drsquoecirctre raquo IDEM Op Cit pp 103 e 168 respectivamente

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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

- 26 -

consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

- 27 -

concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

- 31 -

descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

- 33 -

seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

- 34 -

ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

- 39 -

a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

- 40 -

Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 19: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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Como desde logo dissemos o Nada que pensamos sentimos natildeo pode ser a ausecircncia de

Tudo Primeiro porque natildeo podemos realmente pensaacute-lo segundo porque nem tudo

estaacute ausente terceiro porque pensando o Todo este natildeo poderia deixar de ter sido se o

Universo pocircde ser um Todo este eacute por natureza eterno quarto porque vemos que as

coisas natildeo desaparecem para o Nada apenas se transformam desaparecem isto para

reaparecer aquilo

Dissemos acima que o existente era aquele que estava separado do Ser tinha

consciecircncia dessa separaccedilatildeo e a associava com o Nada A pergunta que se levanta eacute

como temos consciecircncia desse Ser e dessa separaccedilatildeo Jaacute dissemos que natildeo somos uma

unidade mas um resiacuteduo de unidade E dizemos resiacuteduo para evitar lembranccedila que

poderia ser associada a uma consciecircncia de a uma anamnese a uma Teoria da

Reminiscecircncia O que aqui propomos eacute uma Teoria da Remanecircncia Se esta eacute na sua

acepccedilatildeo cientiacutefica a induccedilatildeo residual numa substacircncia depois de o campo magnetizante

se ter anulado diremos noacutes que eacute a forccedila residual no existente depois do Uno se ter

anulado Isto seraacute dizer que a mateacuteria conserva em si resiacuteduos de estados anteriores

Sabemos por exemplo que segundo a Lei de Haeckel a ontogeacutenese repete a filogeacutenese

ou seja a formaccedilatildeo do indiviacuteduo segue os estaacutedios da evoluccedilatildeo da espeacutecie Isto quer

dizer que haacute resiacuteduos na mateacuteria de estados anteriores Numa perspectiva mais vasta

cosmogeneacutetica dizemos que a consciecircncia (fruto de uma configuraccedilatildeo da mateacuteria)

conserva resiacuteduos daquela unidade primeira E o Homem como uacutenica entidade

reflexiva ou seja que tem consciecircncia da sua consciecircncia encontra-se dotado de um

resiacuteduo de unidade que se vecirc se reconhece separado O Nada que emerge na

consciecircncia humana eacute assim a separaccedilatildeo de uma unidade maior O Nada propomos

agora eacute vazio de Ser Eacute aquilo que entre o meu e outro resiacuteduo nos separa O Homem eacute

assim fundamentalmente negativo eacute um ser em falta que nadifica e se nadifica por natildeo

ser o Uno que residualmente traz em si Se pensarmos no mal-estar existencial (tantas

vezes associado agrave anguacutestia) e nos lembrarmos que ser eacute estar (melhor exprimido no mal-

-ecirctre francecircs) vemos que existir eacute ser mal eacute natildeo ser completamente Ser incompleto eacute

ser finito e ser finito eacute estar em mudanccedila constante

O vazio eacute como nos diz Casseacute o estado minimal de ser e esse estado natildeo

permite ao homem estabelecer relaccedilatildeo com ele natildeo haacute aiacute ainda ser suficiente O que o

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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

- 31 -

descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

- 39 -

a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

- 40 -

Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

- 41 -

Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

- 42 -

Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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BIBLIOGRAFIA

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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 20: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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Homem faz e a proacutepria Natureza eacute preencher esse vazio diminuir esse Nada O que

estabelecemos entatildeo com a ajuda da astrofiacutesica foi um panteiacutesmo de tipo materialista

em que todos os entes banham no vazio isto eacute filosoficamente para noacutes num vazio de

Ser no Nada Panteiacutesmo materialista porque todos os entes a dado momento eram Um

porque natildeo colocamos a consciecircncia como originada num aleacutem supramundano mas a

consideramos como resultado de uma dada configuraccedilatildeo da mateacuteria e toda a mateacuteria

tem em si a capacidade se configurada adequadamente de originar consciecircncia o

λόγος estaacute presente em tudo24 Haacute na mateacuteria um resiacuteduo de unidade e na mateacuteria que se

pensa consciecircncia dessa unidade Natildeo existe unidade da consciecircncia existe consciecircncia

de unidade O Homem considera o vazio que o envolve como Nada porque traz em si

sendo uma dada configuraccedilatildeo de mateacuteria uma remanecircncia de Uno enquanto

consciecircncia reflexiva vecirc-se em comparaccedilatildeo com a remanecircncia como incompletude de

ser enquanto ser incompleto percepciona a separaccedilatildeo para com os outros entes como

Nada Eacute portanto o existente o Homem que nadifica

Mas regressemos agora a Heidegger Este diz-nos que na anguacutestia o Nada se

apresenta de uma soacute vez com o existente25 Jaacute o vimos o existente soacute eacute existente porque

banha no Nada E eacute no momento dado da anguacutestia diremos que o Nada se sobrepotildee ao

ente tornando-o existente Eacute quando a remanecircncia do ente eacute avassalada pelo Nada que

entatildeo emerge como existente aquele que ressaca de Ser Eacute o Nada ele mesmo que

nadifica26 Eacute o Nada que nadifica mas diremos noacutes depois do Homem nadificar o vazio

de Ser O Homem concordamos emerge radicalmente Outro27 em face do Nada Outro

porque separado na sua incompletude Ao aparecente eacute dado em conjunto a sua

remanecircncia e o Nada isto eacute o seu resiacuteduo de Uno e a ausecircncia deste como realidade O

24 Recordemos a este propoacutesito o fragmento 14 (DK) de Anaxaacutegoras O Intelecto que existe sempre existe seguramente agora onde todas as outras coisas existem ou seja na multiplicidade envolvente nas coisas que foram criadas por amaacutelgama e nas que satildeo discriminadas Ou ainda Espinosa na Carta XXXII No que diz respeito agrave alma humana creio tambeacutem que ela eacute uma parte da natureza creio efectivamente que haacute na natureza uma potecircncia infinita de pensar e que essa potecircncia contem objectivamente na sua infinidade a natureza inteira os pensamentos particulares que ela forma encadeando-se da mesma forma que as partes da natureza que eacute o objecto do qual ela eacute a ideia 25 laquo (hellip) dans lrsquoangoisse le Neacuteant se preacutesente drsquoun seul et mecircme coup avec lrsquoexistant raquo HEIDEGGER Martin Op Cit p 60 26 laquo Crsquoest le neacuteant lui-mecircme qui neacuteantit (das Nichts selbst nichtet) raquo IDEM Op Cit p 61 27 IDEM Op Cit p 62

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

- 26 -

consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

- 27 -

concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

- 28 -

dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

- 31 -

descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

- 33 -

seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

- 34 -

ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

- 35 -

assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 21: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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Homem eacute um ter-sido Uno que ldquonatildeordquo o eacute eacute um ter-sido que natildeo eacute meramente existe E

eacute desse ldquonatildeordquo que o Homem gera o Nada e eacute tambeacutem dele que constroacutei a liberdade28

Concordamos ainda quando eacute dito que o Nada eacute a condiccedilatildeo necessaacuteria para a

revelaccedilatildeo do existente que o Nada natildeo eacute meramente o conceito antiteacutetico do existente

eacute-o sim do Ser do Ser que foi que tentamos a cada instante reconstruir Eacute com efeito

no ser (incompleto dizemos noacutes) do existente que se daacute o nadificar do Nada E assim se

explica o facto tambeacutem notado por Heidegger de o Nada nos estar quase sempre

escondido por nos consagrarmos amiudadamente ao existente Eacute quando o Homem

diminui a sua incompletude pela ligaccedilatildeo aos outros entes que o Nada recua Esta

dedicaccedilatildeo do Homem ao que o rodeia este absorver permanente da realidade faz do

existente uma espeacutecie de buraco negro dos entes nos quais ele proacuteprio se inclui Somos

remanecircncias postas naquilo que eacute para noacutes a imanecircncia do Nada O Nada eacute imanente agrave

nossa posiccedilatildeo no mundo e eacute na ponte sobre o Nada entre essa remanecircncia e o Uno que

se daacute a transcendecircncia O Homem transcende-se a todo o instante na busca de uma

unidade maior Cada acto humano eacute uma transcendecircncia Este transcender assiacuteduo eacute o

proacuteprio devir humano O Homem deveacutem por uniatildeo E eacute este devir ou seja a forma

como o Homem se transcende nas suas relaccedilotildees com o mundo que constitui toda a

histoacuteria humana

O que eacute o niilismo (reactivo) O niilismo aparece quando se daacute o

desmoronamento da transcendecircncia a derrocada da ponte entre a remanecircncia e o Uno

Sendo essa uma ponte sobre o Nada caiacutemos nele E agimos como algueacutem que se afoga

e para se salvar se rodeasse de boacuteias sem no entanto se agarrar a elas e dissesse -

ldquoNatildeo percebo estou rodeado de boacuteias e continuo a afogar-merdquo Haacute um erro na forma de

ligaccedilatildeo do Homem ao mundo resumindo pois isto seraacute explanado mais tarde temos

amado o objecto e analisado o vivo A cultura ocidental vive na ilusatildeo de que Haver (a

existecircncia de mais entesobjectos) mais Ter (mais entesobjectos) eacute igual a Ser (a uniatildeo

entre mais entes) Ora Haver mais Ter nunca foi Ser eacute avareza no mesmo sentido em

que o avarento acumula riqueza sem lhe dar uso sendo de entre todos o mais pobre O

28 laquo Sans la manifestation originelle du Neacuteant il nrsquoy aurait ni ecirctre personnel ni liberteacute raquo IDEM Op Cit p 62

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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 22: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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amealhar entes natildeo constitui um aumento de Ser antes pelo contraacuterio gera um aumento

de separaccedilatildeo porque cada vez estamos separados de mais entes

Quando Heidegger nos diz que a manifestaccedilatildeo original do existente como tal eacute a

de que haja existente e natildeo Nada temos de contrapor dizendo que essa manifestaccedilatildeo eacute a

de que haja existente e natildeo Ser E eacute deste natildeo Ser que geramos o Nada e eacute deste Nada

que nadificamos Mas natildeo haacute precedecircncia alguma o Natildeo e o Nada interpenetram-se

qualquer um deles sem o outro eacute inviaacutevel natildeo posso dizer Natildeo sem o Nada nem posso

dizer Nada sem o Natildeo Isto eacute trago em mim enquanto existente o Natildeo e o mundo traz jaacute

consigo o Nada mas soacute o existente tem em si o Natildeo consciente que permite trazer agrave

consciecircncia o Nada ou seja o Nada estaacute por si mas soacute pode ser percepcionado como tal

por aquele que tem a capacidade do Natildeo

Aquilo que eacute dado agrave percepccedilatildeo eacute o vazio mas esse vazio significa Nada quando

contraposto agrave nossa remanecircncia Esta natildeo eacute uma unidade mas um resiacuteduo se a nossa

consciecircncia fosse verdadeiramente una fosse um Uno real e monoliacutetico eu natildeo teria

sequer a possibilidade de fazer o que estou neste momento fazendo ou seja interagir

comunicar com natildeo-eus Uma consciecircncia una soacute pode ser uma consciecircncia total de si

proacutepria quer isto dizer que natildeo conseguiria sair dela mesma ir aleacutem de si exactamente

como o Deus de Aristoacuteteles Qualquer coisa que caiacutesse nesse tipo de consciecircncia natildeo

seria processado mas sim engolido e indiferenciado A consciecircncia eacute um conjunto de

processos dados num fluxo29 O que podemos dizer eacute natildeo temos uma unidade da

consciecircncia somos uma unidade de consciecircncia assim como natildeo somos Ser mas uma

unidade de ser Clarificando natildeo haacute unidade da consciecircncia haacute consciecircncia de unidade

natildeo uma consciecircncia una mas uma consciecircncia que une Como soacute temos acesso agrave

consciecircncia pela consciecircncia e como o seu objecto eacute o da siacutentese estamos condenados a

aperceber a consciecircncia sintetizada una Assim como agrupamos as impressotildees que nos

satildeo dadas e as objectivamos numa nossa realidade numa unidade particular do mesmo

modo as impressotildees que percorrem e constituem a consciecircncia satildeo unidas numa unidade

particular a que chamamos consciecircncia Mas estas unidades satildeo sempre as de um

conjunto de impressotildees divisiacutevel ao infinito tanto no caso da realidade exterior como 29 ldquoThe mind is a kind of theatre where several perceptions successively make their appearence pass re-pass glide away and mingle in an infinite variety of postures and situations raquo HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press

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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

- 27 -

concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

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III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 23: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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no da realidade interior Afirmar um Eu seraacute o mesmo que tentar encontrar numa dada

paisagem o ponto onde essa paisagem converge e se une Dizemos que converge na

consciecircncia daquele que a apercebe (e eacute esse o ponto de fuga) mas o que se daacute assim eacute a

uniatildeo da paisagem na consciecircncia natildeo a paisagem una na consciecircncia Quando a

consciecircncia se debruccedila sobre ela proacutepria haacute tambeacutem uma uniatildeo da consciecircncia na

consciecircncia natildeo uma consciecircncia una dada a ela mesma Axel Cleeremans diz o

seguinte E no entanto quando analisamos o modo como o ceacuterebro trata a informaccedilatildeo

em vez de unidade encontramos somente um ajuntamento de circuitos neuronais que

convergem parahellip nada Natildeo existe assim nenhuma unidade no ceacuterebro nenhum lugar

particular onde se realizaria uma uacuteltima convergecircncia A glacircndula pineal de

Descartes embora exista natildeo cumpre nenhuma das funccedilotildees de integraccedilatildeo que ele lhe

havia atribuiacutedo30 O cogito ergo sum demonstra no melhor dos casos que eu existo

natildeo demonstra que existe um Eu (Este assunto seraacute aprofundado na recensatildeo que segue

o presente trabalho)

Temos agora de fazer uma distinccedilatildeo sempre subtil entre nada e Nada Diremos

o seguinte nada designa inexistecircncia de presenccedila Nada indica presenccedila de

inexistecircncia No primeiro caso digo que natildeo estaacute ali nada no segundo que o Nada estaacute

ali Com o primeiro digo que natildeo estaacute ali algo que poderia ou natildeo estar com o segundo

afirmo que falta ali algo que deveria laacute estar Marco encontro com x no local y na altura

t Chegando eu ao local definido no tempo dado x natildeo se encontra laacute Direi que natildeo

estava laacute ningueacutem que x natildeo apareceu (sendo este ningueacutem uma modalidade do nada

aplicado ao existente mais claramente exemplificado pelo inglecircs no-body nenhum

corpo e no-thing nenhuma coisa) Pedem-me para encontrar um determinado objecto

um molho de chaves por exemplo que estaacute em determinada gaveta Vasculho e natildeo as

encontro Direi imediatamente que natildeo vi laacute nada Estes nadas natildeo causam em mim

30 laquo Et pourtant quand on analyse la maniegravere dont le cerveau traite lrsquoinformation en place drsquouniteacute on ne trouve qursquoun vaste ensemblage de circuits neuraux qui convergent vershelliprien du tout Il nrsquoest donc point drsquouniteacute dans le cerveau pas de lieu particulier ougrave se reacutealiserait une ultime convergence La glande pineacuteale de Descartes si elle existe bel et bien ne remplit pas les fonctions drsquointeacutegration qursquoil lui avait attribueacutees raquo CLEEREMANS Axel Lrsquouniteacute de la conscience Seacuteminaire de Recherches en Sciences Cognitives Universiteacute Libre de Bruxelles p 4 Disponiacutevel em httpsrsculbacbeaxcWWWaxc-papershtml

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

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III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 24: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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absolutamente nenhuma anguacutestia podem no maacuteximo gerar ansiedade porque queria

mesmo estar com x ou preciso mesmo das chaves E natildeo causam anguacutestia porque sei

verdadeiramente a priori que x poderia ou natildeo aparecer que as chaves poderiam ou

natildeo estar laacute Ateacute posso dizer que x deveria ter aparecido ou que as chaves deveriam estar

ali Mas este dever eacute o da probabilidade como quando nos perguntam onde estaacute tal

coisa e respondemos que deve estar aleacutem O que fazemos neste caso do nada eacute negar

uma positividade algo natildeo estaacute (aparece acontece etc) Este nada eacute assim criado

conscientemente o seu natildeo eacute do domiacutenio da loacutegica O que fazemos no caso do Nada O

que primeiro sobressai eacute que natildeo o podemos antecipar eacute imprevisiacutevel Se o nada me

aparece sempre como negaccedilatildeo de uma antecipaccedilatildeo de que seraacute negaccedilatildeo o Nada Mas

teraacute realmente o Nada origem numa negaccedilatildeo Dissemos acima que o Nada e a negaccedilatildeo

eram dados simultaneamente que um e outro eram inseparaacuteveis A verdade eacute que isso

apenas acontece num contexto de racionalizaccedilatildeo do Nada aquilo a que neste momento

nos dedicamos Soacute posso pensar o Nada atraveacutes da negaccedilatildeo que carrego Dissemos por

exemplo que o Nada era natildeo-Ser ausecircncia de Todo de unidade Mas ao dizer isto natildeo

trago de forma alguma o Nada agrave minha presenccedila Este Nada que digo natildeo me angustia

Quando o Nada se me apresenta realmente gera-se a anguacutestia Mesmo o ter

compreendido o Nada natildeo impede que este se me apresente vezes sem conta e da forma

que lhe eacute habitual me angustie Como explicar isto Pois bem o Nada eacute afirmaccedilatildeo de

uma negatividade natildeo digo que algo natildeo estaacute como no caso do nada digo que estaacute ali

um algo-natildeo Natildeo eacute ausecircncia de uma presenccedila eacute presenccedila de uma ausecircncia O Nada eacute

fundamentalmente afirmativo Eacute a irrupccedilatildeo incontrolaacutevel do meu proacuteprio Natildeo que se

afirma perante mim anulando-me No momento da consciecircncia do Nada abolem-se

todas as ligaccedilotildees ao mundo e ficamos verdadeiramente ali flutuando no Nada Eacute nesse

preciso instante que eacute dada ao existente a sua incompletude Deixa de pensar-se como

tal passa a ser afirmado como tal Esta afirmaccedilatildeo opotildee-se agrave minha negaccedilatildeo que eacute a

minha liberdade e torna-me escravo Eacute precisamente esse passo que gera a anguacutestia em

mim a impossibilidade de dizer natildeo ao meu proacuteprio natildeo O meu natildeo afirma-se perante

mim enquanto Natildeo Nesse instante sou transposto do plano loacutegico e fenomenoloacutegico

para o plano mais vasto do Ser A separaccedilatildeo entre mim e as coisas deixa de ser o mero

vazio do quotidiano para se afirmar como Nada A consciecircncia de que geralmente tenho

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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

- 33 -

seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

- 39 -

a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

- 41 -

Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

- 42 -

Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

- 43 -

transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 25: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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consciecircncia eleva-se ela proacutepria a consciecircncia ou seja a minha consciecircncia

consciencializa-se Deixo de ser reflexivo para me tornar inflexivo isto eacute natildeo me

dobro nem para dentro nem para fora sou-me simplesmente dado eacute-me dada a minha

remanecircncia Esta daacutediva involuntaacuteria do meu Natildeo (porque a remanecircncia eacute como

dissemos um ter-sido uno que jaacute natildeo o eacute) em mim mesmo informa-me e enforma o

mundo A informaccedilatildeo que me eacute dada eacute de que este natildeo eacute o meu estado ingeacutenito que natildeo

eacute suposto estar separado existir Eacute neste momento da anguacutestia que matildeos alcanccedilam

revoacutelveres facas comprimidos eacute nesse instante que corpos se defenestram porque a

existecircncia natildeo eacute o estado natural de uma consciecircncia Existir eacute estar separado e ser

separado eacute natildeo ser completamente O Nada aparece imprevisivelmente porque natildeo

posso antecipar que este estado de separaccedilatildeo com o que me rodeia natildeo me seja natural

Verdade seja dita estou a antecipaacute-lo agora mas mais verdadeiramente ainda estou a

fazecirc-lo de forma reflexiva sei que natildeo sou completamente mas natildeo me sinto como natildeo

sendo completamente Quando me encontro no estado de inflexatildeo da consciecircncia deixo

de saber que natildeo sou completamente para natildeo ser de forma efectiva completamente E

natildeo sou apenas eu que deixo de ser eacute o proacuteprio universo Porque esta visatildeo de mim

como separado enforma o que me rodeia como separaccedilotildees O estado do mundo em que

existimos eacute simplesmente um aglomerado de separaccedilotildees Por isso o Nada eacute uma

presenccedila dada no mundo natildeo uma simples ausecircncia Eacute presenccedila de uma ausecircncia

porque aquilo que devia laacute estar natildeo estaacute o Ser A consciecircncia deixa de ser consciecircncia

de si que tem consciecircncia do mundo e passa a ser consciecircncia de si no mundo isto eacute

como parte integrante dele mais claramente ainda quando a minha consciecircncia deixa

de se apresentar como minha e regressa ao seu estado originaacuterio de consciecircncia do

mundo quando eacute o mundo que se pensa em mim e natildeo eu que me penso no mundo A

anguacutestia natildeo eacute propriamente minha natildeo sou eu que me angustio eacute o mundo que se

angustia em mim Assim o nada eacute ausecircncia de existente e o Nada eacute ausecircncia de Ser

Se tudo eacute o que mais pode ser o Ser se natildeo todas as coisas que satildeo unidas O

Nada natildeo passa portanto de um estado de separaccedilatildeo Natildeo haacute natildeo-ser haacute natildeo-Ser e este

uacuteltimo eacute aquilo que somos enquanto presos no processo do devir A existecircncia procede e

tende para o Ser num fluxo e refluxo perpeacutetuos A oposiccedilatildeo evidente que se levanta eacute da

razatildeo pela qual o Ser se separaria em existentes Esta perplexidade enraiacuteza-se em duas

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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

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III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 26: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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concepccedilotildees erradas em primeiro lugar vemos o Ser como sendo perfeito ora o que

entendemos noacutes por perfeiccedilatildeo Chamamos perfeito a algo que possui tudo aquilo que

faz dele aquilo que ele eacute assim uma circunferecircncia perfeita eacute aquela composta por um

conjunto de pontos todos eles equidistantes de um mesmo centro Designamos Ser a

perfeiccedilatildeo de ser por oposiccedilatildeo agrave imperfeiccedilatildeo do que existe Tudo aquilo que existe natildeo eacute

perfeito porque natildeo perdura corrompe-se Imaginou-se assim uma transcendecircncia que

fosse apenas Ser forccedilosamente separada do tempo ou a ele imune significando sempre

o tempo nesta perspectiva corrupccedilatildeo Esta visatildeo do tempo como corrupccedilatildeo eacute o

verdadeiro cerne do problema do Ser Temos a tendecircncia de aperceber as manifestaccedilotildees

como imperfeiccedilotildees No entanto quando chove por exemplo digo que haacute chuva mas

quando esta cessa natildeo digo que esta se corrompeu nem me passaraacute pela cabeccedila que natildeo

existiraacute mais chuva Sei que esta eacute apenas a manifestaccedilatildeo de um fenoacutemeno maior de

evaporaccedilatildeo condensaccedilatildeo precipitaccedilatildeo etc da aacutegua Natildeo direi tambeacutem que existe

numa transcendecircncia a chuva perfeita que nunca cessa que nunca se corrompe

Tambeacutem o existente natildeo eacute uma imperfeiccedilatildeo mas uma manifestaccedilatildeo de Ser Em segundo

lugar daacute-se constantemente a confusatildeo entre imobilidade e imutabilidade Seguindo a

nossa proacutepria linha de pensamento tudo o que eacute tende para a anulaccedilatildeo do tempo Ora

anulaccedilatildeo do tempo significa anulaccedilatildeo do movimento Diremos portanto tambeacutem que o

Ser eacute imoacutevel Mas o imoacutevel como eacute evidente natildeo eacute forccedilosamente imutaacutevel Aqui de

novo aparece a perplexidade se eacute imoacutevel o que o faraacute mover-se Ao perguntar-se isto

natildeo se tem em conta que o Ser conteacutem em si todas as possibilidades O Ser eacute

autopoieacutetico - relembramos que o Ser eacute o Uno primordial - cria em si proacuteprio as

possibilidades gera-se e regenera-se em si mesmo Em contraponto agrave teoria aristoteacutelica

diremos que no iniacutecio natildeo haacute acto mas sim possibilidade a possibilidade de todos os

actos Isto equivale a dizer que haacute no Ser a possibilidade do tempo O tempo natildeo

necessita de algo exterior a ele que o actualize ele eacute o possiacutevel que e se actualiza Neste

Todo de todos os possiacuteveis a causa eacute redundante Assim para respondermos agrave nossa

questatildeo o Ser separa-se em existentes porque conteacutem em si a possibilidade do tempo

Como nos diz Heraclito no fragmento 52 o tempo eacute uma crianccedila que brinca natildeo se

busquem aqui razotildees alea jacta est Mas os possiacuteveis nunca satildeo postos em existecircncia

da mesma forma a cada ciclo os possiacuteveis formam um possiacutevel Os possiacuteveis satildeo os

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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

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III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 27: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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dados o tempo a matildeo que lanccedila a combinaccedilatildeo o destino (o possiacutevel) desse ciclo

Deleuze analisando Nietzsche diz o seguinte Os dados que lanccedilamos uma vez satildeo a

afirmaccedilatildeo do acaso a combinaccedilatildeo que formam caindo eacute a afirmaccedilatildeo da necessidade31

O acaso gera o ciclo mas este uma vez lanccedilado eacute perfeitamente determinado Assim o

acaso do Universo daacute-se nas suas repeticcedilotildees natildeo no devir de um universo (ciclo)

particular Cada ciclo tem as suas leis necessaacuterias geradas pelo acaso Afastando-nos

pela uacuteltima vez do nosso assunto diremos que a Vontade de Poder eacute nada mais do que

uma Vontade de Uno Vontade essa satisfeita no momento do regresso ao Ser e sempre

lograda por um novo lanccedilamento de dados da crianccedila tempo Mas esta dinacircmica natildeo eacute a

do SerTempo o que colocaria o Tempo fora do Ser actuando sobre o Ser mas a do

UnoMuacuteltiplo que se daacute dentro do proacuteprio Ser alimentada pelo Tempo que o Ser

conteacutem Assim o Ser aparece apenas na transiccedilatildeo entre cada ciclo entre o esgotamento

da configuraccedilatildeo das possibilidades de um e a reconfiguraccedilatildeo das possibilidades de

outro O Ser eacute um instante passe-se o paradoxo fora do tempo ou evitando-o o tempo

eacute um instante fora do Ser

5

Tentaremos agora resumir e clarificar as conclusotildees a que chegaacutemos

1 ndash O Natildeo e o Nada tecircm a mesma origem a separaccedilatildeo do Ser em existentes

sendo que o Nada eacute essa separaccedilatildeo e o Natildeo a consciecircncia dela o Nada apenas podendo

ser inteligido como tal por aquele que possui o Natildeo

2 ndash O Nada eacute assim um algo-natildeo a presenccedila da ausecircncia de Ser por oposiccedilatildeo ao

nada que eacute ausecircncia de uma presenccedila ausecircncia de um existente

3 ndash Temos acesso agrave dupla SerNada pela remanecircncia de Uno em noacutes na mateacuteria

que nos compotildee o Logos sendo uma possibilidade da mateacuteria

31 laquo Les deacutes qursquoon lance une fois sont lrsquoaffirmation du hasard la combinaison qursquoils forment en tombant est lrsquoaffirmation de la neacutecessiteacute raquo DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition 1999 Paris p 29

- 29 -

4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

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III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 28: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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4 ndash Retiraacutemos o Uno do reino da pura especulaccedilatildeo para o trazermos para o

campo da teoria cientiacutefica natildeo precisamos assim de filosofar fora da ciecircncia fazemo-lo

a partir dela

5 ndash Vimos por fim que o Uno primordial era o proacuteprio Ser por conter em si

unidas todas as possibilidades de ser possibilidades que incluem o Tempo como motor

intriacutenseco do proacuteprio devir do Ser porque o devir nada mais eacute do que o Ser em

movimento

O que fizemos no fundo foi pegar na questatildeo heideggeriana ldquoPorquecirc algo e natildeo

Nadardquo e reformulaacute-la perguntando ldquoPorquecirc o Nada e natildeo o Serrdquo reinterpretando o Ser

como unidade primordial de todos os possiacuteveis de ser e o Nada como natildeo-Ser ou seja

como ruptura dessa unidade

Natildeo seraacute paradoxal perguntar ldquoporquecirc Nadardquo em vez de ldquoporquecirc algordquo Mas

perguntar ldquoporquecirc algo e natildeo o Nadardquo natildeo seraacute pocircr o Nada como possibilidade que natildeo

se deu Ora o Nada poderaacute ser possibilidade que natildeo se daacute O Nada eacute a possibilidade da

ausecircncia de possibilidades Se o Nada fosse possiacutevel ter-se-ia dado enquanto ausecircncia

de todos os possiacuteveis Basta existir algo para que o Nada nunca tenha sido uma

possibilidade Assim o que entendemos noacutes como Nada Foi ao que tentaacutemos

responder no presente trabalho

- 30 -

II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

- 31 -

descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

- 40 -

Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

- 41 -

Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

- 42 -

Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

- 53 -

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Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos

Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994

- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition

1999 Paris

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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika

Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 29: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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II

Um estudo sobre a Identidade

(Recensatildeo)

No iniacutecio da obra que nos propomos analisar32 o autor desde logo adverte que

natildeo se trata de um estudo sobre o problema da identidade mas sobre o problema do

sentimento de identidade Na continuidade do nosso trabalho sobre o Nada eacute

precisamente este problema que nos interessa na medida em que eacute o sentimento que

temos do nosso Eu que se relaciona com os Eus alheios e com o mundo em geral na

transcendecircncia do Nada

O livro abre-se com um sonho do autor em que a sua identidade oficial eacute

completamente falseada na sequecircncia de erros burlescos o seu nome natildeo eacute o seu

verdadeiro nome a sua idade natildeo eacute a sua verdadeira idade etc Este acidente oniacuterico

termina com o autor notando a curiosa cesura que faz de noacutes dois seres o oficial dos

documentos e outro real e misterioso de que nada parece testemunhar

Como confessa de seguida Rosset o mais intrigante eacute o facto de ele proacuteprio

pensar exactamente o contraacuterio ou seja que natildeo existem duas identidades mas apenas

uma a identidade social Se houve falseamento foi o da sua verdadeira identidade

social nunca a de um hipoteacutetico substrato que seria a sua identidade real Assim o autor

diz-nos desde logo que considera a identidade social como sendo a real e uma suposta

identidade pessoal como sendo uma ilusatildeo Diz-nos de seguida que esta uacuteltima seria

uma espeacutecie de identidade ldquopreacute-identitaacuteriardquo ou seja anterior agrave identidade social

A consciecircncia comum acredita que nunca somos outros ou seja que um Eu eacute

sempre o mesmo do nascimento agrave morte Poderaacute parecer outro mas nunca deixa de ser

esse Eu particular Contrariamente ao pensamento do autor eacute opiniatildeo geral que apenas a

identidade social pode mudar nunca a ldquorealrdquo

O problema diz-nos gira em torno do sentimento real ou ilusoacuterio da unidade

do Eu tida como indubitaacutevel embora sejamos incapazes de a justificar ou mesmo 32 ROSSET Cleacutement Loin de moi eacutetude sur lrsquoidentiteacute 1999 Les eacuteditions de Minuit

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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

- 39 -

a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 30: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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descrevecirc-la Aqui Rosset apela a uma passagem de Tratado sobre a Natureza Humana

de David Hume33 que podemos sintetizar da seguinte forma quando penetramos

naquilo a que chamamos Eu encontramos sempre percepccedilotildees de algo sentimentos etc

nunca damos de cara com um algo a que possamos chamar Eu uma unidade concreta e

definida nunca achamos tal princiacutepio

Eacute da opiniatildeo do autor que Kant natildeo resolveu realmente o problema Distinguir

entre fenoacutemeno e nuacutemeno para poder dizer que o sujeito (ou o Eu) eacute uma ideia da razatildeo

mas natildeo um conceito do entendimento (ldquoEu = xrdquo) reenvia ao mesmo ponto cego de

que eacute impossiacutevel ter uma qualquer noccedilatildeo senatildeo de que eacute moralmente imperioso possuir

dele uma ideia34

A supremacia do Eu social sobre o Eu privado demonstra-se tambeacutem pelo facto

de a continuidade de uma pessoa estar na sua capacidade de memoacuteria - Segue-se que

se o Eu apenas pode invocar a seu favor a sua memoacuteria apenas se pode tratar da sua

memoacuteria de ser social e que por conseguinte natildeo existe outro Eu que natildeo seja o Eu

social35

A identidade pessoal acaba por ser uma entidade fantasmal que assombra a

pessoa real social Este primeiro capiacutetulo que temos abordado intitula-se precisamente

La Hantise de Soi O autor daacute diversos exemplos literaacuterios dessa identidade intangiacutevel

mas que imaginamos sempre presente mas citaremos apenas a pequena anedota real

diz-nos utilizada em jeito de metaacutefora para o reveacutes que espera todo aquele que busca

uma identidade pessoal sob a social entre o espoacutelio deixado por um pequeno impressor

de bairro o seu filho encontrou um envelope fechado marcado com a frase lapidar Natildeo

Abrir Tomando-a como injunccedilatildeo testamentaacuteria o filho respeitou-a durante seis

dolorosos anos em que a curiosidade o corroiacutea seis anos de questionamento e

elucubraccedilotildees ateacute que vencendo enfim o desejo se decidiu a quebrar a ordem Qual natildeo

foi a sua desilusatildeo ao descobrir que o envelope continha apenas uma seacuterie de etiquetas

33 HUME David A Treatise of Human Nature 146 Of Personal Identity Oxford University Press 34 laquo Distinguer entre pheacutenomegravene et noumegravene pour pouvoir dire que le sujet (ou le moi) est une ideacutee de la raison mais pas un concept de lrsquoentendement (laquo je = x raquo) renvoie agrave un mecircme point aveugle dont il est impossible drsquoavoir la moindre notion sinon qursquoil est moralement impeacuterieux drsquoen posseacuteder lrsquoideacutee raquo ROSSET Cleacutement Op Cit p 15 35 laquo - Il srsquoensuit que si le moi ne peut se recommander que de sa propre meacutemoire il ne peut srsquoagir que de sa meacutemoire drsquoecirctre social et que par conseacutequent il nrsquoest drsquoautre moi que le moi social raquo IDEM Op Cit p 27

- 32 -

destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

- 33 -

seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

- 34 -

ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

- 35 -

assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

- 39 -

a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

- 40 -

Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

- 41 -

Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

- 42 -

Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

- 43 -

transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 31: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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destinadas aos clientes em que estava impressa a mensagem Natildeo Abrir36 O mesmo se

passa com o sentimento de identidade pessoal que eacute ela tambeacutem como um envelope

cujo conteuacutedo eacute vazio ou se preferirmos recheado de uma mensagem muda repetida

ao infinito e sem variaccedilatildeo significativa37

Assim quando dizemos que conhecemos bem algueacutem estamos de facto a dizer

que conhecemos o seu caraacutecter repetitivo ou seja aquilo que faraacute em determinada

situaccedilatildeo o seu papel Este papel eacute o seu comportamento social que se repete como se

repetem as etiquetas no envelope do impressor38

O capiacutetulo II intitulado A Identidade de Empreacutestimo articula-se precisamente

em torno de trecircs modos de empreacutestimo de identidade a imitaccedilatildeo de um tutor o amor e

a identificaccedilatildeo com um animal

A aquisiccedilatildeo de uma identidade emprestada eacute o paliativo mais comum para a

incapacidade de ser da identidade pessoal (preacute-identitaacuteria) Segundo a psicologia e a

psicanaacutelise eacute mesmo este o modo normal dos primeiros anos de existecircncia a crianccedila

imita um tutor (parental ou outro) e comeccedila a construir a estrutura de um Eu Eacute assim

pela coacutepia do outro que nos construiacutemos Esta influecircncia do outro deve manter-se para

que o Eu copiado natildeo se desmorone outro que pode ser este ou novamente outro A

identidade funda-se assim na imitaccedilatildeo de outras identidades que por sua vez imitaram

outras Este processo eacute comparado por Rosset ao do dicionaacuterio em que o vocaacutebulo A

reenvia ao B e este ao C ateacute que o D reenvia novamente ao A Assim x imita y que imita

z etc39

Rosset analisa de seguida a autonomia ou natildeo do desejo e da vontade apelando

primeiro a um estudo de Reneacute Girard em que este nega a autonomia do Eu e a

impossibilidade de desejar exceptuando atraveacutes dos desejos de um outro um ldquomediador

do desejordquo40 que admiramos ao ponto de imitar as suas escolhas e desejos O paradigma

desta posiccedilatildeo seria D Quixote que admira apenas o que Amadis de Gaule admira Diz

Rosset que D Quixote renunciou agrave ilusatildeo da individualidade e da identidade pessoal ou

36 IDEM Op Cit pp36 e 37 37 laquo Il en va de mecircme du sentiment de lrsquoidentiteacute personnelle qui est elle aussi comme une enveloppe remplit drsquoun mecircme message muet reacutepeacuteteacute agrave lrsquoinfini et sans variation significative raquo IDEM Op Cit p 39 38 IDEM Op Cit p 39 39 IDEM Op Cit pp 41-44 40 laquo meacutediateur du deacutesir raquo IDEM Op Cit p 44

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

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III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 32: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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seja assumiu a identidade de empreacutestimo como verdadeira identidade pondo de lado a

quimera de uma pessoal Quanto agrave vontade invoca o romance de Tourgueniev

Memoacuterias de um caccedilador em que o heroacutei atesta que apenas foi posto no mundo para

imitar algueacutem por exemplo os autores que leu Toda a sua vida se desenrolou contra a

sua vontade Mas o nosso autor levanta a questatildeo ldquoContra que vontade viveu elerdquo Na

realidade nenhuma e eacute essa ausecircncia de vontade proacutepria de um Eu pessoal que o faz

aderir agraves vontades sociais Diriacuteamos o mesmo de um metro que atinge a estaccedilatildeo

seguinte quando nenhuma bifurcaccedilatildeo se ofereceu a ele durante o trajecto de uma

estaccedilatildeo a outra natildeo agiu contra sua vontade jaacute que natildeo dispotildee de nenhuma outra

escolha41 A falta de originalidade de que se queixa a personagem de Tourgueniev como

sendo um defeito seu eacute no fundo lote comum Soacute existe e pode existir Eu por

escoramento do outro e pelo outro Para Freud isto permite constituir uma identidade

sexual para Lacan por outro lado simplesmente a identidade O ldquoeurdquo tira toda a sua

substacircncia do ldquoturdquo que lha outorga42

O segundo caso de tutoria de identidade por escoramento eacute o do amor O

sentimento de ser amado leva automaticamente ao de simplesmente ser O facto de ser

amado leva imediatamente agrave conclusatildeo de que possuiacutemos uma identidade pessoal ou

seja amam-me logo sou43 A solidatildeo de Adatildeo e Eva quando expulsos no paraiacuteso no

final de Paradise Lost de Milton natildeo eacute a de um estar soacute de um regresso a si mas a de

uma perda de identidade de uma expulsatildeo para fora de si O amor eacute assim a

reconstruccedilatildeo de uma identidade perdida um regresso agrave identidade preacute-identitaacuteria

Aquilo que no amor costuma ser entendido como ldquodom de sirdquo ou seja dom de

mim mesmo ao outro e do outro a mim mesmo estaacute assim erradamente invertida

acontece o ldquodom do outrordquo isto eacute dou ao outro a sua identidade e ele daacute-me a minha

Para Rosset o amor consiste num suprimento numa sensaccedilatildeo de conforto Daqui

resultam trecircs equivalecircncias 1 ndash O amor eacute idecircntico agrave felicidade 2 ndash Esta felicidade estaacute

41 laquo On en dirait autant drsquoune rame de meacutetro qui rejoint la station suivante lorsque aucune bifurcation ne srsquooffre agrave elle durant le trajet drsquoune station agrave lrsquoautre elle nrsquoagit pas contre sa volonteacute puisqursquoelle ne dispose drsquoaucun autre choix raquo IDEM Op Cit p 47 42 laquo Le laquo je raquo tire toute sa substance du laquo tu raquo qui la lui alloue raquo IDEM Op Cit pp 50-51 43 laquo Je suis aimeacute donc je suis raquo IDEM Op Cit p 54

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

- 39 -

a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

- 40 -

Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 33: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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ligada ao sentimento de ser amado 3 ndash A felicidade ligada ao sentimento de ser amado

dota-nos pelo amor obtido de um si proacuteprio de uma identidade pessoal44

O terceiro exemplo de identidade emprestada consiste na identificaccedilatildeo a um

animal caso este exemplificado por algumas tribos em que indiviacuteduos se tomam em

estados convulsionaacuterios por leotildees ou outros animais Este uacuteltimo caso eacute usado pelo

autor sobretudo para pocircr em evidecircncia o liame que une o sentimento de ser algueacutem (ou

um animal) e o de possuir algueacutem (ou alguma coisa)45 O objecto desejado deixa de o

ser a partir do momento em que entra em minha posse Como Soacutecrates fazendo admitir

a Agatatildeo que se amar eacute desejar se segue que amar eacute ter falta daquilo que se ama jaacute que

desejar eacute ter falta do que se deseja O objecto que amamos aquele que funda a nossa

identidade pessoal eacute aquele que estaacute jaacute em nossa posse natildeo eacute mais desejado mas

possuiacutedo Mas essa posse natildeo seraacute realmente a do objecto amado mas antes a da

identidade que ele nos confere A perda do objecto amado leva assim ao naufraacutegio da

identidade que consideraacutevamos pessoal mas que era em uacuteltima instacircncia apenas

emprestada46

Assim no romance de Maupassant Monsieur Parent o heroacutei perde

repentinamente famiacutelia e amigos Vivendo de rendimentos natildeo tem sequer uma

profissatildeo que lhe outorgue uma aparecircncia de vida Encontra-se vazio de tudo sem

ningueacutem que ateste da sua existecircncia pessoal Passaraacute vinte anos ocupado a natildeo ser

ningueacutem47 O sentimento de nada ter confunde-se com o de nada ser o eu social

continua a existir mas sem estar sustentado pela ilusatildeo de uma identidade ldquopreacute-

-identitaacuteriardquo O simples facto de pedir emprestadas as mateacuterias necessaacuterias agrave edificaccedilatildeo

da sua proacutepria identidade sublinha a carecircncia originaacuteria de toda a identidade

pessoal48

A personalidade de empreacutestimo eacute assim falsa porque natildeo exprime um qualquer

substrato mas tambeacutem verdadeira porque provem de uma pessoa verdadeira de que

44 IDEM Op Cit p 63 45 laquo helliple lien qui unit le sentiment drsquoecirctre quelqursquoun (ou un eacutecureuil si la chose eacutetait possible) avec celui drsquoavoir quelqursquoun (ou quelque chose) raquo IDEM Op Cit p 67 46 IDEM Op Cit p 69 47 IDEM Op Cit p 71 48 laquo Le simple fait drsquoemprunter les mateacuteriaux neacutecessaires agrave lrsquoeacutedification de sa propre identiteacute souligne la carence originelle de toute identiteacute personnelle raquo IDEM Op Cit p 77

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

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III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 34: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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assume os modos Natildeo devemos no entanto esquecer que essa pessoa construiu a

personalidade que lhe pedimos emprestada por empreacutestimo reenviando assim a uma

rede de construccedilotildees infindaacutevel

O terceiro e uacuteltimo capiacutetulo A Identidade e a Vida trata da inutilidade bioloacutegica

da identidade pessoal De facto diz-nos Rosset mesmo supondo que a identidade

pessoal exista eacute inuacutetil ao exerciacutecio da vida Eacute de qualquer modo pelas informaccedilotildees

que recebe da sua identidade social que o homem conduz a sua vida pessoal As

questotildees reflexivas do tipo ldquoquem sourdquo ou ldquoo que faccedilordquo satildeo contraproducentes e de

certo modo um freio tanto para qualquer actividade como para a existecircncia em geral

Resumindo o exerciacutecio da vida implica uma certa inconsciecircncia que poderiacuteamos

definir como indiferenccedila do ldquoquanto a sirdquo [hellip] Quem muitas vezes se examina em nada

avanccedila no conhecimento de si mesmo E quanto menos nos conhecemos melhor

passamos49

A crenccedila numa identidade pessoal natildeo tem assim nenhuma base bioloacutegica ou

mesmo vivencial eacute inuacutetil agrave vida Mas eacute por outro lado completamente indispensaacutevel agrave

moral agrave visatildeo moralista da vida Se se julgam supostas intenccedilotildees de certo perpetrador

essas intenccedilotildees tecircm de provir de um ponto que o defina enquanto responsaacutevel

Identidade pessoal nada mais significa no fundo do que desejo alucinado de

responsabilidade pessoal

Procurar num indiviacuteduo um substrato que faccedila dele aquilo que ele eacute que em

uacuteltima instacircncia o responsabilize por aquilo que ele possa ser ou fazer natildeo eacute tanto

procurar uma agulha num palheiro quanto procurar um palheiro numa agulha Se haacute um

facto que Aristoacuteteles notou correctamente eacute o de que natildeo haacute ciecircncia do particular mas

apenas do geral50 No fundo nada haacute a dizer sobre o indiviacuteduo que natildeo sejam as suas

qualidades Quando tentamos ligar essas a um substrato individual agrave sua ousia nada haacute

que natildeo seja no Homem a de ser ldquoanimal racionalrdquo que natildeo eacute a sua essecircncia mas a

essecircncia da sua espeacutecie O indiviacuteduo eacute sempre um tode ti um mero isto-aqui de que

nada se pode dizer uma vez retiradas as suas qualidades

49 laquo En bref lrsquoexercice de la vie implique une certaine inconscience qursquoon pourrait deacutefinir comme insouciance du laquo quant agrave soi raquo [hellip] Qui souvent srsquoexamine nrsquoavance en rien dans la connaissance de lui-mecircme Et moins on se connaicirct mieux on se porteraquo IDEM Op Cit p 86 50 IDEM Op Cit p 82

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Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

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III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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BIBLIOGRAFIA

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- SPINOZA Baruch Traiteacute Politique Lettres Trad Charles Appuhn GF Flammarion 1996 Paris

- LAO TSE Tao Te King Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo - NIETZSCHE Friedrich Oeuvres I e II Bouquins Robert Laffont Paris

1993 - NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Volume I O Niilismo

Europeu Trad Isabel Henninger Ferreira Porto 2004 - JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 - LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand

Schefer Editions Allia Paris 1998 - PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 - SCHOPENHAUER Arthur Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora

Lisboa 2002 - PESSOA Fernando O Livro do Desassossego AssiacuterioampAlvim Lisboa 1998 - SILVA Agostinho da Textos e Ensaios Filosoacuteficos I e II Acircncora Editora

Lisboa 1999 - HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad

Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise

- Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997

- BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 - Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida

Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland

Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos

Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994

- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition

1999 Paris

- 54 -

- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika

Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

- 55 -

NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 35: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

- 36 -

Quanto agrave originalidade de cada um agravequilo que faz dele o que ele eacute e que o

diferencia dos restantes baseia-se nas capacidades com que nasceu na construccedilatildeo

aleatoacuteria das suas qualidades na capacidade de adquirir precisamente qualidades Natildeo

haacute de qualquer modo nada com que nos preocuparmos neste ponto como diz Rosset

citando Ravel Copiai e se copiando continuardes voacutes mesmos eacute porque tendes algo a

dizer51

51 laquo Copiez et si en copiant vous restez vous-mecircme crsquoest que vos avez quelque chose agrave dire [tel est le conseil qursquoaurait donneacute Ravel agrave ses rares eacutelegraveves] raquo IDEM Op Cit p 42

- 37 -

III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

- 38 -

1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

- 41 -

Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

- 42 -

Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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BIBLIOGRAFIA

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- LAO TSE Tao Te King Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo - NIETZSCHE Friedrich Oeuvres I e II Bouquins Robert Laffont Paris

1993 - NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Volume I O Niilismo

Europeu Trad Isabel Henninger Ferreira Porto 2004 - JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 - LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand

Schefer Editions Allia Paris 1998 - PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 - SCHOPENHAUER Arthur Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora

Lisboa 2002 - PESSOA Fernando O Livro do Desassossego AssiacuterioampAlvim Lisboa 1998 - SILVA Agostinho da Textos e Ensaios Filosoacuteficos I e II Acircncora Editora

Lisboa 1999 - HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad

Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise

- Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997

- BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 - Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida

Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland

Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos

Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994

- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition

1999 Paris

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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika

Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 36: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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III

A Saudade como motor universal de Uniatildeo

A sede de ser completo deixou-me neste

estado de maacutegoa inuacutetil

Bernardo Soares Livro do Desassossego 244

Se haacute no homem um sentimento superior eacute a saudade Por sua virtude integramos em noacutes o espaccedilo o preteacuterito e o porvir e alcanccedilando os limites da consciecircncia descortinamos laacute de cima uma nova realidade muito embora longiacutenqua e indecisahellipPressentimo-la e este pressentimento eacute o mais a que podemos aspirar Eacute o sinal humano A saudade eacute lembranccedila e esperanccedila

Teixeira de Pascoaes Livro de Memoacuterias VI

La connaissance tue lrsquoerreur vitale de lrsquoamour et la raison bacirctit la vie sur les ruines du cœur

Cioran Le Creacutepuscule des Penseacutees VII

O presente trabalho articular-se-aacute em torno de trecircs conceitos o de λoacuteγος no

fragmento 65 de Heraclito o de Amor pela boca de Diotima no Banquete de Platatildeo e

por fim o de Saudade

O que tentaremos mostrar partindo das nossas conclusotildees na primeira parte eacute

que estes trecircs conceitos satildeo redutiacuteveis ao uacuteltimo que funciona por sua vez como

processo que possibilita a transcendecircncia do Nada

1

Comecemos portanto por expor o susodito

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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

- 53 -

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Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise

- Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997

- BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 - Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida

Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland

Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos

Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994

- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition

1999 Paris

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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika

Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 37: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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1 ndash No fragmento 65 Heraclito diz-nos que o fogo (ou seja o λoacuteγος) eacute indigecircncia

(χρησmicroοσύνη) e riqueza (κόρον)

2 ndash No Banquete de Platatildeo (203 b) o Amor eacute dito ser filho da pobreza (Πενία) e

do proveito (Πόρος)52

3 ndash A Saudade como sabemos nasce da uniatildeo entre solitate e salutate entre

solidatildeo e salvaccedilatildeo53

Nesta enumeraccedilatildeo duas coisas transparecem imediatamente a dualidade de

cada um dos conceitos e o facto dessa dualidade ser sempre a de um menos e um mais

Haacute jaacute assim uma superaccedilatildeo presente em cada um dos termos Numa primeira fase eacute essa

transcendecircncia que tentaremos examinar na tentativa de perceber exactamente em que

consiste e como se opera

Como tentaacutemos mostrar no primeiro capiacutetulo do presente estudo o universo eacute

para Heraclito um fogo incriado acendendo-se e apagando-se em cadecircncia54 Sabemos

tambeacutem pelo uso que faz dos termos que para o Efesiano o fogo o λoacuteγος Deus e o

mundo satildeo uma e a mesma coisa Resumindo pois este assunto jaacute foi sobejamente

tratado o universo comeccedila por ser uma essecircncia una de fogo que eacute separada pelo tempo

em todos os existentes cada um destes recebendo uma parcela daquele fogo inicial

Com o devir do cosmos vatildeo aparecendo existentes possuindo cada vez mais λoacuteγος

tendo como responsabilidade a recolecccedilatildeo de perspectivas com a finalidade de uma re-

uniatildeo na essecircncia una Assim quando Heraclito nos diz que o λoacuteγος eacute indigecircncia e

riqueza estaraacute a dizer-nos que em noacutes eacute ainda pobreza mas que eacute atraveacutes dele que se

atingiraacute a plenitude a uniatildeo dos existentes na essecircncia que eacute o proacuteprio λoacuteγος

Eacute portanto pelo conhecimento que se daacute a uniatildeo da totalidade no Todo Mas este

conhecimento natildeo deve ser confundido com uma qualquer ciecircncia exacta antes pelo

contraacuterio o proacuteprio conceito de exacto deve ser evitado no perspectivismo heracliteano

Natildeo interessa o que algo eacute realmente ou mesmo se alguma coisa eacute realmente algo mas 52 Utilizamos proveito e natildeo riqueza para manter a coerecircncia do geacutenero sendo Poros o pai de Eros como aliaacutes aconselha Ivan Gobry in Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris p 52 nota 1 utilizando o autor o francecircs ldquoprofitrdquo 53 Ver a esse propoacutesito um estudo bastante completo de Inecircs Oseki-Deacutepreacute da Universiteacute de Provence disponiacutevel em httpwwwditlinfoarttestart3981php em que diz precisamente ldquoDeux sens par conseacutequent sont agrave lorigine fondus dans ce mot idiomatique (saudade) laquosolituderaquo et laquosalut de lacircmeraquordquo 54 ldquoEste mundo o mesmo para todos nenhum dos deuses nem dos homens o fez mas ele era eacute e seraacute sempre fogo eterno acendendo-se e apagando-se em cadecircnciardquo Heraclito fragmento 30

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 38: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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a perspectiva que dado existente (uma certa quantidade de λoacuteγος) tem de determinado

objecto Assim por exemplo no fragmento 61 a aacutegua do mar eacute salutar para o peixe e

mortal aos homens Mas sobre a aacutegua do mar em si nada eacute dito mesmo

acrescentaremos noacutes nada haacute a dizer Lembremo-nos tambeacutem da proacutepria dualidade do

termo λoacuteγος razatildeo e fala sendo deste modo a sua funccedilatildeo a de nomear definir atraveacutes

da razatildeo

O que mais importa no que acabaacutemos de expor para a nossa presente reflexatildeo eacute

que haacute uma pobreza maior ou menor de λoacuteγος em cada existente pobreza essa que sente

falta da sua proacutepria riqueza anterior tendendo para uma plenitude posterior Essa

plenitude seraacute alcanccedilada quando todo o possiacutevel tiver sido compreendido ou seja

perspectivado por todas as quantidades de λoacuteγος possiacuteveis Diremos noacutes agora que haacute

em cada parcela de λoacuteγος a saudade de ser uno de Ser

Das vaacuterias definiccedilotildees de Eros que datildeo os convivas do Banquete natildeo existem

duacutevidas de que as mais frutuosas satildeo a de Aristoacutefanes e a de Diotima relembrada por

Soacutecrates Antes de passarmos agravequela que desde logo nos propusemos analisar esta

uacuteltima faremos uma breve digressatildeo por aquela primeira

Para Aristoacutefanes os homens eram seres circulares e tiravam daiacute grande forccedila e

sobretudo orgulho tanto que acabaram por atacar os deuses (190a-c) Zeus para os

acalmar e castigar decidiu retirar-lhes um pouco da sua forccedila cortando-os pela metade

(190d) Quando este ser primitivo foi assim separado desde logo sentiu falta da sua

metade e tentou juntar-se a ela (191) coisa que natildeo conseguiam fazer ateacute que Zeus

tomado de piedade decidiu dotaacute-los de oacutergatildeos sexuais para se poderem unir (191c)

Assim o verdadeiro amor e uacutenica felicidade consiste na uniatildeo de duas metades que

foram separadas (193c) O que queremos notar aqui eacute que esta concepccedilatildeo do amor

aponta para a falta e subsequente uniatildeo entre duas metades determinadas e apenas

essas Qualquer outra relaccedilatildeo amorosa que natildeo essa eacute mero paliativo para a dor daquela

falta originaacuteria O que haacute aqui eacute falta e desejo de um indiviacuteduo e um soacute a alma geacutemea

Outro ponto que queriacuteamos salientar talvez mais anedoacutetico do que qualquer outra coisa

mas mesmo assim interessante na sequecircncia do que expusemos sobre Heraclito eacute o

facto de Aristoacutefanes em 192d-e imaginando um deus que unisse os amantes separados

apelar a Hefaiacutestos deus do fogo

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

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Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 39: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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Por outro lado Diotima saacutebia nos domiacutenios do amor e em muitos outros (201d)

diz-nos Soacutecrates tem uma concepccedilatildeo bastante diferente de Eros Este natildeo eacute nem bom

nem mau nem belo nem feio ocupa o lugar mediano (202b) Natildeo eacute um deus natildeo sendo

tambeacutem mortal eacute um δαίmicroων um intermediaacuterio entre o mortal e o imortal (202d-e)

Filho de Πενία e Πόρος (203b) o Amor apresenta atributos maternos eacute pobre rude

duro e paternos sempre agrave espreita do bom e do belo excelente caccedilador cheio de

maliacutecia grande inventor de artifiacutecios (203c-d) O Amor estaacute tambeacutem por ser amor do

belo e a ciecircncia estar entre as coisas mais belas e por razotildees genealoacutegicas entre a

ignoracircncia e o saber sendo assim filoacutesofo Este uacuteltimo eacute o estaacutedio meacutedio entre o saacutebio

(deuses) que tudo sabe e o ignorante que nada quer saber (203d-204c) Para um ser

mortal a eternidade e a imortalidade estatildeo na procriaccedilatildeo de onde se segue que o amor

tem tambeacutem por objecto a imortalidade (207) Assim o homem participa da

imortalidade atraveacutes do Amor (208b)

Pondo de lado o caraacutecter mitoloacutegico o que ressalta de comum entre as

concepccedilotildees do Amor tanto de Aristoacutefanes como de Diotima eacute de que este eacute um processo

aquilo que faz com que dois sejam um para o primeiro o que faz com que o mortal

atinja a imortalidade para a segunda natildeo soacute no caso da procriaccedilatildeo mas tambeacutem no do

belo e da sabedoria sendo esta uacuteltima parte daquele e este uma Ideia logo imortal

Deste modo o Amor natildeo permite somente a imortalidade ilusoacuteria do sensiacutevel pela

perpetuaccedilatildeo mas tambeacutem e sobretudo o acesso ao reino imortal por excelecircncia o das

Ideias Seraacute dito em 211b-c que o processo do Amor eacute o de comeccedilar pelo belo sensiacutevel

para atingir a Ideia de Belo

Entre o λoacuteγος de Heraclito e o Eros de Diotima as semelhanccedilas satildeo flagrantes

ambos partilham da pobreza e da riqueza55 e ambos satildeo processos de um estado a outro

da indigecircncia de λoacuteγος agrave sua plenitude e da pobreza de belo (o sensiacutevel) agrave sua maacutexima

contemplaccedilatildeo (o inteligiacutevel) A uacutenica diferenccedila eacute a de que o Amor natildeo tende para a sua

proacutepria perfeiccedilatildeo mas para a do Belo enquanto o λoacuteγος tende para a sua proacutepria

55 laquo Le mot Кόρος est lrsquoeacutequivalent du Πόρος du discours de Diotime dans Le Banquet de Platon ce qui se comprend drsquoavantage encore en ionien ougrave le Π peut devenir un К raquo Les eacutecoles preacutesocratiques Gallimard Paris 1991 nota ao fragmento LXV p 782

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 40: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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Vimos jaacute no primeiro capiacutetulo que o Ser era a totalidade unida ou seja o Uno A

plenitude do λoacuteγος como tambeacutem vimos daacute-se no Uno isto eacute no Ser Assim o λoacuteγος

tende na verdade para o Ser Sabemos que para Platatildeo apenas as Ideias satildeo que apenas

as Ideias tecircm Ser pela sua imutabilidade em contraponto agrave degenerescecircncia do sensiacutevel

Natildeo nos interessa propriamente aqui descrever a filosofia platoacutenica o que queremos

salientar eacute que o Amor pela sua dualidade de falta e inteireza permite o acesso ao Ser

agravequilo que eacute por oposiccedilatildeo agravequilo que meramente existe aliaacutes como jaacute foi dito eacute

tambeacutem intermediaacuterio entre o mortal e o imortal Como tentaremos agora mostrar tanto

o λoacuteγος como o Amor tecircm como motor dos seus processos a Saudade

2

Haacute que distinguir dois tipos de sentimento saudoso saudades e saudade

propriamente dita O primeiro aponta convenientemente pelo seu plural para o

muacuteltiplo para um aquilo ou um aquele que constitui a multiplicidade do nosso mundo

Temos saudades da terra de um amigo de um amor etc Este modo eacute tambeacutem uma

forma de percepccedilatildeo do nada da ausecircncia de um existente Eacute tambeacutem o modo que pode

ser associado ao Amor de Aristoacutefanes O segundo modo por seu lado eacute muito mais

difiacutecil de circunscrever Eacute um sentimento difuso de falta de algo que natildeo conseguimos

definir Haacute aiacute melancolia mas miraculosamente apontando para a alegria haacute aiacute

esperanccedila mas natildeo se sabendo de quecirc haacute aiacute solidatildeo que natildeo eacute a de estar fisicamente soacute

Sobre a saudade diremos o seguinte eacute a anguacutestia cansada eacute a anguacutestia dada

natildeo mais num acesso passageiro e brutal mas numa continuidade calma Ora dissemos

antes que a anguacutestia se dava pela percepccedilatildeo do Nada ou seja da ausecircncia de Todo de

Unidade Natildeo eacute assim de estranhar que numa cultura dominada pelo sentimento de

saudade haja a emergecircncia de uma visatildeo panteiacutesta A saudade eacute a voz da remanecircncia eacute

o existente posto como incompleto e separado a todo o momento Por isso a saudade

tanto se inclina para o passado como para o futuro eacute saudade de ter sido uno e saudade

de voltar a secirc-lo E eacute tambeacutem sem o ser paradoxalmente saudade dada no presente haacute

saudade de cada objecto ente existente saudade de termos sido uno com eles e de

novamente o sermos O proacuteprio conceito de saudade implica jaacute um Ser ciacuteclico

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 41: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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Pela sua proacutepria dualidade a saudade pode decair na tristeza ou por outro lado

elevar-se agrave alegria Relembremos a este propoacutesito as definiccedilotildees de Espinosa a alegria eacute

a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma perfeiccedilatildeo maior a tristeza pelo contraacuterio a

paixatildeo pela qual passa a uma perfeiccedilatildeo menor56 Entendemos na nossa reflexatildeo uma

perfeiccedilatildeo maior como sendo a de uma diminuiccedilatildeo de Nada uma menor como a do seu

aumento ou o que eacute a mesma coisa a alegria como aumento de Ser a tristeza como sua

diminuiccedilatildeo

O Logos e o Amor satildeo modos da saudade Satildeo os modos pelos quais a saudade

que eacute a de ser Uno diminui a dor do Nada reduzindo-o Dissemos na primeira parte que

eacuteramos remanecircncias postas na imanecircncia do Nada com a capacidade de nos

transcendermos pela uniatildeo e que essa transcendecircncia era uma ponte sobre o Nada

Definimos tambeacutem o niilismo como a derrocada dessa ponte Essa ponte constroacutei-se

pela ligaccedilatildeo ao Outro Este Outro pode ser um objecto (algo inanimado desprovido de

Logos) um ente (qualquer indiviacuteduo animado) ou um existente (o Homem)

O niilismo ocidental tem a nosso ver como grande causa a troca da uniatildeo pela

geraccedilatildeo do Ser pelo Ter e o Haver Este Ter natildeo deve ser confundido com a posse do

sentimento amoroso no Amor natildeo possuo o outro entro em minha posse atraveacutes do

outro assim como o outro se possui atraveacutes de mim como vimos no segundo capiacutetulo

Aliaacutes natildeo pode ser sequer confundido com a posse em geral Ter eacute acumular e possuir eacute

interiorizar possui-se por exemplo conhecimento tem-se um determinado objecto a

posse eacute interior o ter eacute exterior O Homem vive por definiccedilatildeo no Nada Um indiviacuteduo

natildeo tem sequer a hipoacutetese de entrar em contacto consigo mesmo sem ser atraveacutes do

Outro Uma experiecircncia interessante a que me dedicava na infacircncia e na adolescecircncia

(se natildeo estou em erro tambeacutem reportada por Virgiacutelio Ferreira na Apariccedilatildeo) era a de me

observar ao espelho ateacute que o reflexo deixasse de ser eu ateacute ao ponto de dizer que o

meu corpo aquilo que apareccedilo aos outros natildeo era realmente eu O que eu achava no

fundo era que a minha essecircncia natildeo transparecia e natildeo havia forma de fazecirc-la

transparecer Repensando posteriormente nesses momentos acabei por concluir que se

me perguntassem qual era essa essecircncia que natildeo transparecia estaria em grandes

dificuldades para responder No fundo o problema natildeo era o da minha essecircncia natildeo 56 Eacutetica Parte III escoacutelio da proposiccedilatildeo XI

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 42: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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transparecer mas precisamente o contraacuterio era o de que aquilo que transparecia ser a

uacutenica coisa a que poderia chamar essecircncia resumindo eu natildeo tinha essecircncia nenhuma

era no melhor dos casos um veiacuteculo Este aristotelicamente seraacute a forma e a mateacuteria

uacutenicas realmente determinadas e determinantes do indiviacuteduo das suas qualidades ou da

capacidade de as adquirir

Como diziacuteamos trocaacutemos a uniatildeo pela geraccedilatildeo o Ser pelo Haver e pelo Ter O

que queremos dizer com isto A remanecircncia sacia-se por assim dizer unindo-se a

outras para diminuir o Nada A sociedade ocidental tem feito precisamente o contraacuterio

tem diminuiacutedo o Nada na esperanccedila de aumentar a uniatildeo A ilusatildeo de igualdade que se

daacute entre estas duas frases eacute a mesma que tem iludido os espiacuteritos ocidentais Mas a

diferenccedila eacute criacutetica no primeiro caso deixo entrar o mundo em mim faccedilo parte dele no

segundo sobreponho-me ao mundo exteriorizo-me a ele a Sageza versus a Teacutecnica57

Assim em vez de tentarmos unir-nos ao que existe temos gerado mais objectos

aumentando deste modo a separaccedilatildeo e logo o Nada Eacute como estar sozinho numa sala e

na esperanccedila de diminuir essa solidatildeo a encher literalmente de pessoas sem nunca falar

com elas Natildeo soacute continuaria sozinho como me sentiria ainda mais soacute Mais eficiente

seria deixar entrar uma soacute pessoa e falar com ela

Natildeo eacute de estranhar que o niilismo como hoje o entendemos tenha surgido com a

Revoluccedilatildeo Industrial (Tendo comeccedilado por volta de 1760 em Inglaterra alastrou-se ao

resto do mundo ocidental a partir de 1850 O romance de Tourgueniev Pais e Filhos

onde foi cunhado o termo niilismo na sua acepccedilatildeo moderna foi publicado logo em

1862) Foi nesse preciso momento que o conhecimento se tornou Teacutecnica ou seja em

que o conhecimento (do mundo) se transformou em instrumento (para mudar o mundo)

Esta instrumentalizaccedilatildeo natildeo se limitou ao conhecimento o proacuteprio ser humano foi

instrumentalizado reduzido a objecto em 1913 Henry Ford introduziria o trabalho em

cadeia Um dos paradoxos mais alucinantes da nossa sociedade que eacute o de se sujeitar a

um trabalho extenuante e absurdo para adquirir coisas de que natildeo precisamos nem

temos tempo ou desejo de gozar porque precisamente estamos extenuados eacute desde

logo evidente nesse momento perante a perspectiva estupidificante do trabalho em

57 ldquoQuanto mais se desenvolve a inteligecircncia produtiva mais dela resultam estranhos produtosrdquo LAO TSE Tao Te King LVII Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo p 70

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 43: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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cadeia os operaacuterios entraram em debandada pelo que Ford teve de aumentar o salaacuterio

para o dobro do habitual Assim os trabalhadores sujeitaram-se agrave escravidatildeo a troco de

dinheiro destinado ahellip comprar o resultado do seu suor o Ford-T precisamente

concebido para as classes populares58

Ao contraacuterio de Nietzsche com o seu ldquoDeus morreurdquo59 para marcar o iniacutecio do

niilismo moderno noacutes diremos ldquoNasceu a Teacutecnicardquo Mais a Teacutecnica nasceu desse Deus

judaico-cristatildeo Eacute dito no Geacutenesis (128) E Deus os abenccediloou (ao homem e agrave mulher)

e Deus lhes disse Frutificai e multiplicai-vos e enchei a terra e sujeitai-a e dominai

sobre os peixes do mar e sobre as aves dos ceacuteus e sobre todo o animal que se move

sobre a terra Esta ideia de um ser humano alieniacutegena feito agrave semelhanccedila de um Deus

transcendente com o mundo posto agrave sua disposiccedilatildeo para ser dominado e as restantes

criaturas escravizadas eacute precisamente a que subjaz agrave Teacutecnica Haveraacute concepccedilatildeo mais

negra mais fria mais utilitarista mais triste da existecircncia

Pelo contraacuterio o quatildeo diferente eacute a ideia de um Deus imanente A filosofia de

Espinosa seraacute certamente o exemplo mais perfeito desta visatildeo Por Deus entendo um

ser absolutamente infinito ou seja uma substacircncia consistindo numa infinidade de

atributos cada um exprimindo uma essecircncia eterna e infinita60 Basta-nos acrescentar a

distinccedilatildeo entre Natura Naturans e Natura Naturata61 entre a substacircncia e os seus

modos para desde logo acedermos agrave ideia de comunidade ontoloacutegica A substacircncia ou

Deus de Espinosa designa para noacutes o Ser e consideramos cada uma das coisas que

satildeo como modos de Ser A essecircncia que o nosso entendimento atribui a cada coisa natildeo

passa precisamente da percepccedilatildeo de um modo de Ser62 Mas a essecircncia por assim

dizer real de cada coisa eacute o Ser Tudo eacute ultimamente Ser distinguindo-se as coisas

58 Em 1904 indignava-se Ladislav Klima ldquoToute forme de travail est devenue aujourdrsquohui corveacutee - esclavage - mendiciteacutehellip - qursquoon obtient pas non plus sans mendierrdquo Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995 p 193 59 A Gaia Ciecircncia Livro Terceiro sectsect 108 e 125 Assim falava Zaratustra IV Do Homem Superior sectsect 1 e 2 Pensamos aliaacutes que a morte de Deus proclamada por Nietzsche se refere ao aparecimento do Deus biacuteblico e natildeo ao seu desaparecimento foi com a sua emergecircncia que a verdadeira concepccedilatildeo de Deus o Deus imanente morreu 60 Eacutetica Parte I Definiccedilatildeo VI 61 Op Cit Parte I escoacutelio da proposiccedilatildeo XXIX 62 Como aliaacutes desde logo nota tambeacutem Espinosa ldquoPor atributo entendo o que o entendimento apercebe da substacircncia como constituindo a sua essecircnciardquo Op Cit Parte I Definiccedilatildeo IV

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 44: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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apenas na sua manifestaccedilatildeo Assim a ideia de um Deus transcendente leva agrave

transcendecircncia do Ser a de um Deus imanente agrave imanecircncia do Ser

Eacute a concepccedilatildeo do indiviacuteduo como contendo uma essecircncia pessoal que leva ao

niilismo o que se percebe facilmente se tivermos em conta de que essa essecircncia natildeo

existe Natildeo eacute assim difiacutecil considerar qualquer indiviacuteduo como um nada um mero

objecto sem valor Natildeo soacute o indiviacuteduo como toda a Natureza eacute desvalorizada Dentro da

concepccedilatildeo transcendente do Ser o niilismo natildeo passa de um realismo realismo esse que

seria atingido mais cedo ou mais tarde O ateiacutesmo por sua vez natildeo teve a lucidez de

negar apenas o Deus transcendente e negou qualquer ideia ligada a Deus Como a ideia

de Deus esteve sempre ligada agrave de Ser negou-se tambeacutem este

Neste processo o Homem ficou colocado no Nada sem nenhuma perspectiva de

Ser Nesse momento deu-se entatildeo a troca de que falaacutevamos a da uniatildeo pela geraccedilatildeo

Porque eacute de facto impossiacutevel unir-me a algo que natildeo eacute eu nem tem uma essecircncia agrave qual

me ligue Cada indiviacuteduo passou a ser um naacuteufrago do Ser o navio da transcendecircncia

tendo afundado Esquecemo-nos que somos noacutes mesmos parte do Ser Em vez de nos

unirmos numa embarcaccedilatildeo de Ser para podermos navegar no oceano do Nada rodeaacutemo-

-nos como jaacute dissemos de boacuteias fuacuteteis que acabam por nos separar de outros a quem

poderiacuteamos realmente unir-nos Dessa futilidade nasce a criaccedilatildeo neuroacutetica a

acumulaccedilatildeo obsessiva de objectos de riqueza de banalidades O indiviacuteduo que eacute nada

tenta definir-se ser atraveacutes de qualquer coisa ainda que seja pela absurdidade das

coisas que tem O ser humano define-se de boa vontade por aquilo que tem sem duacutevida

por vergonha daquilo que eacute63 Natildeo seraacute tanto pela vergonha de ser o que eacute quanto pela

vergonha de natildeo ser

Em desespero de causa como natildeo haacute nada que nos una ao mundo tentamos

mudar o mundo para que esse se una a noacutes em uacuteltima instacircncia reduzimo-lo a nada

Este processo tem novamente a sua causa na ilusatildeo do Deus transcendente se fomos

criados agrave imagem e semelhanccedila desse Deus se este sendo uma ilusatildeo naturalmente natildeo

eacute reduzimo-nos agrave imagem e semelhanccedila do natildeo-ser como natildeo somos apenas podemos

criar nadas novamente agrave nossa imagem e semelhanccedila Neste estado das coisas tudo eacute

63 laquo Lrsquoecirctre humain se deacutefinit volontiers par ce qursquoil a sans doute par honte de ce qursquoil est raquo JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 p 56

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 45: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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verdadeiramente nada Leopardi dividindo em trecircs as perspectivas humanas foi talvez

quem o disse melhor a primeira vecirc nas coisas mais espiacuterito do que corpo a segunda vecirc

mais corpo do que espiacuterito a terceira (a niilista em que vivemos) vecirc em tudo nada

vacuidade e vazio64 Estaraacute talvez na altura de acrescentarmos uma quarta que natildeo eacute

nova mas estaacute esquecida a de vermos no corpo o proacuteprio espiacuterito e no espiacuterito o proacuteprio

corpo isto equivale a dizer ver em cada ente o proacuteprio Ser

Nunca a humanidade gerou tanto e ao mesmo tempo criou tatildeo pouco O objecto

gerado apenas diminui o vazio o objecto criado reduz o Nada A diferenccedila natildeo se situa

apenas no valor utilitaacuterio do objecto eacute mais profunda Ao objecto maquinal e repetido

falta-lhe alma Natildeo emerge daiacute nenhum Ser Natildeo posso ligar-me a ele e diminuir o

Nada Eacute apenas algo que enche um espaccedilo mero bibelot Falta-lhe uma perspectiva

Isso revela-se claramente na diferenccedila entre a fotografia meramente reprodutiva e a

fotografia artiacutestica Na primeira apenas se reproduz o que estaacute laacute na segunda transmite-

-se uma perspectiva do Ser ou seja na segunda o Ser perspectiva-se eacute o Ser que se

colhe e se apresenta Eacute esta a funccedilatildeo do artista numa definiccedilatildeo abrangente da palavra a

de se colocar como receptaacuteculo de perspectivas do Ser

Haacute muito tempo que o curso geral da filosofia deixou de ser o amor do saber

Quando o saber deixou de ser uma perspectiva de Ser para se tornar numa objectivaccedilatildeo

a filosofia tornou-se numa logosofia numa racionalizaccedilatildeo do saber num saber do

saber num dizer do saber Deixou de ser importante o que se sabe e o como se sabe ou

mesmo o que se faz com o que se sabe para se magnificar o quanto se sabe e apenas

isso As perspectivas que subjazem ao que se sabe deixaram de ter valor A filosofia

era-o verdadeiramente quando o saber era Ser agora que o saber eacute natildeo-ser a filosofia

tornou-se amor do natildeo-ser pilar do niilismo

O filoacutesofo natildeo pode ser cientista embora nada impeccedila que o cientista seja

filoacutesofo Ou seja o cientista pode fazer filosofia a partir da ciecircncia o filoacutesofo natildeo pode

fazer ciecircncia a partir da filosofia Aqui jaz parece-nos a verdadeira causa do

sentimento de decrepitude da filosofia O cientista pode partir da ciecircncia para o Ser ou

seja pode a partir dos seus conhecimentos objectivos da realidade gerar uma

64 LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand Schefer Editions Allia Paris 1998 p 27 [Zib 102-104]

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 46: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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perspectiva ontoloacutegica que englobe esses conhecimentos Aqui eacute o Ser que engloba O

que a filosofia tem tentado fazer de certo modo suicidando-se eacute pegar em

conhecimentos objectivos e com eles englobar o Ser Essa tentativa eacute fatalmente nada-

-morta Tentar englobar o Ser com os seus modos eacute como tentar fechar um contentor

dentro do seu conteuacutedo o que apenas se pode fazer se se dividir o Ser em pedaccedilos o

que se fez atribuindo-se essecircncias em si agraves coisas

O filoacutesofo tem de ser artista ou seja como dissemos antes receptaacuteculo de

perspectivas de Ser Se o indiviacuteduo eacute vazio em si e por si eacute precisamente para poder

receber o Ser ser seu veiacuteculo Esta ideia causa celeuma porque normalmente eacute tida

como desumanizante Acha-se que por se considerar o indiviacuteduo como natildeo sendo nada

em si e por si isso signifique dizer que este eacute nada em absoluto Ora eacute precisamente o

contraacuterio que acontece se eu disser que um indiviacuteduo eacute algo em si e por si o que

acontece quando lhe retiro as qualidades que ele eacute Digo que x eacute ricopobre bonitofeio

bondosomaldoso inteligenteestuacutepido cultoignorante etc exceptuando isso eacute o quecirc

Nada obviamente como jaacute vimos Sou obrigado assim a julgar o indiviacuteduo pelos

princiacutepios que me incutiram rico = bom pobre = mau bonito = bom feio = mau etc

(ou os princiacutepios contraacuterios como eacute evidente) Mas se eu disser que o indiviacuteduo eacute um

veiacuteculo de Ser um dos seus modos posso eu julgaacute-lo assim arbitrariamente Posso

dizer que algueacutem eacute mal que algueacutem natildeo eacute convenientemente O indiviacuteduo ndash e por

indiviacuteduo entendemos qualquer coisa que seja individualmente ndash eacute o que o Ser eacute nele

Nada mais nada menos

Tem-se como dado adquirido que o mal nasce da ausecircncia de princiacutepios de

valores Mas perguntamos noacutes haacute memoacuteria de alguma rixa alguma contenda alguma

guerra algum crime algum mal feitos por ausecircncia de princiacutepios de valores Natildeo seraacute

antes cada rixa cada contenda cada guerra cada crime cada mal originado pelo

confronto de princiacutepios Alguma vez duas pessoas entraram em conflito sobre uma

coisa que natildeo tinham valorizado agrave sua maneira Haacute alguma opressatildeo que natildeo seja a de

princiacutepios Eacute porque os princiacutepios de outrem natildeo satildeo os nossos que os vemos como

natildeo-princiacutepios e que outrem vecirc os nossos como tal

O Ser imanente e a comunidade ontoloacutegica estabelecem por si e em si dois

princiacutepios que deixam de o ser por emanarem da totalidade e a englobarem o de

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 47: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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respeito e o de toleracircncia absolutos Antecipando desde jaacute a criacutetica que diz que isso

abriria as portas a toda a espeacutecie de loucura criminosa notamos que essa nasceria dos

princiacutepios de outrem natildeo da nossa ausecircncia deles Soacute haacute roubo porque haacute o princiacutepio de

propriedade soacute haacute assassiacutenio porque o outro tem algo que noacutes queremos (princiacutepio

anterior) ou porque eacute algo que por princiacutepio fomos ensinados a detestar a cor da sua

pele por exemplo Como eacute dito no Tao Te King LVII quanto mais se multiplicam as

leis e as ordenaccedilotildees maior nuacutemero haacute de ladrotildees e de bandidos Natildeo haacute nenhum

princiacutepio exceptuando aqueles ndash ou outros que derivem deles directamente como o

facto de a minha liberdade acabar onde comeccedila a do outro ndash que natildeo seja gerador de

conflitos65

A diferenccedila entre esta eacutetica deduzida a partir de um Ser imanente e qualquer

outra eacute de que esta nasce de uma visatildeo do mundo ou seja parte do mundo para a eacutetica

Outras eacuteticas tecircm a tendecircncia do preacute-conceito ou seja formam uma eacutetica que aplicam

ao mundo tendecircncia mais uma vez tecnicista Uma eacutetica que nasccedila de uma visatildeo do

mundo natildeo um mundo que nasce de uma visatildeo eacutetica Novamente a diferenccedila entre o

filoacutesofo-sage e o filoacutesofo-teacutecnico

3

O Uno foi posto de parte com a morte de Deus e tivemos de esperar ateacute aos

avanccedilos da fiacutesica e a Teoria do BigBangBigCrunch para de novo podermos falar dele

O que pretendemos aqui eacute lanccedilar as bases de uma ontofilia materialista Materialista no

sentido de natildeo apelarmos a nenhuma transcendecircncia eacute a mateacuteria que se exprime atraveacutes

do Logos natildeo o contraacuterio ou seja eacute a mateacuteria que produz Logos ou pelo menos o

Logos e a mateacuteria satildeo irmatildeos O nuacutecleo primordial ou Uno de que nasceu o Universo eacute

para noacutes o Ser Tudo o que existe satildeo modos desse Ser assim como eram modos da

substacircncia para Espinosa Daiacute se conclui que existimos numa comunidade ontoloacutegica

isto eacute tudo o que existe proveacutem do mesmo Ser eacute o mesmo Ser

65 ldquoTodos consideram o belo como belo eacute nisso que reside a sua fealdade Todos consideram o bem como bem eacute nisso que reside o seu malrdquo LAO TSE Op Cit II p 14

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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BIBLIOGRAFIA

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Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland

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Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994

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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika

Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 48: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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Cada indiviacuteduo eacute um veiacuteculo de Ser ou seja transporta em si uma remanecircncia

de Uno que tende para a uniatildeo Essa uniatildeo apenas se pode dar por dois meios pelo

Amor e pelo Logos Mas como dissemos o Amor e o Logos satildeo modalidades da

Saudade Isso percebe-se pelas proacuteprias definiccedilotildees de Heraclito e Platatildeo de falta e de

plenitude A Saudade natildeo eacute um mero sentimento reservado agrave populaccedila ou simples

rebento de melancolia tiacutepico da alma portuguesa A Saudade eacute um conceito e por

conceito entendemos o produto da resoluccedilatildeo bem sucedida de uma tensatildeo de forccedilas Por

bem sucedida entendemos um aumento de compreensatildeo do Ser A Saudade eacute o

sentimento por excelecircncia do Ser Eacute a proacutepria falta que o Ser sente de si mesmo

conceptualizada

O primeiro tipo de uniatildeo daacute-se pelo Logos e eacute de facto o que aqui temos

tentado fazer a compreensatildeo do Ser Soacute temos desejo de compreender porque o Ser

sente Saudade dele proacuteprio de ser completo A compreensatildeo de si proacuteprio do Ser eacute o

primeiro passo para a beatitude como o diz Espinosa Pois a beatitude nada mais eacute do

que a proacutepria satisfaccedilatildeo da alma que nasce do conhecimento intuitivo de Deus Ora

aperfeiccediloar o entendimento nada mais eacute do que compreender Deus e os atributos de

Deus e as acccedilotildees que seguem da necessidade da sua natureza66 Mas este Logos esta

Razatildeo como aliaacutes precisa Espinosa eacute conhecimento intuitivo Somente pela intuiccedilatildeo

me posso ligar agrave compreensatildeo do Ser Mas eacute uma intuiccedilatildeo que se alia ao conhecimento

eacute uma intuiccedilatildeo rigorosa intuiccedilatildeo porque parte de uma projecccedilatildeo da remanecircncia para o

Ser rigorosa porque fundamenta e expotildee natildeo declara e impotildee Aqui compreender

alguma coisa algo eacute unirmo-nos a ele

Haacute por outro lado outro tipo de Razatildeo a analiacutetica e reificadora a Razatildeo

mecacircnica e mecanizadora (O segundo tipo de conhecimento para Espinosa sendo o

intuitivo o terceiro) No fundo eacute a Razatildeo sem intuiccedilatildeo sem a projecccedilatildeo da remanecircncia

em direcccedilatildeo ao Ser Eacute a Razatildeo mal direccionada Eacute o conhecimento que se dedica ao

estudo individual das coisas sem nunca o ligar agrave totalidade ao Ser Se a Razatildeo eacute

indigecircncia e riqueza esta pertence ao lado pobre da gama Eacute a Razatildeo que destroacutei para

compreender Esta compreensatildeo que esmiuacuteccedila eacute para mentes pequeninas como eacute para

boca de meninos a refeiccedilatildeo que temos de cortar em pedacinhos Natildeo eacute assim de admirar 66 Eacutetica Parte IV Apecircndice Capiacutetulo IV

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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BIBLIOGRAFIA

- PLATON Oeuvres Complegravetes Tome IV 2e Partie Le Banquet Trad Paul Vicaire Les Belles Lettres Paris 1992

- LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107 para os fragmentos de Heraclito

- SPINOZA Baruch LrsquoEacutetique Trad Roland Caillois Eacuteditions Gallimard 1954

- SPINOZA Baruch Traiteacute Politique Lettres Trad Charles Appuhn GF Flammarion 1996 Paris

- LAO TSE Tao Te King Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo - NIETZSCHE Friedrich Oeuvres I e II Bouquins Robert Laffont Paris

1993 - NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Volume I O Niilismo

Europeu Trad Isabel Henninger Ferreira Porto 2004 - JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 - LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand

Schefer Editions Allia Paris 1998 - PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 - SCHOPENHAUER Arthur Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora

Lisboa 2002 - PESSOA Fernando O Livro do Desassossego AssiacuterioampAlvim Lisboa 1998 - SILVA Agostinho da Textos e Ensaios Filosoacuteficos I e II Acircncora Editora

Lisboa 1999 - HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad

Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise

- Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997

- BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 - Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida

Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland

Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos

Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994

- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition

1999 Paris

- 54 -

- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika

Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 49: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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a tendecircncia geral para a mecanizaccedilatildeo do Homem e a humanizaccedilatildeo da maacutequina se se

faz do Homem um ser meramente analiacutetico a maacutequina que analisa torna-se humana a

seus olhos Este tipo de Razatildeo embora necessaacuteria no seu campo natildeo pode ser como

tem sido elevada a paradigma de todo o pensar ainda menos do pensar filosoacutefico Essa

Razatildeo ruminante tem sido confundida com o ruminar que aconselhava Nietzsche67 mas

esqueceu-se este ou pensou talvez que fosse dado adquirido de explicar em que

consiste o ruminar filosoacutefico em engolir o suco e cuspir a palha e natildeo o contraacuterio

Para Espinosa o Amor eacute a Alegria acompanhada pela ideia de uma causa

exterior68 Como jaacute vimos a alegria eacute a paixatildeo pela qual o espiacuterito passa a uma

perfeiccedilatildeo maior Assim o Amor eacute o processo que leva a uma perfeiccedilatildeo maior atraveacutes de

uma causa exterior Entendemos como jaacute dissemos por perfeiccedilatildeo maior uma maior

uniatildeo69 O Amor eacute Saudade que a minha remanecircncia sente da remanecircncia de outrem

sendo esta uacuteltima a causa exterior Eacute deste enlevo do ser em mim para o ser do outro

que nasce o Amor E eacute atraveacutes dele que posso unir-me ao mundo na sua totalidade

Amor este que natildeo deve ser confundido com o amor das qualidades que outro possa ter

ou mesmo do indiviacuteduo em si Porque tanto aquelas como este satildeo como vimos

acidentes O que natildeo eacute acidental eacute a sua remanecircncia a sua pertenccedila agrave comunidade

ontoloacutegica Amar qualidades eacute amar quimeras ilusotildees que com um gesto se esfumam

Mas o Amor natildeo se reduz ao amar meramente o humano aqueles cujos acidentes mais

se nos assemelham eacute Amor da totalidade desde a pedra da calccedilada70 agrave galaacutexia mais

distante passando por toda a forma de vida todos os modos de Ser

Poderaacute dizer-se que natildeo podemos amar toda a gente que haacute sempre algueacutem com

quem entraremos em conflito Isso acontece e continuaraacute a acontecer enquanto se

educar a humanidade a viver segundo as qualidades e as aparecircncias Nunca entram em

conflito o ser de algueacutem com o ser de outrem confrontam-se os princiacutepios e as

qualidades de um com os de outro Seria aliaacutes impossiacutevel o ser de um e outro entrarem

67 Assim falava Zaratustra IV O Mendigo Voluntaacuterio Proacutelogo agrave Genealogia da Moral 68 Eacutetica Parte III escoacutelio da Proposiccedilatildeo XIII 69 Novamente Espinosa na Carta XXXVI ldquohellipa perfeiccedilatildeo consiste no ser a imperfeiccedilatildeo na privaccedilatildeo de serrdquo 70 ldquoEm tudo existe o infinito Haacute em todas as coisas um valor extraordinaacuterio principalmente nas coisas humildes e obscuras Quem repara nelas Quem volve os olhos para as pedrinhas do chatildeordquo PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 I p 42

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

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Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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BIBLIOGRAFIA

- PLATON Oeuvres Complegravetes Tome IV 2e Partie Le Banquet Trad Paul Vicaire Les Belles Lettres Paris 1992

- LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107 para os fragmentos de Heraclito

- SPINOZA Baruch LrsquoEacutetique Trad Roland Caillois Eacuteditions Gallimard 1954

- SPINOZA Baruch Traiteacute Politique Lettres Trad Charles Appuhn GF Flammarion 1996 Paris

- LAO TSE Tao Te King Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo - NIETZSCHE Friedrich Oeuvres I e II Bouquins Robert Laffont Paris

1993 - NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Volume I O Niilismo

Europeu Trad Isabel Henninger Ferreira Porto 2004 - JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 - LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand

Schefer Editions Allia Paris 1998 - PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 - SCHOPENHAUER Arthur Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora

Lisboa 2002 - PESSOA Fernando O Livro do Desassossego AssiacuterioampAlvim Lisboa 1998 - SILVA Agostinho da Textos e Ensaios Filosoacuteficos I e II Acircncora Editora

Lisboa 1999 - HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad

Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise

- Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997

- BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 - Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida

Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland

Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos

Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994

- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition

1999 Paris

- 54 -

- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika

Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

- 56 -

Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 50: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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em conflito pois trata-se do mesmo o conflito nasce quando as remanecircncias foram de

tal modo couraccediladas com princiacutepios e valores que se torna impossiacutevel aceder a elas

Nesse caso o Sage que eacute aquele que vive segundo a Razatildeo Razatildeo esta que significa

como nos disse Espinosa compreender o Ser e a comunidade ontoloacutegica desviar-se-aacute e

continuaraacute o seu caminho71

4

Nestas condiccedilotildees poderaacute o Homem ser livre Isto eacute nesta concepccedilatildeo como

mero veiacuteculo de Ser natildeo estaraacute determinado absolutamente Neste ponto diremos que

tanto o determinismo absoluto como o livre arbiacutetrio ou seja a liberdade absoluta satildeo

fantasias Em primeiro lugar o Homem estaacute jaacute determinado pela sua forma e mateacuteria a

ser Homem Por elas estaacute tambeacutem limitado nas suas possibilidades ou seja eacute por

exemplo possiacutevel correr os cem metros em menos de dez segundos mas natildeo eacute um

possiacutevel meu por mais substacircncias que ingerisse Isto eacute facilmente aceite o que

costuma ser mais problemaacutetico de aceitar eacute dizer-se que perante vaacuterias opccedilotildees estamos

determinados a escolher uma Em dada situaccedilatildeo de escolha aparece ao indiviacuteduo um

reino de possiacuteveis como bem notou Schopenhauer72 que aquele concebe como os seus

possiacuteveis Desse reino soacute haacute um fatalmente que seraacute o seu Regressando ao exemplo

anterior o reino dos possiacuteveis para correr os cem metros eacute a limite o que vai de uma

duraccedilatildeo infinitamente pequena a uma infinitamente grande O meu possiacutevel estaacute algures

entre os dois natildeo eacute o reino inteiro que eacute meu possiacutevel Perante um bloco de maacutermore

sei que eacute possiacutevel extrair um David mas novamente natildeo eacute o meu possiacutevel O meu seraacute

no melhor dos casos olhar para ele e sonhar ser Miguel Acircngelo

Mas existe no entanto uma particularidade humana que lhe confere uma

liberdade relativa a da ponderaccedilatildeo Esta consiste em reduzir o reino de possiacuteveis ao

seu e esse atingido dizer-lhe Natildeo Eacute o processo que permite controlar as suas paixotildees

Como vimos no primeiro capiacutetulo o Homem tem acesso ao Natildeo pela sua reflexividade

71 ldquoAgora deixo cada um viver segundo a sua compleiccedilatildeo e consinto que aqueles que o queiram morram por aquilo que crecircem ser o seu bem desde que me seja permitido a mim viver pela verdaderdquo Espinosa Carta XXX 72 Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora Lisboa 2002 Capiacutetulo III p 55 e seguintes

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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BIBLIOGRAFIA

- PLATON Oeuvres Complegravetes Tome IV 2e Partie Le Banquet Trad Paul Vicaire Les Belles Lettres Paris 1992

- LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107 para os fragmentos de Heraclito

- SPINOZA Baruch LrsquoEacutetique Trad Roland Caillois Eacuteditions Gallimard 1954

- SPINOZA Baruch Traiteacute Politique Lettres Trad Charles Appuhn GF Flammarion 1996 Paris

- LAO TSE Tao Te King Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo - NIETZSCHE Friedrich Oeuvres I e II Bouquins Robert Laffont Paris

1993 - NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Volume I O Niilismo

Europeu Trad Isabel Henninger Ferreira Porto 2004 - JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 - LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand

Schefer Editions Allia Paris 1998 - PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 - SCHOPENHAUER Arthur Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora

Lisboa 2002 - PESSOA Fernando O Livro do Desassossego AssiacuterioampAlvim Lisboa 1998 - SILVA Agostinho da Textos e Ensaios Filosoacuteficos I e II Acircncora Editora

Lisboa 1999 - HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad

Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise

- Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997

- BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 - Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida

Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland

Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos

Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994

- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition

1999 Paris

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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika

Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 51: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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pela consciecircncia de natildeo-ser uno Eacute certamente uma liberdade negativa mas natildeo eacute de

menosprezar O Homem como ser negativo apenas se pode positivar pela negaccedilatildeo ou

seja dizendo natildeo ao seu Natildeo Reside aqui a diferenccedila entre Schopenhauer e Nietzsche

quando o primeiro julga que estaacute a negar estaacute a afirmar e o contraacuterio para o segundo

Quando o primeiro pensa estar a dizer natildeo agrave vida estaacute a dizer sim ao seu Natildeo quando o

segundo julga dizer sim agrave vida estaacute a dizer natildeo ao seu Natildeo Por isso o Amor e o Logos

modos da Saudade satildeo negaccedilotildees do nosso Natildeo superaccedilotildees desse

Soacute podemos dizer natildeo a uma coisa e a uma coisa soacute Pela ponderaccedilatildeo reduzo o

reino de possiacuteveis ao meu e perante esse e esse soacute posso ser livre de dizer natildeo Porque

se perante todo o reino de possiacuteveis escolher um natildeo estou a negar todos os outros

estou a assentir a este em particular Tenho de ter o tempo necessaacuterio de distinguir o

meu possiacutevel e dizer-lhe caso o queira natildeo O caso paradoxal da sociedade de controlo

em que vivemos em que natildeo haacute realmente controlo nenhum palpaacutevel ou seja opressatildeo

verdadeira e directa mas que parece ainda assim um rebanho amestrado explica-se

pelo facto de sermos constantemente bombardeados de possiacuteveis gerando a

impossibilidade do Natildeo Estamos de certa forma condenados a dizer sim a alguma

coisa Foi sub-repticiamente retirada a possibilidade da ponderaccedilatildeo o poder do Natildeo O

Estado parece ter percebido que a coacccedilatildeo natildeo eacute necessaacuteria basta oferecer uma

quantidade razoaacutevel de possiacuteveis ao povo para este ficar doacutecil como um coelho

ofuscado por faroacuteis

O Logos e o Amor como os temos apresentado constituem a liberdade por

excelecircncia atraveacutes deles digo Natildeo agrave minha condiccedilatildeo de incompletude e acedo ao Ser

Poder-se-aacute perguntar se natildeo seraacute esta a forma mais flagrante de determinismo o

verdadeiro fado o de aderir agrave vontade de uniatildeo do Ser Como disse Nietzsche O fatum

eacute um pensamento exaltante para quem compreende que faz parte dele73 Dizer natildeo ao

Ser eacute aquiescer agrave minha incompletude aceitaacute-lo como algo de que faccedilo parte eacute

completar-me numa transimanecircncia pelo Logos e pelo Amor modos da Saudade que o

Ser sente de si proacuteprio

73 A Vontade de Poder Volume I Capiacutetulo IV O homem exterior sect 15

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BIBLIOGRAFIA

- PLATON Oeuvres Complegravetes Tome IV 2e Partie Le Banquet Trad Paul Vicaire Les Belles Lettres Paris 1992

- LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107 para os fragmentos de Heraclito

- SPINOZA Baruch LrsquoEacutetique Trad Roland Caillois Eacuteditions Gallimard 1954

- SPINOZA Baruch Traiteacute Politique Lettres Trad Charles Appuhn GF Flammarion 1996 Paris

- LAO TSE Tao Te King Editorial Estampa 6ordf ediccedilatildeo - NIETZSCHE Friedrich Oeuvres I e II Bouquins Robert Laffont Paris

1993 - NIETZSCHE Friedrich A Vontade de Poder Volume I O Niilismo

Europeu Trad Isabel Henninger Ferreira Porto 2004 - JACCARD Roland La Tentation Nihiliste Quadrige PUF Paris 1991 - LEOPARDI Giacomo Tout est Rien Trad Eva Cantavenera e Bertrand

Schefer Editions Allia Paris 1998 - PASCOAES Teixeira Livro de Memoacuterias Lisboa Assiacuterio amp Alvim 2001 - SCHOPENHAUER Arthur Contestaccedilatildeo ao Livre-Arbiacutetrio Reacutes-Editora

Lisboa 2002 - PESSOA Fernando O Livro do Desassossego AssiacuterioampAlvim Lisboa 1998 - SILVA Agostinho da Textos e Ensaios Filosoacuteficos I e II Acircncora Editora

Lisboa 1999 - HEIDEGGER Martin Questions I Qursquoest-ce que la Meacutetaphysique Trad

Henry Corbin Roger Munier Alphonse de Waelhens Walter Biemel Geacuterard Granel e Andreacute Preacuteau eacuteditions Gallimard 1968 pour la traduction franccedilaise

- Theacuteologiens et Mystiques au Moyen Acircge Trad Alain Michel Gallimard Paris 1997

- BIAGGI Vladimir Le Nihilisme GF-Flammarion Paris 1998 - Dicionaacuterio da Liacutengua Portuguesa 7a ediccedilatildeo revista e ampliada J Almeida

Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland

Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos

Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994

- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition

1999 Paris

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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika

Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

Page 52: Uma essência invisível e subtil é o Espírito de todo o ... · 3“O que há de gran n o homem é ser uma pont e não um fi m : o q ue se pode amar n é ser a passagem e um declínio

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Costa A Sampaio e Melo Porto Editora - CAMUS Albert Le Mythe de Sisyphe folioessais Gallimard 1999 - FREUD Sigmund Inhibition symptocircme et angoisse Trad Joeumll et Roland

Doron Quadrige PUF 1993 - KIRK RAVEN SCHOFIELD The Presocratic Philosophers Os Filoacutesofos

Preacute-socraacuteticos Trad Carlos Alberto Louro Fonseca 4ordf ediccedilatildeo Fundaccedilatildeo Calouste Gulbenkian Lisboa 1994

- CASSEacute Michel Du vide et de la creacuteation Poches Odile Jacob Paris 2001 - HUME David A Treatise of Human Nature Oxford University Press - DELEUZE Gilles Nietzsche et la philosophie Quadrige PUF 3e eacutedition

1999 Paris

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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika

Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

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- GOBRY Ivan Le Vocabulaire Grec de la Philosophie Ellipses 2000 Paris - KLIMA Ladislav Le monde comme conscience et comme rien Trad Erika

Abrams Eacuteditions La Diffeacuterence Paris 1995

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

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NOTAS

i sisto ere stiti (qqf steti) statum - tr - 1 - empecirccher davancer rendre immobile arrecircter - 2 - soutenir (de qui tombe) remettre sur pied sauver - 3 - fixer deacuteposer poser eacutetablir placer mettre - 4 - eacutelever construire - 5 - rendre tel ou tel - 6 - faire venir devant amener faire comparaicirctre - 7 - retenir (qqn ou qqch) contenir reacuteprimer empecirccher - 8 - intr - se placer sarrecircter se fixer solidement se maintenir reacutesister (agrave qqn alicui) httppersowanadoofrprimaelementaDico-s04html Como se vecirc estaacute tambeacutem presente a ideia de imobilidade sendo portanto o existente aquele que muda o Ser aquilo que permanece ii angustiae arum f plur (qqf au sing) - 1 - espace eacutetroit lieu resserreacute deacutefileacute gorges deacutetroit - 2 - courte dureacutee - 3 - petitesse de sentiments - 4 - briegraveveteacute seacutecheresse - 5 - difficulteacute extrecircme gecircne embarras peacutenurie pauvreteacute httppersowanadoofrprimaelementaDico-a08html iii Optaacutemos para natildeo quebrar o ritmo do presente trabalho e natildeo ocupar o espaccedilo que lhe eacute devido por apresentar em nota uma exposiccedilatildeo da filosofia de Heraclito pertencente a um trabalho realizado para a disciplina de Filosofia Antiga do Doutor Antoacutenio Pedro Mesquita em Dezembro de 2004 Todos os fragmentos tecircm a numeraccedilatildeo Diels-Kranz e foram retirados da obra LES EacuteCOLES PREacuteSOCRATIQUES Eacutedition eacutetablie par Jean-Paul Dumont avec la collaboration de Daniel Delatre et de Jean-Louis Poirier Eacuteditions Gallimard 1988 pour les traductions 1991 pour la premiegravere eacutedition folio essais Gallimard pp 49-107

Uma relevante trindade sobressai dos fragmentos de Heraclito Deus o λoacuteγος e o Tempo o que

eacute o que compreende e o que altera Ao λoacuteγος como conceito central da obra teraacute de ser dada antes de mais uma clara definiccedilatildeo que a defeito de podermos como eacute evidente provar ser a pretendida pelo autor cremos ter o meacuterito de abranger todos os contextos onde foi pelo Efesiano utilizada O λoacuteγος eacute substancialmente fogo essencialmente Razatildeo Este fogo governa todas as coisas (frag 64) e sobre elas tendo descido julgaacute-las-aacute (frag 66) Sabemos tambeacutem pelos fragmentos 1 e 2 que tudo acontece segundo este e que eacute comum Deus (θεός) da forma como entendemos o fragmento 67 eacute o conjunto de todas as coisas a sua unidade o Todo Como tal e estando o λoacuteγος presente em tudo Deus eacute o uacutenico saacutebio (frag 41) aquele que possui a completa Razatildeo o perfeito entendimento Compreende-se assim o fragmento 78 em que nos eacute dito que apenas a pessoa divina possui o entendimento e natildeo a humana O Tempo (Αιωυ) citado salvo erro apenas no fragmento 52 eacute uma crianccedila que se diverte brinca a ele pertence a realeza Postas estas definiccedilotildees aparece-nos muito mais liacutempida a visatildeo de Heraclito Uma das grandes dificuldades era a de perceber como estaria o λoacuteγος presente em todas as coisas ser comum e ao mesmo tempo pertencer exclusivamente a Deus Como vimos se Deus eacute todas as coisas a explicaccedilatildeo daacute-se a si mesma Resta-nos agora apresentar e desenvolver a hipoacutetese a que acima nos propusemos Se o λoacuteγος eacute universal e Deus o Universo e se somos parte integrante deste uacuteltimo teremos de convir que natildeo somos noacutes que pensamos o Universo mas que eacute este que se pensa em noacutes Na forma como percebemos a cosmovisatildeo heracliteana natildeo existe na susodita trindade superioridade de Deus Mais parece-nos mesmo que este se encontra agrave mercecirc juntamente com o λoacuteγος que lhe pertence agraves travessuras do Tempo-crianccedila Nada nos eacute dito sobre a precedecircncia de um deles em lado algum eacute definida uma Criaccedilatildeo Sabemos no entanto pelo fragmento 30 que este mundo eacute o mesmo para todos eacute incriado foi sempre eacute e seraacute e que eacute um fogo eterno acendendo-se e apagando-se em medida Estas diaacutestole e siacutestole perpeacutetuas do grande coraccedilatildeo universo (que poderiacuteamos tatildeo facilmente assimilar agraves modernas teorias do Big Bang e do Big Crunch) revelam-nos existir uma Harmonia (άρmicroονία) uma medida Podemos ver neste fogo natildeo uma verdadeira expansatildeo e contracccedilatildeo do universo em si mas antes um aumento e uma diminuiccedilatildeo da compreensatildeo do universo de si proacuteprio Como se este fogo presente em tudo em maior ou menor quantidade tivesse como uacutenico intuito o conhecimento daquilo que consome e o manteacutem vivo e uma vez tudo conhecido e consumido se quedasse numa satisfaccedilatildeo temporaacuteria para voltar a abrasar-se num novo ciclo

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

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Mas qual natildeo diremos o objectivo mas a loacutegica deste movimento Como vimos este fogo este λoacuteγος divino ou seja universal tem como propensatildeo o conhecimento de tudo mas natildeo nos diz Heraclito que o λoacuteγος eacute jaacute o conhecimento de tudo Que Deus possui o pensamento verdadeiro Seraacute importante aqui lembrar o fragmento 46 O pensamento eacute uma doenccedila sagrada De facto Deus conhece natildeo tudo mas pelo que nos eacute dado ler o Todo Com efeito eu posso conhecer por exemplo um livro como todo e natildeo conhecer tudo sobre aquele livro Neste caso numa analogia mais perfeita eu posso conhecer o meu corpo como todo ou seja conhecer a sua extensatildeo e natildeo conhecer de todo o seu funcionamento as suas particularidades Diremos portanto que o λoacuteγος Universal o pensamento divino tem uma visatildeo macroscoacutepica geral mas que lhe falta a visatildeo microscoacutepica particular Como se o Universo estivesse a dada altura parado pensando sobre si mesmo na sua absoluta totalidade no seu absoluto aborrecimento e num momento de insanidade comum aos pensadores solitaacuterios o seu proacuteprio pensamento nele originasse numa espeacutecie de intuito originarius kantiano o Tempo e este qual o ramo de menta batendo o vinho o mel o queijo e a cevada do cycecircon (frag 125) separasse e misturasse o λoacuteγος em todas as coisas e ficasse desde aiacute preso numa eterna fome de conhecimento numa impossibilidade de parar numa prisatildeo de movimento de mudanccedila (microεταβολή) passando de um quietismo a um metabolismo da essecircncia De uma essecircncia uacutenica e imoacutevel onde repousava o λoacuteγος passaacutemos a uma essecircncia uacutenica eacute verdade mas separada em existecircncias particulares cada uma delas contendo uma parcela daquele entendimento que no fundo natildeo se lhes coaduna actuando nelas como um parasita uma doenccedila Sabemos tambeacutem que para Heraclito a indigecircncia (χρησmicroοσύνην) eacute ordenaccedilatildeo e a riqueza (κορον) abrasamento (frag 65) No iniacutecio de um ciclo logo apoacutes a dispersatildeo do λoacuteγος este encontra-se ainda fraco morno mas a sua acircnsia da unidade originaacuteria do conhecimento total faacute-lo crescer alimentando-se das existecircncias particulares e colectando os conhecimentos de cada entidade abrasa-se cada vez mais ateacute atingir o ponto de total conhecimento e abrasamento O λoacuteγος eacute o pensamento que tudo conduz atraveacutes de tudo (frag 32) natildeo em bom pastor para bem-estar dos que conduz mas como carniceiro levando a abater o seu gado Essa colectacircnea de existecircncias operada pelo λoacuteγος tem como uacutenico propoacutesito a sua reunificaccedilatildeo numa essecircncia una logo a sua proacutepria reunificaccedilatildeo E eacute aqui neste ponto de total abrasamento que voltaremos agrave essecircncia singular quando tudo for novamente fogo reentrando em acccedilatildeo o Tempo para de novo separar e misturar Quanto mais conhecimento menos tempo O verdadeiro conhecimento eacute ver tudo fora do tempo na imobilidade primeira da Unidade que se atinge alimentando o metabolismo do Tempo ateacute regressar ao quietismo da essecircncia O fragmento 53 diz-nos que o conflito (πόλεmicroος) eacute pai e rei de todos os seres Natildeo nos esquecendo de notar que ao Tempo pertence a realeza vemos que se o conflito eacute pai de todas as coisas o Tempo seraacute certamente pai do conflito Como vimos o Tempo na sua acccedilatildeo de dispersatildeo da essecircncia gerou as vaacuterias existecircncias os seres as coisas a cada uma delas tocando o seu quinhatildeo mais ou menos avultado de λoacuteγος Vemos este conflito como o choque das vaacuterias existecircncias no turbilhatildeo gerado pelo Tempo como se entrechocam os vaacuterios componentes da bebida acima referida quando fustigados pelo ramo de menta Segundo o fragmento 80 o conflito eacute universal e tudo nasce e morre segundo discoacuterdia e necessidade Tudo nasce ou seja todos os existentes Neste turbilhatildeo temporal vatildeo-se gerando por choques as diversas configuraccedilotildees possiacuteveis da essecircncia em existecircncias Segundo a quantidade de λoacuteγος com que ficam tecircm uma visatildeo uma perspectiva diferente do mundo Esta discoacuterdia esta dissonacircncia eacute necessaacuteria para proporcionar ao λoacuteγος que tudo rege o maacuteximo de perspectivas possiacuteveis que ele como bateria de conhecimento acumula ateacute atingir de novo a unidade O λoacuteγος acresce-se portanto pelo conhecimento de todas as coisas atraveacutes de todas as coisas possiacuteveis E quando todas as coisas sob todas as perspectivas forem conhecidas o conhecimento seraacute assim como o abrasamento total A unidade dos opostos presente na maioria dos fragmentos torna-se assim tambeacutem cristalina A perspectiva do peixe no fragmento 61 eacute tatildeo necessaacuteria e vaacutelida como a dos homens E o uacutenico saacutebio no fragmento 32 quer realmente ser e natildeo ser chamado pelo nome de Zeus Mas estas perspectivas natildeo aproveitam ao peixe natildeo interessam ao homem o uacutenico que aqui quer eacute o Uno E Zeus enquanto Uno quer e natildeo quer porque ambas as perspectivas lhe satildeo necessaacuterias E quando o nosso filoacutesofo afirma que o sol eacute grande como um peacute de homem (frag 3) di-lo certamente com toda a convicccedilatildeo ouvindo o λoacuteγος Ateacute porque natildeo interessa o que o sol eacute ou mesmo que o sol seja interessa sim adicionar agrave totalidade do conhecimento uma nova perspectiva Dizer que o sol eacute grande como um peacute de homem tem a mesma validade do que afirmar que tem 1391980 km de diacircmetro Todas as coisas serem convertiacuteveis em fogo e o fogo em todas elas (frag 90) significa que tudo o que eacute conhecido pertence a uma visatildeo particular

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm

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dessa coisa ou seja algo apercebido por um qualquer ser natildeo passa nunca de uma perspectiva de algo que eacute um existente apenas na duraccedilatildeo de um ciclo mas que eacute na realidade o mesmo que todas as outras coisas a mesma essecircncia os existentes satildeo apenas conhecimentos particulares do Uno Mas necessariamente essa unidade da essecircncia soacute seraacute atingida quando forem reunidas atraveacutes do crescendo do λoacuteγος todas as perspectivas possiacuteveis E eacute assim conveniente que o sol seja novo cada dia e continuamente (frag 6) pois cada nova perspectiva alimenta o λoacuteγος e como nos foi dito eacute lei obedecer agrave vontade do Uno (frag 33) E essa vontade consiste precisamente em abraccedilar todas as perspectivas possiacuteveis acumular conhecimentos particulares alma do mundo semelhante agrave nossa que acrescenta ao seu proacuteprio λoacuteγος (frag 115) um novo conhecimento Por isso o filoacutesofo deve buscar muitas coisas (frag 35) acumular perspectivas isto sem entrar em contradiccedilatildeo com o que eacute dito no fragmento 40 ou seja que um saber universal natildeo instrui o intelecto Porque de facto a acumulaccedilatildeo de perspectivas sem a noccedilatildeo do que se faz eacute de pouco interesse para o instrumento que conhece o homem eacute escravo do λoacuteγος mas secirc-lo-aacute muito menos se souber que o eacute agir segundo a natureza sabendo-o (frag 112) A funccedilatildeo do filoacutesofo eacute portanto esta reunir informaccedilatildeo conhecimento mas estando desperto (frag 89) sabendo que tudo eacute apenas uma perspectiva que somos meros tiacuteteres Mas por este processo aprendemos que existe uma unidade que trabalhamos para uma perspectiva global o conhecimento daquilo que eacute natildeo do que meramente existe saber que embora muitas coisas existam apenas uma eacute Aquele que possui uma alma seca com mais fogo eacute o excelente (frag 118) pois possui mais λoacuteγος que os outros e seraacute este podemos deduzir o gerador de novas visotildees Se eacute necessaacuterio natildeo nos comportarmos como os filhos dos pais (frag 74) eacute precisamente porque temos de mudar constantemente as perspectivas Vimos ateacute agora que Deus eacute o Universo e que este eacute regido por um fogo consciente e omnipresente o λoacuteγος Vimos tambeacutem que essa tranquila e primeira unidade foi desmanchada pelo Tempo que separou a essecircncia em existentes Estes existentes cada um partilhando contranatura o λoacuteγος contribuem a partir desse momento para a recolecccedilatildeo de perspectivas sapienciais que num processo de acumulaccedilatildeo voltaratildeo a abrasar o Universo na sua prima unidade num conhecimento total Natildeo se operaraacute aqui um fim mas por nova intervenccedilatildeo do Tempo um reiniacutecio Numa espeacutecie de tortura impingida pela crianccedila real o Universo assemelha-se a uma moeda posta a rodopiar e que quando estaacute prestes a quedar-se eacute de novo acelerada pelos dedos infantis O mundo como o conhecemos apenas existe em movimento todos os existentes satildeo filhos do Tempo sem ele o mundo seria uma essecircncia quieta O nosso mundo dos existentes portanto soacute permanece mudando (frag 84a) ivFragment 65 Hippolyte Reacutefutation des toutes les heacutereacutesies IX 10 7 ldquoὄλων αἴτιον καλεῖ δὲ αὐτὸ χρησμοσύνην καὶ κόρον χρησμοσύνη δὲ ἐστιν ἡ διακόσμησις κατ΄ αὐτον ἡ δὲ ἐκπύρωσιςrdquo Le feu est indigence et satieacuteteacute(Leacuteon Robin) Le feu est manque (χρησμοσύνη) et excegraves (κόρον) (B) Fire is want (χρησμοσύνη) and surfeit (κόρον) httpphiloctetesfreefruniheraclitehtm