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UMA EXPERIÊNCIA METALÍNGÜÍSTICA DE TRADUÇÃO
EM
O MONOLINGUISMO DO OUTRO (1996) DE JACQUES DERRIDA
Ianize Barros da Silva
Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literatura Francesa). Orientadora: Professora Doutora Anamaria Skinner
RIO DE JANEIRO
JULHO DE 2008
Uma experiência metalingüística de tradução em
O Monolinguismo do Outro (1996) de Jacques Derrida
Ianize Barros da Silva Orientadora: Professora Doutora Anamaria Skinner
Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literatura Francesa) Banca Examinadora
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Presidente, Professora Doutora Anamaria Skinner – UFRJ
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Professora Doutora Ana Maria de Amorim Alencar – UFRJ
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Professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes - UFRJ
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Professor Doutor Pierre François Georges Guisan – UFRJ, Suplente
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Professor Doutor Marcelo Diniz Martins – CCAA, Suplente
Examinada a Dissertação:
Em ____/_____/2008.
Para aquele que sempre esteve ao meu lado.
AGRADECIMENTOS
Ao CNPQ pela bolsa concedida que possibiltou a realização deste trabalho. À Professora Doutora Anamaria Skinner, pela orientação segura e pelo incentivo na execução desta dissertação, pelas palavras estimulantes que sempre me foram destinadas. Aos professores Doutores Pierre Guisan, Marcelo Jacques de Moraes, Marcia Pietroluongo do Programa de Letras Neolatinas da UFRJ, Heloísa Barbosa do Programa de Lingüística Aplicada da UFRJ e Paulo Cesar Duque Estrada do Depatarmento de Filosofia da PUC-RIO pelos ótimos cursos que ofereceram, pela grande ajuda e pela inspiração, pelas aulas e pelas colaborações. Aos professores Doutores Ana Alencar e Marcelo Diniz, que gentilmente aceitaram participar desta banca. Ao Departamento de Letras Neolatinas, professores e funcionários, pela cortesia e auxílio que sempre me foram destinados. A todos os meus demais mestres e amigos mestres, independentemente do domínio, mas que sempre me ouviram e me aconselharam. Aos colegas de curso, pelos questionamentos inspiradores e pelas contribuições oferecidas em aulas. Aos meus alunos, pela confiança e pela disponibilidade em aprender; por também me ensinar a aprender e a viver. A todos aqueles que compreenderam meus momentos de distância e me apoiaram nas vitórias, pouco a pouco conquistadas. Aos meus pais, Iza e Walter, por sempre lutarem pela minha educação e sempre vibrarem pelo meu sucesso, ainda que silenciosamente. Ao meu noivo Gabriel, pela paciência, pelas palavras e por saber “dar tempo ao tempo”.
[...] e por isso dirijo-me aqui a Deus, o único a quem pego por testemunha, sem saber ainda o que querem dizer essas palavras sublimes, e essa gramática francesa, por, e testemunha, e Deus, e pegar, pegar Deus, e não somente fazer preces, como nunca deixei de fazê-lo em minha vida [...] e por que lhe falo como cristão latino francês embora tenham expulsado do liceu de Ben-Aknun em 1942 o judeuzinho escuro e muito árabe que nada entendia, a quem jamais ninguém deu a mínima razão para tal, nem seus pais nem seus amigos... “Circonfissão”. In: Jacques Derrida.
BARROS DA SILVA, Ianize. Uma experiência metalingüística de tradução em O Monolinguismo do Outro (1996) de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2008. Dissertação de Mestrado em Literatura Francesa. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, opção Literatura Francesa. RESUMO
Este trabalho tem como objetivo investigar a obra O Monolinguismo do Outro (1996) escrita pelo filósofo Jacques Derrida, encarando-a como uma reflexão com base na experiência da tradução vivida no dia-a-dia da língua “materna”, bem como pretende relacionar a leitura desta obra ao questionamento sobre o ato de traduzir que perpassa outros livros do autor. Para tanto, serão fundamentais os parâmetros criados por Antoine Berman, a tradutologia; e o texto de Walter Benjamin “A Tarefa do Tradutor” (1971).
BARROS DA SILVA, Ianize. Uma experiência metalingüística de tradução em O Monolinguismo do Outro (1996) de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2008. Dissertação de Mestrado em Literatura Francesa. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, opção Literatura Francesa. RÉSUMÉ
Ce travail a pour but d'étudier l'oeuvre Le Monolinguisme de l´Autre (1996), écrite par le philosophe Jacques Derrida, en l'examinant comme une réflexion basée sur l'expérience de la traduction vécue au jour le jour de la langue “maternelle”, de manière à établir un rapport entre la lecture de cette oeuvre et le débat sur l'acte de traduire qui parcourt d'autres livres de l'écrivain. Pour l´acccomplir, ce seront fondamentaux les paramètres créés par Antoine Berman, sous le nom de « traductologie », ainsi que le texte de Walter Benjamin, “La tâche du traducteur” (1971).
BARROS DA SILVA, Ianize. Uma experiência metalingüística de tradução em O Monolinguismo do Outro (1996) de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2008. Dissertação de Mestrado em Literatura Francesa. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, opção Literatura Francesa. ABSTRACT
The purpose of this work is to investigate the book O Monolinguismo do Outro (1996) written by the philosopher Jacques Derrida, considering it as a reflection based in the translation experience, experencied on everyday life use of “mother” language. It also intends to relate the reading of this work to the questioning upon the act of translating present in other books from the author. In order to accomplish that, the parametres created by Antoine Berman, the tradutology; and the text “A Tarefa do Tradutor” (1971) by Walter Benjamin are fundamental.
SINOPSE
A experiência de tradução em O Monolinguismo do
Outro (1996) de Jacques Derrida. Experiência e
Reflexão como parâmetros para a tradução. A
tradução como interpretação. A ‘inquietante
estranheza’ presente na língua.
PALAVRAS-CHAVE
Literatura Francesa Contemporânea
Ensaio Francês Contemporâneo
Ensaio sobre a tradução
Jacques Derrida
Antoine Berman
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11 CAPÍTULO 1: PARALELOS A DERRIDA, DEBATE TRADUTÓRIO ........... 18 1.1 O PENSAMENTO DA DESCONSTRUÇÃO ................................................. 18 1.2 FREUD E A DESCONSTRUÇÃO .................................................................. 23 1.3 AS CONTRIBUIÇÕES DE FREUD AO ESTUDO DA TRADUÇÃO .......... 25 1.3.1 RIQUEZA LINGÜÍSTICA EM FREUD ................................................ 30 1.3.2 N. DO T. (NOTAS DO TRADUTOR) ................................................... 32 1.4 A DÍVIDA DA TRADUÇÃO ......................................................................... 34 1.5 O MITO DA TRADUÇÃO E A LINGUAGEM ............................................. 37 1.6 A FORMAÇÃO DE UM ESTADO NACIONAL .......................................... 38 CAPÍTULO 2: UMA EXPERIÊNCIA DE REFLEXÃO ...................................... 42 2.1 À LUZ DA TRADUTOLOGIA .............................................................. 42 2.1.1 A ÉTICA DA TRADUÇÃO ................................................................... 44 2.1.2 O ESTRANGEIRO ................................................................................. 46 2.2 A DIFFÉRANCE .............................................................................................. 50 2.3 UMA IMPOSSÍVEL APROPRIAÇÃO .......................................................... 53 2.4 A PROMESSA DO ACONTECIMENTO ...................................................... 58 CAPÍTULO 3: O CARÁTER DESTE MONOLINGUISMO .............................. 62 3.1 O QUE HÁ DE HOSPITALIDADE NA MONOLÍNGUA ........................... 62 3.1.1 UMA POSSÍVEL SUBSTITUIÇÃO? .................................................... 65 3.2 TRIPLA DISSOCIAÇÃO NO MONOLINGUISMO .................................... 68 3.2.1 UMA ESTRANHA E PRETENSA IDENTIFICAÇÃO ........................ 70 3.3 SOBRE A DIGLOSSIA DO BILINGUISMO AFRICANO ......................... 72 3.4 CENÁRIO ARGELINO .................................................................................. 74 3.5 KHATIBI X DERRIDA .................................................................................. 76 CAPÍTULO 4: UMA ANÁLISE DO OUTRO ....................................................... 82 4.1 A LEI, O PERTENCIMENTO E A LINGUAGEM ........................................ 82 4.2 UMA INTERROGAÇÃO DE VERDADE ...................................................... 86 4.3 O TERRENO DO CRÍVEL .............................................................................. 88
CONCLUSÃO ............................................................................................................ 93 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 107
APÊNDICE ............................................................................................................ 113
11
Introdução
Aquela tradução que quisesse comunicar, nada comunicaria senão a comunicação1.
O livro O Monolinguismo do Outro foi apresentado, primeiramente, sob forma
de colóquio na Louisiana, nos Estados Unidos, no ano de 1992. Em tal ocasião, Derrida
trataria da questão da linguagem como pensada pela desconstrução, como
estranhamento, o que seria a introdução à sua forma de reflexão. Nesta obra, como será
melhor explicitado mais à frente, a questão do estrangeiro e sua acolhida na tradução é
apresentada. Vale ressaltar que o pensamento de Derrida é associado à tradução porque,
em quase todos os seus ensaios, ele enuncia, às vezes de forma sub-reptícia, o que está
em jogo na atividade do tradutor. O filósofo fala todo o tempo de tradução sem jamais
formalizar uma teoria da tradução, como exemplificam as quatro traduções indicadas
por ele para o bordão de Hamlet: “The time is out of joint”, em Espectros de Marx:
Derrida não optou definitivamente por nenhuma dessas quatro traduções. Considerou-as todas corretas, legítimas e desajustadas, reconhecendo, com isso, a irredutibilidade do out of joint a outra língua. Constatou que a excelência da tradução francesa nada pode quanto a isso.[...] Exemplos como esse, [ ] forjariam, para os que lêem e traduzem, um imaginário do texto, que ultrapassaria a simples questão do arquivo como metalinguagem, conforme ao conceito que fazemos deste como suporte externo, como glossário.2
Com base na epígrafe deste capítulo, “Aquela tradução que quisesse comunicar,
nada comunicaria senão a comunicação”, Walter Benjamin parte da impossibilidade da
comunicação sem resto. Dentro dos estudos da desconstrução, a questão da tradução é
quase uma extensão da tal (in)comunicação. Isto se deve ao fato de que o 1 BENJAMIN (1994), p.9 2 SKINNER (2006), p. 77-78
12
monolinguismo exerce alguns questionamentos cruciais para se pensar a língua de um
ponto de vista desconstrutor. Derrida sintetiza tais questões no fim de seu livro de 1996:
Como é possível que a única língua que este monolíngüe fala e está votado a falar, para todo o sempre, como é que é possível que ela não seja a sua? ou Como acreditar que ela permanece ainda muda para ele que a habita e que ela habita o mais rente possível, que ela permanece distante, heterogênea, inabitável e deserta? e ainda Deserta como um deserto no qual é preciso crescer, fazer crescer, construir, projetar até mesmo a idéia de uma rua e o rastro de um retorno, uma outra língua ainda?3 (grifo meu)
Jacques Derrida foi considerado por alguns como o primeiro teórico da tradução,
embora ele, como disse anteriormente, nunca tenha elaborado explicitamente uma teoria
sobre o assunto. Pautando-se em suas palestras, conferências e livros, outros estudiosos
aprofundaram as noções do que chamamos “desconstrução”, palavra que ele propôs
como outro nome para “tradução”. O filósofo transpõe o discurso psicanalítico em
particular, que em geral diz respeito aos indivíduos, para o estudo do texto e da tradução
em especial, ao referir-se ao trabalho do luto e da dívida impossível de quitar. Esta
dívida aponta sempre a possibilidade um antes e um depois de um acontecimento de
texto que se deu em sua materialidade, e que se inscreveu, em algum momento, em
algum lugar.4 Aqui, tentarei introduzir como esta teoria está implicada no processo
tradutório e suas conseqüências, através dos questionamentos propostos pelo filósofo no
final da obra em pauta, os quais procurarei expor nesta dissertação.
Derrida define a desconstrução como “ce qui arrive” (o que acontece) e que
suscita respostas e traduções. Derrida e outros estruturalistas e pós-estruturalistas
franceses, como Michel Foucault e Roland Barthes, preocupavam-se com questões
“micrológicas”, o que os habilita para pensar a tradução textual. Por isso, traduzir
segundo a desconstrução significa chamar a atenção para a reflexão; em oposição ao
3 DERRIDA (2001 b), p. 89 4 cf. SKINNER (2006)
13
automatismo no processo de correspondência ‘palavra por palavra’. O filósofo, assim
como o tradutor, interroga-se quanto a pequenas questões diferenciais no texto. Porém,
quais seriam estas “pequenas questões”?
Sabe-se que o tradutor deve decidir no momento do exercício da tradução. As
escolhas que determinado tradutor faz são reveladoras de perfis individuais. A reflexão
que acompanha esse processo faz que a tradução resulte em um jogo face à
multiplicidade de escolhas de palavras. Há também a consciência do quão difícil é
respeitar a unidade da palavra. Parece que esse respeito pela palavra, pelo que Derrida
chama de ética da palavra, é o mais difícil em uma tradução. A unidade da palavra é
justamente o desafio da tradução. Por isso, certas decisões de tradução são reivindicadas
de modo quase autoral pelo tradutor, principalmente nos momentos em que ele se dá
conta que uma língua é irredutível à outra língua e, por mais complicado que seja
traduzir, é preciso traduzir sempre.
É justamente esse desafio proposto pelo par experiência/reflexão que está
expresso, de modo quase autoral, em O Monolinguismo do Outro. O paradoxo que se
desdobra ao longo do texto, ter uma língua é não ter essa mesma língua5, é fixado com
um hipotético interlocutor, o também intelectual magrebino Abdelkebir Khatibi. O que
garante a identidade é igualmente aquilo que abala ou compromete esta mesma
identidade, de forma a pôr a relação consigo próprio em risco.
Nesta obra, encontra-se um discurso acerca da tarefa da tradução. Ao expressar
sua opinião pessoal sobre os que se dedicam a esta tarefa, o autor afirma que os
tradutores são os melhores leitores, uma vez que são muito sensíveis às formas de dizer,
ou seja, prestam toda a atenção necessária ao idioma, ao trabalho de escritura e à
5 Mote da obra, que será apurado a seguir nesta dissertação.
14
singularidade da composição. Quem quer que viva a experiência da língua desta forma
estaria, portanto, em posição de tradutor.
Para dar um exemplo da possível gênese desse sentimento acerca da forma de
apreensão da língua em posição de tradução, Derrida confessa ter observado na língua
árabe, uma performance discursiva na qual o sentido não se deixa mais separar de uma
frase, de um léxico e de uma gramática. Quando percebe que isso ocorre com ele em
relação a cada idioma que escuta, lê, mas não fala, descobre que viver no meio de outras
línguas despertou-lhe um apelo à tradução, vivido no corpo a corpo com a letra.
A obra discute o processo de formação de um imaginário lingüístico-literário
pelo escritor a partir da reflexão de sua aquisição da língua materna (o francês) e da
necessidade de se entretraduzir que caracterizou esse aprendizado. Nesta autobiografia
literária, a frase “Eu apenas tenho uma língua; e ela não é minha”6 organiza as
principais questões tratadas no texto e o discurso do livro remonta a uma memória sem
uma identidade ficcional de pátria, vivida como memória “interdite de la langue”.
Desde o título da obra, aparece a referência a uma única língua que nosso autor
considera ao mesmo tempo como sua língua e como língua estrangeira. Porém, ao dizer
que a única língua que possui não é a sua, não a está reconhecendo como estrangeira. É
justamente nesse espaço intersticial da língua que se encontram as questões forjadas no
livro.
A língua é, de fato, o que possibilita a articulação de uma singularidade
excepcional e universal que diz respeito a uma língua nossa, ao mesmo tempo em que
nos impede de se apropriar dela. O monolinguismo deste outro intensifica o terror que já
assombrou a desconstrução: nós recebemos a língua em uma escala muito mais ampla
que a criamos. Esta relação para com a língua sempre partiu de nós mesmos, “nous
6 “Je n’ai qu’une langue, ce n’est pas la mienne”
15
sommes assignés à la langue”, como a um endereço. A língua inapropriada é sempre a
língua do outro.
Assim sendo, chegamos à questão que Jacques Derrida trata neste livro: de uma
monolíngua, de uma língua por ele falada que lhe era proibida, já que não era a sua, o
francês. Além disso, ele é privado de toda outra língua (árabe, hebreu ou berbère, por
exemplo). Ora, ele é “jogado” em uma tradução absoluta, uma tradução sem língua de
partida (langue de départ). Para ele, apenas existiam línguas de chegada (langue
d’arrivée), e que não “chegavam” realmente já que não sabiam de onde partiam. Essas
meras “arrivées” instigavam um desejo de reconstituir, de restaurar, ou mesmo de
inventar uma primeira língua.
Em minha pesquisa, decidi vasculhar este campo da escrita metalingüística que
caracteriza o ensaio literário de Derrida, encarando-a como uma experiência de
tradução. Pretendo tomar a palavra “tradução” em sentido amplo, como a qualquer
possibilidade de relacionar o escrito com o escrito, conforme a pesquisa científica7 de
que participo: a crítica literária, a tradução como interpretação, e particularmente, no
presente estudo: o ensaio autobiográfico de um escritor, cujo imaginário foi forjado na
leitura e na escritura da literatura. Para tanto, adotarei neste estudo os parâmetros
criados por Antoine Berman para o estudo do processo tradutório, a tradutologia8. A
aproximação entre Derrida e Berman se justifica pela afinidade teórica entre eles, ambos
fundadores, em 1983, do Collège International de Philosophie, onde foram diretores de
programas. Esta reflexão da tradução sobre si mesma a partir de sua experiência seria a
tradutologia.
7 Pesquisa CNPq “A metalinguagem literária legada à língua e à literatura francesa por Jacques Derrida, Roland Barthes e Michel Foucault”, que contempla diversas formas de relação do escrito com o escrito, entre elas a tradução. 8 Haverá, mais a frente, um capítulo dedicado a explicitar tal teoria e seus conceitos.
16
As pesquisas teóricas em torno da obra de Jacques Derrida, especificamente os
artigos dos pesquisadores do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da UNICAMP
sobre Derrida, os artigos e livros de Walter Benjamin (“A Tarefa do Tradutor”),
Antoine Berman (L’Épreuve de l’étranger e La traduction de la lettre ou l’auberge du
lointain) e Paul De Man (Autour de la Tâche du Traducteur) sobre a tradução, demais
obras do próprio Jacques Derrida (Da Hospitalidade, Torres de Babel, Mal de Arquivo,
dentre outros) e artigos de pesquisadores sobre a questão da tradução me servirão de
suporte para analisar os quesitos de divisão ativa e da linguagem em O Monolinguismo
do Outro (1996/ tradução portuguesa em 2001) e até que ponto é possível ser
monolíngüe em uma língua que não é a sua. É preciso destacar o sítio argentino
www.jacquesderrida.com.ar dedicado ao filósofo, que disponibiliza gratuitamente
diversas de suas obras, servindo de fonte para meu trabalho. Não menos importante foi
o curso do Departamento de Filosofia da PUC-RIO, “Tópicos Especiais de Filosofia
Contemporânea”, ministrado pelo Professor Doutor Paulo Cesar Duque Estrada, que
gentilmente acolheu-me em suas aulas. Neste curso foi feita uma leitura da obra O
Monolinguismo do Outro.
Elaborei, por fim, quatro capítulos nessa dissertação. Apresento, no primeiro
capítulo, “Paralelos a Derrida, debate tradutório”, os princípios que levaram Jacques
Derrida a aprofundar-se no debate tradutório lingüístico e literário, dentre eles a própria
“teoria” da desconstrução. No segundo capítulo, apresento a ética da tradução e o papel
do estrangeiro à luz da teoria de Antoine Berman, a tradutologia. No terceiro capítulo,
empreendo um estudo sobre o caráter do monolinguismo, detalhando seu conteúdo, um
breve histórico do cenário político e social da Argélia e a pertinência desta obra para os
estudos literários, através de um diálogo com o filósofo Abdelkebir Khatibi. No quarto e
último capítulo, aprofundo a minha leitura de O Monolinguismo do Outro, tentando
17
contribuir com interpretações iluminadas a partir da proposta de tornar manifesta a
relação entre experiência e reflexão.
18
Capítulo 1 – Paralelos a Derrida, debate tradutório
1.1 O pensamento da desconstrução
O sempre intacto, o intangível é o que fascina e orienta o trabalho do tradutor. Ele quer tocar o intocável, o que resta do texto quando dele já se extraiu o sentido comunicável8. [...] A tradução não buscaria dizer isto ou aquilo, a transportar tal ou tal conteúdo, a comunicar tal carga de sentido, mas a remarcar a afinidade entre as línguas.9
Ainda como aluna da graduação, fui convidada a integrar uma pesquisa de
Iniciação Científica sobre o tema tradução. Confesso ser um tema bastante motivador,
porém algo que eu nunca havia estudado. Na faculdade, este tema somente é
contemplado no final do curso, e àquela ocasião eu estava terminando o meu primeiro
ano. Pelo desafio, aceitei a proposta. E tal proposta incluía nada menos que Jacques
Derrida.
Na Iniciação Científica, eu trabalhei com o ensaio Torres de Babel, do próprio
Derrida, e com o célebre ensaio “La Tâche du Traducteur”, de Walter Benjamin. Dois
ensaios que serão de extrema valia para o desenvolvimento desta dissertação, na qual a
obra O Monolinguismo do Outro, escrita em 1996, funciona como corpus textual. A
partir do trabalho feito por Jacques Derrida, procurarei “desconstruir” o principal
pressuposto do nacionalismo lingüístico: a idéia de que a língua seria, ou deveria ser, a
propriedade de um povo – uma propriedade que cada um teria como tarefa de “se
apropriar”. Neste livro, ele transpõe o discurso psicanalítico em particular, que em geral
diz respeito aos indivíduos, para o estudo do texto e da tradução em especial ao referir-
8 DERRIDA (2002), p. 51 9 Ibid, p.44
19
se ao trabalho do luto e à dívida impossível de quitar, baseada nos pressupostos da
tradutologia.
No início da obra, o cenário de críticas que Jacques Derrida recebia é armado,
através da figura de um interlocutor para com o qual se fixa uma aporia: ter uma língua
é não ter essa mesma língua, paradoxo que se desdobra ao longo da obra.
Nesta obra autobiográfica, o filósofo reflete sobre as relações que se entrelaçam
entre a língua, o contexto político-social, a cidadania e a identidade, no que se refere às
conseqüências da política social francesa operada na Argélia – o que será explicitado
mais à frente nesta dissertação.
A proposição contraditória apresentada (ser condenado a falar uma única língua
e esta língua não ser a sua) suscita a seguinte questão: como é possível ser monolíngüe
numa língua que não é a sua? Ora, o ser falante só se constitui como tal a partir de uma
língua que lhe é exterior e essa constituição se efetua pela inscrição num
monolinguismo na língua que ele encontra no lugar do outro, nesta prótese da origem,
subtítulo da obra. Esta prótese, este desejo de substituição e de preenchimento de algo
vago, está situada na tentativa de busca da origem, tentativa de saber o que preencher,
algo que é reiterado pela escrita autobiográfica. Ao colocar em cena o desejo estrutural
e irreprimível de busca desta origem, o discurso autobiográfico de Derrida se situa na
borda, neste local não situável onde se dá o testemunho, onde surgem as relações entre
nascimento, cultura e nacionalidade. Esta borda é atravessada por paixões da língua.
Porque é à beira do francês, unicamente, nem nele nem fora dele, na linha inencontrável da sua costa que, desde sempre, para sempre, eu me pergunto se se pode amar, fruir, suplicar, rebentar de dor ou muito simplesmente rebentar noutra língua ou sem mesmo nada dizer a ninguém, sem falar sequer.10
10 DERRIDA (2001 b) p.14
20
É preciso repensar a localização do sujeito para com a língua, este acidente
inevitável, visto que é a língua que vem ao nosso encontro. Esta borda é uma linha
inencontrável, nem fora nem dentro, onde o testemunho do filósofo se desenrola. Os
inúmeros trabalhos de Derrida trazem esta marca, a marca de um judeu-argelino que,
infelizmente para ele, não falava o árabe, mas somente o francês, o qual, como afirma
nesta obra em discussão, não era o “seu” idioma. Interessante questionar se é realmente
possível que alguém tenha a posse de um idioma. Ou seria o idioma aquilo que, como
dito anteriormente, simplesmente nos atravessa e nos faz falar? É justamente, então, um
indivíduo naturalizado francês que nunca teve outra cultura senão a Ocidental, à qual,
de acordo com suas próprias palavras, jamais pertenceu de todo. Eis uma séria
ambigüidade, estar em um lugar descentrado que sempre se situou às suas margens, à
sua borda.
Eis o pensamento da desconstrução: não mais considerar os valores de presença
e ausência, os quais comumente habitaram as correntes de pensamento ocidental. É
preciso entender a alteridade como um fator de diferença, é preciso romper com a idéia
de origem, para então fazer funcionar o pensamento, que é impossível de ser
“domesticado”, “colonizado”. Somos habitados por um quê incontrolável, uma
alteridade que instiga o desejo, que o viola e que o reinscreve na memória de cada
indivíduo, o que é amplamente narrado em O Monolinguismo do Outro. Esta alteridade
(melhor seria dizer alteridades, no plural) é o que “traduz” a reflexão e a experiência das
diversas organizações individuais; ela é sempre da ordem da violação, da loucura, posto
que não oferece nenhum horizonte de espera. Ao invés disso, ela tem o poder de
desestabilizar tudo o que se tinha como até então estável: esta é a alteridade que Derrida
busca acolher. O filósofo não busca a mera oposição entre a possibilidade e a
21
impossibilidade, mas, principalmente, que ambos os conceitos se requisitem, sem um
olhar de nostalgia perante a falta de origem. Poderíamos então dizer que:
Para mim o indecidível é a condição da decisão, do acontecimento, e já que você fala do prazer e do desejo, é evidente que se eu soubesse e pudesse decidir de antemão que o outro é de fato o outro identificável, acessível ao movimento do meu desejo,se não houvesse sempre o risco que o outro não esteja aí, que eu me engane de endereço, que meu desejo não chegue à sua destinação, que o movimento de amor que eu destino ao outro se extravie ou não encontre resposta, se não houvesse esse risco marcado de indecidibilidade, não haveria desejo. O desejo se abre a partir desta indeterminação, que se pode chamar indecidível. Por conseqüência eu creio que como a morte, a indecidibilidade, aquilo que eu chamo também a ‘destinerrância’, a possibilidade para um gesto de não chegar à sua destinação, é a condição do movimento do desejo que de outra maneira morreria antes. Concluo disso que o indecidível e todos os outros valores que a ele podemos associar são tudo menos negativos, paralisantes e imobilizantes. É exatamente o contrário para mim.11
Tão logo o indecidível habite o terreno da desconstrução, ela implica em si a
necessidade da memória, de um novo posicionamento: entre a clausura da linguagem e
o fim da própria experiência desconstrutora. A desconstrução, segundo Derrida “não é
um conjunto de teses, [...] ela não é nada [...]”. O filósofo afirma que se quisesse dar
uma descrição econômica da desconstrução, esta seria “um pensamento da origem e dos
limites da pergunta ‘o que é?...’, a pergunta que domina a história da filosofia12”. A
desconstrução seria efetivamente uma interrogação sobre tudo o que é mais do que uma
simples interrogação; ela não está simplesmente a serviço de nenhuma verdade nem de
elaboração de regras que garantam a determinação do sentido. A desconstrução pensa
na linguagem em si, em seu jogo referencial, em sua différance. É no momento da
aporia da obra em questão que realmente nos damos conta que a linguagem é uma
promessa impossível de presença, um conjunto de rastros, um jogo de possibilidades e
11 DERRIDA, JACQUES – Sur Parole, Instantanés philosophiques. Paris: Éditions de l’Aube, 1999, p.53. apud CONTINENTINO, p. 18. 12 Resposta encontrada em uma entrevista dada ao Le Monde. Tradução minha.
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forças que não são meramente lingüísticas. Deve-se dar conta realmente do texto e de
seu contexto, além da disseminação estrutural presente em todo o seu discurso, ou seja,
desta différance que paradoxalmente, invade, com violência e estranheza o território
onde falamos, até então com tranqüilidade, da língua materna, língua de origem,
tradução. Não basta excluir aporias e hospedar-se serenamente em um discurso, é
preciso pensar que a relação desfeita entre significado e significante proposta pelo
filósofo nos lega a tarefa de pensar a dupla – e contraditória – estrutura de toda fala,
explicitado ao longo de O Monolinguismo do Outro.
A noção da desconstrução repousa no postulado de que o texto não tem
significação fixa e predeterminada que a interpretação pudesse reencontrar, a estratégia
desconstrucionista se funda além, no princípio de uma autocontradição inerente ao
texto, que impede a emergência de um sentido definitivo e coerente. A desconstrução
busca disseminar os diversos conteúdos textuais, sem submetê-los aos imperativos de
verdade ou de determinação do sentido. E, já que a linguagem e o pensamento não se
dissociam, pensar a linguagem enquanto desconstrução significa, por conseguinte,
trilhar novos caminhos de pensamento.
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1.2 Freud e a desconstrução
O que é um texto e que deve ser o psíquico para ser representado por um texto? Pois se não há nem máquina nem texto sem origem psíquica, não há psíquico sem texto. Qual deve ser enfim a relação entre o psíquico, a escritura e o espaçamento para que uma tal passagem metafórica seja possível, não apenas nem em primeiro lugar no interior de um discurso teórico mas na história do psiquismo, do texto e da técnica?13
O filósofo desconstrutor menciona comumente em suas diversas obras a
interpretação psicanalítica, posto que, como diz, ela ensina um “método de decifrar
textos”, sendo um modo de leitura. Derrida não enxerga a psicanálise como uma
disciplina particular, mas como um modo de leitura propriamente dito, capaz de ensinar
a partir de seu discurso natural um método de decifração de qualquer texto,
independente de buscar a cura ou de uma correta imagem de leis psíquicas. Essa
peculiar decifração liga-se à originalidade da escritura, nutrida por um recalque, um
pólo atrativo da repressão. Sabemos que a escritura articula presença e ausência, de
forma a denegar tal ausência, o que poderia causar a ilusão de uma presença. Ora, esta
relação para com uma alteridade impossível de ser apropriada é a importância do
pensamento freudiano em si. Os resíduos desta impossibilidade são justamente o que
aproxima o psíquico ao efeito da escritura.
Freud emprega freqüentemente em seus textos diversas metáforas, com o
propósito de promover um abalo, uma desorganização naquilo que já se encontra
estabelecido; ao contrário de seu uso na tradução, onde se busca explicitar algo que é
desconhecido, enfim, explicar melhor o que seria até então desconhecido. Desta
maneira, haveria na escritura o conseqüente deslocamento para uma abordagem do
psíquico, promovendo a suspensão dos próprios recalques que a sustentam.
13 DERRIDA (2005) p.183
24
O conceito de memória no psicanalista é uma memória de traços inscritos no
inconsciente, de traços perceptivos, que por si só, já não constituem memória. Ora, só
devemos considerar uma memória ao inscrevermos as variadas impressões, como a
intensidade e a repetição dos itens, a exploração, as trilhas, um jogo de diferenças que
constitui o texto inconsciente. A memória resultante destas variações não se refere a
nenhuma origem, não há nenhuma origem a ser resguardada ou resgatada; tal memória é
criada nesta diferença dos traços. Pode-se considerar a inscrição desses traços repleta de
violência e resistência: violência como variante de força, excitação e resistência como
espaço, local de inscrição – este confronto incessante da memória. Visto que tanto a
violência como a resistência não antecedem a memória, mas surgem nesta operação,
Derrida insiste que para o psicanalista “não há um aparelho anterior à inscrição do traço,
mas a inscrição e o espaço se dão conjuntamente, ao mesmo tempo, sem a anterioridade
de qualquer um dos dois”14. O autor também persiste na idéia de repetição freudiana, a
qual considera “a primeira vez” como já sendo uma repetição, noção encontrada em O
Monolinguismo do Outro, onde se pode observar que a primeira língua já está
completamente contaminada por algo anterior a ela. Para Freud, a repetição não repete a
primeira vez, mas a primeira vez já se coloca como repetição.
A repetição não sobrevém à primeira impressão, a sua possibilidade já ali está, na resistência pela primeira vez oferecida pelos neurônios psíquicos. A própria resistência só é possível se a oposição de forças durar ou se repetir originariamente. É a própria idéia de primeira vez que se torna enigmática.15
Assim como a busca da origem narrada no livro corpus desta dissertação, Freud
busca um código exterior capaz de “traduzir” as estruturas latentes de seus pacientes,
em especial quando citamos a interpretação de sonhos. Freud procura uma relação entre
14 CONTINENTINO, p. 94 15 DERRIDA (1995), p. 187
25
o conteúdo manifesto e o latente dos sonhos apta a elucidar os significantes. Porém, o
texto onírico não se assemelha a quaisquer códigos lineares, há um material que produz
seus próprios significantes, interpretados por um código único, talvez jamais acessível.
Embora o psicanalista busque uma particular traduzibilidade, “o fato de não haver
código orientador faz com que toda a operação de tradução deixe um resto que resiste a
uma apreensão plena – justamente o que caracteriza a escritura como tal”16.
Pode-se afirmar que não existe um texto inconsciente que deva ser traduzido e,
portanto, sua “tradução” para o consciente não existe; ou seja, não há texto de origem. A
cena da escritura onírica transgride a linguagem verbal. O psicanalista indica tal cena da
escritura tendo a memória como agente, visto que a experiência em Freud é centrada
pelo rastro e não pela presença, rastro similar ao que encontramos nas linhas de O
Monolinguismo do Outro.
1.3 As contribuições de Freud ao estudo da tradução
Sans doute qu’en français, les choses sont plus distanciées, plus extérieures à moi, alors qu’en allemand je suis plongé dans mon intimité. [...] j’ai l’impression que l’allemand cerne davantage le réel intime, et le français l’étend davantage au monde.17
Conforme comentado no subcapítulo anterior, a psicanálise teve uma grande
contribuição para o pensamento derridiano. Assim como na escritura literária, na
psicanálise não há uma unidade simétrica exata entre o significante e o significado18.
16 CONTINENTINO, p. 96 17 Revue TRANSLITTÉRATURE, entretien “Traducteurs au travail” avec Georges-Arthur Goldschmidt, p. 9-16. Paris: ATFL & ATLAS. 18 O significado, em lingüística, seria tudo aquilo que uma língua expressa acerca do mundo, expresso em um determinado idioma, tudo o que para os falantes faz parte do mundo possível, seria o ‘conceito’ que
26
A depender do contexto em que esteja inserido, um mesmo significante pode apresentar
significados distintos: não existe uma correspondência direta entre ambos, pois quando
recorremos ao dicionário, na busca do “significado” de um significante, deparamo-nos
com outros significantes, que representam outros significados.... Esta relação talvez seja
infinita, ao mesmo tempo em que não é estável. Isto foi o que o pós-estruturalismo
trouxe para a linguagem: este interminável círculo em que um significante deixa em
suspenso seu significado, conduzindo-me a outras significações19. Tal como ocorre na
leitura/literatura, o significante instaura um por vir, onde se “soma” o significado das
palavras de uma frase a todos os outros que “povoaram” a nossa mente no momento da
leitura, a “significação, portanto, nunca é idêntica a si mesma. É resultado de um
processo de divisão ou articulação, de signos que só são eles mesmos porque não são
outros signos.20”
Referindo-se especificamente a esta oposição descrita no parágrafo anterior,
significante e significado, Derrida retorna às questões sobre tradução, afirmando:
O fato de que essa oposição ou essa diferença não possa ser radical ou absoluta não a impede de funcionar e até mesmo, sob certos limites, bastante amplos, de ser indispensável. Por exemplo, nenhuma tradução seria possível sem ela. E foi, efetivamente, no horizonte de uma traduzibilidade absolutamente pura, transparente e unívoca, que se constituiu o tema de um significado transcendental21. Nos limites em que ela é possível, em que ela, ao menos, parece possível, a tradução pratica a diferença entre significado e significante. Mas, se essa diferença não é nunca pura, tampouco o é a tradução, e seria necessário substituir a noção de tradução pela de transformação: uma transformação regulada de uma língua para a outra, de um texto por outro.22
uma palavra traz em si, enquanto o significante seria a forma, a palavra capaz de trazer em si um significado. 19 Considero aqui significação como sinônimo de significado. 20 EAGLETON, p.177 21 Significado transcendental seria “um conceito exterior à linguagem, não-contaminado por um veículo distorcido de representação”. [ver OTTONI, 2005 (a)] 22 DERRIDA (2001 c), p. 20
27
Assim sendo, todo analista – bem como o tradutor – jamais faria tradução pura,
pois neste domínio regula o inconsciente como regulador, regula o texto. Paralelamente
a este trabalho da tradução, vê-se o ensaio “Quand Freud voit la mer, Freud et la langue
allemande”, escrito por Georges-Arthur Goldschmidt e publicado em 1988, inspirado
pela publicação da tradução francesa das Obras Completas de Freud. A tardia
publicação desta tradução ia de encontro a toda a tradição literária francesa filosófica,
ainda mais se tratando de Freud, que foi um escritor de grande renome na Europa.
“Quand Freud voit la mer, Freud et la langue allemande” trata de uma análise
comparativa entre o francês e o alemão, no domínio das fontes lingüísticas, quanto a
possibilidade de traduzir conceitos-chave da psicanálise de uma língua para a outra. Ele
apresenta notas e reflexões pontuais sobre a tradução de tais conceitos, além da
interrogação sobre o inconsciente que atua entre as línguas, de um modo mais geral e
ambicioso.
Ouvi falar de Goldschmidt pela primeira vez através da leitura de um texto
teórico durante um curso de literatura francesa do Departamento de Letras Neolatinas da
UFRJ. Logo me interessei por esse autor, pois preconizava absorver a “diferença”, o
espaço intersticial entre as duas línguas, em seu caso, o francês e o alemão. Lendo uma
entrevista dada pelo próprio Goldschmidt, percebi que ele não simpatizava com a
tradução. Ele, que sempre foi professor de alemão no ensino secundário, começou a
escrever aos dezoito anos, porém apenas mais seriamente vinte anos mais tarde, tanto
que publicou seu primeiro livro aos quarenta anos de idade, em 1971. Nasceu na
Alemanha e se refugiou na França aos dez anos de idade, pouco antes da guerra.
Goldschmidt traduziu principalmente Handke, mas também outros escritores
renomados, como, por exemplo, Goethe e Kafka. Dentre suas traduções, podemos citar
Zaratrusta, de Nietzsche, e Allemands, de Benjamin. E o mais interessante, segundo um
28
ponto de vista bastante particular, é sua forma de trabalho: a reflexão nele nunca se
distancia do concreto, da sensação, do sentimento; o que podemos relacionar a Berman,
em sua teoria da tradutologia. Berman nos mostra que o mesmo espaço intersticial entre
as duas línguas proposto por Goldschmidt é o espaço da tradução. Este espaço está
situado nos hiatos, nos intervalos, nas experiências de tradução propriamente ditas. E se
este espaço está situado nos intervalos, ele não pode ser totalizado; pelo contrário, ele é
um espaço babélico.
Goldschmidt e Berman são postos ao lado de outros pensadores como Derrida,
por exemplo, no momento em que o pensamento moderno se relaciona intimamente ao
espaço da tradução, conforme explicitado anteriormente: é impossível à tradução não se
servir do pensamento, principalmente no horizonte filosófico, relação esta importante
para a compreensão desta dissertação.
Retornando ao artigo “Quand Freud voit la mer, Freud et la langue allemande”, o
autor questiona de modo radical toda tradução que é efetuada de forma a negligenciar a
palavra, pois que a importância contextual das conotações suscitadas por uma palavra
está em um ponto preciso do texto freudiano; essa tradução será negligenciada em um
produto exclusivo da lógica do sentido. Encontraremos, portanto, aspectos da tarefa do
tradutor que se apagam face aos conceitos já existentes.
Neste mesmo curso de literatura francesa fui também apresentada à crítica
Ginette Michaud, que escreveu um texto interessante a ser debatido com o trabalho de
Goldschmidt. Ela, que descreve dois23 grupos que trataram da tradução das Obras
Completas de Freud, preconiza uma edição bilíngüe. Ao contrário do uso simples da
conotação, que permite questionar a tradução que é feita, aquela que negligencia a
23 Neste texto, Michaud, na verdade, trata de três grupos de tradução. O primeiro, dirigido por Jean Laplanche, autor do vocabulário de psicanálise e coordenador da tradução das Obras Completas em francês, o segundo grupo de Goldschmidt, que não traduziu, mas fez um ensaio sobre como traduzir, em alemão, e o terceiro, o de Mahony, coordenador da tradução inglesa das Obras Completas. Aqui, vou tratar apenas dos dois primeiros, por uma questão simples de redução do corpus.
29
palavra em prol exclusivo da lógica do sentido, Michaud se rebela contra a idéia de um
glossário de termos “pré-traduzidos”. Ela compreende que esse estilo anula o sujeito-
tradutor. E essa anulação põe em questão o emprego ordinário e a lei implícita que
obriga o tradutor a se curvar face à autoridade de traduções já estabilizadas. Desta
forma, o autor reforça o direito/necessidade de todo tradutor de retraduzir as passagens
citadas.24
O primeiro grupo, dirigido por Laplanche, tem a concepção de tradução como
transmissão de um sentido intacto e transparente. Eles não aceitam as notas, eles
propõem um texto idealizado. O texto foi traduzido como homogêneo, ratificando a
concepção da transparência das palavras unívocas e equivalentes. Como esse grupo foi
dirigido por um psicanalista, ele elaborou um livro glossário, pois ele não fez notas de
tradução ao longo de seu texto; o vocabulário era próprio e de origem psicanalítica,
logo, não era preciso traduzir.
O segundo grupo de discussão, representado por Goldschmidt, propõe que as
relações entre Freud, a língua alemã e a tradução são necessárias para indicar a cada
vocábulo as possíveis variações e as relações (ou falta de) com o francês. A tradução
pára de ser um processo de decisão para ser um de dúvidas. É a questão do fantasma de
fusão entre as línguas [o que a edição bilíngüe homologa, ratifica, uma vez que ela
confirma a dúvida quando ela não quer ter a decisão de tradução25]. A psicanálise, aqui
tradução de Freud, transformou-se em uma espécie de tradução intralingual - um
processo de metalinguagem, de outras significações a partir de uma origem.
Goldschmidt se distancia da tradução racional da equipe de Laplanche, em direção à
metalinguagem. Este tipo de tradução, entretanto, pode engendrar uma regressão infinita
de significações, pois encara a tradução como paráfrase. Ao mesmo tempo, no entanto,
24 Tradução = Übersetzung = “salto sobre um abismo” [em alemão] 25 Podemos imaginar que isto seja a causa do excesso de notas de tradução em um texto.
30
esse passo libera o tradutor de Freud de seu uso conceitual científico e restrito dos
termos do glossário, permitindo-o “aflorar” as palavras, o que permite também a este
último tipo de tradutor explorar as palavras para além do sentido. “O tradutor do texto
freudiano escuta o inconsciente lingüístico que “aflora” nas palavras, e as diferenças
entre línguas que dizem a mesma coisa por vias diferentes26”.
Como Freud tem uma ligação de pertencimento às duas línguas, – o alemão e o
francês – seu texto psicanalítico é uma forma de tradução intralingual, na qual o sentido
pode estar entre as duas línguas, cada língua seria a análise da outra. Segundo a frase de
Goldschmidt, “uma língua é o refúgio da outra, ela é o seu anelo diante da expressão
impossível dela mesma27”.
1.3.1 Riqueza lingüística em Freud
Houve um colóquio internacional, realizado em Arles (França), que se chamou
“Traduire Freud: la langue, le style, la pensée”. Nesse colóquio, Goldschmidt proferiu
a seguinte comunicação “Style et pensée chez Freud”, na qual foi mostrado que a
relação entre Freud e a escritura tornou-se inseparável de sua relação à língua e à prática
analítica. Se pensarmos na psicanálise como teoria que pode se associar à tradução,
pensamos:
C’est précisement le pouvoir régressif du jeu de mots: la soudaine ouverture sur l’insoupçonné, sur le fond de langue, qui interesse Freud; la littérature est le domaine où la langue remonte en arrière comme si c’était là qu’elle pouvait rejoindre ce qui la fait parler; la littérature, c’est en somme la structure régressive des langues. [É principalmente o poder regressivo do jogo das palavras: a repentina abertura ao insuspeito, ao fundo da língua, o que
26 MICHAUD (2005) p.113 27 GOLDSCHMIDT, G-A, op. cit., p.59-60
31
interessa Freud; a literatura é o domínio no qual a língua retorna como se fosse lá que ela pudesse reencontrar o que a fez falar, a literatura, é em suma a estrutura regressiva das línguas.] 28
Nesta mesma comunicação, Goldschmidt apresenta a relação dos Irmãos Grimm
com os temas freudianos. Sabe-se que uma criança alemã de sete anos já possui todo o
vocabulário da língua, ao contrário de uma francesa, o que se deve à origem do idioma:
uma é anglo-germânica, isto é, sem mediação de outra língua, outra é neolatina,
derivada do latim. Os Irmãos Grimm escreviam contos infantis, porém nestes contos
encontraremos uma bela pesquisa filológica e a história da língua alemã que se liga às
origens lingüísticas. Os temas freudianos são, apenas, literariamente, arquétipos
germânicos, que remontam à origem do próprio Sigmund Freud. A partir da literatura
dos Irmãos Grimm, o íntimo da língua alemã é exposto de modo a constituir tais
arquétipos, encontrados também no nazismo, por exemplo. Seria isto devido ao acaso?
O que interessava a Freud era talvez fazer uma mesma pesquisa arquetípica
como os Irmãos Grimm fizeram, de forma a encontrar a travessia das línguas, e não a
origem da língua e da história. Freud buscava o que fazia as línguas “falarem”, “tratava-
se, para ele, “de buscar o reconhecimento, de estabelecer o contrato para além do
pertencimento”29.
Outro fato interessante foi o emprego de palavras francesas nos textos escritos
pelo psicanalista. A literatura científica alemã o fazia normalmente, era um hábito.
Freud as empregava buscando elaborar um campo lexical que remetesse à origem, ao
início da história humana; ele, que pesquisava freqüentemente a origem dos problemas,
não somente a solução, principalmente como o paciente os adquiriu e o motivo.
28 Cinquièmes assises de la traduction littéraire p.69-78 (tradução minha) 29 Ibid p.74 (tradução minha) – “Il s’agit pour lui d’en déceler la reconnaissabilité, d’en établir le contrat par-delà l’appartenance”.
32
Permito-me então comparar a ciência psicanalista à tradução intralingual, já explicitada
anteriormente.
A arte de Freud é aqui compreendida como a escolha das palavras corretas que
não podem ser substituídas por nenhuma outra; é a apropriação tal qual: a palavra se
relaciona ao texto e o texto se relaciona à palavra. Este “idioma” freudiano não é
acessível a todos os seus leitores, uma vez que a riqueza da língua, utilizada em seu grau
máximo, não é tão despropositada. Freud faz quase que uma tradução no momento da
escritura, ele explora o texto de maneira a revelar toda a profundeza da língua
(encontrada em suas pequenas histórias e casos).
1.3.2 N. do T. (Notas do Tradutor)
Como dizia Jacques Derrida, a propósito de todo texto sagrado – texto que é sagrado quando nele se manifesta o particular, o intraduzível – um texto “só sobrevive se é, ao mesmo tempo, traduzível e intraduzível [...]. Totalmente traduzível, ele desaparece como texto, como escritura, como corpo da língua. Totalmente traduzível, mesmo no interior do que acreditamos ser uma língua, ele morre logo.30
No momento da tradução, o sujeito-autor31 encontra alguns problemas, que se
originam da irredutibilidade entre as línguas. Mesmo ainda nesses casos, porém, é
preciso traduzir, é preciso encontrar alguma solução seja de qual forma for. Outro grave
problema é o risco de “desenraizar” demais o texto, perder o contexto original do texto.
Então, a noção de acolhimento, de interrupção da relação para com a sua cultura e, em
conseqüência, a abertura à cultura do outro – da língua fonte – é o princípio da
30 MICHAUD (2005) p.118 31 Para Michaud e Goldschmidt, o tradutor é também um autor, uma vez que ele vai assinar o texto em questão, no momento do trabalho da tradução. Então, esse sujeito – sujeito pois ele tem sua individualidade e sua compreensão própria – é, ao mesmo tempo, tradutor e autor.
33
hospitalidade em Derrida, que pode ser válido nas traduções. Para os casos nos quais a
unidade da palavra é ameaçada, há, por vezes, o emprego de perífrases ou de glosas,
ainda que nosso autor apresente seu descontentamento quanto ao uso de glossários. Ele
prefere a disseminação do sentido da palavra, uma polissemia, a congelar este jogo em
um glossário. Devemos ressaltar, entretanto, que no domínio técnico seu uso é bem
aceito por todos.
Quanto à utilização das notas de pé de página, as tão famosas notas do tradutor,
alguns leitores pensam que esse recurso torna a leitura do texto mais pesada, outros
confessam nem mesmo a observarem ali, alguns poucos as lêem, mas é um último
recurso, que declara a “impotência do tradutor”, segundo Derrida.
A questão da disseminação de uma escolha de tradução, por Jacques Derrida é
observada no ensaio “La Pharmacie de Platon” (1972), em que a palavra pharmakon é
utilizada para designar a escrita. A apresentação da invenção da escrita, pelo inventor,
ao rei, foi interpretada por este último como um veneno, já que subtrairia seus poderes.
Este pharmakon, no entanto, segundo seu inventor seria um remédio para tornar os
homens menos esquecidos. A palavra pharmakon se presta a esse jogo, pois apresenta
dois sentidos opostos: veneno e remédio, como o seu similar, droga, em português.
Outro exemplo está em um verbo da língua portuguesa: relevar. Seria destacar
ou não destacar, esquecer? A ambigüidade é comum em textos a serem traduzidos e
deve-se estar sempre atento aos múltiplos sentidos, a fim de saber qual a melhor escolha
para efetuar uma tradução, e até mesmo saber se é possível manter tal ambigüidade (o
que torna o trabalho ainda mais difícil).
No caso da tradução das Obras Completas de Freud, Michaud acredita que as
notas de tradução seriam indispensáveis para uma equipe que não privilegia a
conotação. Ainda que seja uma prova de impotência do tradutor, sabe-se que cada texto
34
traz consigo seu luto, logo, ela é reveladora de um importante trabalho de reflexão (o
que tanto Goldschmidt quanto Derrida propõe). A autora critica justamente a ausência
das notas nessa tradução e a sua substituição por um livro, Traduzir Freud, uma espécie
de nota gigante escrita sob a coordenação de Laplanche.
Em outro extremo, na lógica de Goldschmidt, a nota do tradutor deixa de ser
empregada em um registro específico e torna-se um objeto de uso generalizado. Tudo se
transforma em margem, paratexto. Segundo esse autor, a nota seria indispensável para a
compreensão da reescritura do texto freudiano, ou seja, a glosa explicativa e a tradução
seriam inseparáveis.
Faço aqui, portanto, uma proposta tradutória que lembra a tarefa do tradutor
relacionando-se com a cultura, – uma reconciliação possível entre as línguas – que
permite o posterior crescimento e desenvolvimento do original. Todo o processo
tradutório pode ser discutido, privilegiando-se a disseminação da palavra e a reflexão
que ela nos propõe, justamente o que Derrida destaca na realização de uma tradução.
1.4 A dívida da tradução
O fantasma de um encavalamento de línguas, de um engavetamento inconsciente acontecendo entre as línguas, precisamente no ponto em que elas falham e se ausentam do dizer, é talvez uma maneira de se esquivar da desordem (trabalho de luto conviria melhor) do tradutor.32
Já é evidente para nós que o tradutor, ainda que apresente dificuldade em
respeitar a unidade da palavra, deve traduzir sempre. Justamente tal desafio da tradução
é interpelado pela reflexão tradutológica.
32 Ibid (2005) p.115
35
Derrida explicita que não há tradução sem perda, sem luto, logo a disseminação
da palavra é uma prova do desajuste, do resto. O tradutor necessita saber o que é
relevante conservar, já que é fato que a tradução estará sempre endividada. A tradução
seria, portanto, da ordem da releitura (ou da reescritura). Segundo o filósofo, o fato de
uma língua não se deixar apropriar provoca sempre inúmeros movimentos de
apropriação, ou melhor, tentativas de apropriação, de que a tradução seria um dos
exemplos. O mais idiomático, o mais próprio de uma língua não se deixa apropriar,
resiste sempre à tradução, e, ao mesmo tempo, demanda sempre tradução. Em Torres de
Babel, um ensaio sobre o texto de Benjamin, Jacques Derrida tenta analisar a essência
da língua, do que chama de “seu caráter espectral”, ou seja, nem vivo nem morto. Ao
comentar este mesmo ensaio, Derrida faz referência ao endividamento, definindo a
tarefa do tradutor como “missão outorgada pelo outro”.
Pode-se constatar que na tarefa do tradutor haveria a responsabilidade de um
herdeiro pela sobrevida do idioma; o tradutor é aquele que oferece novos
acontecimentos de escritura, capazes de conferir um novo corpo à essência da língua.
Esta, quando fosse traduzida, seria capaz de viver além de seu tempo, sua época
(histórica), pois cada vez que ela é traduzida, ascenderia para outra língua, ganhando
outro status e propiciando outras leituras. Para tanto, o tradutor não deve pensar que o
texto existe somente para comunicar; ele existe para acolher novas leituras habilitadas
para fertilizar e vivificar tal original, capacitadas mesmo de ressuscitá-lo.
Ou seja, a tradução seria responsável pela sobrevida de uma obra, uma
sobrevida, – para além da vida - que imagina uma primeira morte do original. Para
Derrida, essa morte pode acontecer pelos modos de dizer, pela banalização, pela
repetição e pela mecanização, e caberia à tradução, assim como ao ato poético em geral,
ressuscitar a língua, mas, sem jamais conseguir quitar completamente a dívida (pelos
36
motivos já expostos de resistência à tradução e de irredutibilidade de um idioma a
outro), faz com que a tradução recomece sempre como um trabalho de luto. A tradução
não participa do original, ela pertence a sua sobrevida. A dívida para com o original
passou a existir no momento de Babel, condenação bíblica que originou a dívida
lingüística que transformou a tradução em um dever, um destino do qual os homens não
se podem furtar: a tradução infinita.
Procurando “se fazer um nome”, fundar ao mesmo tempo uma língua universal e uma genealogia única, os semitas querem colocar a razão no mundo, e essa razão pode significar simultaneamente uma violência colonial (pois eles universalizariam assim seu idioma) e uma transparência pacífica da comunidade humana. Inversamente, quando Deus lhes impõe e opõe seu nome, ele rompe a transparência racional, mas interrompe também a violência colonial ou o imperialismo lingüístico. Ele os destina à tradução; por conseguinte, do seu nome próprio traduzível-intraduzível, ele libera uma razão universal (esta não será mais submetida ao império de uma nação particular), mas ele limita por isso a universalidade mesma: transparência proibida, univocidade impossível. A tradução torna-se a lei, o dever e a dívida, mas dívida que não se pode mais quitar. 33
Para o autor, é possível discutir todo o processo tradutório, devendo-se, para
tanto, privilegiar a disseminação da palavra e a reflexão que esta propicia, sendo isso o
que Derrida valoriza na realização de uma tradução. Em Derrida há ênfase na dívida
para com a origem, pois o que “chega” também não “chega” – a tradução é a invenção
de uma língua de chegada. Sua experiência de privação da língua originária indica que
há um chamado por uma exigência de rigor; é preciso pensar para inventar um passado,
e isso em si já é tradução, já que tal dívida pôde ser paralela à herança que recebeu.
Todo o pacifismo pressupõe um ideal colonizado; e se tudo é tradução, desmitifica-se o
caráter universal da linguagem. O exercício da tradução é o que “pacifica”.
33 DERRIDA (2002), p. 25
37
1.5 O mito da tradução e a linguagem
Na Bíblia, em Gênese, há o conceito da linguagem (parole) como sopro divino
em sua forma e função. A linguagem é compreendida como a parte divina do ser
humano, quase como um sinônimo do próprio Deus, ou como parte mais importante do
discurso (nas línguas oficiais). Mesmo as línguas que não têm grafia são classificadas a
partir de línguas que a possuem, como o reconhecimento de flexões verbais que,
porventura existam – pode ser que não a apresentem em sua gramática. Talvez um
estudo feito pelo próprio povo ágrafo sobre a sua língua inserisse outras categorias
diferentes destas já existentes e conhecidas, o que nos permite imaginar que a
nomenclatura não é ideal, pois ela não é universal. Há uma grande inadequação
(dificuldade ou impossibilidade) de se generalizar a gramaticalização.
Se a linguagem é aqui compreendida como a fala, a frase abaixo nos mostra a
dificuldade de compreender e classificar estas línguas encontradas. Esta dificuldade
admitida pelo famoso Mito de Babel, a diversidade das línguas impostas por Deus como
um castigo aos homens. 34
É essencial, para abordar uma língua estrangeira, de se liberar das categorias e da estrutura da língua materna. Nós nem sempre sabemos como o fazer. Durante muito tempo na Europa e particularmente na França, procuramos calcar as gramáticas de acordo com o latim. Da mesma forma, as primeiras descrições de língua “exóticas”, feitas freqüentemente por missionários, refletem a estrutura das línguas de seus autores.
[Il est essentiel, pour aborder une langue étrangère, de se dégager des catégories et de la structure de la langue maternelle. On n’a pas toujours su le faire. Pendant longtemps en Europe et singulièrement en France, on a cherché à calquer les grammaires sur celle du latin. De la même façon, les premières descriptions de langues “exotiques”, faites souvent par des missionnaires, reflètent la structure des langues de leurs auteurs.35]
34 Não entrarei aqui nos propósitos explicativos de tal Mito, nem pela Bíblia, nem por outras contestações que existem. 35 YAGUELLO, p. 73. (tradução minha)
38
Retornando ao Mito, focalizemos o pensamento único versus a língua única: a
ameaça da globalização de uma única língua, no caso o inglês, teve o efeito contrário,
ocorrendo a revitalização das línguas regionais, o pluriculturalismo que buscava
preservar a multiplicidade das línguas. Pode-se questionar se é possível que alguma
língua interprete alguma cultura (sistema) e sua experiência. Penso que não. A partir
deste castigo, o homem que era nômade, deixou de o ser, pois ele não podia mais se
comunicar facilmente. Desta maneira, ele tornou-se parte de um grupo, no qual ele se
inseriu por semelhanças, sejam físicas, sejam de caráter. Podemos considerar que neste
instante, o homem tornou-se bilíngüe, pois ele se adaptava aos diferentes registros e
níveis da língua. O que se pode verificar até nossos dias.
Observou-se também que, até a Contra-Reforma, os católicos dificultavam aos
fiéis o acesso ao livro sagrado, proibindo-o mesmo, para que a leitura de suas linhas não
fosse mal compreendida; ao passo que os protestantes utilizavam freqüentemente a
Bíblia como estudo, citando-a por inúmeras vezes. A instituição católica quis, talvez,
ser mais importante que o próprio livro divino. No entanto, a difusão da leitura do livro
sagrado prosperou e diversas interpretações sobre Babel surgiram. Aqui, não me
ocuparei de discuti-las, pois não inúmeras. Vale a noção que Babel serviu para o
surgimento de linguagens, bem como para a formação de um estado nacional.
1.6 A formação de um estado nacional
O estado nacional tem como objetivo a reunião de uma nação, onde aquele que
dela quer fazer parte deve ter algo em comum com os outros componentes deste grupo.
Bom, esse “algo” pode ser a língua, por exemplo, como o francês, o catalão etc. A
39
língua é empregada algumas vezes como o objeto de distinção entre os povos, logo sua
importância é considerável. Humboldt escreveu uma frase em que compara a língua a
uma obra de arte:
A língua, e isto diz respeito principalmente as diversidades evocadas aqui, pode ser comparada por um lado à arte, pois ela aspira como ela a apresentar sensivelmente o invisível. Pois então mesmo que ela não pareça se elevar acima da realidade no indivíduo e no uso cotidiano, a imagem completa de todos os objetos e não somente destes aqui, mas também de suas ligações e afinidades invisíveis, é apresentada enroladas em seu seio. E como o quadro do artista, ela fica mais ou menos fiel à natureza, esconde ou mostra mais ou menos a arte, apresenta seu objeto de preferência em tal ou tal tom de cor. [La langue, et cela concerne principalement ses diversités évoquées ici, peut être comparée d’un côté à l’art, car elle aspire comme lui à presenter sensiblement l’invisible. Car lors même qu’elle ne semble pas s’élever au-dessus de la réalité dans l’individu et dans l’usage quotidien, l’image complète de tous les objets et non seulement de ceux-ci, mais aussi de leurs liaisons et affinités invisibles, est présente enroulée en son sein. Et comme le tableau de l’artiste, elle reste plus ou moins fidèle à la nature, cache ou montre plus ou moins l’art, présente son objet de préférence dans tel ou tel ton de couleur.36]
Para a formação deste estado nacional, devemos ter alguns parâmetros, alguns
« grupos » os quais cada indivíduo deve se inserir. Primeiramente, ao pensarmos na
carteira de identidade, no documento, o registro oficial dado pelo governo territorial; ele
é composto, a depender do país, pelo nome e sobrenome, data e local de nascimento,
assinatura, fotografia e impressão digital. A organização destes traços reunidos oferece
um ser único, ainda que alguns destes traços venham a coincidir com o de outras
pessoas. Ainda que isso ocorra, o ser designado neste documento é um ser único do
mundo.
Muitos fatos podem incidir sobre uma identidade determinada: língua, modo de
viver, crenças, relação parental, preferência sexual, gostos artísticos ou culinários,
influências francesas, européias, ocidentais, que se misturam às árabes, berbères, 36 HUMBOLDT. p. 159 (tradução minha)
40
africanas, muçulmanas etc. Esta lista é mais extensa, talvez até infinita: pertencer ou não
a uma certa cidade, bairro, grupo, time de futebol ou qualquer outro esporte, a um
partido político, a uma associação, sindicato ou empresa, a um fã-clube, ter os mesmos
traços físicos etc.
Pertencer a um grupo é, de início, um dado efetivamente natural: você sempre pertence a um grupo qualquer, em razão do seu nascimento. [...] Essa organização sempre se dá no interior de uma relação com o mundo. O que significa que o que é comum àqueles que se organizam desse modo é o que normalmente chamamos de interesses.37
A identidade individual é fundamental para a formação de um estado nacional,
pois são estas identidades que vão construir “a identidade” deste estado. E sabemos que
para que esta formação aconteça, é preciso que estes grupos individuais estejam em
harmonia, que a convivência seja pacifica e amigável. 38 A experiência de Derrida com
a língua e a literatura francesa, ele que era um magrebino e morava em uma colônia
francesa, é positiva para a formação do caráter de sua identidade. Ele, que recebeu a
língua francesa em uma alta escala de formalidade, a acolheu de uma forma
surpreendente. Acrescento aqui a experiência vivida por Hannah Arendt, uma alemã
judia, em plena época do nazismo, que foi expatriada para os Estados Unidos. Ela
confessa sobre sua língua alemã, língua materna:
Eu sempre me recusei, conscientemente, a perder minha língua materna. Sempre mantive uma certa distância tanto do francês, que antes eu falava muito bem, quanto do inglês em que escrevo agora. [...] ... sempre tenho um sotaque muito perceptível, e muitas vezes não me exponho de forma idiomática.39
37 ARENDT, p. 138 38 Mesmo sabendo que há muitos estados-nações que vivem em completa desarmonia, com muitas guerras e violência, não tratarei de tal assunto aqui. 39 ARENDT, p.134
41
Ora, muitos fatos podem ser parâmetros para a inserção em um grupo particular,
já citados anteriormente. Mas, todos estes fatos juntos criam apenas uma única
identidade, uma vez que a identidade não pode ser partilhada. A noção de território é, a
cada dia, menos geográfica, pois a identidade pode atualmente se compor por várias
características diferentes. A identidade é repleta de múltiplos pertencimentos, o que traz
a dificuldade de obter uma “única” identidade. Não seria um tanto paradoxal?
O individuo tem a necessidade de pertencer a um grupo, o que o faz estar, ao
mesmo tempo, em passagem por cada grupo. Se este indivíduo quer integrar um estado
nacional, ele deve trazer algumas características em comum com os outros. Então, a
identidade é um conceito problemático, pois pode ser definida a partir da religião, da
filiação, etc. Poderia então a identidade se fundar no coletivo? Não, isso é uma ilusão.
Se identificar é se distinguir, é ser único, um caso particular, o que Maalouf nos
transmite: “a identidade não se compartimenta, ela não se reparte nem em metades, nem
em terços, nem em locais aprisionados. Eu não tenho muitas identidades, eu apenas
tenho uma.” 40. Ainda que cada estado nacional tenha a necessidade de uma língua
nacional, esta língua pode ser ou não formadora da identidade do individuo nacional,
como é o caso discutido em O Monolinguismo do Outro. Assim sendo, o que veremos a
seguir é se realmente tal estado nacional embasa-se na linguagem e se é realmente
possível possuí-la.
40 MAALOUF, page 10 (tradução minha de “L’identité ne se compartimente pas, elle ne se réparti ni par moitiés, ni par tiers, ni par plages cloisonnées. Je n’ai pas plusieurs identités, j’en ai une seule.”)
42
Capítulo 2: Uma experiência de reflexão
2.1 À luz da tradutologia
Toda tradução é em si mesma uma interpretação. Ela traz em seu ser, sem lhe dar voz, todos os fenômenos, as aberturas e os níveis de interpretação que se achavam ali, em sua origem. E a interpretação não é nada mais do que a realização da tradução que ainda se cala [...] Conforme a sua essência, a interpretação e a tradução são unas e a mesma coisa.41
Nesta dissertação serão adotados os parâmetros propostos por Antoine Berman,
a reflexão da tradução sobre si mesma, a partir de sua natureza de experiência, a
tradutologia. Sabe-se que a tradução pode muito bem dispensar a teoria, mas não pode
dispensar de forma alguma o pensamento, que sempre se dá em um horizonte filosófico,
como queria Benjamin, que pensou a tradução como linguagem filosófica da reflexão e
da experiência (preceitos da tradutologia). Logo, a tradutologia seria esta “disciplina”
sem objeto pré-determinado capaz de articulá-las conscientemente, semelhante à
gramatologia de Derrida e à própria psicanálise. Esta “disciplina” proporia que o estudo
da tradução se enraíze no horizonte filosófico, podendo ultrapassar seus motivos
lingüísticos.
A tradutologia não é em si mesma uma interpretação. Ela traz em seu ser, sem
lhe dar voz, todos os fenômenos, as aberturas e os níveis de interpretação que se
achavam ali, em sua origem. Ela traz consigo o conceito de intertextualidade, o que
pode ser interpretado como o resultado das transações entre as culturas já caracterizadas
pela pluralidade, o que mostra que “traduzir” é em si mesmo uma árdua tarefa.
41 BERMAN (1999)
43
A ambição da tradutologia não é de construir uma teoria geral da tradução. Ao
contrário, demonstraria de antemão que uma teoria como essa não poderia existir, uma
vez que o espaço da tradução é babélico, ou seja, recusa toda totalização; o que é
claramente mostrado no discurso em O Monolinguismo do Outro.
A tradutologia, segundo Berman:
[...] se liga ao espaço moderno da literatura, no qual a relação com a crítica e com a tradução se tornou consubstancial ao ato de escrever. A tradutologia não ensina a tradução, ela não poderia ser uma ciência positiva, pois o espaço da tradução é intersticial, está situado nos hiatos, nos intervalos, mas sim, ela desenvolve de maneira transmissível a experiência da tradução.
42 (grifo meu)
Ainda de acordo com o mesmo, o par “experiência e reflexão” viria substituir a
oposição usual entre “teoria e prática”, e com isso seria possível ampliar o sentido da
palavra tradução, interessando os leitores no relato da experiência com as línguas, o que
conferiria maior grau de autonomia ao discurso dos tradutores, não mais restrito,
eventualmente, às notas, às quartas-capas, aos prefácios e às orelhas dos livros que
traduzem.
Poderíamos constatar, portanto, que no caso de Jacques Derrida o processo de
aquisição da língua materna engendrou a necessidade de se entretraduzir, processo esse
que Derrida procuraria apreender por meio da autobiografia. Provavelmente, este
processo causou tanto conflito ao filósofo por conta de seu olhar crítico pelas
culturalidades às quais tinha acesso. Ora, a estratégia de jogo duplo (vozes constativa e
performativa) e de narração negativa provoca a necessidade de tradução e a sua
conseqüente deriva. Além disso, o que estaria sempre em questão seria a
(in)comunicação e a necessidade de tradução permanente, como já dito anteriormente, o
apelo à tradução presente no discurso do autor-tradutor.
42 BERMAN (1999)
44
Sendo assim, busco relacionar formas de regulação do escrito pelo escrito, na
literatura, na tradução e na crítica e desenvolver novos parâmetros para o estudo do
processo tradutório, substituindo, como sugere Berman, a oposição “teoria x prática”
por “experiência x reflexão”.
2.1.1 A ética da tradução
Segundo Berman, em sua obra La traduction de la lettre ou l’auberge du
lointain (1999), a tradução é normalmente definida como um processo comunicativo,
transmissão de “mensagens” de uma língua-fonte para um língua-alvo. Essa definição
coloca as traduções técnicas em paralelo às literárias, pois ambas são envios de
mensagens de uma língua-fonte para uma língua-alvo. Um texto técnico, porém, tem
como objetivo transmitir determinadas informações, transmissão de conteúdos,
enquanto a obra literária não tem como finalidade esta transmissão, ainda que ela a
contenha. Ela abre à experiência de um mundo. Cada vez que este último tipo de
tradução se mostra como um “ato de comunicação”, ela é inevitavelmente não-
comunicativa.
De acordo com sua teoria da tradutologia, é inevitável que o tradutor deva
também pensar no público, na legibilidade de sua tradução, o que acaba por criar o
vulgarizador científico, aquele que “traduz” em linguagem especial, científica, como se
a mesma fosse comum. O essencial, portanto, acaba se perdendo, pois há uma
popularização da língua científica. A popularização busca uma transmissão de
conteúdos de uma forma “natural” nesta língua, bem como as possibilidades de
45
compreensão não-científicas. Isto exige uma reflexão aprofundada que se perde por
completo no caso da vulgarização. E popularizar o original não significa o vulgarizar.
Daí surge o questionamento de Benjamin: seria a tradução feita para aqueles que
não compreendem o original? Ora, a explicação é tripla, uma vez que a visão mais
profunda da tradução o é: ela é ética, poética e filosófica. Filosófica no que a tradução
possui uma certa ligação com a verdade. Quanto à visão poética, nós sempre falamos da
fidelidade e exatidão, duas palavras fundamentais na tradução. Palavras que retomam ao
caráter do homem em vista a si mesmo, do outro, do mundo e de sua existência. Neste
domínio, o tradutor possui o espírito de fidelidade e exatidão, porém sabe-se que é
praticamente impossível ao tradutor ser extremamente fiel ao original, faltando-lhe
experimentação e exercício.
O ato ético consiste em reconhecer o outro e receber o outro enquanto outro.
Acolher o outro, o estrangeiro, ao invés de recusá-lo ou de dominá-lo. Uma cultura pode
se apropriar de obras estrangeiras, – como o fez Roma – sem jamais ter para com elas
ligações dialógicas. A tradução, a partir de sua visão de fidelidade, pertence
originariamente à dimensão ética. Ela é, em sua natureza, animada pelo desejo de abrir
o estrangeiro enquanto estrangeiro em seu próprio espaço de língua. Isto vai
historicamente de encontro à visão ocidental, que quase sempre se apropriou e
“sufocou” a vocação ética da tradução. É por esta razão que Berman diz que a tradução
é, em sua essência, o “abrigo do estrangeiro” (l’auberge du lointain).
Em uma obra, é o “mundo” que, cada vez de uma forma, é manifestado em sua
totalidade. Toda comunicação trata de algo parcial, setorial. A obra que trata sempre de
uma totalidade é manifestação. Além do mais, ela é manifestação de um original, de um
texto que não é somente primeiro em relação às suas derivas translingüísticas, mas
também primeiro em seu próprio espaço de língua. A visão ética, poética e filosófica da
46
tradução consiste em manifestar em sua língua esta novidade pura preservando seu
caráter de novidade. A visão ética do traduzir, justamente por prestar-se a acolher o
estrangeiro em sua corporeidade carnal, não se pode conectar à letra da obra. Se a forma
da visão é a fidelidade, é preciso dizer que somente há fidelidade – em todos os sentidos
– na letra. Ser fiel a um contrato significa respeitar suas estipulações, e não o “espírito”
do contrato. Ser fiel ao “espírito” do contrato é uma contradição em si mesmo. A
finalidade da tradução é acolher em língua materna essa literariedade, o que é
explicitado ao longo dos textos derridianos.
2.1.2 O estrangeiro
O particular interesse desta dissertação pela tradutologia apresentada por
Berman situa-se principalmente na aplicação de algumas de suas hipóteses
tradutológicas fundamentais. Na obra L’Épreuve de l’étranger (1984), Berman foca a
importância da tradução literal como estratégia capaz de ratificar a alteridade do texto
fonte, de suas sistematizações e de seu estrangeirismo. A concepção bermaniana de
tradução literal rejeita toda tentativa de anexação ou de apropriação do texto fonte por
uma visão etnocêntrica da tradução. Berman opõe uma visão ética da tradução (ou seja,
o estranho, o “descentramento”, a abertura ao outro) à visão comunicativa da tradução
que produzirá uma má tradução, geralmente coberta de transmissibilidade e opera uma
negação sistemática do estrangeiro da obra estrangeira. Uma tradução etnocêntrica
acarretará um sofrimento do objeto traduzido, ao ser privado do seu código. Sobre essa
discussão, Berman cita Derrida (1995): “um corpo verbal não se deixa traduzir ou
transportar em outra língua. E é exatamente isso que a tradução deixa passar.”
47
Na obra em questão, o conceito de “estrangeiro” é definido dentro de um
contexto de transferência cultural, contexto no qual a “estranheza” do texto fonte é
destacada ao ser acolhida como verdadeiramente “estrangeira”. A partir deste ponto o
conceito de alteridade, próprio do domínio dos estudos culturais, pode fazer parte dos
estudos da tradutologia, - “ciência” que foi definida anteriormente – uma vez que a
tradução é verificada como forma de prática lingüística e cultural que define e situa o
“outro”, o “estrangeiro” em um quadro fixo. Apenas recentemente o estudo deste
“outro” cultural foi aprofundado na tradutologia, o que remonta à questão da
traduzibilidade cultural. Em uma visão desconstrutivista, toda forma de crítica textual
tem como fundamento uma oposição binária, aqui exposta pelo “si” e pelo “outro”. Esta
oposição criaria, por conseguinte, uma fronteira estável capaz de gerar uma
essencialização das diferenças culturais. No domínio desta nova “ciência”, o conceito de
intertextualidade pode ser interpretado como o resultado das transações entre as culturas
já caracterizadas por seu pluralismo.
Em contrapartida, é possível questionar quais seriam as motivações ligadas à
produção de um texto que apresentasse tais características de alteridade. Primeiramente,
a língua da escrita literária fonte estaria submetida aos imperativos de uma construção
de identidade de um novo sujeito-alvo, “não estrangeiro”. Sendo assim, em relação a
esta dominância pressuposta à língua-alvo, o autor opõe um desejo de escrita cultural
em sua própria língua “estrangeira”; um desejo psicolingüístico de sua (do estrangeiro)
língua que se opõe ao sócio-político da língua alvo.
Usualmente em tradução, o “outro” cultural raramente é verbalizado de modo
direto. Ele é, na maior parte das vezes, filtrado e adaptado, logo verbalizado de modo
indireto, através da consciência do tradutor. Haveria, portanto, um debate entre a
escritura e a cultura apto a debruçar-se nos aspectos ligados ao processo e a produção de
48
tradução. Os partidários deste posicionamento (escritura/cultura) pressupõem uma visão
de cultura como constituída de códigos e representações, que desta forma deveriam ser
inseridos no discurso. A tradução não é mais, então, limitada à simples transferência
entre o “si” e o “outro” cultural, mas também se trataria de um papel de regulador
cultural, como é o caso, por exemplo, do contexto, que adquire um valor funcional.
Gostaria de aproximar esta visão a de Lawrence Venuti, estudioso da tradução e
tradutor. Seus principais relatos dizem respeito ao processo de “domesticação” que
muitos textos sofrem ao serem traduzidos, além da referência aos valores culturais que
estão envolvidos nessa atividade. Ao escrever sobre a questão da ética que perpassa
todo o processo tradutório, ele considera o ato de traduzir como uma prova na qual o
tradutor negocia as diferenças culturais e lingüísticas do texto de partida à luz de um
conjunto de diferenças tiradas da cultura/língua alvo. Assim, na representação do
traduzir, o texto “estrangeiro” se vê investido de significações e características
provindas da cultura/língua receptora. A inscrição dos elementos da língua/cultura alvo
no texto fonte é foco das preocupações de vários teóricos, como os citados Berman e
Venuti, que sugerem uma reflexão ética da tradução ao visar conservar o “estrangeiro”
do texto fonte.
O paradoxo desta opinião, entretanto, reside no fato que toda ética devotada a
combater a inscrição da cultura/língua alvo no texto original apenas pode ser formulada
ou praticada a partir dela mesma (seu estilo, seus dialetos, seus diferentes registros de
discurso etc.). Isto significa que a especificidade lingüística e cultural do original
somente pode ser marcada de forma indireta, pelo seu “deslocamento” na tradução,
através de uma diferença introduzida nos valores e instruções da língua/cultura alvo.
Assim, a tradução, por definição, encobre a heterogeneidade inerente a certos textos.
49
Venuti, sugerindo uma aproximação essencialmente sourcière, reconhece que
toda tradução é, por definição, assimiladora, pois em toda tradução os elementos do
texto de partida são assimilados na cultura da língua alvo. As traduções sourcières, não
obstante, para Venuti, são necessariamente menos assimiladoras que as traduções
ciblistes. Encontram-se elementos de fonte em uma tradução cibliste como elementos de
alvo na tradução sourcière. A diferença fundamental entre as duas teorias reside no fato
que a tradução cibliste tende a “naturalizar” os traços característicos da língua fonte,
enquanto a tradução sourcière tem como missão acentuar os elementos provenientes do
texto fonte. Ou seja, embora se dividam como dois enfoques distintos, dificilmente
haverá uma tradução que seja unicamente sourcière ou cibliste.43
Em outras palavras, o conceito bermaniano de L’Épreuve de l’étranger é
particularmente apto a elucidar e explicar a prática tradutológica atual. A estratégia de
desterritorializar a comunicação intercultural feita por alguns escritores promove as
variadas questões de identidade e a reclamação pelo seu espaço próprio é classificada
por Berman como “escrita de tradução”. Este estilo de escrita estaria, por conseguinte,
fundamentado, tanto ideológico como socioculturalmente, uma vez que suscitaria
questões importantes em relação às escolhas na tradução, questões as quais apenas se
pode esperar responder pelo caminho de uma ética séria e global de tradução. As teorias
pós-modernas de tradução, dentre as quais cito a tradutologia, permitem distanciar-se da
dicotomia existente na base da maioria das teorias de tradução (sourcière x cibliste),
dicotomia a qual ficou claro não ser estritamente conveniente a ser realizada.
Todo o discurso presente em O Monolinguismo do Outro remonta para o
acolhimento do estrangeiro e para uma hospitalidade estranha à relação
colonizador/colonizado. Através dessa obra, no entanto, retemos que é possível discutir
43 source = fonte /cible = alvo (em francês).
50
todo o processo tradutório, privilegiando a disseminação da palavra e da reflexão que
ela nos propõe, justamente o que Derrida, Berman e Venuti valorizam na realização de
uma tradução. O significado de um texto, seja traduzido ou não, somente se delineia, e
se cria, a partir de um ato de interpretação, sempre provisório e temporariamente, com
base na ideologia, nos padrões estéticos, éticos e morais, nas circunstâncias históricas e
na psicologia que constituem a comunidade sociocultural. Ou seja, se não podemos
abandonar o que somos e nossas crenças ao nos relacionarmos com o mundo real, estas
mesmas relações não podem ser abandonadas enquanto leitores; os padrões que
possuímos projetam nossa significação e compreensão de um texto.
Pode-se aferir que os conceitos de original e fidelidade não podem ser aplicáveis
a textos, pois ambos não existem enquanto objetos estáveis. Se tudo que nos é
apresentado parte de uma prévia interpretação, o resultado não é necessariamente o
mesmo para grupos distintos socialmente, logo toda tradução é “fiel” apenas a esta
leitura (a qual foi produzida a partir de circunstâncias inerentes a cada indivíduo)
2.2 A différance
A significação como différance de temporização é postulada pela estrutura classicamente determinada do signo. Esta pressupõe que o signo “diferindo a presença, só é pensável a partir da presença que ele difere e em vista da presença que se busca re-apropriar.44
Já sabemos que a desconstrução se interessa pelas tensões, pelos jogos de força e
artifícios históricos fronteiriços, o que insere a obra O Monolinguismo do Outro neste
44 SANTIAGO, p. 23
51
pensamento. Viver a tensão da linguagem, falar em seu nome próprio é a promessa que
circula esta obra. Para tanto, a différance, noção derridiana que aponta não mais para a
“origem”, mas para um pensamento que retoma o tema da diferença e que não mais se
apóia na presença como princípio orientador, e sim, para a alteridade, está explícita
nesta obra, em seu caráter sensível e inteligível, colocando em cena o indecidível, o
“entre” que acolhe e que excede a oposição presença/ausência. Tal como a tradutologia,
a oposição é substituída pelo par experiência/reflexão, que na obra corpus desta
dissertação é a experiência do autor tida como reflexão para a pretensa apropriação
lingüística por alguma comunidade – o que busco “desconstruir” aqui.
No ponto em que intervém o conceito de différance, com a cadeia que o acompanha, todas as oposições conceituais da metafísica, na medida em que elas têm por referência última a presença de um presente (sob a forma por exemplo, da identidade de um sujeito, presente a todas as suas operações,...), todas essas oposições metafísicas (significante/significado; sensível/inteligível; fala/escrita...) tornam-se não pertinentes. Elas acabam, todas, em um momento ou outro, por subordinar o movimento da différance à presença de um valor ou de um sentido que seria anterior à diferença, mais originário que ela e que, em última instância, a excederia e a comandaria. Trata-se ainda da presença daquilo que nós chamamos anteriormente de ‘significado transcendental’.45
A différance revela a impossibilidade do discurso sem uma promessa elementar.
Mesmo que esta promessa não seja cumprida, mesmo que ela se realize como perjúrio,
como acontece na obra de Derrida, a mesma possibilidade é requerida. Cada vez que
alguém fala em nome de sua cultura ou invoca sua identidade cultural, ainda assim se
pratica a linguagem, ainda assim se percebe a singularidade das múltiplas alienações da
língua, reconhecendo-se como identidade alienada, seja por aspectos lingüísticos ou
culturais, a experiência que a língua permite é a experiência do exílio, da disseminação,
experiência essa que é universal. O movimento da différance não se faz subordinado à
45 DERRIDA (2001 c) p.35-36
52
presença de um valor ou de um sentido que lhe seria anterior; na ausência de tal
significado, resta apenas o “jogo” no seu movimento incessante, jogo este que se
vincula a uma abertura irredutível, é uma implicação que não encontra possibilidade de
controle, um jogo disseminante, de busca de uma origem, que, em verdade, não é
origem, é repetição. “A différance seria, pois, o movimento de jogo que produz as
diferenças, os efeitos de diferença.”46
Como a estrutura da língua também é uma repetição, ela é “submissa” à
memória e ao testemunho, posto que nada pode acontecer realmente sem alguma
memória e alguma promessa. Talvez seja por esta razão que a língua própria,
determinada em seu uso, por alguma comunidade que a faz “viver”, resiste como o
último valor de verdade, do sentido; o que explica a sacralização da língua enquanto
suporte de uma cultura, povo ou nação que queira provar sua autenticidade. “Minha
pátria, minha língua” é uma frase comumente empregada como defesa da manutenção
de determinados padrões lingüísticos. Evitar a descaracterização do idioma mantém-se
como a possibilidade de salvação. Daí a íntima relação entre pensar a língua e pensar a
identidade nacional, a noção de pertencimento e todos os seus conceitos correlatos,
como cidadania e soberania nacional. O próprio filósofo sofreu a perturbação da
identidade pela pretensa língua comunitária, o francês, bem como a privação da
cidadania francesa por algum período. Seria então a cidadania o que responde pela
inserção em algum grupo? Há um caráter estranho em estabelecer tal critério, pois não
se escapa do pertencimento, assim como não se escapa da língua. Aliás, o filósofo nem
mesmo busca dela escapar, o que busca é manter o olhar crítico sobre qualquer tentativa
de essencialização do pensamento. Daí a différance como:
46 SANTIAGO, p.24
53
A différance como espaçamento (movimento inseparável da temporização-temporalização) estabelece a possibilidade de conceitualização no interior do sistema lingüístico. O conceito significado nunca está presente de forma plena (o que concederia ao presente o poder de “síntese”), mas constitui-se a partir do traço nele dos outros elementos da cadeia ou do sistema, fazendo-se necessário que “um intervalo o separe daquilo que não é ele para que ele seja ele próprio.47
A différance não busca separar o pensamento do culto identitário, da mesma
forma que indica que não podemos dele escapar. Indicar que haveria uma possibilidade
de escape seria desrespeitar a singularidade de cada caso, a particularidade de cada
situação histórica. Por isso a desconstrução atua na margem, à borda da impossível
determinação dos sentidos, apoiados pela vigorosa relação entre pensamento e
linguagem, relação esta que não se submeteria a imposições de verdade, por conta de
nem mesmo acreditarmos na verdade.
2.3 Uma impossível apropriação
O monolinguismo do outro seria em primeiro lugar esta soberania, este lei vinda de algures, sem dúvida, mas seria também e em primeiro lugar a própria língua da Lei. E a Lei como Língua. A sua experiência seria aparentemente autônoma, porque tenho de a falar, a esta língua, e de a apropriar para a ouvir como se eu próprio ma desse; mas ela permanece necessariamente, assim o quer no fundo a essência de toda a lei, heterônoma.48
Ter algo como próprio, ser dono de algo, é uma relação mercantil muito forte em
nossa cultura ocidental. Porém, seria verdadeiramente possível ser dono de sua língua?
47 Ibid, p.24 48 DERRIDA (2001 b), p. 56
54
Essa é a grande discussão de O Monolinguismo do Outro e que busco aqui interpretar.
A apropriação de uma língua é, por vezes, possível e necessária, interpretando a língua
como um bem próprio que deve ser defendido, comum a um grupo, apta a identificar
determinada comunidade lingüística. Seria um elemento de certificação de
pertencimento, seria a “uni-identidade” da língua, o caráter uno e comum, idêntico a
todos os “pertencentes” deste grupo lingüístico, que põe a língua como um duplo objeto
de apropriação e identificação. No tocante às línguas, a assimilação da linguagem ainda
é uma forma de ameaçar as culturas, pois as formas mais extremas de violência política
incluem o fantasma idiomático, como foi o caso vivido pelo filósofo na Argélia.
Sua autobiografia expõe uma situação singular, uma ligação particular ao
francês, uma reflexão que alimenta a insuficiência da apropriação e identificação a este
idioma, e que o acompanham:
Eis a minha cultura, ela ensinou-me desastres em direção aos quais uma invocação encantatória da língua materna precipitou os homens. A minha cultura foi imediatamente política. “A minha língua materna”, dizem eles, falam eles, quanto a mim, cito-os e interrogo-os. Pergunto-lhes, na sua língua, evidentemente, para que me ouçam, porque isto é grave, se eles sabem bem o que dizem e de que falam. Sobretudo quando celebram tão levianamente a “fraternidade”, no fundo é o mesmo problema, os irmãos, a língua materna, etc.49
A descrição de tal situação não é meramente autobiográfica: ela serve como
pressuposto para a “desconstrução” da língua como propriedade de um grupo. Embora o
filósofo use seu próprio nome para descrever a tensão vivida, há uma universalidade em
seu discurso, dado que o monolinguismo que o faz falar de uma língua materna é
sempre o monolinguismo do outro – e tal outro é universal. A compreensão de seu
monolinguismo como sendo do outro, visto a citação de início deste capítulo, seria a
49 Ibid, p.49
55
revelação de uma cultura não como característica natural, mas como essência colonial,
como uma lei heterônoma, uma autonomia que vem do outro, que chega até o indivíduo,
o qual é obrigado a respeitá-la. Interpretar a língua como uma propriedade natural,
como aquilo que nos integra em uma comunidade, vai de encontro à proposta de
Derrida, pois para ele, “a língua é a lei que outros nos impuseram”, e não “o seio que
sugamos desde a infância”, metaforicamente falando, que recebemos abertamente.
Como a relação entre a mãe e o bebê, que recebe a fala da mãe como uma língua de
chegada, sem algo que o pré-exista, é o posicionamento do monolinguismo do outro –
que em um primeiro momento é a mãe – pois serve como ponto de partida para a
emergência do sujeito.
Não é raro ouvir discursos em que o idioma é a propriedade que permite incluir-
nos em um grupo, ser a nossa identificação, bem como a sempre presente ameaça a tal
propriedade, por conta dos estrangeirismos, das palavras fora de uso, enfim, que
poderiam causar algum tipo de apagamento deste pólo identificador. Estando a língua
sempre ameaçada, a necessidade de reafirmação de seu estatuto seria imprescindível, da
mesma forma que a sua proteção e salvação, salvação essa que apenas a própria
linguagem é apta a oferecer. No entanto, a ameaça está no por vir da língua: não se tem
acesso a locutores futuros, não se pode controlar a interpretação, o que explicaria,
talvez, os discursos nacionalistas autoritários de pertencimento a linguagens. A língua é
sempre do outro, do colono, autoritária, pois nos ensinam a pensar de acordo com seus
pressupostos, nos “colonizam”.
[...] independentemente do que queira ou faça, não pode entretecer com ela (língua própria) relações de propriedade ou de identidade naturais, nacionais, congenitais, ontológicas; porque não pode acreditar e dizer esta apropriação senão no decurso de um processo
56
não natural de construções político-fantasmáticas; porque a língua não é o seu bem natural...50
É através de tal caráter inapropriativo da língua que surgem tentativas de
classificação lingüística, por pureza ou riqueza, da mesma forma que alguns tentam
impô-la a grupos ou contabilizam seus falantes. Para os que fazem isso, é preciso
guardar a hegemonia de sua expressão. A língua é objeto de exigências políticas, pois
não vemos ninguém renegando a sua língua nem tampouco sua cultura; muito pelo
contrário, o que é observado é que há um forte valor em “guardar” sua língua, dita
materna, preservá-la como a um tesouro, interpretando que uma comunidade lingüística
é algo homogêneo e organizado. Ora, assim como o pressuposto do diálogo, que implica
superficialmente uma equiparação entre os falantes, mas na verdade é a imposição de
uma das partes e aceitação imediata por parte da outra, - sem mesmo se “rendre
compte” disto - o ideal de uma comunidade homogênea é falso, pois tal ideal está
escondido na alienação ao que figura como lei, ao que vem de “fora”, ao que é
colonizador. Neste momento, surge um importante questionamento: se tal
monolinguismo é sempre do outro, sempre das alteridades que me cercam e que me
compõem, como continuar a falar, se somos construídos por outros? Somos então
alienados?
Para responder a tais questões, é necessário buscar uma dupla certeza: estamos
realmente certos que não mais falamos a língua do outro, uma vez que é a mesma língua
que falamos, por conta de seu caráter repetitivo? As ilusões de pertencimento e domínio
já foram “deixadas para trás”? Afinal:
Como é que se pode dizer e como saber, com uma certeza que se confunde consigo mesmo, que jamais se habitará a língua do outro, a outra língua, quando ela é a única língua que se fala, e que se fala
50 Ibid, p.37-38
57
na obstinação monolíngüe, de modo ciosamente e severamente idiomático, sem jamais por isso estar nela em sua casa?51
Estas duas hipérboles apresentadas pelo desconstrutor são, no fundo, a mesma
coisa da dupla certeza que se busca possuir, duas certezas que além de uma experiência
singular da língua são também uma forte resposta política às dinâmicas de relação para
com a língua. Para tanto, ele apresenta uma marca gramatical que indicará o caráter
decisivo de sua reflexão: o uso do imperativo. “[...] inventa pois na tua língua se fores
capaz ou se quiseres ouvir a minha, inventa se podes ou queres dá-la a ouvir, a minha
língua, como tua...52” Tal imperativo exclama a invenção como tarefa do tradutor, ou
qualquer um que esteja em posição de tradutor (como até mesmo um leitor), exclama o
interesse na dinâmica de construção de conteúdo. Se “nada é intraduzível num sentido,
mas num outro sentido tudo é intraduzível, a tradução é o outro nome do impossível53”,
o filósofo nos indica que o tempo todo há tradução, quando se lê há uma nova leitura e
uma nova “tradução”, sendo, portanto, inesgotável, sendo então tudo tradução, algo
inatingível. Se a tradução é o outro nome do impossível, ao mesmo tempo estar na
língua é tradução todo o tempo, só o impossível acontece: se só o possível ocorre, isto
que ocorre, na verdade, não é acontecimento, é apenas uma reprodução, continuação,
condições de possibilidade. Logo o impossível, apenas o impossível acontece, não
sendo este acontecimento uma mera confirmação do previamente esperado, perpetuação
ou prolongamento do mesmo. Se tal afirmação pode talvez soar paradoxal, esta
impossibilidade é refletida na necessidade de invenção do idioma, a necessidade de uma
referencialidade aberta, um evento de leitura que, se ocorreu, estava em outro local. As
várias alteridades que atravessam o leitor, e que são acolhidas, não são características
51 Ibid, p. 88 52 Ibid, p. 89 53 Ibid, p.88
58
prévias do eu deste leitor: ora, toda leitura é então acontecimento, é invenção.
Entretanto, é preciso que haja responsabilidade nesta invenção, não é algo meramente
subjetivo como a interpretação possa vir a sugerir – sendo uma simples revolta contra a
ordem do suposto sentido, é antes um interesse em desmontar as ilusões de identificação
e aproximação, a busca das armadilhas do monolinguismo.
2.4 A promessa do acontecimento
A ruptura com a tradição, o desenraizamento, a inacessibilidade das histórias, a amnésia, a indecifrabilidade, etc., tudo isto desencadeia a pulsão genealógica, o desejo do idioma, o movimento compulsivo para a anamnese, o amor devastador pelo interdito.54
Inicio este subcapítulo com a confissão derridiana de seu amor pelo francês,
língua interdita, da mesma maneira que esta confissão não é restrita apenas ao filósofo:
é o que ocorre com todos os que estão na linguagem, posto que tais objetos inatingíveis
sempre fizeram parte dela. Não é sem risco que a língua é feita como intento de uma
promessa, o que pode ser o meio mais radical de agravar a “raiva apropriadora” de que
o filósofo tem consciência, esta raiva que se impossibilita na falta de propriedade
natural no corpo da língua. Como apenas promessa que a língua o é (promete uma
presença), a língua nunca chega a acontecer como tal, e o pensamento desconstrutor
desubstancializa a noção do acontecimento.
Ao mesmo tempo, esta tradução intraduzível, este novo idioma faz acontecer, esta assinatura faz acontecer, produz acontecimentos na língua dada à qual é ainda preciso dar, por vezes acontecimentos
54 Ibid, p. 92
59
não constatáveis ilegíveis. Acontecimentos sempre prometidos mais do que dados. Messiânicos. Mas a promessa não é nada, não é um não-acontecimento.55
Esta é a essência da promessa, um acontecimento messiânico, sem conteúdo
“por vir”, “é a abertura estrutural, a messianicidade, sem a qual o próprio messianismo,
no sentido estrito ou literal, não seria possível. A menos que isso seja justamente,
talvez, o messianismo, esta promessa originária e sem conteúdo próprio.56” Promessa
que sustenta o desejo de reconstituição da língua mãe, da ante-primeira língua destinada
a traduzir essa memória sem origem. Esse desejo vem da própria linguagem: o sujeito é
arrastado por esse desejo, desejo de primeira língua, desejo de uma prévia, prestes a
presentificar a intenção da língua. O que há em cena é um acontecimento que não
acontece, um espectro, que na figura de um arquivo se destina a dar as boas-vindas às
alteridades. 57
O sujeito se constitui através das línguas de chegada, – várias línguas singulares,
alteridades que o perpassam – sendo, portanto, pré-subjetivo. Esse mesmo sujeito que,
pressupostamente, transportaria o desejo, a verdade o desejo já o antecedem, pois já está
presente nas línguas de chegada. Mas o que este desejo deseja? É um desejo daquilo que
nunca se teve, por isso é desejo de invenção. Se fosse desejo de algo que se perdeu, não
seria de invenção e, sim, de retomada. Por conseguinte, a relação que se possui com o
que é interpretado é algo que nunca existiu, nunca houve comunidade para com o objeto
da promessa. Não há pertencimento com o objeto, tal é o caráter da différance. Como
cada acontecimento se dá no indivíduo, e tal indivíduo se constitui a partir da sua
monolíngua, nada é mais que a língua do outro, uma vez que esta unidade já estaria
contaminada pelo outro.
55 Ibid, p. 99 56 Ibid, p. 101 57 cf. apontamentos de aula do curso “Tópicos Especiais de Filosofia Contemporânea”, ministrado pelo Profº Dr. Paulo César Duque Estrada.
60
Conseqüentemente, a língua não é. “[...] Ela é rastro e o que a reúne é sua
estrutura messiânica de promessa, de espera sem horizonte de espera, enfim, sua
dispersão58”. É a partir de uma estrutura desta forma que o monolinguismo do outro é
possível, não através de uma “unicidade a vir”, mas de uma singularidade. O
monolinguismo não é unidade, não é sinônimo de hospitalidade nem de nenhum
processo de homogeneização; prometido em cada “ato de fala”, ele é, ao contrário, a
cada instante possível.
No decorrer deste discurso, a voz desconstrutora é a apresentação pura do
sentido,59 pois quando se fala já há contaminação: nunca apenas se fala, desconectado
de um contexto de ação. A alteridade é estrutural à linguagem, pois o monolinguismo é
sempre atravessado por outro através de uma estrutura de promessa, que já existe
previamente na linguagem. A promessa anuncia que o monolinguismo não é
transferência de sentidos. Há promessa no que há desejo, desejo de se obter o desejado,
– “espera sem horizonte de espera” – um horizonte último na apreensão do ser.
Exatamente por não haver um horizonte de promessa não se tem consciência do que
esperar: quando falo, não sei o que me espera no final da frase, portanto há promessa e
há ausência de consciência. Há uma ameaça, fator que a desconstrução não deixa
esquecer que é necessário para o pensamento.
Mas por esta razão mesma que o que reúne os indivíduos, enquanto estrutura do
monolinguismo, é o habitar a borda, e esta reunião é, identicamente, unicidade sem
unidade e dispersão: “este monolinguismo não faz um consigo mesmo60”, nunca é
unidade e ele “fala uma língua de que está privado61”. Esta é a estrutura do louco
58 CONTINENTINO, p. 123 59 Lembrar dos Speech Acts (Atos de Fala) de Austin; que indicam que os atos de fala são felizes quando se cumprem, quando há as condições para que estes ato enunciativos se cumpram, eles buscam assegurar a apreensão, ter um resultado e demandar respostas. (cf. OTTONI, 1998) 60 DERRIDA (2001 b), p. 97 61 Ibid, p. 93
61
acontecimento, que integra e desintegra, que faz do apagamento textual o seu vigor para
a posteridade, que faz do luto a sobrevida da monolíngua, mantendo-a espectral na
busca de sua origem.
62
Capítulo 3 - O caráter deste monolinguismo
3.1 O que há de hospitalidade na monolíngua
Ainda uma palavra para epilogar um
pouco. O que aqui delineio, não é sobretudo o começo
de um esboço de autobiografia ou de anamnese, nem
mesmo um ensaio tímido de Bildungsroman
intelectual. Mais do que a exposição de mim, isto
seria antes a exposição do que, para mim, terá
obstaculizado esta auto-exposição. Do que me expôs,
portanto, a este obstáculo, e me atirou contra ele. O
grave acidente de circulação no qual não páro de
pensar.61
Em uma grande angústia, o título O Monolinguismo do Outro promete uma
língua que já fala a língua – francesa – sobre a qual a própria obra trata. Mas a obra trata
também de sua própria língua como língua estrangeira, tal é a realidade do título que
duplica, complica e traduz a obra: quantas línguas, e mesmo qual língua? Poderíamos
falar da língua em uma única língua? Surge então de imediato uma experiência
paradoxal, a de alteridade como indissociável daquilo que tradicionalmente se associa a
uma identidade: uma cultura, um território, uma língua. O título já promete uma língua
inapropriada, tão inevitável quanto impossível; uma promessa na qual toda língua
desafia a língua, uma apropriação de algo que não o pode ser, um testemunho no qual a
língua é a condição originária e, ao mesmo tempo, o obstáculo.
O idioma francês foi na Argélia francesa a língua do outro, maître ou colono,
enquanto o árabe, estranho e inquietante, era a língua do vizinho, do outro como o
próximo mais próximo... uma língua, várias línguas sempre interditas. Seria, portanto,
difícil dizer um “eu me lembro” válido quando é preciso inventar sua língua e seu
61 DERRIDA (2001 b) p.103
63
próprio “eu”, inventá-los ao mesmo tempo, além da extensão da amnésia que provocou
esta dupla interdição. Afinal, “como dizer um ‘eu recordo-me’ que valha, quando é
preciso inventar e a sua língua e o seu eu, inventá-los ao mesmo tempo, para além do
desprendimento de amnésia que desencadeou o duplo interdito?62”.
É preciso lembrar (o que é um tanto quanto problemático nesta obra), nesta
língua e com o risco de perdê-la, que o idioma francês de Derrida é produto de uma
história de língua indissociável de sua língua, o que afeta profundamente a constituição
do eu (je): pelo acesso proibido a toda língua não-francesa na Argélia (árabe dialetal ou
literário, berbère etc.), na época de sua infância, mas igualmente, de forma deturpada,
diferente e perversa, acesso proibido ao francês. Ou seja, o que está sempre em jogo é a
(in)comunicação e a necessidade de tradução permanente.
Além da exemplaridade e do universal, a desconstrução fala da língua que ela
não fala. Paradoxal? A língua é a expressão dos desejos e sofrimentos nesta obra, das
expectativas e das preces, as quais não estão situadas em nenhum lugar, posto que a
língua é do outro, vem do outro, e apenas existe nessa relação com o outro. Uma das
hipóteses centrais deste livro, o rastro de um acidente eterno, é partilhado por uma tênue
linha superficial do movimento da desconstrução. A monstruosidade de uma língua
outra, esse acidente interno, e a imposição colonial da língua do colonizador (maître)
formariam de fato o entorno de uma ferida na obra em toda língua, condição
violentamente indispensável de toda promessa, de toda memória, de todo acolhimento,
de toda monolíngua e de “mais de uma língua”63.
62 Ibid, p. 46 63 Derrida, em “É favor inserir”, anexo da obra O Monolinguismo do Outro, na página dois, confessa: “O diagnóstico, presta-se de boa vontade, mas não sem reserva, aos que aí querem ler uma hipótese
genealógica, a autobiografiazinha de um gosto imoderado pelo que se chama a “desconstrução”. De que
a única definição alguma vez arriscada, a única formulação explícita, foi um dia, é melhor lembrá-lo
aqui ‘mais de uma língua’. Esta definição também aparece em: “Se tivesse de arriscar, Deus me valha, uma única definição da desconstrução, breve, elíptica, econômica como palavra de ordem, diria sem
frase: mais de uma língua.”[DERRIDA, Jacques. Mémoires pour Paul de Man, Galilée, 1988, p.38]
64
A língua é de fato o que torna possível essa articulação de uma singularidade
excepcional da estrutura universal que nos fixa a uma única língua, ao mesmo tempo,
proibindo-nos de apropriá-la. Falar uma língua não significa possuí-la, pois não existe
propriedade natural na língua, assim como uma revolução ou emancipação pode
confirmar uma herança lingüística, mas não a propriedade da língua. “A minha língua, a
única que me ouço falar e me ouço a falar, é a língua do outro 64”, posicionamento ético
que guia o pensamento do filósofo e exemplificado através do caso árabe. O
monolinguismo desse outro intensifica o terror que já assombrou a desconstrução: nós
recebemos a língua em uma escala muito mais ampla que a criamos. Esta relação para
com a língua sempre partiu de nós mesmos, somos destinados, “entrelaçados” a uma
língua como a um endereço.
O árabe era importante para manter as relações hierárquicas, para ordenar e ser
ordenado, o que muito influenciou o seu ensino enquanto língua estrangeira nas
instituições de ensino. Já o francês que era ensinado desconsiderava quaisquer sotaques
regionais, práticas ou hábitos grupais, ou seja, o idioma praticado era fortemente
metropolitano, o que gerou a imagem de uma França espectral. Quem dominasse esse
padrão lingüístico teria um melhor posicionamento social e possuiria representação de
força mais ampla. É válido comentar que, atualmente há um movimento inverso ao que
ocorreu anos atrás, como a parasitação do idioma. Hoje, a Argélia busca recuperar seu
renome intelectual árabe e luta para conseguir reaver Jacques Derrida como um legítimo
pensador argelino. Talvez se o filósofo ainda estivesse vivo (faleceu em 2004),
rejeitasse tal proposta, visto que nunca se sentiu confortável em tal cenário africano.
Ele, que saiu de sua terra natal aos 19 anos, e somente retornou alguns anos mais tarde,
64 Ibid, p. 39
65
após sua celebridade, confessou não reconhecer lá um ambiente tão sedutor, como foi
para ela a “paisagem” francesa.
3.1.1 Uma possível substituição?
O francês era apropriado enquanto substituto da língua materna, uma situação
extremamente dramática para africanos, que tiveram suas fronteiras apagadas e que
tiveram suas diferenças geográficas e políticas descartadas. O francês também
reafirmava a proibição de reconhecimento do mundo de fora das paisagens naturais e
sociais da Argélia, uma vez que apenas construía espectros, imaginários da França. Em
Derrida, foram justamente esses espectros os responsáveis por tamanho sentimento pela
literatura francesa, pois lá ele poderia despregar-se da paisagem a que tinha acesso. É
nesta impossível apropriação de uma língua, nessa intimidade interior a partir da qual
existe as línguas, que é preciso politizar mais uma vez o combate contra os fantasmas
nacionalistas de apropriação da língua.
Ao relembrar quase que linearmente a experiência do tempo da infância e da
adolescência na Argélia, utiliza a língua francesa, que nunca pôde chamar de língua
materna, para retomar esta doença da colonização e o remédio que só a escrita lhe pode
oferecer (pharmakon65), enquanto espaço para despregar-se da paisagem. Daí o
monolinguismo também ser apresentado enquanto efeito de dominação.
O filósofo tem uma ligação essencialmente forte com o francês, língua esta que
possui formas que ele julga como “névrotiques”, neuróticas, o que explicaria, talvez, seu
estilo tão particular de escrita, tido pelas pessoas como de difícil acesso.
65 cf. DERRIDA (1972)
66
O meu apego ao francês assume formas que às vezes julgo ‘neuróticas’. Sinto-me perdido fora do francês. As outras línguas,
aquelas que melhor ou pior leio, decifro, falo às vezes, são línguas
que nunca habitarei. Aí onde ‘habitar’ começa a querer dizer
alguma coisa sobre mim. E morar. Não estou apenas
desencaminhado, perdido, condenado fora do francês, mas tenho o
sentimento de honrar ou de servir todos os idiomas, numa palavra,
de escrever ‘mais’ e ‘melhor’ quando agudizo a resistência do meu
francês, da ‘pureza’ secreta do meu francês, aquela de que falava
antes, a sua resistência encarniçada à tradução: em todas as
línguas, incluindo um certo francês.66
Ele lê e fala em outras línguas, porém ele se sente totalmente perdido fora do
francês; pois são línguas as quais ele não habitará jamais. Portanto, Derrida possui um
sentimento de servir a todos os idiomas quando ele trata da resistência secreta de seu
francês e da resistência intrínseca à tradução. Segundo o próprio, o intraduzível
demanda a economia poética de um idioma, já que ele confessa não cultivar esse
intraduzível. “Nada é intraduzível num sentido, mas num outro sentido, tudo é
intraduzível.” Portanto, “a tradução seria o outro nome do impossível.”67
A monolíngua guarda a herança dessa amnésia ligada às condições históricas de
expropriação colonial: ela guarda, mas ela destrói também, ela guarda no que ela
destrói. Isto sempre foi uma contradição muito dolorosa a Derrida, para quem o motivo
da “pureza” jamais deixou de ser questionado. A memória desse eu o impulsionava à
perda do sotaque em situação pública, legitimando o poder francês dentro da “colônia”
argelina.
Não me orgulho disso, não faço disto uma doutrina, mas é assim: o
sotaque, qualquer sotaque (francês) que seja, e acima de qualquer
outro o forte sotaque meridional, parece-me incompatível com a
dignidade intelectual de uma palavra pública. (Inadmissível, não é?
Mas confesso-o.)68
66 Ibid, p.85-87. 67 Ibid, p.88 68 Ibid, p. 63
67
Não podendo referir-se à cultura árabe-berbère como sua, sendo a metrópole
francesa distante de seus olhos, a qual apenas tinha acesso pela literatura, conforme dito,
menos ainda a cultura judaica, pois não foi inserido em seu sincretismo, Derrida sente-
se “desencaminhado, perdido, condenado”69 fora do idioma francês. Daí o seu
monolinguismo, uma ruptura, um estranhamento, destinado a traduzir a sua memória
sem origem.
Esta mesma monolíngua conserva a memória de uma língua que não foi jamais
falada, pois nunca falamos apenas uma língua (“não se tem nunca senão uma única
língua”70) e ela promete – espera sem o horizonte de espera – uma língua que ela ainda
não a fala. É esta não-identidade a si originária que oferece à língua, ao mesmo tempo
completamente insubstituível, entretanto sempre disponível para substituição, para a
outra língua.
A língua, monstruosidade ao interior da intimidade mais insubstituível, comporta
nela mesma o desdobramento da prótese, enquanto originária, em ser ela mesma a
substituição. Há uma língua para a língua, sempre em falta, tida como testemunho, no
flagrante de um delito de invasão em sua própria morada, demonstração de sua própria
monstruosidade da prótese. É a estranha familiaridade da prótese da origem, a prótese
do subtítulo da obra, dificilmente visível e dificilmente legível, que resulta no
monolinguismo do outro enquanto prótese, substituto, da origem.
69 Ibid, p. 87 70 Ibid, p. 99
68
3.2 Tripla dissociação no monolinguismo
No capítulo sete, Derrida remonta a uma tripla dissociação que sua comunidade
(judaica-magrebina-argelina) sofreu. Eram elas:
1. Foi, em primeiro lugar, privada e da língua e da cultura árabe ou berbère
(mais propriamente magrebina);
2. Foi também privada e da língua e da cultura francesa, numa palavra,
européia que não é para ela senão um pólo ou uma metrópole afastada,
heterogênea à sua história;
3. Foi finalmente, ou para começar, privada da memória judaica, e da história
e da língua que é suposto serem suas, mas que num dado momento deixaram
de o ser. Pelo menos de um modo típico, para a maioria dos seus membros e
de modo suficientemente “vivo” e interior. 71
Vale ressaltar que além de ser magrebino – ou seja, ele nasceu na região
denominada Magreb – ele era, ao mesmo tempo, um cidadão francês, embora ser
magrebino não signifique uma cidadania. Derrida se dizia um e outro, e ambos de
nascença. O fato de ser franco-magrebino, para ele, não era uma riqueza de identidades,
mas sim um problema de identidades. O que caracterizava esse problema era
principalmente o sentimento de exclusão, proveniente do fato de pertencer e não
pertencer à língua francesa, que era a única que possuía (uma vez que o francês não era
a língua falada em seu país, mas era a língua oficial por conta da colonização). Outra
parte do problema era o temor da possibilidade de perder a cidadania que lhe havia sido
concedida, pois algo semelhante já havia acontecido com os judeus da Argélia: estes
ganharam o direito à cidadania francesa através do decreto Crémieux em 1870 e em
1940 a perderam, tendo sido retirada pelo Estado francês. Três anos mais tarde a
reouveram.
71 Ibid, p.76-79.
69
Já do ponto de vista lingüístico, ser um judeu na Argélia, tal como o filósofo o
era, significava não ter praticamente nenhum acesso à língua e à cultura árabe ou
berbère. Também era não dispor de nenhum idioma interior à comunidade judaica, –
dado às diferentes comunidades judaicas da Europa central e oriental – como o yiddish,
que poderia constituir uma língua comum familiar. Bem como era receber o francês
como a língua da metrópole, uma língua prestigiada, apenas encontrada através da
nobreza que habitava do outro lado do mar.
Pois bem, para Derrida lhe faltava esse mar. O mar separa a realização do desejo
pela mãe-metrópole72, a cidade da língua materna, um país longínquo, um local
espectral, um alhures mítico.
Porque, como nós sabíamos, com um saber obscuro mas firme, a
Argélia não era de modo nenhum a província, nem Argel um bairro
popular. Para nós, desde a infância, a Argélia era também um país,
Argel uma cidade num país, num sentido estranho desta palavra que
não coincide nem com o Estado, nem com a nação, nem com a
religião, nem mesmo, ouso dizê-lo, com uma autentica
comunidade.73
O alhures mítico discute a questão da origem, visto que se trata de um local não-
localizado. Isto informa que o que existe são reenvios a algo não pontual, havendo um
caráter insituável de tudo o que está na língua. A potência colonial, por sua vez, impõe
sua Lei e sua espectralidade através da figura de um mestre escolar, tendo como função
colonizar: alguém ensina e outros se sujeitam a aceitar determinado pensamento, não
havendo como escapar.
A violência é aguçada no íntimo do filósofo, pois ele não enxerga a origem, ele
não possui tal horizonte; somente deste modo pode-se perceber as violências coloniais.
72 Há o fato biográfico de a mãe de Derrida ter tornado-se afásica no final de sua vida, esquecendo, até mesmo, o nome do filho. Este fato dialoga com a fala afásica de Derrida, perdida no esquecimento de sua língua materna e de sua tradição. 73 Ibid, p. 59-60
70
Fica assim facilitada a apropriação do francês como o substituto da língua materna,
permuta tanto mais dramática quanto as correlações que daí se estabelecem. As
diferenças geográficas e culturais são apagadas, bem como as fronteiras, sustentando,
contudo, o veto ao reconhecimento do mundo exterior às paisagens naturais e sociais
argelinas, paisagens que habitam seu mundo interior, seu imaginário.
Por isso nosso autor confessa que a literatura francesa foi o único ensinamento
escolar da Argélia que amou ter recebido, pois através dela experimentou um mundo
sem continuidade sensível para com o qual ele vivia, uma vez que ele lia uma literatura
capaz de criar uma realidade repleta de paisagens as quais ele não tinha acesso, não
conhecia. Era como uma vitrine da língua francesa.
Remonta-se, conseqüentemente, à tripla visão da tradução, pois aos judeu-
magrebinos, quando privados de seus referenciais lingüísticos supracitados, faltou o
exercício ético da fidelidade (visão poética), a ligação com a verdade da origem (visão
filosófica) e o reconhecimento do outro enquanto outro (visão ética). A tradução como
experimentação para esse grupo, incluindo Derrida, seria falha, apontando o problema
de alteridade presente no discurso da obra.
3.2.1 Uma estranha e pretensa identificação
O árabe era, em território argelino, ainda ensinado, a título de língua estrangeira,
em sua maior parte das vezes aos filhos de colonos franceses, para estimular a
comunicação com fins de dominação, seja nos trabalhos agrícolas ou para fins técnicos.
Significava “saber falar para saber ordenar e ser bem compreendido”. Isso para o
71
filósofo era uma inquietante estranheza (Unheimlich74), pois ele sempre considerou a
língua árabe como a língua do vizinho, dado que sua experiência foi a de viver em um
bairro limítrofe, afastado, onde a segregação era “tão eficaz quanto sutil75”. Entendemos
que o francês invadiu esta língua do outro, destruindo-a e tomando seu lugar, o que
serviu para manter focos de xenofobia e racismo, motivadores da guerra civil que se
estende até hoje.
A língua seria esta lei a que se é obrigado respeitar, esta lei autônoma,
impositiva e atravessada pela alteridade. Como nós pedimos às línguas para serem um
pólo de identificação, a propriedade que nos permite dizer quem nós somos, e que este
pedido não pode jamais ser plenamente satisfeito, as línguas aparecem como
propriedades sempre ameaçadas, pois sua alteridade possível (palavras esquecidas,
palavras estrangeiras etc.) ameaça de impossibilidade essa identificação. A língua se
transforma assim em alguma coisa que não se trata somente de promover e desenvolver,
mas que se deve proteger.
Porque (o mestre) não possui como próprio, naturalmente, o que no entanto chama a sua língua; porque, independentemente do que
queira ou faça, não pode entretecer com ela relações de
propriedade ou de identidade naturais, nacionais, congenitais,
ontológicas; porque não pode acreditar e dizer esta apropriação
senão no decurso de um processo não natural de construções
político-fantasmáticas; porque a língua não é o bem natural, ele
pode justamente por isso historicamente, através de uma violação
de uma usurpação cultural, ou seja, sempre de essência colonial,
fingir apropriá-la para a impor como ‘a sua’.76
A língua é o que nunca se deixou de apropriar e essa apropriação deve vir de si
mesmo, posição ética que guia o pensamento de Derrida: “[...] eu não tenho senão uma
língua e ela não é minha, a minha própria língua é-me uma língua inassimilável. A
74 Conceito comentado por Freud, em seu ensaio “O Estranho”. Unheimlich (em alemão) = estranha familiaridade. 75 Ibid, p.53 76 Ibid, p. 37-38
72
minha língua, a única que me ouço falar e me ouço a falar, é a língua do outro77”. Ainda
de acordo com o filósofo, toda cultura é violência: “qualquer cultura é originariamente
colonial. [...] Toda a cultura se institui pela importância unilateral de alguma ‘política’
da língua.78” Por isso, compreender seu monolinguismo próprio como monolinguismo
do outro volta a inverter os termos do problema. O que a língua institui - como língua
do outro, que impõe sua lei, que revela sua cultura - não é sua característica natural, mas
a sua essência colonial. Essa soberania de essência colonial, como foi classificada, traz
o monolinguismo que faz designar a língua que se fala como língua materna, que
deveria ser indefectivelmente conectada, é tida sempre como o monolinguismo do
outro, deste outro autônomo que se deixa atravessar por uma alteridade.
3.3 Sobre a diglossia do bilingüismo africano
A escrita africana de expressão européia já é, em grande parte, o resultado das
negociações entre os diferentes modos de apresentação – cultura da tradição oral
africana e os discursos narrativos europeus. Tal variedade é evocativa de duas tradições
e seria o resultado de um tipo de bilingüismo, natural à escrita pós-colonial. Neste
contexto, pode-se pensar que este resultado híbrido euro-africano já é, em si, tradução,
uma vez que mistura esse discurso narrativo oral da cultura-fonte colonizada e uma
cultura lingüística que aparece posteriormente como homogênea.
Normalmente, o escritor africano é um sujeito bilíngüe e bi-cultural, que possui
um bom domínio de seu idioma materno e também desta língua européia da escritura.
“Essa característica de mestiçagem cultural no escritor africano se manifesta em sua
77 Ibid, p.39 78 Ibid, p. 55
73
obra por uma diglossia lingüística e literária que evidencia as relações de poder entre a
língua e a cultura do colonizado e a língua e a cultura do colonizador”79, de acordo com
Bandia. Vale ressaltar que Derrida não é um sujeito bilíngüe, como confessa em O
Monolinguismo do Outro. Deve-se observar que tal diglossia80 destaca também a
polêmica da identidade textual, de sua nacionalidade, bem como a construção de sua
referência geográfica/territorial, influenciando seus emissores.
Esta escritura diglóssica se opera pela mediação entre a perda da referência de
território lingüístico bem como da cultura do Outro, uma vez que cada língua possui sua
própria interpretação de mundo. Daí o sentimento de muitos escritores africanos de
resistir intimamente às normas lingüísticas e culturais da cultura colonizadora,
parasitando-as a fim de desconstruir sua estrutura pela interferência de estruturas e
culturalismos africanos. O que ocorreria na literatura africana seria a pretensa oposição
de dois códigos (africano x o outro), destacando que, tais escritores, os que operam
deste modo, estariam engajando-se em uma prática de manutenção da tradição oral
africana; – seja por enunciação, narração ou relação intertextual – ainda que perdendo
seus referenciais históricos e literários.
79 BANDIA (2001) – (tradução minha) “Cette caractéristique de métissage culturel chez l’écrivain africain se manifeste dans son oeuvre par une diglossie lingüistique et littéraire qui met en évidence les
relations de pouvoir entre la langue et la culture du “colonisé” et la langue et la culture du
“colonisateur”. 80 cf. NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO, o vocábulo diglossia é definido como: “Numa sociedade, a existência de dois ou mais códigos distintos, cada qual deles com funções claramente diversas, determinadas pela estratificação social, mas em que apenas um deles goza de prestígio.”
74
3.4 Cenário argelino
A região do Magreb, composta pela Argélia, Tunísia e Marrocos, distante de ter
a idéia de uma nação, é pensada como um lócus de travessia do global, uma vez que se
localiza entre o Oriente, o Ocidente e a África. Tal região é sinônimo de pluralidade
(lingüística, cultural e política), porém não se pode esquecer de sua exterioridade,
Une pensée-autre, telle que nous l’envisageons, est une pensée en langues, une mondialisation traduisantes de codes, de systems et des
constellations de signes qui circulent dans le monde et au-dessus de
lui… Chaque societé ou group de societés est un relais de cette
mondialisation. Une stratégie qui ne travaille pas activement à
transformer ce relais est, peut-être, condomnée à se devorer, à
tourner sur elle-même, entropiquement. 81 [Um outro pensamento, como o concebo, é um pensar em línguas, uma globalização por meio da tradução de diferentes códigos, bem
como de sistemas e constelações de signos que viajam ao redor e
sob o mundo... Cada sociedade ou grupo de sociedades é uma
parada e uma encruzilhada de estruturação global. Qualquer
projeto estratégico que não se dirija a esses locais e não os envolva
ativamente está, talvez, condenado a ser devorado, a voltar-se
contra si mesmo, entropicamente.]
Antes de tratar deste caráter plural, deve-se fazer uma breve contextualização
histórica da Argélia, país natal de Derrida.
A Argélia tornou-se colônia da França em 1834, durante a chamada “Era do
Imperialismo”. Apesar de a resistência à dominação francesa ter sido uma constante por
todo o período colonial, foi somente após a II Guerra Mundial (1939-1945) que
ocorreram os primeiros movimentos organizados em prol da independência argelina. A
FNL (Frente de Libertação Nacional) se constituiu como o principal grupo de
resistência organizada contra o domínio francês. Este grupo organizava dezenas de
ataques contra as tropas francesas, que, por sua vez, respondiam com maior envio de
soldados a fim de reprimir qualquer movimento emancipacionalista. 81 MIGNOLO (2003) p.115
75
A luta pela independência se estendeu até 1962, quando o governo francês, após
a realização de um plebiscito, deu início às conversações com as lideranças argelinas
com o objetivo de negociar a paz e o processo de independência. Neste ano, a França
reconheceu a emancipação da Argélia através da assinatura dos acordos de Evian,
incluindo um cessar-fogo.
Logo em seguida a FNL declarou-se como partido único, sofrendo um golpe
militar três anos mais tarde. O novo presidente colocou a Argélia sob a órbita da União
Soviética e nacionalizou as empresas de petróleo francesas; já em fins dos anos 70, sob
o comando de outro presidente (Bendjedid), a Argélia buscou se aproximar do Ocidente.
Em 1989, a Argélia optou pelo pluripartidarismo, importante passo da história, bem
como limitando o poder ao prazo de cinco anos. Daí destacou-se o FIS (Frente Islâmica
de Salvação), compostos por pessoas que transformam princípios religiosos tradicionais
em ações políticas, os chamados fundamentalistas. Com uma proposta baseada nos
preceitos muçulmanos, o FIS conquistou um amplo espaço na política argelina, por ir de
encontro aos anseios da população muçulmana tida desde a época colonial como “povo
de segunda classe”. Foi feita a anistia política, instituição do árabe como língua oficial e
uma campanha contra os hábitos ocidentais foi lançada.
No entanto, em dezembro de 1991, mesmo com vantagem no primeiro turno das
eleições, o Exército recusava a vitória de um partido confessional. O presidente
Bendjedid foi deposto por um golpe militar em janeiro seguinte e milhares de militantes
e islâmicos foram presos. Como reação, grupos extremistas iniciaram suas atividades
terroristas e a partir daí, o país passou a viver em um clima de guerra civil. Desde 1999
há propostas de pacificação, a partir da Lei de Conciliação Civil, que ofereceu anistia
total a aquele que entregar sua arma, exceto se o portador participou de crimes
hediondos. Sabendo que as disposições desta Lei não se aplicam aos integrantes de
76
atentados, o clima de guerra civil continua, pois muitos resolveram não se entregar. Não
se sabe até qual ponto a guerra pode chegar ou se a violência continuará a crescer, é
uma incógnita o futuro desta nação, que já foi considerada como exemplo de
desenvolvimento por países do “terceiro-mundo”82.
3.5 Khatibi x Derrida
Retornando ao caráter plural, é importante refletir que o Magreb, desde o século
XVI com a expulsão dos mouros da Península Ibérica, até a colonização francesa no
início do século XIX e a descolonização política na segunda metade do século XX,
sofre processos (des)colonizadores. E para a compreensão de tais processos, será
apresentada uma figura ímpar da obra de 1996.
Abdelkebir Khatibi é um filósofo marroquino que também argumenta a
colonização francesa no Magreb, tal como Derrida o fez. Talvez aí esteja a razão para
que ambos dialoguem, ainda que não explicitamente, em O Monolinguismo do Outro.
Khatibi apóia-se em seus dois conceitos-chave para estabelecer um paralelo à
Derrida: a “double critique” e “une pensée autre”. O primeiro seria a crítica dos
discursos imperiais, aquele responsável pela construção do Magreb como região, bem
como dos discursos que afirmam a identidade e as diferenças articuladas nos e pelos
discursos imperiais; sendo, portanto, considerado como uma estratégia importante para
a idealização de macronarrativas83 na perspectiva da colonialidade. Já o “outro
82 Ainda que sendo politicamente incorreta, uso esta expressão para nomear países colonizados recentemente, como o Brasil, por exemplo. 83 As macronarrativas, segundo Mignolo são precisamente “os lugares nos quais “um outro pensamento” poderia ser implementado, não para dizer a verdade em oposição às mentiras, mas para pensar de outra
maneira, caminhar para uma “outra lógica” – em suma, para mudar os termos, e não apenas o contexto
da conversação.” MIGNOLO (2003) p.106
77
pensamento” seria uma forma de pensar que não seria inspirada em suas próprias
limitações e não pretende sujeitar e degradar; seria uma forma de pensar que é
coletivamente marginal e aberta, logo não é nacional, residindo aí seu potencial ético. A
“dupla crítica” é condição para o “outro pensamento”, somente realizável enquanto
diferentes histórias locais e suas singulares relações de poder. “Uma dupla crítica libera
conhecimentos que foram subalternizados, e a liberação desses conhecimentos
possibilita “um outro pensamento84”. No caso de filósofo marroquino, estamos na
interseção do francês (ocidental) e do árabe, tal como Derrida, mas não na reprodução
da epistemologia ocidental. Ele ainda propõe que o “outro pensamento” é manifestado
como contestação a grandes questões que hoje perpassam o planeta, rearranjando
geopoliticamente o conhecimento da forma, seja pelo “ocidentalismo (enquanto
imaginário dominante e autodefinição do sistema mundial moderno), seja pelo
orientalismo (um exemplo particular em que se localizava a diferença do mesmo)85”,
juntamente com as ciências sociais. O potencial desta “outro pensamento” é
epistemológico, pela crítica às limitações das tradições cristã e islâmica.
A modernidade inclui um conceito ‘racional’ de emancipação que afirmamos e presumimos. Mas, ao mesmo tempo, desenvolve um
mito irracional, uma justificativa para a violência genocida. Os pós-
modernistas criticam a razão moderna como uma razão do terror,
nós criticamos a razão moderna por causa do mito irracional que
ela esconde.86
Para Khatibi, a região do Magreb seria esse lócus de dupla crítica, distante da
definição de nação, é para o filósofo um local de colonialidade, de subalternização do
conhecimento. Lá, a descolonização não produziu uma forma crítica de pensar, não teria
84 Ibid, p.103 85 Ibid, p.104 86 Ibid, p.104-105
78
sido uma desconstrução; o que permitiu a expansão do etnocentrismo para todo o
mundo, – o que complementa a desconstrução pós-moderna de Derrida – da mesma
forma que critica a desconstrução dos saberes produzidos em sociedades árabes.
Khatibi, por conseguinte, ao mesmo tempo em que se alia a Derrida, distancia-se
dele; pois “distingue uma crítica da modernidade na perspectiva da própria
modernidade; por outro lado, empreende uma crítica da modernidade na perspectiva da
colonialidade87”. Para o marroquino, o conhecimento partilha-se na linguagem, o que
faz com que a tradução valha tanto para a “dupla crítica” quanto para o “outro
pensamento”.
O afastamento de Khatibi e Derrida e Foucault ocorre,
precisamente, quando a língua e a tradução são trazidas para o
terreno do conhecimento e da epistemologia, para o terreno da
colonialidade e da dupla crítica, distanciando-se da tradução
lingüística no interior da mesma metafísica dominadora, que ignora
o que está envolvido na tradução do conhecimento [...] A tradução
permite a Khatibi explorar sua idéia de um outro pensamento como
um ‘pensar em línguas’88.
No pretenso diálogo que estabelecem em O Monolinguismo do Outro, o
argumento de Derrida, para que a única língua que se tenha não seja a sua, ilustra o
limite da desconstrução da variedade da metafísica ocidental ao encarar a “dupla crítica”
e o “outro pensamento” propostos por Khatibi. Esta variedade é, como o próprio
filósofo ratifica, monolíngüe; no entanto, a proposição de Khatibi é inversa, é bilíngüe.
Ele explica o bilingüismo na região do Magreb ao mostrar que o intelectual
árabe/islâmico era por si só um tradutor, pois precisava interpretar desde o início uma
gama de disciplinas e conhecimentos que foram formados em outro lugar, conforme já
dito anteriormente. Segundo Khatibi, “a poderosa produção intelectual do Ocidente
87 Ibid, p.106 88 Ibid, p.107
79
torna assimétrica a situação bilíngüe e epistemológica, transformando o conhecimento
produzido em língua árabe num conhecimento de tipo subalterno.89” Não devemos
esquecer, entretanto, que no passado, os árabes foram os responsáveis pela execução de
traduções gregas toda a linguagem filosófica e científica, o que acaba dificultando a
aceitação da língua árabe como capacitada a produzir este tipo de linguagem, como se
não fosse flexível a produzir conhecimento próprio. A partir desta perspectiva, um
“outro pensamento” transforma-se em um ideal de tradução, em um modo de pensar em
línguas, ao fazer circular no mundo os códigos e sistemas de signos, ideal que pode ser
repassado a quaisquer situações bilíngües no planeta, não somente ao árabe/francês,
onde o pensar e o falar em línguas são formas de conquistar poder e descolonizar o
conhecimento, de acordo com Khatibi.
Penso que Derrida se mostra um pouco distante desta versão, pois o filósofo se
mostra pouco a vontade para falar do colonialismo:
Não posso aqui analisar de frente esta política da língua e também não me queria servir demasiado facilmente da palavra
‘colonialismo’. Qualquer cultura é originariamente colonial. Não
tenhamos apenas a etimologia em conta para o lembrar. Toda a
cultura se institui pela imposição unilateral de alguma ‘política’ da
língua. A magistralidade começa, como se sabe, pelo poder de
nomear, de impor e de legitimar as designações.90
Compreender seu monolinguismo próprio como monolinguismo do outro volta a
inverter os termos do problema. O que a língua, como língua do outro, que me impõe
sua lei, revela da cultura, não é sua característica natural, mas a sua essência colonial.
Derrida insiste em “uma perspectiva universal apoiada por sua crítica monotópica
radical do logocentrismo ocidental, compreendido como uma categoria universal
89 Ibid, p. 122 90 DERRIDA (2001 b) p.55
80
desvinculada do mundo colonial moderno.91” A língua, a cultura é essencialmente
colonial, este é um caráter intrínseco. O que para Khatibi é irrelevante, pois o que
realmente importa é que a colonialidade é conivente do mundo moderno, bem como
convém que a história e a localização do Magreb em relação ao colonialismo francês
potenciam a descolonização como uma maneira singular de desconstrução92.
O ponto principal aqui não é eleger qual opção seguir, qual escolha eleger, mas
sim entender esta diferença entre os dois filósofos, bem como compreender o potencial
liminar do “outro pensamento” de Khatibi. O “outro pensamento” é pensar em línguas,
entre duas línguas e suas relações históricas no sistema mundial moderno e a
colonialidade do poder93”.
A argumentação derridiana não leva em conta o mundo colonial e as diferenças
que o habitam que Khatibi contextualiza. O filósofo argelino participa da tendência
universal de “universais abstratos”, como, por exemplo, a que cita em sua obra de 1996:
a de que “a Língua é a Lei”: “O monolinguismo do outro seria em primeiro lugar esta
soberania, este lei vinda de algures, sem dúvida, mas seria também e em primeiro lugar
a própria língua da Lei. E a Lei como Língua94”.
O pensamento liminar estrutura-se, por fim, em uma dupla consciência, uma
dupla crítica ao imaginário do sistema colonial moderno e da
modernidade/colonialidade. Os universais abstratos, como a crítica ao imaginário
moderno a partir de seu interior, pensados por Derrida, opõem-se a uma crítica ao
sistema moderno a partir de seu exterior, como o faz Khatibi. Embora enfoquem o
mesmo assunto, a articulação ao contexto de colonialidade a partir da “dupla crítica” e
do “outro pensamento” norteia a perspectiva epistemológica apresentada em O
91 MIGNOLO (2003) p.123-124 92 Há uma coincidência histórica dos períodos em que ocorriam as lutas de descolonização magrebina e o projeto desconstrutor do filósofo argelino. 93 Ibid, p.112 94 DERRIDA (2001 b) p.56
81
Monolinguismo do Outro através do pretenso diálogo entre os filósofos no decorrer da
obra.
82
Capítulo 4: Uma análise do outro
4.1 A lei, o pertencimento e a linguagem
O silêncio deste traço de união não pacifica nem acalma nada, nenhum tormento, nenhuma
tortura. Nunca fará calar a sua memória. Poderá
mesmo agravar o terror, as lesões, as feridas. Um
traço de união nunca bastará para encobrir os
protestos, os gritos de cólera ou de sofrimento, o
barulho das lágrimas, dos aviões e das bombas.94
Já foi mencionado no capítulo um desta dissertação que o escritor se localiza
num local não situável, um local onde se dá o testemunho, um local que é atravessado
pelas paixões da língua, sempre no limite, à borda da linguagem. A grande discussão de
fundo da obra é saber o que é que garante a identidade de um povo, – se a língua o é
capaz – e a questão da lei a que estamos destinados: lei de experimentação da
linguagem. O monolinguismo em que habita o falar francês, o faz sofrer, posto que para
o escritor, estar na linguagem é sofrer. Entretanto, tal monolinguismo se funda na aporia
mote da obra: ter apenas uma língua e esta não pertencer a ele. Tal aporia é um
absurdo lógico, além de uma contradição performativa, “uma mentira desde então
incrível que arruína o crédito da tua retórica”95, pois o outro (o filósofo) afirma isso se
utilizando da língua que diz não possuir. Ora, tal dupla afirmação, tal double bind96
94 DERRIDA (2001 b), p.24 95 Ibid, p.15 96 Podemos pensar a estrutura do double bind como a estrutura de qualquer discurso, no qual a língua oferece uma tensão entre o traduzível - o que está “dentro”, o nome comum, a generalidade e o “querer-dizer do sentido – e o intraduzível – o “fora”, o nome próprio, a singularidade do ser, o que não é claramente explícito na língua. Vale se lembrar do mito de Babel, no qual a linguagem traz aquilo que nunca teve e propicia a “confusão” entre o nome próprio, o nome do pai (Deus pai) e o nome comum Babel, a multiplicidade das línguas, bem como o estado de confusão das pessoas. “Em primeiro lugar: em qual língua a torre de Babel foi construída e desconstruída? Numa língua no interior da qual o nome
próprio Babel podia, por confusão, ser traduzido também por “confusão”. O nome próprio Babel,
enquanto nome próprio, deveria permanecer intraduzível mas, por uma espécie de confusão associativa
que uma única língua tornava possível, pôde-se acreditar traduzi-lo, nessa mesma língua, por um nome
83
acaba colocando-o como sujet (súdito/assunto/sujeito) da língua francesa, na intenção
de servir ao idioma, ao francês que declara tanto amar.
Retornando ao título da obra de 1996, monos funciona como único, enquanto o
subtítulo Prothèse de l’origine, nos remonta ao remplacement, à substituição que a
prótese oferece. Como algo único pode ser substituível?
Pois bem, tais idéias incompatíveis assumem a forma de lei, a lei necessária que
dita a necessidade de nos relacionarmos com algo que é sempre inatingível (por ser uma
estrutura de double bind) e que se submete a uma divisão ativa, de acordo com a
nomenclatura de Khatibi. Este a classifica como sendo algo caracteristicamente formal,
a propósito da língua, posto que a relação entre a língua materna e o que nela se enxerta
(o que é estrangeiro) não é uma relação pacífica: é uma relação de guerra, são
colonizações, crueldades, imposições de linguagem. Tal colonização possui uma relação
intrínseca à língua, como em “franco-magrebino”, onde é possível interpretar tal hífen
como o silêncio, como a tortura.
Esta poderosa divisão é integrante da própria estrutura da linguagem, que nunca
foi para o escritor um bem, um patrimônio. Para ele, sempre que se fala já se fala
enxertando elementos pessoais, pensantes a cada um de nós; as outras tantas línguas da
narrativa autobiográfica de cada ser. Há, portanto, um jogo, uma tensão de “pulsão
genealógica” entre essas duas línguas. Há a necessidade de se experimentar a
linguagem: o nosso discurso nunca esteve ali, nunca houve a origem, dado que o
originário é a repetição de um pretenso objeto do discurso. Originário é a repetição de
comum significando o que nós traduzimos por confusão.” (DERRIDA, 2002, p.12). Logo em seguida vem uma nova explicação: “Seja por um jogo de palavras ou por uma associação confusa, pouco importa: “Babel” podia ser entendida numa língua com o sentido de confusão. Por conseguinte, da
mesma forma que Babel é ao mesmo tempo nome próprio e nome comum, um como o homônimo do
outro, o sinônimo também, mas não o equivalente, pois não seria questão de confundi-los no seu valor.” (Ibid, p.21)
84
sempre se referir a algo por via da linguagem97. Isto rompe a idéia de “habitar uma
língua”, pois não dispor do que se habita, do que se é impossível ter é o que torna
incansável a memória, memória amplamente descrita nas páginas de O Monolinguismo
do Outro.
Na estrutura lingüística, há “algo” que nomeia o que já existe, uma metafísica da
presença (tensão), que é sempre narrado, nunca existe por si só, há, desde o princípio,
uma referência primeira. Esta linguagem é feita por uma divisão; sequer existe a
pretensa língua pura e as línguas que a ela se referem: na verdade, ambas referem-se
mutuamente. Os objetos lingüísticos são interditados, uma vez que tudo o que falamos
não se vê, não se tem, são apenas referências da linguagem. O filósofo introduz sua
demonstração da divisão ativa nos apresentando a lei da língua:
Porque os fenômenos que me interessam são justamente aqueles que
vêm misturar estas fronteiras, aqueles que as ultrapassam deixando
assim aparecer o seu artifício histórico, isto é, as relações de força
que aí se concentram e, na verdade, aí se capitalizam a perder de
vista.98
Ora, se tais objetos estão fora de nosso alcance, como é citado por Derrida:
“Mas, estás a ver, não é muito original e repeti-lo-ei ainda mais tarde, eu sempre pensei
que a lei, tal como a língua, era louca – ela é em todo o caso o único lugar e a primeira
condição da loucura. 99”, tal desejo do impossível faz da língua, como da lei, o lugar da
loucura, da crueldade, da violência. Semelhante lei é a tradução, enquanto vida, inserida
na dinâmica da estrutura da língua (divisão ativa): a tradução é universal, pois cada vez
que é conceitualizado ou é criado um discurso filosófico, está se traduzindo à luz do um
determinado horizonte, a partir de enxertos lingüísticos. O próprio ato de linguagem é
97 As noções de repetição e originalidade já foram anteriormente explicitadas. 98
DERRIDA (2001 b), p. 21 99 Ibid, p. 22
85
um ato de tradução, enquanto reflexão, a tradução seria a lei da linguagem; tal processo
de divisão ativa que ocorre no seio da língua nos lançaria ao destino criativo e
impossível de fazer justiça às coisas, na tentativa de dizê-las com propriedade.
Ao considerar o trabalho de tradução, de pensamento, como um trabalho de
desdobramento e de derivação contínua, o texto derridiano não termina em si, ele se
prolonga em suas palavras, gerando um processo contínuo “traduções”, de
interpretações. Como um texto deriva em outro e de outro, como um pensamento se
desdobra e se origina a partir de outro, somos colonizados pela linguagem dos autores
que lemos e nos apaixonamos. Podemos até dizer que o professor coloniza ao lecionar,
que o indivíduo coloniza ao escrever... Todo universalismo é particular, pois o diálogo é
colonialismo e o que é colonizado faz uma tradução para a sua monolíngua. O próprio
diálogo já seria um trauma, ainda que possua um ideal de pacificação, pois é em seu
conteúdo a imposição da “leitura” melhor apresentada – muitas vezes até imposta pela
força. Há uma violência, um mal implícito no diálogo. Daí o perigo de pacificação
pressuposto na comunidade, pois implica na aceitação, por muitos, de ideais
colonizadores.
Lembrando o trabalho de Austin sobre a linguagem performativa, esta surge na
ruptura: “um ato é percebido e por isso produz ação, ação do eu, do corpo. O corpo é
compartilhado, o ato é compartilhado100”. Em suas reflexões, uma imagem pode ter
várias interpretações a depender de que forma/ângulo é vista; ora, há uma estreita
relação entre a referência e a percepção, relação que pode ser aplicada em diversas
circunstâncias, como a própria linguagem. A relação entre verdadeiro e falso é,
portanto, desfeita, bem como aquela entre o corpo e a linguagem e o sujeito e o objeto.
Tais contradições performativas apresentadas, como o ideal de pacificação, são o que o
100 OTTONI (1998), p. 89
86
filósofo quer desconstruir, a ilusão metafísica que desconstrói o ideal de saber, a
autoridade do colono, por vezes em pele de mestre, professor, soberano...
4.2 Uma interrogação da verdade
A discussão que aqui apresento se funda na identidade: o que seria a identidade,
o que formaria a constituição de um ser? Derrida se apresenta como a única pessoa que
se pode dizer franco-magrebina, afirmando com isso uma riqueza de identidades que
não é em si própria. Caracterizando-se desta forma, o filósofo impede qualquer
apropriação, pois se encontra “à borda”. Ele “pode” se classificar de tal forma, porque
dizer “eu posso” exprime a potencialidade da divisão ativa, exprime um “eu” abstrato
anterior à capacidade de se pensar enquanto sujeito, a ipseidade. Derrida menciona tal
conceito em O Monolinguismo do Outro:
E antes da identidade do sujeito, o que é a ipseidade? Esta não se
reduz a uma capacidade abstrata para dizer “eu”, que terá sempre
precedido. Significa talvez, em primeiro lugar, o poder de um “eu
posso”, mais originário do que o “eu”, numa cadeia em que o
“pse” de ipse não se deixa mais dissociar do poder, do domínio ou da soberania do hospes.101
Uma interpretação da ipseidade seria como sendo aquilo que marca a
singularidade de um ser, partindo do controverso pressuposto do eu abstrato. Sabe-se
que o eu vem de muitos enxertos na língua, que nem sempre foram escolhidos
conscientemente, mas que habitam cada indivíduo; muitas vezes são impostos a si,
violentados pela linguagem. A identidade do filósofo é alienada, perturbada por aquilo
101 DERRIDA (2001 b), p. 27
87
que o é, pelas múltiplas identidades que a ele foram somadas. Reconhecer tal
perturbação é encontrar-se em um estado de “loucura”, de violência, por conta de um
desejo impossível de apropriação, de busca da origem, de busca da “economia poética
do idioma”, a que habita intrinsecamente a linguagem: “Mas veja você, não é muito
original, e eu o repetirei mais tarde, eu sempre suspeitei que a lei como a língua são
loucas, em todo o caso o único lugar e a pré-condição da loucura”102. É válido aqui
recordar as noções assinaladas pela palavra “economia” para o filósofo, de acordo com
a obra de SANTIAGO:
1) O gesto derridiano de conservar no seu discurso os termos do discurso que quer desconstruir, efetuando isso por uma generalização, um
deslocamento de sentido;
2) A função polissêmica de todo significante (o que constitui sua reserva
semântica), precisando, por isso, ser sustentado por um discurso ou num
contexto interpretativo;
3) O conjunto finito em cujo fechamento (clôture) se dá o movimento do jogo relacional dos elementos;
4) A compensação ao desperdício de significação, pela utilização no
discurso desconstrutor de termos que permitem reenviar simultaneamente para
toda a configuração de suas significações, por serem irredutivelmente
polissêmicos. 103
Para o filósofo, portanto, a busca desta “economia” lingüística relaciona-se com
a vontade de conservar em seu discurso a tensão de sua memória, a tensão de um
caminho sem horizonte prévio, passível de alteração causada pela polissemia das
alteridades que o habitam.
102 Ibid, p. 22 103 SANTIAGO, p. 27
88
4.3 O terreno do crível
Porque só se pode testemunhar senão pelo incrível. Em todo o caso pelo que apenas pode ser
crido, do que, excedendo a prova, a indicação, o
constato, o saber, apenas apela à crença, e portanto a
palavra dada. Sempre que pedimos que acreditem na
nossa palavra, estamos já, queiramo-lo ou não,
saibamo-lo ou não, na ordem do que apenas é crível.
Trata-se sempre do que é dado à fé, do que apela à fé,
do que apenas é “crível” e portanto tão incrível
quanto um milagre. Incrível porque apenas “crível”.
A própria ordem da atestação testemunha do
milagroso, do crível-incrível: do que de qualquer
modo é preciso crer, crível ou não.104
A língua é promessa, espera e ameaça: falar é uma promessa de presença, que se
perpetua na locução dos indivíduos, sempre renovada e atravessada por várias
alteridades e várias interpretações; é “espera sem horizonte de espera”, sem idéia de
realização; e é ameaça como interdito que não pode ser extirpado; não se sabe quem
serão os locutores futuros, nem qual será a futura interpretação de nosso discurso. Isto é
estar na linguagem:
Uma estrutura imanente de promessa ou de desejo, uma espera sem
horizonte de espera informa toda a palavra. A partir do momento
em que falo, antes mesmo de formular uma promessa, uma
esperança ou um desejo como tais, e aí onde ainda não sei o que me vai acontecer ou o que me espera no fim de uma frase, nem quem,
nem o que espera quem ou o quê, já estou nesta promessa ou nesta ameaça – que reúne desde então a língua, a língua prometida ou
ameaçada, prometedora até na ameaça e vice versa, assim reunida na sua própria disseminação.
105
Ao sermos acompanhados por um testemunho autobiográfico em O
Monolinguismo do Outro, somos precipitados no terreno do inacreditável, daquilo que
somente apela à possibilidade do crível. Aqui se encontra a tensão vivida: falar em um
104 DERRIDA (2001 b), p. 34 105 Ibid, p. 35-36
89
nome próprio e haver universalidade neste falar: através da linguagem, acredita-se no
testemunho, faz-se um voto de confiança (verossimilhança). Derrida insiste que, na
ordem da palavra, estamos expostos a primeira condição da interação lingüística, que é
a fé, pois alguém testemunha em uma linguagem que ultrapassa a singularidade da
situação, o que a transforma em algo transcendental ou ontológico. Além dessa
condição da fé, existirá sempre uma ameaça que está no dever da língua, ameaça do
interdito, pois “se a língua é promessa e ameaça, a estrutura que a antecede é um
“acreditar em algo” sem o qual o falar não seria possível. Há um ato de fé implicado na
fala, ato que comunga da mesma lógica paradoxal sustentada pela desconstrução.106”
Para a desconstrução, estar na linguagem é ter fé, que se apresenta como um
compromisso e engajamento em se falar sobre algo, como uma promessa (língua) que
está condenada a não se cumprir, uma promessa inseparável do perjúrio.
A veracidade deste “ato de fé” é anterior mesmo à verdade como demonstração.
Há um “ato de fé” implicado na fala, colocando o testemunho como condição de fala.
Porém, como se interrogar quanto à verdade quando nela não se acredita? Como a levar
a sério? Para responder tais questões é preciso saber que o conceito de testemunho está
diretamente ligado à questão da promessa e da verdade. Só se pode dar o testemunho
daquilo que não se presta à prova, daquilo que não se presta à contestação, ao saber; e,
sim, apenas à crença. Só se testemunha o inacreditável, pois em nenhum momento ele
se pôs como verdade ao leitor: queremos nos referir ao terreno do inacreditável, ao
terreno daquilo que apela somente à possibilidade do crível e, sendo assim, à palavra
dada107. A verdade do testemunho supõe a veracidade do meu dizer, logo, será que
realmente há crença nesta verdade?
106 CONTINENTINO, p. 118 107 cf. apontamentos de aula do curso “Tópicos Especiais de Filosofia Contemporânea”, ministrado pelo Prof° Dr. Paulo César Duque Estrada.
90
Segundo o filósofo, não se pode testemunhar senão pelo incrível, pelo espectro.
Supomos que apenas se testemunha aquilo em que se esteve presente, baseando-se em
suas relações de singularidade, embora partilhe a universalidade com os outros. Quando
se esteve presente, houve a descrença, visto que não há a necessidade de “crer” em
algo: se esteve presente, vivenciou. Já quando há suspensão desta mesma descrença,
parte-se para o domínio do verossímil, daquele que “precisa” acreditar no que ouve
como testemunho. Nunca se comprova a verdade e a posteriori se comenta: ocorre
justamente o contrário, supomos a veracidade do testemunho pela crença, pela fé de
estar na linguagem.
A língua como experiência singular de interdição é, sobretudo, uma estrutura
imanente de promessa e espera de dizermos com propriedade as coisas mesmas, tal
como a estrutura da divisão ativa, destino impossível e criativo de fazer justiça às
coisas, divisão ativa que promete e ameaça. Essa propriedade pode, de acordo com o
filósofo, se instituir pela autoridade do mestre, constituindo o “terror nas línguas”, terror
que aponta para o colonialismo, para uma língua e para uma cultura que deseja vigorar
como verdade, tal como o caso do francês na Argélia.
E mesmo um terror nas línguas (existe, doce, discreto ou gritante,
um terror nas línguas, é o nosso tema). Porque, contrariamente ao
que somos a maior parte das vezes tentados a crer, o senhor não é
nada. E não tem nada de próprio. Porque não possui como próprio,
naturalmente, o que no entanto chama a sua língua; porque,
independentemente do que queira ou faça, não pode entretecer com
ela relações de propriedade ou de identidade naturais, nacionais,
congenitais, ontológicas; porque não pode acreditar e dizer esta
apropriação senão no decurso de um processo não natural de
construções político-fantasmáticas; porque a língua não é o seu
bem natural, ele pode justamente por isso historicamente, através
da violação de uma usurpação cultural, ou seja, sempre de essência
colonial, fingir apropriá-la para a impor como “a sua”.108
108 DERRIDA (2001 b), p.37-38
91
Porque a língua é condição de promessa? Pois se nunca se teve a verdade,
havendo apenas a veracidade, procura-se buscar uma promessa, buscar o sentido do
discurso, em vias de aprender a presença. Verdade supõe veracidade, promessa de
verdade, que ocorre entre pessoas que se entendem e compartilham a mesma língua,
ainda que esta língua seja sempre a do outro. O monolinguismo seria o caráter
testemunhal da língua, revestido de promessa de verdade verossímil.
Todos falam em singular situação. Cada um tem seu próprio idioma. Por mais
que tenhamos a mesma língua, cada indivíduo tem um saber, uma experiência,
expectativas, temores... Eu não posso nunca falar uma língua fora da minha
singularidade, surgindo sempre uma nova alteridade. Quando se fala, supõe-se a
veracidade, e essa língua é sempre comum a um determinado grupo. Essa língua é a voz
do outro, é do outro. O meu idioma já é língua do outro, – línguas idiomáticas – pois já
é repleto de influências e alteridades; quando falamos sentimo-nos interpelado pelo
outro. Ao mesmo tempo, se somente eu falasse a minha língua, esta acabaria, pois o
monolinguismo não se afirma como tal. Percebe a dinâmica paradoxal da língua? A
língua como uma escritura, uma marca; a promessa como verdade e a ameaça como a
veracidade textual que o indivíduo possui, sendo sempre possível que uma alteridade
esbarre em seu pensamento e o “desconstrua” por completo.
Aceitar que a sua orientação pode “ruir” é um pressuposto da desconstrução. Em
todo campo de conhecimento há configurações do monolinguismo, no qual há objetos e
certezas válidas dentro do contexto no qual o campo foi estabelecido. Nada impede que,
em outro campo de configurações, as certezas se anulem e sejam diferentemente
interpretadas: ou seja, saber que as suas “verdades” não são leis. Para a desconstrução,
ser consciente é tornar-se cada vez mais inconsciente de suas orientações; as promessas
de verdade estarão sempre ameaçadas por um conjunto de alteridades que venham a
92
atravessar seu caminho. Talvez tenhamos que mudar nossa forma de escrita, leitura e
interpretação; pois não existem fronteiras, do contrário, vamos substancializar as coisas.
93
Conclusão
No primeiro capítulo desta dissertação busquei explicitar o pensamento da
“teoria” da desconstrução – teoria aqui entre aspas, pois, como já dito, nunca foi
realmente formulada uma teoria. Seu posicionamento quanto à singularidade do ser foi
o que guiou este trabalho. Uma discussão do texto é a questão da identidade e do
pertencimento. Uma revolução ou emancipação pode confirmar uma herança
lingüística, mas não a propriedade da língua, como é o caso árabe. É importante
mencionar a questão da herança presente em Espectros de Marx, uma vez que falar uma
língua não significa possuí-la. O povo africano, colonizado por europeus, recebeu uma
cultura muito distante daquela que integrava. Por muitas vezes eram obrigados a adotar
línguas, hábitos e costumes que não reconheciam como tal, marcados principalmente
pela distância geográfica que os separavam. Derrida ao ser magrebino nunca encontraria
na língua francesa uma verdadeira morada, pois dentro dela sempre sentia um incômodo
estrangeiro, uma “doença” da qual não poderia escapar. Além disso, Freud tem exímia
importância nos diálogos com Derrida, ao enxergá-los como um modo particular de
leitura, no qual a presença e a ausência são articuladas sob a forma de escritura.
Buscando abalar as estruturas previamente estabelecidas, ou que, ao menos, pensamos
estar estabelecidas, o psicanalista auxilia o debate sobre a origem da língua (que se
pensa existir). Em seguida vimos a dívida da tradução, dívida esta que existe desde
Babel, bem como a impropriedade do conceito de pertencimento da linguagem ao
estado nacional, ainda que seja a linguagem fator importante para a fixação de uma
nação.
94
No segundo capítulo, dediquei-me a esmiuçar a disciplina da tradutologia, os
parâmetros criados por Antoine Berman que serviram de matriz teórica para o
desenvolvimento desta dissertação. A ética concernente à tradução foi debatida, posto
que tradução ocorre todo o tempo – ainda que seja definida como sendo o outro nome
do impossível. Também mencionamos uma antiga “disputa” entre os teóricos que visam
a língua alvo contra aqueles que visam a língua fonte. Outro fator importante para a
execução deste trabalho é a figura do estrangeiro. Como definir o que é estrangeiro, bem
como de que forma é possível acolhê-lo. A hospitalidade é assunto primordial nos
trabalhos derridianos. Continuando o capítulo, a différance como disseminação foi
apresentada, além da impossível apropriação lingüística que debato. Terminando o
capítulo escrevi sobre a linguagem como promessa e o acontecimento como também
não-acontecimento, o que é perpassado continuamente em O Monolinguismo do Outro.
Já no terceiro capítulo, dedicado ao monolinguismo enquanto estrutura
lingüística, foi comentado sobre a hospitalidade e a possível substituição que uma
língua pode vir a sofrer. Aqui foi o local escolhido para mostrar a tripla dissociação que
ocorre no monolinguismo, também estruturada na “divisão ativa”, proposta por Khatibi,
talvez o pensador com o qual Derrida pretende um diálogo na obra. Este capítulo foi
igualmente o local destinado a explicitar a diglossia do bilingüismo africano, estrutura à
qual poderíamos opor o monolinguismo proposto pelo desconstrutor. Não menos
importante foi a exposição do cenário argelino à época da infância derridiana, bem
como o contexto em que se apresenta atualmente. É de extrema valia as relações
históricas para a compreensão da obra. Terminando o capítulo, restou o embate entre
Khatibi e Derrida, que ao longo da obra apresentam suas idéias, contrapondo-as
continuamente.
95
O último capítulo destinou-se a fazer uma análise do outro. A lei da língua foi
descrita, da mesma forma que o pertencimento a linguagem foi debatido, como
possibilidade de acontecimento. Ao mesmo tempo, direcionei-me para um
questionamento sobre o que seria o acontecimento, se seria possível vinculá-lo à
verdade. Também foi neste capítulo que analisei o terreno do crível, anexando-o com o
conceito do testemunho em Derrida. Por ser um livro autobiográfico, não há escapatória
do testemunho e, por isso mesmo, promessa de verossimilhança.
Nesta pesquisa empenho-me em tratar o texto como escritura, como um trabalho
de escrita metalingüístico, no qual seu objeto é explicitado por meio dele mesmo. Como
foi apresentado no primeiro capítulo, o pensamento desconstrutor dedica-se a uma
releitura da obra através de um viés metalingüístico, na perspectiva de recuperar dele
seu caráter de originalidade. Seria possível pensar que todo texto é, em alguma medida,
autobiográfico, por colocar em cena o desejo estrutural e irreprimível de retorno à
origem, tal como O Monolinguismo do Outro apresenta seus pressupostos
desconstrutores. Assim sendo, aproximo-me de pesquisas que visam reler Jacques
Derrida, com o amparo dos pressupostos da tradutologia, disciplina criada por Antoine
Berman, seu colega no Collège International de Philosophie, do mesmo modo que o
projeto de pesquisa “A metalinguagem literária legada por Roland Barthes, Michel
Foucault e Jacques Derrida”, da qual faço parte desde 2004, e que é desenvolvida pela
minha orientadora, a Professora Doutora Anamaria Skinner.
Cronologicamente falando, esse trabalho foi impulsionado pelos artigos escritos
por Derrida, por mim lidos durante a Iniciação Científica. Naquela ocasião, meu
primeiro contato com o filósofo foi em uma pesquisa sobre a invisibilidade do tradutor
no texto, através de fragmentos da obra Circonfissão. A seguir, a leitura do célebre
ensaio “A Tarefa do Tradutor”, de Walter Benjamin. Daí em diante, não foi possível
96
escapar aos desejos de reconstrução da origem, discussões sobre o tradutor e demais
questionamentos que derivam da leitura derridiana. Impulsionado pela obra Torres de
Babel, decidi instaurar-me nesta linha que entende a experiência como um pressuposto
da reflexão para a escritura textual.
De acordo com Benjamin, a tarefa do tradutor é, de certa forma, tentar preservar
a “impureza original” do texto. Derrida pensa a tradução, portanto, como sobrevida de
um texto legado, de uma herança, representação máxima de uma inadequação de uma
língua a outra, questão central em O Monolinguismo do Outro. O tradutor estaria
vivenciando a experiência de aprender a lidar com o não-acabamento, com a
impossibilidade mesma de completude, de totalização. Sabe-se, entretanto, que ao
tradutor somente resta a tradução, é necessário agir, decidir, embora este momento exija
talvez uma grande dose de cálculo.
É a partir deste aspecto “ético-político” que esta experiência de
(in)traduzibilidade e que a vivência enigmática do estrangeiro, da língua de um outro,
que surge a hospitalidade, pois é ela quem permite o fim de um certo “colonialismo” do
logos, da imposição de certa língua, de uma verdade absoluta. Pode-se até pensar que
tentar falar várias línguas ao mesmo tempo ou permitir que várias línguas “falem” ao
mesmo tempo em um texto abre espaço para uma experiência de hospitalidade na
própria escritura, um trabalho de reflexão tradutória, defendido por Berman.
Lembrando a única definição proposta por Derrida para a desconstrução – “mais
de uma língua” – pode-se pensar que a desconstrução seria a tradução, vivenciada
enquanto experiência da hospitalidade, acolhimento em geral, uma vez que a
desconstrução não “impõe” conceitos, é sinônimo de um pensamento acolhedor. O ato
da hospitalidade é em si próprio ficcional, tradutório, possivelmente até equiparado à
97
alteridade, pois frente ao estrangeiro, que dita as regras no mundo do monolíngüe, não
se pode fugir, apenas abrir as portas e as línguas.
Seria válido para o salvamento e libertação dos homens que se renunciasse à sua
própria língua? Renunciar ao menos às melhores condições de sobrevivência “a
qualquer preço” de um idioma? Atualmente, isto é algo questionável, pois na terra dos
homens, alguns são obrigados a ceder às línguas dominantes, obrigados a aprender a
língua dos senhores, do capital e das máquinas em busca da continuação de suas vidas,
bem como à perda de seu idioma “materno” com o mesmo fim. Economia trágica,
conselho impossível. A quem cabe decidir o que é indecidível? Seria esta “salvação”
dada ao outro uma suposição de salvação do idioma?
O monolinguismo é o murmúrio de uma confissão animada, é a ficção de uma
conversa dramática. O filósofo fala de uma língua materna que ele não possui - o árabe -
e de um francês que ele procura possuir perfeitamente para se compensar da falta do
árabe, ou seja, de um francês atravessado por outra língua. Neste texto autobiográfico, a
parte concreta de sua vida é centralizada na adoração de uma língua que é a língua do
outro. Sua identidade de sentido acabou por ser reprimida devido às alteridades as quais
era exposto. Sendo a “voz109” a expressão do sentido e do discurso, ela experimenta a
própria língua, através das alteridades que a atravessam, algumas reprimidas por uma
certa violência e fragilidade. A língua como experiência de interdição é, sobretudo, uma
estrutura imanente de promessa e espera de dizermos com propriedade as coisas
mesmas, tal como a estrutura da divisão ativa, destino impossível e criativo de fazer
justiça às coisas. Esta estrutura é vinculada à leitura do bilingüismo, proposta por seu
interlocutor e amigo marroquino Khatibi. O acontecimento se dá no sujeito, no sujeito
desejoso que se faz na monolíngua, que se constitui na sua monolíngua: a própria
109 A palavra voz está apresentada entre aspas pois no livro encontramos seu discurso de escritura, o qual representa sua voz, posto que é uma autobiografia.
98
estrutura do desejo de reconstituição, de restauração de uma língua de chegada (que
deveria ter chegado) já está contaminada pelas diversas alteridades que ao indivíduo são
vinculadas. Tal é a aporia do espectro: ser mais de um e menos de um, um ser nem
singular nem plural.
Ao mesmo tempo em que o francês não era a sua língua materna, o filósofo foi
privado de sua língua de partida, o que o inseriu em um modelo de tradução absoluta
contínua: como não tenho uma língua própria, de partida, estou fadado a esta tradução
absoluta, que não tem pólo de referência, da mesma forma que por conta dessa privação,
só existem línguas de chegadas. Sempre se está em processo de chegada, processo no
qual tal língua nunca realmente chega, como já foi discutido anteriormente.
Retorno aqui à questão da transparência tradutória: o desconstrutor explicita que
não há tradução sem perda, sem luto, logo, a disseminação da palavra é uma prova do
desajuste, do resto. O tradutor tem a necessidade de saber o que se deve destacar, mettre
en relief, o que se deve conservar, uma vez que a tradução, de fato, está sempre
endividada. Desta forma, a fidelidade toca tanto a língua alvo como a língua fonte; o
que, evidentemente, não exclui estratégias de transformação e transição para a língua-
alvo, como adaptações, paráfrases, uso de notas de rodapé ou metáforas, dentre outras.
No que diz respeito à tradução, a frase “Le duel et le don vont à la mort. La
chose reste un autre dont la loi demande l’impossible110" é ótima para elucidar a
proposta derridiana da tradução ser o outro nome do impossível, pois essa tradução
estaria sempre em dívida. Aqui tentei melhor compreender as questões sobre a busca da
origem tradutória, se haveria realmente uma origem a buscar, fato que compreendi
como não existir; posto que o acontecimento é sempre prometido, enquanto tentativa de
acontecer. A teoria da tradutologia que expus neste trabalho proporciona a reflexão
110 DERRIDA (1984), p. 15
99
sobre os trabalhos de tradução, conseqüentemente, à postura desconstrutora que revela
por si só preceitos condutores.
Já na lógica de Goldschmidt, citada no segundo capítulo, a nota do tradutor
deixa de ser empregada em um registro específico e transforma-se em um objeto de uso
generalizado. Tudo se transforma em margem, paratexto. A nota seria indispensável
para a compreensão da reescritura do texto freudiano. Logo, a glosa explicativa e a
tradução seriam inseparáveis, o que seria desmotivado pela tradutologia: a partir desta
disciplina, a reflexão seria essencial para a observação e, em seguida, compreensão
textual. Faço aqui uma proposta tradutória que lembra a tarefa do tradutor em sua
relação para com a cultura – “uma reconciliação possível entre as línguas” -, que
permite o posterior engrandecimento e desenvolvimento do “original”111. Pode-se reter
deste trabalho que é realmente possível discutir todo o processo da tradução,
privilegiando a disseminação da palavra e a reflexão que ela nos proporciona,
justamente o que Derrida destaca na realização de uma tradução.
Outra importante discussão nesta dissertação foi a questão da memória, forma
pela qual o discurso da obra é apresentado, através de uma memória violentada pela
imposição do outro. Como haver memória do que não há, do que deveria ter chegado e
não chegou? Estar na linguagem é a tradução, é a memória que nos arrebata sem nunca
ter acontecido, essa memória do que não teve lugar, mas que, ao menos, deve ter
deixado algum rastro (livros, textos, filmes...). Esses são os espectros de algo que
supostamente deveria existir em sua presença, espectros sensíveis por causarem
sentimentos como os que causam em Derrida, porém espectros passíveis de debate, por
viverem na linguagem.
111 Nomeio o texto fonte como original por questões habituais. O conceito de original é problemático, como vimos nesta dissertação.
100
Esse é o caráter desconstrutivista da linguagem, um caráter colonizador em
querer ser algo que chega (mas que se não tem origem, como saber de onde chega?),
mas que é absolutamente diferente do colono. A língua nos passa conteúdos que ela não
tem; o gesto de recepção do intérprete, – gesto da escrita sobre algo – bem como o que
ele vê não existe, é algo espectral. Da mesma forma, cada vez que leio um autor
contribuo para a sua morte, pois o modifico, ainda que com desejo de salvá-lo: crio
dossiês sobre algo morto. “Mas esta salvação, porque é uma salvação endereçada à
mortalidade do outro e um desejo de salvação infinita, é também uma arranhadela e uma
enxertadela.112”
Além disso, nesta obra encontramos três tipos distintos de relação com a
linguagem. A primeira, uma relação desintegrativa, quando se observa que não há um
modelo, uma verdade estável e todas as experiências são perdidas; a segunda é uma
relação inclusiva, na tentativa de inclusão do pensamento em uma totalidade também é
outra forma de esquecimento, e a última relação é uma espécie de hipermemória, que se
desenrola no limite das duas relações anteriores. Ora, essas três formas de interpretação
da linguagem debatem todo o tempo no discurso de O Monolinguismo do Outro e, por
isso mesmo, causam uma grande perturbação no filósofo.
O peculiar emprego da autobiografia nos indica algo relevante: ao assinar, o
filósofo autentica que isto que escreve é realmente seu, ratifica a afirmação que tange a
toda sua obra, exemplifica que o que é escrito é certamente seu, ainda que não esteja
explicitamente assinado (não existir uma assinatura em seu nome próprio). Ora, a
escritura derridiana indica uma assinatura geral, não se prendendo a esse ou aquele
nome, o que ocorre em sua obra de 1996. Demonstra-se, portanto, que a situação
112 DERRIDA (2001 b), p. 98
101
descrita poderia acontecer a qualquer um que vivesse em sua mesma posição, a eterna
posição de tradutor.
O monolinguismo de que falo fala uma língua de que está privado. Não é a sua, o francês. Porque está assim privado de toda e
qualquer língua, e não tem outros recursos – nem o árabe, nem o
berbère, nem o hebreu, nem nenhuma das línguas que terão falado
os antepassados – porque este monolíngüe é de certo modo afásico
(talvez ele escreva porque é afásico), está lançado na tradução
absoluta, uma tradução sem pólo de referência, sem língua
originária, sem língua de partida. Não existem para ele senão
línguas de chegada, se quiseres, mas línguas que, singular aventura,
não chegam a chegar, uma vez que não sabem mais de onde partem,
a partir de onde falam, e qual é o sentido do seu trajeto.113
A citação acima explicita o resumo da obra, escrita pelo próprio filósofo em seu
livro. Derrida aborda a questão violência lingüística através do paradoxo de se ter
somente uma única língua e, ao mesmo tempo, esta língua que não ser a sua. Quando o
filósofo apresenta tal paradoxo, ele testemunha a pulsão da différance, lei que não
obedece à lei da casa, pois não pode ser domesticada. As fronteiras que perpassam a
desconstrução são apagadas e a idéia “clássica” da língua é subvertida, colocando a
língua como vindo de um alhures, língua vindo, primeiramente, do outro. Para o
filósofo, pensar o espectro, o que não é nem vivo nem morto, o fantasma, é
compreender a ameaça do pensamento que não se atém à significados, à línguas que não
se vinculam com seus sujeitos. Para tanto, repito uma citação já feita anteriormente:
Porque os fenômenos que me interessam são justamente aqueles que
vêm misturar estas fronteiras, aqueles que as ultrapassam deixando
assim aparecer o seu artifício histórico, isto é, as relações de força
que aí se concentram e, na verdade, aí se capitalizam a perder de
vista.114
Este pensamento espectral denuncia o caráter violento da linguagem, denuncia o
paradoxo indicador da pluralidade da língua, ao desejo de totalidade e de propriedade 113 Ibid, p.93 114 Ibid, p. 21
102
que perpassa seus falantes. Derrida faz uso deste pensamento por conta da abertura para
as alteridades que o circundam, pelo desejo de apropriação que busca recuperar a
língua, como uma “pulsão genealógica” desenfreada que por sua história e filiação.
Visto que tal desejo de apropriação é sempre desejador, por conta da dificuldade em
apropriar-se da língua, tal “pulsão” sempre se relaciona com um passado, com uma
busca pela origem, desviada e assombrada pelas alteridades. Para além da memória
“nem sequer falo de um desvelamento último, mas do que, desde todo o sempre,
permaneceu estranho à figura velada, à própria figura do véu.115” O filósofo teria velado
a língua, embora ela não tivesse morrido. É estranho esse emprego da figura do véu, que
indica tanto uma presença quanto uma ausência116: tal é o caráter do interdito – ele
existe como desejo de presença, de uma voz viva que se velou na infância, e como terror
debruçado na colonização francesa.
Este local de presença e ausência simultânea é a différance, que se aplica na
língua como lei, lei de tradução. O filósofo é condenado à différance por conta da
crueldade dos desejos de alteridade que o perpassam, localizados no seio da língua. No
entanto, devemos prestar atenção na palavra “local”. Para o filósofo, a língua não se
localiza, pois estamos sempre à borda, à margem. Nesta margem buscamos uma fantasia
de estabilidade, que se apresenta como impossível: desejar o que é impossível faz da
língua um lócus de crueldade. “Mas, estás a ver, não é muito original e repeti-lo-ei ainda
mais tarde, eu sempre pensei que a lei, tal como a língua, era louca – ela é em todo o
caso o único lugar e a primeira condição da loucura.117” Habitar esta borda indica a não-
domesticação, a crueldade da língua que é prometida, mas também ameaçada.
“[...] “algures” deste outro absoluto com o qual fui obrigado a
manter, para me guardar mas também para dele me resguardar,
115 Ibid, p. 106 116 cf. DERRIDA (1998) 117 Ibid, p. 22
103
como de uma temível promessa, uma espécie de relação sem
relação, resguardando-se uma da outra, na espera sem horizonte de
uma língua que apenas sabe fazer-se esperar.”118
Tal ameaça é um risco da linguagem, do próprio pensamento espectral da
desconstrução. Outrossim, antes mesmo da própria linguagem, há um antecedente, um
“ato de fé” implicado na lógica do falante, igualmente na do ouvinte, que deve sustentar
algum crédito de fé na palavra do sujeito. Como afirma o desconstrutor, “só podemos
acreditar no inacreditável”, no que não se presta à prova. O testemunho do que é
acreditável é o que move toda a universalidade, como foi explicitado no quarto capítulo.
Quando testemunhamos, atestamos com a fala um critério de verossimilhança, um “ato
de fé” do que é demonstrado. A experiência lingüística do testemunho revela a “divisão
ativa” da língua, reveladora dos desejos, das sujeições, da universalidade. O habitar a
borda se mostra como o lócus do testemunho, do engajamento na relação entre os
sujeitos.
O que constitui o “terror” das línguas é justamente quando a relação entre os
sujeitos da língua acontece a partir de uma presença impositiva, uma autoridade colonial
que, na verdade, existe em todos os idiomas e em todas as culturas; pois todas as línguas
e todas as culturas desejam se instituir como verdadeiras, como uma promessa, como
uma lei. O monolinguismo do outro é esse desejo de dominação, é essa língua do outro
que me percorre, seria “esta soberania, esta lei vinda de algures, sem dúvida, mas seria
também e em primeiro lugar a própria língua da Lei. E a Lei como Língua.119” De onde
quer que eu venha, esse monolinguismo que me faz designar a língua que falo como
uma língua materna é sempre o monolinguismo do outro e compreendê-lo como tal é
compreender a imposição de sua essência colonial.
118 Ibid, p. 104 119 Ibid, p. 56
104
De acordo com o filósofo, as alteridades são constitutivas do indivíduo,
afirmando a identidade do ser. Desta forma, as identidades se fundam entre si, abalam-
se entre si cada vez que são “cruzadas” com outras experiências de alteridades. Isto
ocorre em cada instante da memória e da herança que recebemos. A lei da língua, da
contaminação está aberta à herança, à hospitalidade e, portanto, à borda. Esta lei que
interdita o pagamento da dívida do sujeito perante a língua, que traz a escritura e a
disseminação. “Para a desconstrução, a língua já é uma repressão da escritura – toda
fala, toda apropriação como movimento recalcante da escritura é, desde sempre, um ato
de violência que cria suas hierarquias bem como as estruturas que deseja preservar.120”
A língua corresponderia à política de seu mestre, enquanto a escritura seria uma
violência sem conteúdo, compromisso com a disseminação lingüística: a língua teria um
compromisso com seus próprios efeitos.
Em O Monolinguismo do Outro é descrito um amor pela promessa da língua,
essa condição de promessa que pode ser perpetuado, esse acontecimento sempre
prometido e nunca realizado. Esse acontecimento sempre por vir, promessa sem
conteúdo próprio, promessa que sustenta o desejo da mãe, da reconstituição da língua,
da origem. Desejo de prévia, de uma primeira língua que seria a mãe que nunca teve, de
uma ante-primeira língua destinada a “traduzir” esta memória de restauração da língua
materna. Essa memória, na verdade, não é. Não é posto que é rastro, é “espera sem
horizonte de espera”, é estrutura que possibilita o monolinguismo do outro.
Fazer da língua um bem natural, como propriedade, é esquecer todo o seu caráter
de lei, explicitado por esta dissertação. Derrida rompe com um pressuposto natural da
língua como seio, como morada, como mãe. Mesmo ao “pedirmos” às línguas para
serem um pólo de identificação, esse pedido não pode ser jamais satisfeito, visto que
120 CONTINENTINO, p. 121
105
são “propriedades” sempre ameaçadas pela impropriedade da identificação que possam
vir a ter. Fazer da língua uma propriedade natural é impor sua reapropriação, como se
todo “defeito” ameaçasse sua integridade; ela se transforma no elemento que deve ser
salvo para poder salvar, proteger seus sujeitos. O caráter inapropriado da língua faz
surgir as ameaças hegemônicas que algumas comunidades fazem, classificando-a como
um tesouro no qual são guardados a história e a riqueza da língua. Esta alienação
irredutível da língua a uma cultura é justamente o que revela a impossibilidade de
apropriação da língua. Cada vez que alguém fala em nome de sua cultura ou invoca sua
identidade cultural, quando pratica sua língua, esse alguém esquece – ou esconde – a
alienação que atravessa seu discurso, a alienação que figura como lei e que vem de um
“algures”.
Em todos os capítulos desta dissertação houve uma tentativa de busca da prótese,
daquilo que estaria apto a funcionar como mãe. De toda a forma que falamos apenas
uma língua, nós também não a temos, visto que é “vinda do outro, permanecendo do
outro, ao outro reconduzida121” Este texto sempre crítico, indecifrável, impede qualquer
pretensão de propriedade da língua do outro, ao contrário, obriga a enfrentar a
multiplicidade das línguas, tal como Babel o fez. O pensamento do filósofo nos leva a
crer que afirmar-se frente ao estrangeiro, aquele que dita o meu monolinguismo e do
qual não é possível evadir-se, é a obrigação de cada sujeito, ao mesmo tempo em que o
acolhimento do outro deve ocorrer. É nesta medida que esta pesquisa poderia ainda
muito se estender, e busco tal desejo de escritura com o qual sou levada a crer na
experiência da linguagem, em seu caráter de memória e acontecimento. Termino esta
dissertação com a seguinte frase, acerca do monolinguismo: “trata-se de experiência
121 DERRIDA (2001 b), p. 57
106
geracional que se apresenta com dois gumes: o da política e o da ética por um lado e,
por outro, o da faca só lâmina com a qual se recorta o indecidível.” 122
122 REIS, p.239
107
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Apêndice:
Alteridades judaicas – outros exemplos
No capítulo sete da obra123, há uma extensa nota de pé de página, – a qual
perpassa por vinte e quatro páginas (na versão original)124 – dedicada a apresentar três
curiosas situações de célebres judeus para com suas línguas, tal como o judeu Derrida
apresenta a sua durante a obra.
O primeiro deles é Franz Rosenzweig. Ele não possui língua própria, apenas a
língua do hóspede, pois o “povo judaico nunca mais se identifica inteiramente com a
língua que fala (wächst das jüdische Volk mit den Sprachen, dis es spricht, nie mehr
ganz zusammen).” 125 Rosenzweig atenua a desapropriação, pois sua experiência foi a de
alienação em relação à língua. Ele conclui que:
esta língua... não é sua (nicht die eigene ist: não é a
língua própria)”: “mesmo quando fala a língua do
hóspede que o acolhe (die Sprache des Gassvolks), um
vocabulário próprio ou pelo menos uma seleção
específica no vocabulário comum, modos próprios, um
sentimento próprio do que é belo ou feio na língua em
questão, tudo isso trai o fato de esta língua... não ser
sua.126
Esta língua sionista era santa e sua atualização independia de sua vontade, pois
“a linguagem é nome (Sprache ist Namen)”127 e seria neste nome que o sagrado, o
tamanho poder da linguagem, estaria selado. Lembra F. Rosenzweig que o judeu, ainda
que desprovido desta língua santa, poderia reabilitar-se a amar a língua do hóspede
como se fosse a sua própria, ainda que não possuindo a noção territorial de “seu” país.
123 As questões referentes às alteridades judaicas estudadas neste apêndice foram suscitadas no seminário ministrado pelo Prof° Dr. Paulo César Duque Estrada no curso “Tópicos Especiais de Filosofia Contemporânea”. 124 Na tradução portuguesa esta nota se estende por quatorze páginas. 125 ROSENZWEIG, Franz. L’étoile de la rédemption, trad. fran. A. Derczaski e J.L. Schlegel. Paris: Seuil, 1982 apud DERRIDA (2001 b) p. 75 126 Ibid, p. 75 127 Ibid, p.75
114
Viveria, portanto, em um país que não era colônia (no sentido lato da palavra,
agrupamentos de pessoas, como viviam os judeus) e amaria a língua alemã sem
reservas. Fê-lo de tal forma ao ponto de oferecer um Gastgeschenk, um presente de
hospitalidade à língua alemã, cujo resultado foi a tradução de um texto sagrado, a
Bíblia, em alemão: o hóspede que agradece e compromete-se com a hospitalidade
recebida. O filósofo também remarca que a língua sagrada, aquela da oração, uma
língua própria ao povo judeu, é por ele compreendida e lida, ainda que na liturgia.
Façamos alguns comentários a respeito. Primeiramente, o alemão de
Rosenzweig não era um alemão de colonizado, tal como o era para Derrida. Seu alemão
era talvez um metropolitano, mas jamais foi similar ao de um povo que sofreu com a
colonização – Rosenzweig era um judeu ashkenaz, ou seja, uma “linhagem” superior
dos judeus, ditos os europeus, diferentemente dos sefarditas, comparados aos judeus do
norte da África. Já a língua sagrada, que segundo o filósofo alemão era por ele
compreendida, deve-se ressaltar que, por vezes, era pronunciada na prece. Ao menos
nas situações litúrgicas, o povo judeu compreendia sua língua própria, inclusive sendo
capaz de lê-la. A situação do franco-magrebino expunha justamente a perda destes
critérios citados por Rosenzweig, pois o francês que Derrida possuía era, ao contrário,
um francês “materno”, um francês colonizado dito não “autêntico”, já que não era
metropolitano. O judeu-espanhol não se praticava e a língua sagrada, nos casos que
ainda era pronunciada, não era compreendida. Esta língua já não era mais ensinada há
muitos anos, o que nos leva a crer que, salvo exceções, não era verdadeiramente
decifrada.
Outro ícone judeu apresentado nesta extensa nota é Hannah Arendt. Em sua
entrevista “Só permanece a língua materna”, ela diz que sua língua materna
permanecerá sempre em si. A ética que Rosenzweig apresenta para com o alemão não
115
foi o caso de Arendt, a qual não teve nenhum recurso lingüístico alemão em sua
trajetória. Ela suportou muito bem a distância natal, ao exilar-se nos Estados Unidos,
fugindo do medo do nazismo. Ao ser questionada se teria realmente sobrevivido bem ao
tempo que passou exilada, ela diz immer (sempre): ela sempre manteve uma ligação de
familiaridade absoluta, o sempre com seu longo caráter adverbial temporal, diz que a
língua materna está sempre presente. Da mesma forma, Arendt menciona que não há a
experiência do sempre senão onde há algum rastro de fidelidade ao outro, de “fidelidade
indefectível à língua128”. Tudo o que escapasse a este caráter verossímil à língua, como
a mentira e o perjúrio, suporia a fé na língua, visto que não é possível mentir sem crer
no idioma, como vimos no início do quarto capítulo desta dissertação.
Sobre os tempos mais difíceis do nazismo, a filósofa diz que uma língua em si
mesma não pode ser razoável nem delirante: ela não poderia ficar louca, não se pode
interná-la nem cuidá-la pessoalmente. “Quem poderia afirmar a demência de uma
língua? Apenas um louco”, responde ela. Sendo assim, não foi a língua que ficou louca,
mas sim os homens, aqueles que se julgam senhores da linguagem. A língua é muito
mais antiga que eles, ela sobreviverá ao nazismo, continuará a ser falada por alemães
que não mais serão nazistas e até mesmo por não-alemães. Da mesma forma, Arendt
afirma que nada pode substituir a língua materna, em seu caso, o alemão. Esta frase, ao
correlacionar-se com a afirmação da loucura explicitada acima, forma um elo de
conseqüência da perpetuação proposta do alemão mesmo além dos tempos cruéis do
nazismo.
O que Arendt parece não observar é que entre essas duas afirmações há um
grande abismo. A língua, por um lado, pode ser a própria loucura, o local da loucura:
para que os sujeitos enlouqueçam é preciso que seu “ambiente” seja louco, o que a
128
DERRIDA (2001 b), p.80
116
filósofa talvez não queira imaginar. Quando os sujeitos enlouqueceram, de certo que a
língua teve alguma influência nesta instância, alguma possibilidade para tal loucura a
língua ofereceu. Para que a língua persista pelo immer, como diz a judia, é bem preciso
que “a língua seja mais e algo diferente de um instrumento, para ficar consigo além dos
deslocamentos e dos exílios”, pois somente assim o indivíduo enlouquece em uma
língua louca, na qual as palavras são corrompidas. Do nazismo, nada se compreenderá
se dele se extrair a linguagem. Por outro lado, do mesmo modo que Derrida teve uma
mãe afásica, a mãe de Arendt, a mãe da língua dita “materna” deve ter sido louca. Se a
língua é realmente algo insubstituível, ela seria louca, no fantasma da unicidade de sua
própria loucura, desse fantasma que “assombra”, “ameaça” a linguagem. Esse fantasma
traz consigo a possibilidade de adicionar, ampliar o insubstituível, portanto, substituir o
inicialmente dito como impossível de ser feito. A mãe, como instância de absoluto
acolhimento, o local único, instância de substituições onde se dá o chez soi (lugar, casa,
morada), é a loucura, ao mesmo tempo em que a linguagem, instância radical de
acolhimento, acolhimento de alteridades impõe-se como se fosse algo próprio, apto a
substituir o que quer que se queira: o local de substituição é também o local onde se
aloja a loucura e a pretensão do insubstituível.
Entende-se que a mãe, que inicialmente era a única insubstituível, é a própria
loucura, e somente a é pelo seu caráter substitutivo, traduzível porque primeiramente era
intraduzível. O relacionamento da mãe para com seu filho (a língua para com seu ser
falante) é enlouquecedor, pois a linguagem é o local da loucura. Tanto como a ausência
de identidades como a sua multiplicidade enlouquece, o que vai de encontro ao sempre
respondido por Arendt.
Na verdade, alguém pode esquecer sua língua materna. Tenho
exemplo disso ao meu redor, e essas pessoas, aliás, falam línguas
estrangeiras bem melhor do que eu. Sempre tenho um sotaque muito
117
perceptível, e muitas vezes não me exprimo de forma idiomática.
Essas pessoas são capazes disso, mas estamos lidando então com
uma língua em que surge um clichê atrás do outro, porque a
produtividade de que dispomos em nossa própria língua foi cortada,
à medida que essa língua foi esquecida.129
A filósofa explicita a possibilidade da perda da língua materna, o que é sabido
que ocorre, porém, para que isto venha a acontecer, é preciso que algum fato
desencadeie isto, como o nome Auschwitz, ela responde a seguir: “Veja bem, o decisivo
para nós foi o dia em que ouvimos falar de Auschwitz.130” Ela diz que quase sempre
este esquecimento é conseqüência de um recalque psíquico, reconhecendo que
movimentos políticos podem sim ser responsáveis por substituições e apagamentos.
Ora, o abismo inicialmente formado por suas afirmações é aprofundado: a abordagem
de tais questionamentos vai muito além da lógica da consciência; este abismo tem um
cunho político o qual não é nada simples de ser resolvido. Situações de loucura como
estas ainda continuam a operar, tal como a situação de imposição do francês na Argélia,
a situação vivida por Derrida.
O terceiro e último exemplo de alteridade judaica exposto nesta grande nota de
rodapé do livro é de Emmanuel Lévinas. Nele, há pouca referência à língua materna,
uma experiência completamente diferente da de Arendt e Rosenzweig. Ele viveu e
escreveu na língua francesa durante quase toda a sua vida, ao mesmo tempo em que
viveu com o russo, o lituano, o alemão e o hebreu. Para quem a linguagem embasa-se na
hospitalidade, o francês foi para Lévinas uma língua do hóspede, mas também de
adoção ou eleição.
Ao contrário de Arendt, a hospitalidade em Lévinas é adquirida, a língua pode
ser adquirida, nada tem de originária, materna. Para a filósofa, a língua materna é
129 ARENDT, p.134 130 Ibid, p. 134
118
reafirmada como a um solo, propriedade que cada indivíduo transporta. Já para Lévinas,
seu pensamento de substituição e acolhimento de alteridades é vinculado ao caráter
expressivo da linguagem, esta que pode receber todo o sentido que vem de algures. Esta
ligação intrínseca entre o indivíduo e sua língua materna na realidade não existe, pois a
ordem da ética para o outro, o caráter santo da lei é um apelo à loucura da língua. O
francês é reconhecidamente a língua do hóspede e isso, em nenhum momento, o
impediu de declarar o seu agradecimento.
Por que haveria que, de uma certa maneira, romper com a raiz ou
com a originariedade presumida natural ou sagrada da língua
materna? Para romper com a idolatria da sacralização, sem dúvida,
e para lhe opor a santidade da lei. Mas não será também um apelo
à desembriaguez da loucura materna em nome da santa lei paterna
(embora a presença da schekhina seja também feminina)? Em nome
de um pai que, ainda por cima, Rosenzweig lembra-o, não está
fixado à terra? Quanto à unicidade da língua paterna, dever-se-ia
poder repetir, no essencial, o que dissemos acima da língua materna
e da sua lei. Pai e mãe, haverá que o admitir, são “ficções legais”
que Ulisses reserva à paternidade: ao mesmo tempo substituíveis e
insubstituíveis.131
É preciso compreender em Lévinas seu questionamento quanto à mãe e o pai,
pois ambos são substituíveis, ambos são ficções de alteridades que se somam. O caráter
sacro (ordem da religião) e o santo (ordem da ética) da língua são aqui opostos com a
finalidade de indicar que diversas alteridades formam a linguagem, bem como apresenta
o caráter louco da lei que a constitui. É preciso repensar o pai, marcado pela alteridade
que o constitui, da mesma forma que o pai da autoridade, nem sempre explicitamente
presente, é desde sempre submetido à lei, lei de doação (o que faz dele um pai). O
fantasma como fenômeno de expressão de alteridade, como estrutura espectral do que
nunca há, do não acesso total ao outro, diferentemente do fantasma arendtiano que é
ameaça à língua.
131 DERRIDA (2001 b), p. 86
119
No final desta extensa nota, o filósofo indica que a relação destes três filósofos
para com o judaísmo é forte, pois nenhum deles tentou dela se abandonar. O cruzamento
do judaísmo para com a individualidade e pensamento de cada um deles fez surgir um
indivíduo único, capacitado a “pertencer” a um estado nacional, sem para isso afirmar a
“maternidade” lingüística que possuía. Até mesmo porque tal indicação é trabalhosa a
definir: francês-sefardita-argelino-ashkenaz-alemão? O entrelaçamento de todas estas
filiações formará um ser ainda por vir, algo que não se pode definir através de pai ou
mãe unicamente. Algo que Derrida deixa por indicar, por ainda capacitar, não se sabe de
onde parte e não se tem língua de chegada, como a estrutura da tradução, algo que se
deixa por vir.