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UMA EXPERIÊNCIA METALÍNGÜÍSTICA DE TRADUÇÃO EM O MONOLINGUISMO DO OUTRO (1996) DE JACQUES DERRIDA Ianize Barros da Silva Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literatura Francesa). Orientadora: Professora Doutora Anamaria Skinner RIO DE JANEIRO JULHO DE 2008

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UMA EXPERIÊNCIA METALÍNGÜÍSTICA DE TRADUÇÃO

EM

O MONOLINGUISMO DO OUTRO (1996) DE JACQUES DERRIDA

Ianize Barros da Silva

Dissertação de Mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro como quesito para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literatura Francesa). Orientadora: Professora Doutora Anamaria Skinner

RIO DE JANEIRO

JULHO DE 2008

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Uma experiência metalingüística de tradução em

O Monolinguismo do Outro (1996) de Jacques Derrida

Ianize Barros da Silva Orientadora: Professora Doutora Anamaria Skinner

Dissertação de Mestrado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Mestre em Letras Neolatinas (Estudos Literários Neolatinos – Opção: Literatura Francesa) Banca Examinadora

_______________________________________________________

Presidente, Professora Doutora Anamaria Skinner – UFRJ

_______________________________________________________

Professora Doutora Ana Maria de Amorim Alencar – UFRJ

_______________________________________________________

Professor Doutor Marcelo Jacques de Moraes - UFRJ

_______________________________________________________

Professor Doutor Pierre François Georges Guisan – UFRJ, Suplente

_______________________________________________________

Professor Doutor Marcelo Diniz Martins – CCAA, Suplente

Examinada a Dissertação:

Em ____/_____/2008.

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Para aquele que sempre esteve ao meu lado.

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AGRADECIMENTOS

Ao CNPQ pela bolsa concedida que possibiltou a realização deste trabalho. À Professora Doutora Anamaria Skinner, pela orientação segura e pelo incentivo na execução desta dissertação, pelas palavras estimulantes que sempre me foram destinadas. Aos professores Doutores Pierre Guisan, Marcelo Jacques de Moraes, Marcia Pietroluongo do Programa de Letras Neolatinas da UFRJ, Heloísa Barbosa do Programa de Lingüística Aplicada da UFRJ e Paulo Cesar Duque Estrada do Depatarmento de Filosofia da PUC-RIO pelos ótimos cursos que ofereceram, pela grande ajuda e pela inspiração, pelas aulas e pelas colaborações. Aos professores Doutores Ana Alencar e Marcelo Diniz, que gentilmente aceitaram participar desta banca. Ao Departamento de Letras Neolatinas, professores e funcionários, pela cortesia e auxílio que sempre me foram destinados. A todos os meus demais mestres e amigos mestres, independentemente do domínio, mas que sempre me ouviram e me aconselharam. Aos colegas de curso, pelos questionamentos inspiradores e pelas contribuições oferecidas em aulas. Aos meus alunos, pela confiança e pela disponibilidade em aprender; por também me ensinar a aprender e a viver. A todos aqueles que compreenderam meus momentos de distância e me apoiaram nas vitórias, pouco a pouco conquistadas. Aos meus pais, Iza e Walter, por sempre lutarem pela minha educação e sempre vibrarem pelo meu sucesso, ainda que silenciosamente. Ao meu noivo Gabriel, pela paciência, pelas palavras e por saber “dar tempo ao tempo”.

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[...] e por isso dirijo-me aqui a Deus, o único a quem pego por testemunha, sem saber ainda o que querem dizer essas palavras sublimes, e essa gramática francesa, por, e testemunha, e Deus, e pegar, pegar Deus, e não somente fazer preces, como nunca deixei de fazê-lo em minha vida [...] e por que lhe falo como cristão latino francês embora tenham expulsado do liceu de Ben-Aknun em 1942 o judeuzinho escuro e muito árabe que nada entendia, a quem jamais ninguém deu a mínima razão para tal, nem seus pais nem seus amigos... “Circonfissão”. In: Jacques Derrida.

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BARROS DA SILVA, Ianize. Uma experiência metalingüística de tradução em O Monolinguismo do Outro (1996) de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2008. Dissertação de Mestrado em Literatura Francesa. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, opção Literatura Francesa. RESUMO

Este trabalho tem como objetivo investigar a obra O Monolinguismo do Outro (1996) escrita pelo filósofo Jacques Derrida, encarando-a como uma reflexão com base na experiência da tradução vivida no dia-a-dia da língua “materna”, bem como pretende relacionar a leitura desta obra ao questionamento sobre o ato de traduzir que perpassa outros livros do autor. Para tanto, serão fundamentais os parâmetros criados por Antoine Berman, a tradutologia; e o texto de Walter Benjamin “A Tarefa do Tradutor” (1971).

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BARROS DA SILVA, Ianize. Uma experiência metalingüística de tradução em O Monolinguismo do Outro (1996) de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2008. Dissertação de Mestrado em Literatura Francesa. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, opção Literatura Francesa. RÉSUMÉ

Ce travail a pour but d'étudier l'oeuvre Le Monolinguisme de l´Autre (1996), écrite par le philosophe Jacques Derrida, en l'examinant comme une réflexion basée sur l'expérience de la traduction vécue au jour le jour de la langue “maternelle”, de manière à établir un rapport entre la lecture de cette oeuvre et le débat sur l'acte de traduire qui parcourt d'autres livres de l'écrivain. Pour l´acccomplir, ce seront fondamentaux les paramètres créés par Antoine Berman, sous le nom de « traductologie », ainsi que le texte de Walter Benjamin, “La tâche du traducteur” (1971).

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BARROS DA SILVA, Ianize. Uma experiência metalingüística de tradução em O Monolinguismo do Outro (1996) de Jacques Derrida. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2008. Dissertação de Mestrado em Literatura Francesa. Programa de Pós-Graduação em Letras Neolatinas, opção Literatura Francesa. ABSTRACT

The purpose of this work is to investigate the book O Monolinguismo do Outro (1996) written by the philosopher Jacques Derrida, considering it as a reflection based in the translation experience, experencied on everyday life use of “mother” language. It also intends to relate the reading of this work to the questioning upon the act of translating present in other books from the author. In order to accomplish that, the parametres created by Antoine Berman, the tradutology; and the text “A Tarefa do Tradutor” (1971) by Walter Benjamin are fundamental.

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SINOPSE

A experiência de tradução em O Monolinguismo do

Outro (1996) de Jacques Derrida. Experiência e

Reflexão como parâmetros para a tradução. A

tradução como interpretação. A ‘inquietante

estranheza’ presente na língua.

PALAVRAS-CHAVE

Literatura Francesa Contemporânea

Ensaio Francês Contemporâneo

Ensaio sobre a tradução

Jacques Derrida

Antoine Berman

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO ........................................................................................................ 11 CAPÍTULO 1: PARALELOS A DERRIDA, DEBATE TRADUTÓRIO ........... 18 1.1 O PENSAMENTO DA DESCONSTRUÇÃO ................................................. 18 1.2 FREUD E A DESCONSTRUÇÃO .................................................................. 23 1.3 AS CONTRIBUIÇÕES DE FREUD AO ESTUDO DA TRADUÇÃO .......... 25 1.3.1 RIQUEZA LINGÜÍSTICA EM FREUD ................................................ 30 1.3.2 N. DO T. (NOTAS DO TRADUTOR) ................................................... 32 1.4 A DÍVIDA DA TRADUÇÃO ......................................................................... 34 1.5 O MITO DA TRADUÇÃO E A LINGUAGEM ............................................. 37 1.6 A FORMAÇÃO DE UM ESTADO NACIONAL .......................................... 38 CAPÍTULO 2: UMA EXPERIÊNCIA DE REFLEXÃO ...................................... 42 2.1 À LUZ DA TRADUTOLOGIA .............................................................. 42 2.1.1 A ÉTICA DA TRADUÇÃO ................................................................... 44 2.1.2 O ESTRANGEIRO ................................................................................. 46 2.2 A DIFFÉRANCE .............................................................................................. 50 2.3 UMA IMPOSSÍVEL APROPRIAÇÃO .......................................................... 53 2.4 A PROMESSA DO ACONTECIMENTO ...................................................... 58 CAPÍTULO 3: O CARÁTER DESTE MONOLINGUISMO .............................. 62 3.1 O QUE HÁ DE HOSPITALIDADE NA MONOLÍNGUA ........................... 62 3.1.1 UMA POSSÍVEL SUBSTITUIÇÃO? .................................................... 65 3.2 TRIPLA DISSOCIAÇÃO NO MONOLINGUISMO .................................... 68 3.2.1 UMA ESTRANHA E PRETENSA IDENTIFICAÇÃO ........................ 70 3.3 SOBRE A DIGLOSSIA DO BILINGUISMO AFRICANO ......................... 72 3.4 CENÁRIO ARGELINO .................................................................................. 74 3.5 KHATIBI X DERRIDA .................................................................................. 76 CAPÍTULO 4: UMA ANÁLISE DO OUTRO ....................................................... 82 4.1 A LEI, O PERTENCIMENTO E A LINGUAGEM ........................................ 82 4.2 UMA INTERROGAÇÃO DE VERDADE ...................................................... 86 4.3 O TERRENO DO CRÍVEL .............................................................................. 88

CONCLUSÃO ............................................................................................................ 93 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS .................................................................... 107

APÊNDICE ............................................................................................................ 113

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Introdução

Aquela tradução que quisesse comunicar, nada comunicaria senão a comunicação1.

O livro O Monolinguismo do Outro foi apresentado, primeiramente, sob forma

de colóquio na Louisiana, nos Estados Unidos, no ano de 1992. Em tal ocasião, Derrida

trataria da questão da linguagem como pensada pela desconstrução, como

estranhamento, o que seria a introdução à sua forma de reflexão. Nesta obra, como será

melhor explicitado mais à frente, a questão do estrangeiro e sua acolhida na tradução é

apresentada. Vale ressaltar que o pensamento de Derrida é associado à tradução porque,

em quase todos os seus ensaios, ele enuncia, às vezes de forma sub-reptícia, o que está

em jogo na atividade do tradutor. O filósofo fala todo o tempo de tradução sem jamais

formalizar uma teoria da tradução, como exemplificam as quatro traduções indicadas

por ele para o bordão de Hamlet: “The time is out of joint”, em Espectros de Marx:

Derrida não optou definitivamente por nenhuma dessas quatro traduções. Considerou-as todas corretas, legítimas e desajustadas, reconhecendo, com isso, a irredutibilidade do out of joint a outra língua. Constatou que a excelência da tradução francesa nada pode quanto a isso.[...] Exemplos como esse, [ ] forjariam, para os que lêem e traduzem, um imaginário do texto, que ultrapassaria a simples questão do arquivo como metalinguagem, conforme ao conceito que fazemos deste como suporte externo, como glossário.2

Com base na epígrafe deste capítulo, “Aquela tradução que quisesse comunicar,

nada comunicaria senão a comunicação”, Walter Benjamin parte da impossibilidade da

comunicação sem resto. Dentro dos estudos da desconstrução, a questão da tradução é

quase uma extensão da tal (in)comunicação. Isto se deve ao fato de que o 1 BENJAMIN (1994), p.9 2 SKINNER (2006), p. 77-78

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monolinguismo exerce alguns questionamentos cruciais para se pensar a língua de um

ponto de vista desconstrutor. Derrida sintetiza tais questões no fim de seu livro de 1996:

Como é possível que a única língua que este monolíngüe fala e está votado a falar, para todo o sempre, como é que é possível que ela não seja a sua? ou Como acreditar que ela permanece ainda muda para ele que a habita e que ela habita o mais rente possível, que ela permanece distante, heterogênea, inabitável e deserta? e ainda Deserta como um deserto no qual é preciso crescer, fazer crescer, construir, projetar até mesmo a idéia de uma rua e o rastro de um retorno, uma outra língua ainda?3 (grifo meu)

Jacques Derrida foi considerado por alguns como o primeiro teórico da tradução,

embora ele, como disse anteriormente, nunca tenha elaborado explicitamente uma teoria

sobre o assunto. Pautando-se em suas palestras, conferências e livros, outros estudiosos

aprofundaram as noções do que chamamos “desconstrução”, palavra que ele propôs

como outro nome para “tradução”. O filósofo transpõe o discurso psicanalítico em

particular, que em geral diz respeito aos indivíduos, para o estudo do texto e da tradução

em especial, ao referir-se ao trabalho do luto e da dívida impossível de quitar. Esta

dívida aponta sempre a possibilidade um antes e um depois de um acontecimento de

texto que se deu em sua materialidade, e que se inscreveu, em algum momento, em

algum lugar.4 Aqui, tentarei introduzir como esta teoria está implicada no processo

tradutório e suas conseqüências, através dos questionamentos propostos pelo filósofo no

final da obra em pauta, os quais procurarei expor nesta dissertação.

Derrida define a desconstrução como “ce qui arrive” (o que acontece) e que

suscita respostas e traduções. Derrida e outros estruturalistas e pós-estruturalistas

franceses, como Michel Foucault e Roland Barthes, preocupavam-se com questões

“micrológicas”, o que os habilita para pensar a tradução textual. Por isso, traduzir

segundo a desconstrução significa chamar a atenção para a reflexão; em oposição ao

3 DERRIDA (2001 b), p. 89 4 cf. SKINNER (2006)

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automatismo no processo de correspondência ‘palavra por palavra’. O filósofo, assim

como o tradutor, interroga-se quanto a pequenas questões diferenciais no texto. Porém,

quais seriam estas “pequenas questões”?

Sabe-se que o tradutor deve decidir no momento do exercício da tradução. As

escolhas que determinado tradutor faz são reveladoras de perfis individuais. A reflexão

que acompanha esse processo faz que a tradução resulte em um jogo face à

multiplicidade de escolhas de palavras. Há também a consciência do quão difícil é

respeitar a unidade da palavra. Parece que esse respeito pela palavra, pelo que Derrida

chama de ética da palavra, é o mais difícil em uma tradução. A unidade da palavra é

justamente o desafio da tradução. Por isso, certas decisões de tradução são reivindicadas

de modo quase autoral pelo tradutor, principalmente nos momentos em que ele se dá

conta que uma língua é irredutível à outra língua e, por mais complicado que seja

traduzir, é preciso traduzir sempre.

É justamente esse desafio proposto pelo par experiência/reflexão que está

expresso, de modo quase autoral, em O Monolinguismo do Outro. O paradoxo que se

desdobra ao longo do texto, ter uma língua é não ter essa mesma língua5, é fixado com

um hipotético interlocutor, o também intelectual magrebino Abdelkebir Khatibi. O que

garante a identidade é igualmente aquilo que abala ou compromete esta mesma

identidade, de forma a pôr a relação consigo próprio em risco.

Nesta obra, encontra-se um discurso acerca da tarefa da tradução. Ao expressar

sua opinião pessoal sobre os que se dedicam a esta tarefa, o autor afirma que os

tradutores são os melhores leitores, uma vez que são muito sensíveis às formas de dizer,

ou seja, prestam toda a atenção necessária ao idioma, ao trabalho de escritura e à

5 Mote da obra, que será apurado a seguir nesta dissertação.

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singularidade da composição. Quem quer que viva a experiência da língua desta forma

estaria, portanto, em posição de tradutor.

Para dar um exemplo da possível gênese desse sentimento acerca da forma de

apreensão da língua em posição de tradução, Derrida confessa ter observado na língua

árabe, uma performance discursiva na qual o sentido não se deixa mais separar de uma

frase, de um léxico e de uma gramática. Quando percebe que isso ocorre com ele em

relação a cada idioma que escuta, lê, mas não fala, descobre que viver no meio de outras

línguas despertou-lhe um apelo à tradução, vivido no corpo a corpo com a letra.

A obra discute o processo de formação de um imaginário lingüístico-literário

pelo escritor a partir da reflexão de sua aquisição da língua materna (o francês) e da

necessidade de se entretraduzir que caracterizou esse aprendizado. Nesta autobiografia

literária, a frase “Eu apenas tenho uma língua; e ela não é minha”6 organiza as

principais questões tratadas no texto e o discurso do livro remonta a uma memória sem

uma identidade ficcional de pátria, vivida como memória “interdite de la langue”.

Desde o título da obra, aparece a referência a uma única língua que nosso autor

considera ao mesmo tempo como sua língua e como língua estrangeira. Porém, ao dizer

que a única língua que possui não é a sua, não a está reconhecendo como estrangeira. É

justamente nesse espaço intersticial da língua que se encontram as questões forjadas no

livro.

A língua é, de fato, o que possibilita a articulação de uma singularidade

excepcional e universal que diz respeito a uma língua nossa, ao mesmo tempo em que

nos impede de se apropriar dela. O monolinguismo deste outro intensifica o terror que já

assombrou a desconstrução: nós recebemos a língua em uma escala muito mais ampla

que a criamos. Esta relação para com a língua sempre partiu de nós mesmos, “nous

6 “Je n’ai qu’une langue, ce n’est pas la mienne”

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sommes assignés à la langue”, como a um endereço. A língua inapropriada é sempre a

língua do outro.

Assim sendo, chegamos à questão que Jacques Derrida trata neste livro: de uma

monolíngua, de uma língua por ele falada que lhe era proibida, já que não era a sua, o

francês. Além disso, ele é privado de toda outra língua (árabe, hebreu ou berbère, por

exemplo). Ora, ele é “jogado” em uma tradução absoluta, uma tradução sem língua de

partida (langue de départ). Para ele, apenas existiam línguas de chegada (langue

d’arrivée), e que não “chegavam” realmente já que não sabiam de onde partiam. Essas

meras “arrivées” instigavam um desejo de reconstituir, de restaurar, ou mesmo de

inventar uma primeira língua.

Em minha pesquisa, decidi vasculhar este campo da escrita metalingüística que

caracteriza o ensaio literário de Derrida, encarando-a como uma experiência de

tradução. Pretendo tomar a palavra “tradução” em sentido amplo, como a qualquer

possibilidade de relacionar o escrito com o escrito, conforme a pesquisa científica7 de

que participo: a crítica literária, a tradução como interpretação, e particularmente, no

presente estudo: o ensaio autobiográfico de um escritor, cujo imaginário foi forjado na

leitura e na escritura da literatura. Para tanto, adotarei neste estudo os parâmetros

criados por Antoine Berman para o estudo do processo tradutório, a tradutologia8. A

aproximação entre Derrida e Berman se justifica pela afinidade teórica entre eles, ambos

fundadores, em 1983, do Collège International de Philosophie, onde foram diretores de

programas. Esta reflexão da tradução sobre si mesma a partir de sua experiência seria a

tradutologia.

7 Pesquisa CNPq “A metalinguagem literária legada à língua e à literatura francesa por Jacques Derrida, Roland Barthes e Michel Foucault”, que contempla diversas formas de relação do escrito com o escrito, entre elas a tradução. 8 Haverá, mais a frente, um capítulo dedicado a explicitar tal teoria e seus conceitos.

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As pesquisas teóricas em torno da obra de Jacques Derrida, especificamente os

artigos dos pesquisadores do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL) da UNICAMP

sobre Derrida, os artigos e livros de Walter Benjamin (“A Tarefa do Tradutor”),

Antoine Berman (L’Épreuve de l’étranger e La traduction de la lettre ou l’auberge du

lointain) e Paul De Man (Autour de la Tâche du Traducteur) sobre a tradução, demais

obras do próprio Jacques Derrida (Da Hospitalidade, Torres de Babel, Mal de Arquivo,

dentre outros) e artigos de pesquisadores sobre a questão da tradução me servirão de

suporte para analisar os quesitos de divisão ativa e da linguagem em O Monolinguismo

do Outro (1996/ tradução portuguesa em 2001) e até que ponto é possível ser

monolíngüe em uma língua que não é a sua. É preciso destacar o sítio argentino

www.jacquesderrida.com.ar dedicado ao filósofo, que disponibiliza gratuitamente

diversas de suas obras, servindo de fonte para meu trabalho. Não menos importante foi

o curso do Departamento de Filosofia da PUC-RIO, “Tópicos Especiais de Filosofia

Contemporânea”, ministrado pelo Professor Doutor Paulo Cesar Duque Estrada, que

gentilmente acolheu-me em suas aulas. Neste curso foi feita uma leitura da obra O

Monolinguismo do Outro.

Elaborei, por fim, quatro capítulos nessa dissertação. Apresento, no primeiro

capítulo, “Paralelos a Derrida, debate tradutório”, os princípios que levaram Jacques

Derrida a aprofundar-se no debate tradutório lingüístico e literário, dentre eles a própria

“teoria” da desconstrução. No segundo capítulo, apresento a ética da tradução e o papel

do estrangeiro à luz da teoria de Antoine Berman, a tradutologia. No terceiro capítulo,

empreendo um estudo sobre o caráter do monolinguismo, detalhando seu conteúdo, um

breve histórico do cenário político e social da Argélia e a pertinência desta obra para os

estudos literários, através de um diálogo com o filósofo Abdelkebir Khatibi. No quarto e

último capítulo, aprofundo a minha leitura de O Monolinguismo do Outro, tentando

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contribuir com interpretações iluminadas a partir da proposta de tornar manifesta a

relação entre experiência e reflexão.

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Capítulo 1 – Paralelos a Derrida, debate tradutório

1.1 O pensamento da desconstrução

O sempre intacto, o intangível é o que fascina e orienta o trabalho do tradutor. Ele quer tocar o intocável, o que resta do texto quando dele já se extraiu o sentido comunicável8. [...] A tradução não buscaria dizer isto ou aquilo, a transportar tal ou tal conteúdo, a comunicar tal carga de sentido, mas a remarcar a afinidade entre as línguas.9

Ainda como aluna da graduação, fui convidada a integrar uma pesquisa de

Iniciação Científica sobre o tema tradução. Confesso ser um tema bastante motivador,

porém algo que eu nunca havia estudado. Na faculdade, este tema somente é

contemplado no final do curso, e àquela ocasião eu estava terminando o meu primeiro

ano. Pelo desafio, aceitei a proposta. E tal proposta incluía nada menos que Jacques

Derrida.

Na Iniciação Científica, eu trabalhei com o ensaio Torres de Babel, do próprio

Derrida, e com o célebre ensaio “La Tâche du Traducteur”, de Walter Benjamin. Dois

ensaios que serão de extrema valia para o desenvolvimento desta dissertação, na qual a

obra O Monolinguismo do Outro, escrita em 1996, funciona como corpus textual. A

partir do trabalho feito por Jacques Derrida, procurarei “desconstruir” o principal

pressuposto do nacionalismo lingüístico: a idéia de que a língua seria, ou deveria ser, a

propriedade de um povo – uma propriedade que cada um teria como tarefa de “se

apropriar”. Neste livro, ele transpõe o discurso psicanalítico em particular, que em geral

diz respeito aos indivíduos, para o estudo do texto e da tradução em especial ao referir-

8 DERRIDA (2002), p. 51 9 Ibid, p.44

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se ao trabalho do luto e à dívida impossível de quitar, baseada nos pressupostos da

tradutologia.

No início da obra, o cenário de críticas que Jacques Derrida recebia é armado,

através da figura de um interlocutor para com o qual se fixa uma aporia: ter uma língua

é não ter essa mesma língua, paradoxo que se desdobra ao longo da obra.

Nesta obra autobiográfica, o filósofo reflete sobre as relações que se entrelaçam

entre a língua, o contexto político-social, a cidadania e a identidade, no que se refere às

conseqüências da política social francesa operada na Argélia – o que será explicitado

mais à frente nesta dissertação.

A proposição contraditória apresentada (ser condenado a falar uma única língua

e esta língua não ser a sua) suscita a seguinte questão: como é possível ser monolíngüe

numa língua que não é a sua? Ora, o ser falante só se constitui como tal a partir de uma

língua que lhe é exterior e essa constituição se efetua pela inscrição num

monolinguismo na língua que ele encontra no lugar do outro, nesta prótese da origem,

subtítulo da obra. Esta prótese, este desejo de substituição e de preenchimento de algo

vago, está situada na tentativa de busca da origem, tentativa de saber o que preencher,

algo que é reiterado pela escrita autobiográfica. Ao colocar em cena o desejo estrutural

e irreprimível de busca desta origem, o discurso autobiográfico de Derrida se situa na

borda, neste local não situável onde se dá o testemunho, onde surgem as relações entre

nascimento, cultura e nacionalidade. Esta borda é atravessada por paixões da língua.

Porque é à beira do francês, unicamente, nem nele nem fora dele, na linha inencontrável da sua costa que, desde sempre, para sempre, eu me pergunto se se pode amar, fruir, suplicar, rebentar de dor ou muito simplesmente rebentar noutra língua ou sem mesmo nada dizer a ninguém, sem falar sequer.10

10 DERRIDA (2001 b) p.14

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É preciso repensar a localização do sujeito para com a língua, este acidente

inevitável, visto que é a língua que vem ao nosso encontro. Esta borda é uma linha

inencontrável, nem fora nem dentro, onde o testemunho do filósofo se desenrola. Os

inúmeros trabalhos de Derrida trazem esta marca, a marca de um judeu-argelino que,

infelizmente para ele, não falava o árabe, mas somente o francês, o qual, como afirma

nesta obra em discussão, não era o “seu” idioma. Interessante questionar se é realmente

possível que alguém tenha a posse de um idioma. Ou seria o idioma aquilo que, como

dito anteriormente, simplesmente nos atravessa e nos faz falar? É justamente, então, um

indivíduo naturalizado francês que nunca teve outra cultura senão a Ocidental, à qual,

de acordo com suas próprias palavras, jamais pertenceu de todo. Eis uma séria

ambigüidade, estar em um lugar descentrado que sempre se situou às suas margens, à

sua borda.

Eis o pensamento da desconstrução: não mais considerar os valores de presença

e ausência, os quais comumente habitaram as correntes de pensamento ocidental. É

preciso entender a alteridade como um fator de diferença, é preciso romper com a idéia

de origem, para então fazer funcionar o pensamento, que é impossível de ser

“domesticado”, “colonizado”. Somos habitados por um quê incontrolável, uma

alteridade que instiga o desejo, que o viola e que o reinscreve na memória de cada

indivíduo, o que é amplamente narrado em O Monolinguismo do Outro. Esta alteridade

(melhor seria dizer alteridades, no plural) é o que “traduz” a reflexão e a experiência das

diversas organizações individuais; ela é sempre da ordem da violação, da loucura, posto

que não oferece nenhum horizonte de espera. Ao invés disso, ela tem o poder de

desestabilizar tudo o que se tinha como até então estável: esta é a alteridade que Derrida

busca acolher. O filósofo não busca a mera oposição entre a possibilidade e a

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impossibilidade, mas, principalmente, que ambos os conceitos se requisitem, sem um

olhar de nostalgia perante a falta de origem. Poderíamos então dizer que:

Para mim o indecidível é a condição da decisão, do acontecimento, e já que você fala do prazer e do desejo, é evidente que se eu soubesse e pudesse decidir de antemão que o outro é de fato o outro identificável, acessível ao movimento do meu desejo,se não houvesse sempre o risco que o outro não esteja aí, que eu me engane de endereço, que meu desejo não chegue à sua destinação, que o movimento de amor que eu destino ao outro se extravie ou não encontre resposta, se não houvesse esse risco marcado de indecidibilidade, não haveria desejo. O desejo se abre a partir desta indeterminação, que se pode chamar indecidível. Por conseqüência eu creio que como a morte, a indecidibilidade, aquilo que eu chamo também a ‘destinerrância’, a possibilidade para um gesto de não chegar à sua destinação, é a condição do movimento do desejo que de outra maneira morreria antes. Concluo disso que o indecidível e todos os outros valores que a ele podemos associar são tudo menos negativos, paralisantes e imobilizantes. É exatamente o contrário para mim.11

Tão logo o indecidível habite o terreno da desconstrução, ela implica em si a

necessidade da memória, de um novo posicionamento: entre a clausura da linguagem e

o fim da própria experiência desconstrutora. A desconstrução, segundo Derrida “não é

um conjunto de teses, [...] ela não é nada [...]”. O filósofo afirma que se quisesse dar

uma descrição econômica da desconstrução, esta seria “um pensamento da origem e dos

limites da pergunta ‘o que é?...’, a pergunta que domina a história da filosofia12”. A

desconstrução seria efetivamente uma interrogação sobre tudo o que é mais do que uma

simples interrogação; ela não está simplesmente a serviço de nenhuma verdade nem de

elaboração de regras que garantam a determinação do sentido. A desconstrução pensa

na linguagem em si, em seu jogo referencial, em sua différance. É no momento da

aporia da obra em questão que realmente nos damos conta que a linguagem é uma

promessa impossível de presença, um conjunto de rastros, um jogo de possibilidades e

11 DERRIDA, JACQUES – Sur Parole, Instantanés philosophiques. Paris: Éditions de l’Aube, 1999, p.53. apud CONTINENTINO, p. 18. 12 Resposta encontrada em uma entrevista dada ao Le Monde. Tradução minha.

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forças que não são meramente lingüísticas. Deve-se dar conta realmente do texto e de

seu contexto, além da disseminação estrutural presente em todo o seu discurso, ou seja,

desta différance que paradoxalmente, invade, com violência e estranheza o território

onde falamos, até então com tranqüilidade, da língua materna, língua de origem,

tradução. Não basta excluir aporias e hospedar-se serenamente em um discurso, é

preciso pensar que a relação desfeita entre significado e significante proposta pelo

filósofo nos lega a tarefa de pensar a dupla – e contraditória – estrutura de toda fala,

explicitado ao longo de O Monolinguismo do Outro.

A noção da desconstrução repousa no postulado de que o texto não tem

significação fixa e predeterminada que a interpretação pudesse reencontrar, a estratégia

desconstrucionista se funda além, no princípio de uma autocontradição inerente ao

texto, que impede a emergência de um sentido definitivo e coerente. A desconstrução

busca disseminar os diversos conteúdos textuais, sem submetê-los aos imperativos de

verdade ou de determinação do sentido. E, já que a linguagem e o pensamento não se

dissociam, pensar a linguagem enquanto desconstrução significa, por conseguinte,

trilhar novos caminhos de pensamento.

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1.2 Freud e a desconstrução

O que é um texto e que deve ser o psíquico para ser representado por um texto? Pois se não há nem máquina nem texto sem origem psíquica, não há psíquico sem texto. Qual deve ser enfim a relação entre o psíquico, a escritura e o espaçamento para que uma tal passagem metafórica seja possível, não apenas nem em primeiro lugar no interior de um discurso teórico mas na história do psiquismo, do texto e da técnica?13

O filósofo desconstrutor menciona comumente em suas diversas obras a

interpretação psicanalítica, posto que, como diz, ela ensina um “método de decifrar

textos”, sendo um modo de leitura. Derrida não enxerga a psicanálise como uma

disciplina particular, mas como um modo de leitura propriamente dito, capaz de ensinar

a partir de seu discurso natural um método de decifração de qualquer texto,

independente de buscar a cura ou de uma correta imagem de leis psíquicas. Essa

peculiar decifração liga-se à originalidade da escritura, nutrida por um recalque, um

pólo atrativo da repressão. Sabemos que a escritura articula presença e ausência, de

forma a denegar tal ausência, o que poderia causar a ilusão de uma presença. Ora, esta

relação para com uma alteridade impossível de ser apropriada é a importância do

pensamento freudiano em si. Os resíduos desta impossibilidade são justamente o que

aproxima o psíquico ao efeito da escritura.

Freud emprega freqüentemente em seus textos diversas metáforas, com o

propósito de promover um abalo, uma desorganização naquilo que já se encontra

estabelecido; ao contrário de seu uso na tradução, onde se busca explicitar algo que é

desconhecido, enfim, explicar melhor o que seria até então desconhecido. Desta

maneira, haveria na escritura o conseqüente deslocamento para uma abordagem do

psíquico, promovendo a suspensão dos próprios recalques que a sustentam.

13 DERRIDA (2005) p.183

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O conceito de memória no psicanalista é uma memória de traços inscritos no

inconsciente, de traços perceptivos, que por si só, já não constituem memória. Ora, só

devemos considerar uma memória ao inscrevermos as variadas impressões, como a

intensidade e a repetição dos itens, a exploração, as trilhas, um jogo de diferenças que

constitui o texto inconsciente. A memória resultante destas variações não se refere a

nenhuma origem, não há nenhuma origem a ser resguardada ou resgatada; tal memória é

criada nesta diferença dos traços. Pode-se considerar a inscrição desses traços repleta de

violência e resistência: violência como variante de força, excitação e resistência como

espaço, local de inscrição – este confronto incessante da memória. Visto que tanto a

violência como a resistência não antecedem a memória, mas surgem nesta operação,

Derrida insiste que para o psicanalista “não há um aparelho anterior à inscrição do traço,

mas a inscrição e o espaço se dão conjuntamente, ao mesmo tempo, sem a anterioridade

de qualquer um dos dois”14. O autor também persiste na idéia de repetição freudiana, a

qual considera “a primeira vez” como já sendo uma repetição, noção encontrada em O

Monolinguismo do Outro, onde se pode observar que a primeira língua já está

completamente contaminada por algo anterior a ela. Para Freud, a repetição não repete a

primeira vez, mas a primeira vez já se coloca como repetição.

A repetição não sobrevém à primeira impressão, a sua possibilidade já ali está, na resistência pela primeira vez oferecida pelos neurônios psíquicos. A própria resistência só é possível se a oposição de forças durar ou se repetir originariamente. É a própria idéia de primeira vez que se torna enigmática.15

Assim como a busca da origem narrada no livro corpus desta dissertação, Freud

busca um código exterior capaz de “traduzir” as estruturas latentes de seus pacientes,

em especial quando citamos a interpretação de sonhos. Freud procura uma relação entre

14 CONTINENTINO, p. 94 15 DERRIDA (1995), p. 187

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o conteúdo manifesto e o latente dos sonhos apta a elucidar os significantes. Porém, o

texto onírico não se assemelha a quaisquer códigos lineares, há um material que produz

seus próprios significantes, interpretados por um código único, talvez jamais acessível.

Embora o psicanalista busque uma particular traduzibilidade, “o fato de não haver

código orientador faz com que toda a operação de tradução deixe um resto que resiste a

uma apreensão plena – justamente o que caracteriza a escritura como tal”16.

Pode-se afirmar que não existe um texto inconsciente que deva ser traduzido e,

portanto, sua “tradução” para o consciente não existe; ou seja, não há texto de origem. A

cena da escritura onírica transgride a linguagem verbal. O psicanalista indica tal cena da

escritura tendo a memória como agente, visto que a experiência em Freud é centrada

pelo rastro e não pela presença, rastro similar ao que encontramos nas linhas de O

Monolinguismo do Outro.

1.3 As contribuições de Freud ao estudo da tradução

Sans doute qu’en français, les choses sont plus distanciées, plus extérieures à moi, alors qu’en allemand je suis plongé dans mon intimité. [...] j’ai l’impression que l’allemand cerne davantage le réel intime, et le français l’étend davantage au monde.17

Conforme comentado no subcapítulo anterior, a psicanálise teve uma grande

contribuição para o pensamento derridiano. Assim como na escritura literária, na

psicanálise não há uma unidade simétrica exata entre o significante e o significado18.

16 CONTINENTINO, p. 96 17 Revue TRANSLITTÉRATURE, entretien “Traducteurs au travail” avec Georges-Arthur Goldschmidt, p. 9-16. Paris: ATFL & ATLAS. 18 O significado, em lingüística, seria tudo aquilo que uma língua expressa acerca do mundo, expresso em um determinado idioma, tudo o que para os falantes faz parte do mundo possível, seria o ‘conceito’ que

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A depender do contexto em que esteja inserido, um mesmo significante pode apresentar

significados distintos: não existe uma correspondência direta entre ambos, pois quando

recorremos ao dicionário, na busca do “significado” de um significante, deparamo-nos

com outros significantes, que representam outros significados.... Esta relação talvez seja

infinita, ao mesmo tempo em que não é estável. Isto foi o que o pós-estruturalismo

trouxe para a linguagem: este interminável círculo em que um significante deixa em

suspenso seu significado, conduzindo-me a outras significações19. Tal como ocorre na

leitura/literatura, o significante instaura um por vir, onde se “soma” o significado das

palavras de uma frase a todos os outros que “povoaram” a nossa mente no momento da

leitura, a “significação, portanto, nunca é idêntica a si mesma. É resultado de um

processo de divisão ou articulação, de signos que só são eles mesmos porque não são

outros signos.20”

Referindo-se especificamente a esta oposição descrita no parágrafo anterior,

significante e significado, Derrida retorna às questões sobre tradução, afirmando:

O fato de que essa oposição ou essa diferença não possa ser radical ou absoluta não a impede de funcionar e até mesmo, sob certos limites, bastante amplos, de ser indispensável. Por exemplo, nenhuma tradução seria possível sem ela. E foi, efetivamente, no horizonte de uma traduzibilidade absolutamente pura, transparente e unívoca, que se constituiu o tema de um significado transcendental21. Nos limites em que ela é possível, em que ela, ao menos, parece possível, a tradução pratica a diferença entre significado e significante. Mas, se essa diferença não é nunca pura, tampouco o é a tradução, e seria necessário substituir a noção de tradução pela de transformação: uma transformação regulada de uma língua para a outra, de um texto por outro.22

uma palavra traz em si, enquanto o significante seria a forma, a palavra capaz de trazer em si um significado. 19 Considero aqui significação como sinônimo de significado. 20 EAGLETON, p.177 21 Significado transcendental seria “um conceito exterior à linguagem, não-contaminado por um veículo distorcido de representação”. [ver OTTONI, 2005 (a)] 22 DERRIDA (2001 c), p. 20

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Assim sendo, todo analista – bem como o tradutor – jamais faria tradução pura,

pois neste domínio regula o inconsciente como regulador, regula o texto. Paralelamente

a este trabalho da tradução, vê-se o ensaio “Quand Freud voit la mer, Freud et la langue

allemande”, escrito por Georges-Arthur Goldschmidt e publicado em 1988, inspirado

pela publicação da tradução francesa das Obras Completas de Freud. A tardia

publicação desta tradução ia de encontro a toda a tradição literária francesa filosófica,

ainda mais se tratando de Freud, que foi um escritor de grande renome na Europa.

“Quand Freud voit la mer, Freud et la langue allemande” trata de uma análise

comparativa entre o francês e o alemão, no domínio das fontes lingüísticas, quanto a

possibilidade de traduzir conceitos-chave da psicanálise de uma língua para a outra. Ele

apresenta notas e reflexões pontuais sobre a tradução de tais conceitos, além da

interrogação sobre o inconsciente que atua entre as línguas, de um modo mais geral e

ambicioso.

Ouvi falar de Goldschmidt pela primeira vez através da leitura de um texto

teórico durante um curso de literatura francesa do Departamento de Letras Neolatinas da

UFRJ. Logo me interessei por esse autor, pois preconizava absorver a “diferença”, o

espaço intersticial entre as duas línguas, em seu caso, o francês e o alemão. Lendo uma

entrevista dada pelo próprio Goldschmidt, percebi que ele não simpatizava com a

tradução. Ele, que sempre foi professor de alemão no ensino secundário, começou a

escrever aos dezoito anos, porém apenas mais seriamente vinte anos mais tarde, tanto

que publicou seu primeiro livro aos quarenta anos de idade, em 1971. Nasceu na

Alemanha e se refugiou na França aos dez anos de idade, pouco antes da guerra.

Goldschmidt traduziu principalmente Handke, mas também outros escritores

renomados, como, por exemplo, Goethe e Kafka. Dentre suas traduções, podemos citar

Zaratrusta, de Nietzsche, e Allemands, de Benjamin. E o mais interessante, segundo um

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ponto de vista bastante particular, é sua forma de trabalho: a reflexão nele nunca se

distancia do concreto, da sensação, do sentimento; o que podemos relacionar a Berman,

em sua teoria da tradutologia. Berman nos mostra que o mesmo espaço intersticial entre

as duas línguas proposto por Goldschmidt é o espaço da tradução. Este espaço está

situado nos hiatos, nos intervalos, nas experiências de tradução propriamente ditas. E se

este espaço está situado nos intervalos, ele não pode ser totalizado; pelo contrário, ele é

um espaço babélico.

Goldschmidt e Berman são postos ao lado de outros pensadores como Derrida,

por exemplo, no momento em que o pensamento moderno se relaciona intimamente ao

espaço da tradução, conforme explicitado anteriormente: é impossível à tradução não se

servir do pensamento, principalmente no horizonte filosófico, relação esta importante

para a compreensão desta dissertação.

Retornando ao artigo “Quand Freud voit la mer, Freud et la langue allemande”, o

autor questiona de modo radical toda tradução que é efetuada de forma a negligenciar a

palavra, pois que a importância contextual das conotações suscitadas por uma palavra

está em um ponto preciso do texto freudiano; essa tradução será negligenciada em um

produto exclusivo da lógica do sentido. Encontraremos, portanto, aspectos da tarefa do

tradutor que se apagam face aos conceitos já existentes.

Neste mesmo curso de literatura francesa fui também apresentada à crítica

Ginette Michaud, que escreveu um texto interessante a ser debatido com o trabalho de

Goldschmidt. Ela, que descreve dois23 grupos que trataram da tradução das Obras

Completas de Freud, preconiza uma edição bilíngüe. Ao contrário do uso simples da

conotação, que permite questionar a tradução que é feita, aquela que negligencia a

23 Neste texto, Michaud, na verdade, trata de três grupos de tradução. O primeiro, dirigido por Jean Laplanche, autor do vocabulário de psicanálise e coordenador da tradução das Obras Completas em francês, o segundo grupo de Goldschmidt, que não traduziu, mas fez um ensaio sobre como traduzir, em alemão, e o terceiro, o de Mahony, coordenador da tradução inglesa das Obras Completas. Aqui, vou tratar apenas dos dois primeiros, por uma questão simples de redução do corpus.

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palavra em prol exclusivo da lógica do sentido, Michaud se rebela contra a idéia de um

glossário de termos “pré-traduzidos”. Ela compreende que esse estilo anula o sujeito-

tradutor. E essa anulação põe em questão o emprego ordinário e a lei implícita que

obriga o tradutor a se curvar face à autoridade de traduções já estabilizadas. Desta

forma, o autor reforça o direito/necessidade de todo tradutor de retraduzir as passagens

citadas.24

O primeiro grupo, dirigido por Laplanche, tem a concepção de tradução como

transmissão de um sentido intacto e transparente. Eles não aceitam as notas, eles

propõem um texto idealizado. O texto foi traduzido como homogêneo, ratificando a

concepção da transparência das palavras unívocas e equivalentes. Como esse grupo foi

dirigido por um psicanalista, ele elaborou um livro glossário, pois ele não fez notas de

tradução ao longo de seu texto; o vocabulário era próprio e de origem psicanalítica,

logo, não era preciso traduzir.

O segundo grupo de discussão, representado por Goldschmidt, propõe que as

relações entre Freud, a língua alemã e a tradução são necessárias para indicar a cada

vocábulo as possíveis variações e as relações (ou falta de) com o francês. A tradução

pára de ser um processo de decisão para ser um de dúvidas. É a questão do fantasma de

fusão entre as línguas [o que a edição bilíngüe homologa, ratifica, uma vez que ela

confirma a dúvida quando ela não quer ter a decisão de tradução25]. A psicanálise, aqui

tradução de Freud, transformou-se em uma espécie de tradução intralingual - um

processo de metalinguagem, de outras significações a partir de uma origem.

Goldschmidt se distancia da tradução racional da equipe de Laplanche, em direção à

metalinguagem. Este tipo de tradução, entretanto, pode engendrar uma regressão infinita

de significações, pois encara a tradução como paráfrase. Ao mesmo tempo, no entanto,

24 Tradução = Übersetzung = “salto sobre um abismo” [em alemão] 25 Podemos imaginar que isto seja a causa do excesso de notas de tradução em um texto.

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esse passo libera o tradutor de Freud de seu uso conceitual científico e restrito dos

termos do glossário, permitindo-o “aflorar” as palavras, o que permite também a este

último tipo de tradutor explorar as palavras para além do sentido. “O tradutor do texto

freudiano escuta o inconsciente lingüístico que “aflora” nas palavras, e as diferenças

entre línguas que dizem a mesma coisa por vias diferentes26”.

Como Freud tem uma ligação de pertencimento às duas línguas, – o alemão e o

francês – seu texto psicanalítico é uma forma de tradução intralingual, na qual o sentido

pode estar entre as duas línguas, cada língua seria a análise da outra. Segundo a frase de

Goldschmidt, “uma língua é o refúgio da outra, ela é o seu anelo diante da expressão

impossível dela mesma27”.

1.3.1 Riqueza lingüística em Freud

Houve um colóquio internacional, realizado em Arles (França), que se chamou

“Traduire Freud: la langue, le style, la pensée”. Nesse colóquio, Goldschmidt proferiu

a seguinte comunicação “Style et pensée chez Freud”, na qual foi mostrado que a

relação entre Freud e a escritura tornou-se inseparável de sua relação à língua e à prática

analítica. Se pensarmos na psicanálise como teoria que pode se associar à tradução,

pensamos:

C’est précisement le pouvoir régressif du jeu de mots: la soudaine ouverture sur l’insoupçonné, sur le fond de langue, qui interesse Freud; la littérature est le domaine où la langue remonte en arrière comme si c’était là qu’elle pouvait rejoindre ce qui la fait parler; la littérature, c’est en somme la structure régressive des langues. [É principalmente o poder regressivo do jogo das palavras: a repentina abertura ao insuspeito, ao fundo da língua, o que

26 MICHAUD (2005) p.113 27 GOLDSCHMIDT, G-A, op. cit., p.59-60

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interessa Freud; a literatura é o domínio no qual a língua retorna como se fosse lá que ela pudesse reencontrar o que a fez falar, a literatura, é em suma a estrutura regressiva das línguas.] 28

Nesta mesma comunicação, Goldschmidt apresenta a relação dos Irmãos Grimm

com os temas freudianos. Sabe-se que uma criança alemã de sete anos já possui todo o

vocabulário da língua, ao contrário de uma francesa, o que se deve à origem do idioma:

uma é anglo-germânica, isto é, sem mediação de outra língua, outra é neolatina,

derivada do latim. Os Irmãos Grimm escreviam contos infantis, porém nestes contos

encontraremos uma bela pesquisa filológica e a história da língua alemã que se liga às

origens lingüísticas. Os temas freudianos são, apenas, literariamente, arquétipos

germânicos, que remontam à origem do próprio Sigmund Freud. A partir da literatura

dos Irmãos Grimm, o íntimo da língua alemã é exposto de modo a constituir tais

arquétipos, encontrados também no nazismo, por exemplo. Seria isto devido ao acaso?

O que interessava a Freud era talvez fazer uma mesma pesquisa arquetípica

como os Irmãos Grimm fizeram, de forma a encontrar a travessia das línguas, e não a

origem da língua e da história. Freud buscava o que fazia as línguas “falarem”, “tratava-

se, para ele, “de buscar o reconhecimento, de estabelecer o contrato para além do

pertencimento”29.

Outro fato interessante foi o emprego de palavras francesas nos textos escritos

pelo psicanalista. A literatura científica alemã o fazia normalmente, era um hábito.

Freud as empregava buscando elaborar um campo lexical que remetesse à origem, ao

início da história humana; ele, que pesquisava freqüentemente a origem dos problemas,

não somente a solução, principalmente como o paciente os adquiriu e o motivo.

28 Cinquièmes assises de la traduction littéraire p.69-78 (tradução minha) 29 Ibid p.74 (tradução minha) – “Il s’agit pour lui d’en déceler la reconnaissabilité, d’en établir le contrat par-delà l’appartenance”.

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Permito-me então comparar a ciência psicanalista à tradução intralingual, já explicitada

anteriormente.

A arte de Freud é aqui compreendida como a escolha das palavras corretas que

não podem ser substituídas por nenhuma outra; é a apropriação tal qual: a palavra se

relaciona ao texto e o texto se relaciona à palavra. Este “idioma” freudiano não é

acessível a todos os seus leitores, uma vez que a riqueza da língua, utilizada em seu grau

máximo, não é tão despropositada. Freud faz quase que uma tradução no momento da

escritura, ele explora o texto de maneira a revelar toda a profundeza da língua

(encontrada em suas pequenas histórias e casos).

1.3.2 N. do T. (Notas do Tradutor)

Como dizia Jacques Derrida, a propósito de todo texto sagrado – texto que é sagrado quando nele se manifesta o particular, o intraduzível – um texto “só sobrevive se é, ao mesmo tempo, traduzível e intraduzível [...]. Totalmente traduzível, ele desaparece como texto, como escritura, como corpo da língua. Totalmente traduzível, mesmo no interior do que acreditamos ser uma língua, ele morre logo.30

No momento da tradução, o sujeito-autor31 encontra alguns problemas, que se

originam da irredutibilidade entre as línguas. Mesmo ainda nesses casos, porém, é

preciso traduzir, é preciso encontrar alguma solução seja de qual forma for. Outro grave

problema é o risco de “desenraizar” demais o texto, perder o contexto original do texto.

Então, a noção de acolhimento, de interrupção da relação para com a sua cultura e, em

conseqüência, a abertura à cultura do outro – da língua fonte – é o princípio da

30 MICHAUD (2005) p.118 31 Para Michaud e Goldschmidt, o tradutor é também um autor, uma vez que ele vai assinar o texto em questão, no momento do trabalho da tradução. Então, esse sujeito – sujeito pois ele tem sua individualidade e sua compreensão própria – é, ao mesmo tempo, tradutor e autor.

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hospitalidade em Derrida, que pode ser válido nas traduções. Para os casos nos quais a

unidade da palavra é ameaçada, há, por vezes, o emprego de perífrases ou de glosas,

ainda que nosso autor apresente seu descontentamento quanto ao uso de glossários. Ele

prefere a disseminação do sentido da palavra, uma polissemia, a congelar este jogo em

um glossário. Devemos ressaltar, entretanto, que no domínio técnico seu uso é bem

aceito por todos.

Quanto à utilização das notas de pé de página, as tão famosas notas do tradutor,

alguns leitores pensam que esse recurso torna a leitura do texto mais pesada, outros

confessam nem mesmo a observarem ali, alguns poucos as lêem, mas é um último

recurso, que declara a “impotência do tradutor”, segundo Derrida.

A questão da disseminação de uma escolha de tradução, por Jacques Derrida é

observada no ensaio “La Pharmacie de Platon” (1972), em que a palavra pharmakon é

utilizada para designar a escrita. A apresentação da invenção da escrita, pelo inventor,

ao rei, foi interpretada por este último como um veneno, já que subtrairia seus poderes.

Este pharmakon, no entanto, segundo seu inventor seria um remédio para tornar os

homens menos esquecidos. A palavra pharmakon se presta a esse jogo, pois apresenta

dois sentidos opostos: veneno e remédio, como o seu similar, droga, em português.

Outro exemplo está em um verbo da língua portuguesa: relevar. Seria destacar

ou não destacar, esquecer? A ambigüidade é comum em textos a serem traduzidos e

deve-se estar sempre atento aos múltiplos sentidos, a fim de saber qual a melhor escolha

para efetuar uma tradução, e até mesmo saber se é possível manter tal ambigüidade (o

que torna o trabalho ainda mais difícil).

No caso da tradução das Obras Completas de Freud, Michaud acredita que as

notas de tradução seriam indispensáveis para uma equipe que não privilegia a

conotação. Ainda que seja uma prova de impotência do tradutor, sabe-se que cada texto

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traz consigo seu luto, logo, ela é reveladora de um importante trabalho de reflexão (o

que tanto Goldschmidt quanto Derrida propõe). A autora critica justamente a ausência

das notas nessa tradução e a sua substituição por um livro, Traduzir Freud, uma espécie

de nota gigante escrita sob a coordenação de Laplanche.

Em outro extremo, na lógica de Goldschmidt, a nota do tradutor deixa de ser

empregada em um registro específico e torna-se um objeto de uso generalizado. Tudo se

transforma em margem, paratexto. Segundo esse autor, a nota seria indispensável para a

compreensão da reescritura do texto freudiano, ou seja, a glosa explicativa e a tradução

seriam inseparáveis.

Faço aqui, portanto, uma proposta tradutória que lembra a tarefa do tradutor

relacionando-se com a cultura, – uma reconciliação possível entre as línguas – que

permite o posterior crescimento e desenvolvimento do original. Todo o processo

tradutório pode ser discutido, privilegiando-se a disseminação da palavra e a reflexão

que ela nos propõe, justamente o que Derrida destaca na realização de uma tradução.

1.4 A dívida da tradução

O fantasma de um encavalamento de línguas, de um engavetamento inconsciente acontecendo entre as línguas, precisamente no ponto em que elas falham e se ausentam do dizer, é talvez uma maneira de se esquivar da desordem (trabalho de luto conviria melhor) do tradutor.32

Já é evidente para nós que o tradutor, ainda que apresente dificuldade em

respeitar a unidade da palavra, deve traduzir sempre. Justamente tal desafio da tradução

é interpelado pela reflexão tradutológica.

32 Ibid (2005) p.115

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Derrida explicita que não há tradução sem perda, sem luto, logo a disseminação

da palavra é uma prova do desajuste, do resto. O tradutor necessita saber o que é

relevante conservar, já que é fato que a tradução estará sempre endividada. A tradução

seria, portanto, da ordem da releitura (ou da reescritura). Segundo o filósofo, o fato de

uma língua não se deixar apropriar provoca sempre inúmeros movimentos de

apropriação, ou melhor, tentativas de apropriação, de que a tradução seria um dos

exemplos. O mais idiomático, o mais próprio de uma língua não se deixa apropriar,

resiste sempre à tradução, e, ao mesmo tempo, demanda sempre tradução. Em Torres de

Babel, um ensaio sobre o texto de Benjamin, Jacques Derrida tenta analisar a essência

da língua, do que chama de “seu caráter espectral”, ou seja, nem vivo nem morto. Ao

comentar este mesmo ensaio, Derrida faz referência ao endividamento, definindo a

tarefa do tradutor como “missão outorgada pelo outro”.

Pode-se constatar que na tarefa do tradutor haveria a responsabilidade de um

herdeiro pela sobrevida do idioma; o tradutor é aquele que oferece novos

acontecimentos de escritura, capazes de conferir um novo corpo à essência da língua.

Esta, quando fosse traduzida, seria capaz de viver além de seu tempo, sua época

(histórica), pois cada vez que ela é traduzida, ascenderia para outra língua, ganhando

outro status e propiciando outras leituras. Para tanto, o tradutor não deve pensar que o

texto existe somente para comunicar; ele existe para acolher novas leituras habilitadas

para fertilizar e vivificar tal original, capacitadas mesmo de ressuscitá-lo.

Ou seja, a tradução seria responsável pela sobrevida de uma obra, uma

sobrevida, – para além da vida - que imagina uma primeira morte do original. Para

Derrida, essa morte pode acontecer pelos modos de dizer, pela banalização, pela

repetição e pela mecanização, e caberia à tradução, assim como ao ato poético em geral,

ressuscitar a língua, mas, sem jamais conseguir quitar completamente a dívida (pelos

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motivos já expostos de resistência à tradução e de irredutibilidade de um idioma a

outro), faz com que a tradução recomece sempre como um trabalho de luto. A tradução

não participa do original, ela pertence a sua sobrevida. A dívida para com o original

passou a existir no momento de Babel, condenação bíblica que originou a dívida

lingüística que transformou a tradução em um dever, um destino do qual os homens não

se podem furtar: a tradução infinita.

Procurando “se fazer um nome”, fundar ao mesmo tempo uma língua universal e uma genealogia única, os semitas querem colocar a razão no mundo, e essa razão pode significar simultaneamente uma violência colonial (pois eles universalizariam assim seu idioma) e uma transparência pacífica da comunidade humana. Inversamente, quando Deus lhes impõe e opõe seu nome, ele rompe a transparência racional, mas interrompe também a violência colonial ou o imperialismo lingüístico. Ele os destina à tradução; por conseguinte, do seu nome próprio traduzível-intraduzível, ele libera uma razão universal (esta não será mais submetida ao império de uma nação particular), mas ele limita por isso a universalidade mesma: transparência proibida, univocidade impossível. A tradução torna-se a lei, o dever e a dívida, mas dívida que não se pode mais quitar. 33

Para o autor, é possível discutir todo o processo tradutório, devendo-se, para

tanto, privilegiar a disseminação da palavra e a reflexão que esta propicia, sendo isso o

que Derrida valoriza na realização de uma tradução. Em Derrida há ênfase na dívida

para com a origem, pois o que “chega” também não “chega” – a tradução é a invenção

de uma língua de chegada. Sua experiência de privação da língua originária indica que

há um chamado por uma exigência de rigor; é preciso pensar para inventar um passado,

e isso em si já é tradução, já que tal dívida pôde ser paralela à herança que recebeu.

Todo o pacifismo pressupõe um ideal colonizado; e se tudo é tradução, desmitifica-se o

caráter universal da linguagem. O exercício da tradução é o que “pacifica”.

33 DERRIDA (2002), p. 25

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1.5 O mito da tradução e a linguagem

Na Bíblia, em Gênese, há o conceito da linguagem (parole) como sopro divino

em sua forma e função. A linguagem é compreendida como a parte divina do ser

humano, quase como um sinônimo do próprio Deus, ou como parte mais importante do

discurso (nas línguas oficiais). Mesmo as línguas que não têm grafia são classificadas a

partir de línguas que a possuem, como o reconhecimento de flexões verbais que,

porventura existam – pode ser que não a apresentem em sua gramática. Talvez um

estudo feito pelo próprio povo ágrafo sobre a sua língua inserisse outras categorias

diferentes destas já existentes e conhecidas, o que nos permite imaginar que a

nomenclatura não é ideal, pois ela não é universal. Há uma grande inadequação

(dificuldade ou impossibilidade) de se generalizar a gramaticalização.

Se a linguagem é aqui compreendida como a fala, a frase abaixo nos mostra a

dificuldade de compreender e classificar estas línguas encontradas. Esta dificuldade

admitida pelo famoso Mito de Babel, a diversidade das línguas impostas por Deus como

um castigo aos homens. 34

É essencial, para abordar uma língua estrangeira, de se liberar das categorias e da estrutura da língua materna. Nós nem sempre sabemos como o fazer. Durante muito tempo na Europa e particularmente na França, procuramos calcar as gramáticas de acordo com o latim. Da mesma forma, as primeiras descrições de língua “exóticas”, feitas freqüentemente por missionários, refletem a estrutura das línguas de seus autores.

[Il est essentiel, pour aborder une langue étrangère, de se dégager des catégories et de la structure de la langue maternelle. On n’a pas toujours su le faire. Pendant longtemps en Europe et singulièrement en France, on a cherché à calquer les grammaires sur celle du latin. De la même façon, les premières descriptions de langues “exotiques”, faites souvent par des missionnaires, reflètent la structure des langues de leurs auteurs.35]

34 Não entrarei aqui nos propósitos explicativos de tal Mito, nem pela Bíblia, nem por outras contestações que existem. 35 YAGUELLO, p. 73. (tradução minha)

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Retornando ao Mito, focalizemos o pensamento único versus a língua única: a

ameaça da globalização de uma única língua, no caso o inglês, teve o efeito contrário,

ocorrendo a revitalização das línguas regionais, o pluriculturalismo que buscava

preservar a multiplicidade das línguas. Pode-se questionar se é possível que alguma

língua interprete alguma cultura (sistema) e sua experiência. Penso que não. A partir

deste castigo, o homem que era nômade, deixou de o ser, pois ele não podia mais se

comunicar facilmente. Desta maneira, ele tornou-se parte de um grupo, no qual ele se

inseriu por semelhanças, sejam físicas, sejam de caráter. Podemos considerar que neste

instante, o homem tornou-se bilíngüe, pois ele se adaptava aos diferentes registros e

níveis da língua. O que se pode verificar até nossos dias.

Observou-se também que, até a Contra-Reforma, os católicos dificultavam aos

fiéis o acesso ao livro sagrado, proibindo-o mesmo, para que a leitura de suas linhas não

fosse mal compreendida; ao passo que os protestantes utilizavam freqüentemente a

Bíblia como estudo, citando-a por inúmeras vezes. A instituição católica quis, talvez,

ser mais importante que o próprio livro divino. No entanto, a difusão da leitura do livro

sagrado prosperou e diversas interpretações sobre Babel surgiram. Aqui, não me

ocuparei de discuti-las, pois não inúmeras. Vale a noção que Babel serviu para o

surgimento de linguagens, bem como para a formação de um estado nacional.

1.6 A formação de um estado nacional

O estado nacional tem como objetivo a reunião de uma nação, onde aquele que

dela quer fazer parte deve ter algo em comum com os outros componentes deste grupo.

Bom, esse “algo” pode ser a língua, por exemplo, como o francês, o catalão etc. A

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língua é empregada algumas vezes como o objeto de distinção entre os povos, logo sua

importância é considerável. Humboldt escreveu uma frase em que compara a língua a

uma obra de arte:

A língua, e isto diz respeito principalmente as diversidades evocadas aqui, pode ser comparada por um lado à arte, pois ela aspira como ela a apresentar sensivelmente o invisível. Pois então mesmo que ela não pareça se elevar acima da realidade no indivíduo e no uso cotidiano, a imagem completa de todos os objetos e não somente destes aqui, mas também de suas ligações e afinidades invisíveis, é apresentada enroladas em seu seio. E como o quadro do artista, ela fica mais ou menos fiel à natureza, esconde ou mostra mais ou menos a arte, apresenta seu objeto de preferência em tal ou tal tom de cor. [La langue, et cela concerne principalement ses diversités évoquées ici, peut être comparée d’un côté à l’art, car elle aspire comme lui à presenter sensiblement l’invisible. Car lors même qu’elle ne semble pas s’élever au-dessus de la réalité dans l’individu et dans l’usage quotidien, l’image complète de tous les objets et non seulement de ceux-ci, mais aussi de leurs liaisons et affinités invisibles, est présente enroulée en son sein. Et comme le tableau de l’artiste, elle reste plus ou moins fidèle à la nature, cache ou montre plus ou moins l’art, présente son objet de préférence dans tel ou tel ton de couleur.36]

Para a formação deste estado nacional, devemos ter alguns parâmetros, alguns

« grupos » os quais cada indivíduo deve se inserir. Primeiramente, ao pensarmos na

carteira de identidade, no documento, o registro oficial dado pelo governo territorial; ele

é composto, a depender do país, pelo nome e sobrenome, data e local de nascimento,

assinatura, fotografia e impressão digital. A organização destes traços reunidos oferece

um ser único, ainda que alguns destes traços venham a coincidir com o de outras

pessoas. Ainda que isso ocorra, o ser designado neste documento é um ser único do

mundo.

Muitos fatos podem incidir sobre uma identidade determinada: língua, modo de

viver, crenças, relação parental, preferência sexual, gostos artísticos ou culinários,

influências francesas, européias, ocidentais, que se misturam às árabes, berbères, 36 HUMBOLDT. p. 159 (tradução minha)

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africanas, muçulmanas etc. Esta lista é mais extensa, talvez até infinita: pertencer ou não

a uma certa cidade, bairro, grupo, time de futebol ou qualquer outro esporte, a um

partido político, a uma associação, sindicato ou empresa, a um fã-clube, ter os mesmos

traços físicos etc.

Pertencer a um grupo é, de início, um dado efetivamente natural: você sempre pertence a um grupo qualquer, em razão do seu nascimento. [...] Essa organização sempre se dá no interior de uma relação com o mundo. O que significa que o que é comum àqueles que se organizam desse modo é o que normalmente chamamos de interesses.37

A identidade individual é fundamental para a formação de um estado nacional,

pois são estas identidades que vão construir “a identidade” deste estado. E sabemos que

para que esta formação aconteça, é preciso que estes grupos individuais estejam em

harmonia, que a convivência seja pacifica e amigável. 38 A experiência de Derrida com

a língua e a literatura francesa, ele que era um magrebino e morava em uma colônia

francesa, é positiva para a formação do caráter de sua identidade. Ele, que recebeu a

língua francesa em uma alta escala de formalidade, a acolheu de uma forma

surpreendente. Acrescento aqui a experiência vivida por Hannah Arendt, uma alemã

judia, em plena época do nazismo, que foi expatriada para os Estados Unidos. Ela

confessa sobre sua língua alemã, língua materna:

Eu sempre me recusei, conscientemente, a perder minha língua materna. Sempre mantive uma certa distância tanto do francês, que antes eu falava muito bem, quanto do inglês em que escrevo agora. [...] ... sempre tenho um sotaque muito perceptível, e muitas vezes não me exponho de forma idiomática.39

37 ARENDT, p. 138 38 Mesmo sabendo que há muitos estados-nações que vivem em completa desarmonia, com muitas guerras e violência, não tratarei de tal assunto aqui. 39 ARENDT, p.134

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Ora, muitos fatos podem ser parâmetros para a inserção em um grupo particular,

já citados anteriormente. Mas, todos estes fatos juntos criam apenas uma única

identidade, uma vez que a identidade não pode ser partilhada. A noção de território é, a

cada dia, menos geográfica, pois a identidade pode atualmente se compor por várias

características diferentes. A identidade é repleta de múltiplos pertencimentos, o que traz

a dificuldade de obter uma “única” identidade. Não seria um tanto paradoxal?

O individuo tem a necessidade de pertencer a um grupo, o que o faz estar, ao

mesmo tempo, em passagem por cada grupo. Se este indivíduo quer integrar um estado

nacional, ele deve trazer algumas características em comum com os outros. Então, a

identidade é um conceito problemático, pois pode ser definida a partir da religião, da

filiação, etc. Poderia então a identidade se fundar no coletivo? Não, isso é uma ilusão.

Se identificar é se distinguir, é ser único, um caso particular, o que Maalouf nos

transmite: “a identidade não se compartimenta, ela não se reparte nem em metades, nem

em terços, nem em locais aprisionados. Eu não tenho muitas identidades, eu apenas

tenho uma.” 40. Ainda que cada estado nacional tenha a necessidade de uma língua

nacional, esta língua pode ser ou não formadora da identidade do individuo nacional,

como é o caso discutido em O Monolinguismo do Outro. Assim sendo, o que veremos a

seguir é se realmente tal estado nacional embasa-se na linguagem e se é realmente

possível possuí-la.

40 MAALOUF, page 10 (tradução minha de “L’identité ne se compartimente pas, elle ne se réparti ni par moitiés, ni par tiers, ni par plages cloisonnées. Je n’ai pas plusieurs identités, j’en ai une seule.”)

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Capítulo 2: Uma experiência de reflexão

2.1 À luz da tradutologia

Toda tradução é em si mesma uma interpretação. Ela traz em seu ser, sem lhe dar voz, todos os fenômenos, as aberturas e os níveis de interpretação que se achavam ali, em sua origem. E a interpretação não é nada mais do que a realização da tradução que ainda se cala [...] Conforme a sua essência, a interpretação e a tradução são unas e a mesma coisa.41

Nesta dissertação serão adotados os parâmetros propostos por Antoine Berman,

a reflexão da tradução sobre si mesma, a partir de sua natureza de experiência, a

tradutologia. Sabe-se que a tradução pode muito bem dispensar a teoria, mas não pode

dispensar de forma alguma o pensamento, que sempre se dá em um horizonte filosófico,

como queria Benjamin, que pensou a tradução como linguagem filosófica da reflexão e

da experiência (preceitos da tradutologia). Logo, a tradutologia seria esta “disciplina”

sem objeto pré-determinado capaz de articulá-las conscientemente, semelhante à

gramatologia de Derrida e à própria psicanálise. Esta “disciplina” proporia que o estudo

da tradução se enraíze no horizonte filosófico, podendo ultrapassar seus motivos

lingüísticos.

A tradutologia não é em si mesma uma interpretação. Ela traz em seu ser, sem

lhe dar voz, todos os fenômenos, as aberturas e os níveis de interpretação que se

achavam ali, em sua origem. Ela traz consigo o conceito de intertextualidade, o que

pode ser interpretado como o resultado das transações entre as culturas já caracterizadas

pela pluralidade, o que mostra que “traduzir” é em si mesmo uma árdua tarefa.

41 BERMAN (1999)

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A ambição da tradutologia não é de construir uma teoria geral da tradução. Ao

contrário, demonstraria de antemão que uma teoria como essa não poderia existir, uma

vez que o espaço da tradução é babélico, ou seja, recusa toda totalização; o que é

claramente mostrado no discurso em O Monolinguismo do Outro.

A tradutologia, segundo Berman:

[...] se liga ao espaço moderno da literatura, no qual a relação com a crítica e com a tradução se tornou consubstancial ao ato de escrever. A tradutologia não ensina a tradução, ela não poderia ser uma ciência positiva, pois o espaço da tradução é intersticial, está situado nos hiatos, nos intervalos, mas sim, ela desenvolve de maneira transmissível a experiência da tradução.

42 (grifo meu)

Ainda de acordo com o mesmo, o par “experiência e reflexão” viria substituir a

oposição usual entre “teoria e prática”, e com isso seria possível ampliar o sentido da

palavra tradução, interessando os leitores no relato da experiência com as línguas, o que

conferiria maior grau de autonomia ao discurso dos tradutores, não mais restrito,

eventualmente, às notas, às quartas-capas, aos prefácios e às orelhas dos livros que

traduzem.

Poderíamos constatar, portanto, que no caso de Jacques Derrida o processo de

aquisição da língua materna engendrou a necessidade de se entretraduzir, processo esse

que Derrida procuraria apreender por meio da autobiografia. Provavelmente, este

processo causou tanto conflito ao filósofo por conta de seu olhar crítico pelas

culturalidades às quais tinha acesso. Ora, a estratégia de jogo duplo (vozes constativa e

performativa) e de narração negativa provoca a necessidade de tradução e a sua

conseqüente deriva. Além disso, o que estaria sempre em questão seria a

(in)comunicação e a necessidade de tradução permanente, como já dito anteriormente, o

apelo à tradução presente no discurso do autor-tradutor.

42 BERMAN (1999)

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Sendo assim, busco relacionar formas de regulação do escrito pelo escrito, na

literatura, na tradução e na crítica e desenvolver novos parâmetros para o estudo do

processo tradutório, substituindo, como sugere Berman, a oposição “teoria x prática”

por “experiência x reflexão”.

2.1.1 A ética da tradução

Segundo Berman, em sua obra La traduction de la lettre ou l’auberge du

lointain (1999), a tradução é normalmente definida como um processo comunicativo,

transmissão de “mensagens” de uma língua-fonte para um língua-alvo. Essa definição

coloca as traduções técnicas em paralelo às literárias, pois ambas são envios de

mensagens de uma língua-fonte para uma língua-alvo. Um texto técnico, porém, tem

como objetivo transmitir determinadas informações, transmissão de conteúdos,

enquanto a obra literária não tem como finalidade esta transmissão, ainda que ela a

contenha. Ela abre à experiência de um mundo. Cada vez que este último tipo de

tradução se mostra como um “ato de comunicação”, ela é inevitavelmente não-

comunicativa.

De acordo com sua teoria da tradutologia, é inevitável que o tradutor deva

também pensar no público, na legibilidade de sua tradução, o que acaba por criar o

vulgarizador científico, aquele que “traduz” em linguagem especial, científica, como se

a mesma fosse comum. O essencial, portanto, acaba se perdendo, pois há uma

popularização da língua científica. A popularização busca uma transmissão de

conteúdos de uma forma “natural” nesta língua, bem como as possibilidades de

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compreensão não-científicas. Isto exige uma reflexão aprofundada que se perde por

completo no caso da vulgarização. E popularizar o original não significa o vulgarizar.

Daí surge o questionamento de Benjamin: seria a tradução feita para aqueles que

não compreendem o original? Ora, a explicação é tripla, uma vez que a visão mais

profunda da tradução o é: ela é ética, poética e filosófica. Filosófica no que a tradução

possui uma certa ligação com a verdade. Quanto à visão poética, nós sempre falamos da

fidelidade e exatidão, duas palavras fundamentais na tradução. Palavras que retomam ao

caráter do homem em vista a si mesmo, do outro, do mundo e de sua existência. Neste

domínio, o tradutor possui o espírito de fidelidade e exatidão, porém sabe-se que é

praticamente impossível ao tradutor ser extremamente fiel ao original, faltando-lhe

experimentação e exercício.

O ato ético consiste em reconhecer o outro e receber o outro enquanto outro.

Acolher o outro, o estrangeiro, ao invés de recusá-lo ou de dominá-lo. Uma cultura pode

se apropriar de obras estrangeiras, – como o fez Roma – sem jamais ter para com elas

ligações dialógicas. A tradução, a partir de sua visão de fidelidade, pertence

originariamente à dimensão ética. Ela é, em sua natureza, animada pelo desejo de abrir

o estrangeiro enquanto estrangeiro em seu próprio espaço de língua. Isto vai

historicamente de encontro à visão ocidental, que quase sempre se apropriou e

“sufocou” a vocação ética da tradução. É por esta razão que Berman diz que a tradução

é, em sua essência, o “abrigo do estrangeiro” (l’auberge du lointain).

Em uma obra, é o “mundo” que, cada vez de uma forma, é manifestado em sua

totalidade. Toda comunicação trata de algo parcial, setorial. A obra que trata sempre de

uma totalidade é manifestação. Além do mais, ela é manifestação de um original, de um

texto que não é somente primeiro em relação às suas derivas translingüísticas, mas

também primeiro em seu próprio espaço de língua. A visão ética, poética e filosófica da

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tradução consiste em manifestar em sua língua esta novidade pura preservando seu

caráter de novidade. A visão ética do traduzir, justamente por prestar-se a acolher o

estrangeiro em sua corporeidade carnal, não se pode conectar à letra da obra. Se a forma

da visão é a fidelidade, é preciso dizer que somente há fidelidade – em todos os sentidos

– na letra. Ser fiel a um contrato significa respeitar suas estipulações, e não o “espírito”

do contrato. Ser fiel ao “espírito” do contrato é uma contradição em si mesmo. A

finalidade da tradução é acolher em língua materna essa literariedade, o que é

explicitado ao longo dos textos derridianos.

2.1.2 O estrangeiro

O particular interesse desta dissertação pela tradutologia apresentada por

Berman situa-se principalmente na aplicação de algumas de suas hipóteses

tradutológicas fundamentais. Na obra L’Épreuve de l’étranger (1984), Berman foca a

importância da tradução literal como estratégia capaz de ratificar a alteridade do texto

fonte, de suas sistematizações e de seu estrangeirismo. A concepção bermaniana de

tradução literal rejeita toda tentativa de anexação ou de apropriação do texto fonte por

uma visão etnocêntrica da tradução. Berman opõe uma visão ética da tradução (ou seja,

o estranho, o “descentramento”, a abertura ao outro) à visão comunicativa da tradução

que produzirá uma má tradução, geralmente coberta de transmissibilidade e opera uma

negação sistemática do estrangeiro da obra estrangeira. Uma tradução etnocêntrica

acarretará um sofrimento do objeto traduzido, ao ser privado do seu código. Sobre essa

discussão, Berman cita Derrida (1995): “um corpo verbal não se deixa traduzir ou

transportar em outra língua. E é exatamente isso que a tradução deixa passar.”

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Na obra em questão, o conceito de “estrangeiro” é definido dentro de um

contexto de transferência cultural, contexto no qual a “estranheza” do texto fonte é

destacada ao ser acolhida como verdadeiramente “estrangeira”. A partir deste ponto o

conceito de alteridade, próprio do domínio dos estudos culturais, pode fazer parte dos

estudos da tradutologia, - “ciência” que foi definida anteriormente – uma vez que a

tradução é verificada como forma de prática lingüística e cultural que define e situa o

“outro”, o “estrangeiro” em um quadro fixo. Apenas recentemente o estudo deste

“outro” cultural foi aprofundado na tradutologia, o que remonta à questão da

traduzibilidade cultural. Em uma visão desconstrutivista, toda forma de crítica textual

tem como fundamento uma oposição binária, aqui exposta pelo “si” e pelo “outro”. Esta

oposição criaria, por conseguinte, uma fronteira estável capaz de gerar uma

essencialização das diferenças culturais. No domínio desta nova “ciência”, o conceito de

intertextualidade pode ser interpretado como o resultado das transações entre as culturas

já caracterizadas por seu pluralismo.

Em contrapartida, é possível questionar quais seriam as motivações ligadas à

produção de um texto que apresentasse tais características de alteridade. Primeiramente,

a língua da escrita literária fonte estaria submetida aos imperativos de uma construção

de identidade de um novo sujeito-alvo, “não estrangeiro”. Sendo assim, em relação a

esta dominância pressuposta à língua-alvo, o autor opõe um desejo de escrita cultural

em sua própria língua “estrangeira”; um desejo psicolingüístico de sua (do estrangeiro)

língua que se opõe ao sócio-político da língua alvo.

Usualmente em tradução, o “outro” cultural raramente é verbalizado de modo

direto. Ele é, na maior parte das vezes, filtrado e adaptado, logo verbalizado de modo

indireto, através da consciência do tradutor. Haveria, portanto, um debate entre a

escritura e a cultura apto a debruçar-se nos aspectos ligados ao processo e a produção de

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tradução. Os partidários deste posicionamento (escritura/cultura) pressupõem uma visão

de cultura como constituída de códigos e representações, que desta forma deveriam ser

inseridos no discurso. A tradução não é mais, então, limitada à simples transferência

entre o “si” e o “outro” cultural, mas também se trataria de um papel de regulador

cultural, como é o caso, por exemplo, do contexto, que adquire um valor funcional.

Gostaria de aproximar esta visão a de Lawrence Venuti, estudioso da tradução e

tradutor. Seus principais relatos dizem respeito ao processo de “domesticação” que

muitos textos sofrem ao serem traduzidos, além da referência aos valores culturais que

estão envolvidos nessa atividade. Ao escrever sobre a questão da ética que perpassa

todo o processo tradutório, ele considera o ato de traduzir como uma prova na qual o

tradutor negocia as diferenças culturais e lingüísticas do texto de partida à luz de um

conjunto de diferenças tiradas da cultura/língua alvo. Assim, na representação do

traduzir, o texto “estrangeiro” se vê investido de significações e características

provindas da cultura/língua receptora. A inscrição dos elementos da língua/cultura alvo

no texto fonte é foco das preocupações de vários teóricos, como os citados Berman e

Venuti, que sugerem uma reflexão ética da tradução ao visar conservar o “estrangeiro”

do texto fonte.

O paradoxo desta opinião, entretanto, reside no fato que toda ética devotada a

combater a inscrição da cultura/língua alvo no texto original apenas pode ser formulada

ou praticada a partir dela mesma (seu estilo, seus dialetos, seus diferentes registros de

discurso etc.). Isto significa que a especificidade lingüística e cultural do original

somente pode ser marcada de forma indireta, pelo seu “deslocamento” na tradução,

através de uma diferença introduzida nos valores e instruções da língua/cultura alvo.

Assim, a tradução, por definição, encobre a heterogeneidade inerente a certos textos.

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Venuti, sugerindo uma aproximação essencialmente sourcière, reconhece que

toda tradução é, por definição, assimiladora, pois em toda tradução os elementos do

texto de partida são assimilados na cultura da língua alvo. As traduções sourcières, não

obstante, para Venuti, são necessariamente menos assimiladoras que as traduções

ciblistes. Encontram-se elementos de fonte em uma tradução cibliste como elementos de

alvo na tradução sourcière. A diferença fundamental entre as duas teorias reside no fato

que a tradução cibliste tende a “naturalizar” os traços característicos da língua fonte,

enquanto a tradução sourcière tem como missão acentuar os elementos provenientes do

texto fonte. Ou seja, embora se dividam como dois enfoques distintos, dificilmente

haverá uma tradução que seja unicamente sourcière ou cibliste.43

Em outras palavras, o conceito bermaniano de L’Épreuve de l’étranger é

particularmente apto a elucidar e explicar a prática tradutológica atual. A estratégia de

desterritorializar a comunicação intercultural feita por alguns escritores promove as

variadas questões de identidade e a reclamação pelo seu espaço próprio é classificada

por Berman como “escrita de tradução”. Este estilo de escrita estaria, por conseguinte,

fundamentado, tanto ideológico como socioculturalmente, uma vez que suscitaria

questões importantes em relação às escolhas na tradução, questões as quais apenas se

pode esperar responder pelo caminho de uma ética séria e global de tradução. As teorias

pós-modernas de tradução, dentre as quais cito a tradutologia, permitem distanciar-se da

dicotomia existente na base da maioria das teorias de tradução (sourcière x cibliste),

dicotomia a qual ficou claro não ser estritamente conveniente a ser realizada.

Todo o discurso presente em O Monolinguismo do Outro remonta para o

acolhimento do estrangeiro e para uma hospitalidade estranha à relação

colonizador/colonizado. Através dessa obra, no entanto, retemos que é possível discutir

43 source = fonte /cible = alvo (em francês).

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todo o processo tradutório, privilegiando a disseminação da palavra e da reflexão que

ela nos propõe, justamente o que Derrida, Berman e Venuti valorizam na realização de

uma tradução. O significado de um texto, seja traduzido ou não, somente se delineia, e

se cria, a partir de um ato de interpretação, sempre provisório e temporariamente, com

base na ideologia, nos padrões estéticos, éticos e morais, nas circunstâncias históricas e

na psicologia que constituem a comunidade sociocultural. Ou seja, se não podemos

abandonar o que somos e nossas crenças ao nos relacionarmos com o mundo real, estas

mesmas relações não podem ser abandonadas enquanto leitores; os padrões que

possuímos projetam nossa significação e compreensão de um texto.

Pode-se aferir que os conceitos de original e fidelidade não podem ser aplicáveis

a textos, pois ambos não existem enquanto objetos estáveis. Se tudo que nos é

apresentado parte de uma prévia interpretação, o resultado não é necessariamente o

mesmo para grupos distintos socialmente, logo toda tradução é “fiel” apenas a esta

leitura (a qual foi produzida a partir de circunstâncias inerentes a cada indivíduo)

2.2 A différance

A significação como différance de temporização é postulada pela estrutura classicamente determinada do signo. Esta pressupõe que o signo “diferindo a presença, só é pensável a partir da presença que ele difere e em vista da presença que se busca re-apropriar.44

Já sabemos que a desconstrução se interessa pelas tensões, pelos jogos de força e

artifícios históricos fronteiriços, o que insere a obra O Monolinguismo do Outro neste

44 SANTIAGO, p. 23

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pensamento. Viver a tensão da linguagem, falar em seu nome próprio é a promessa que

circula esta obra. Para tanto, a différance, noção derridiana que aponta não mais para a

“origem”, mas para um pensamento que retoma o tema da diferença e que não mais se

apóia na presença como princípio orientador, e sim, para a alteridade, está explícita

nesta obra, em seu caráter sensível e inteligível, colocando em cena o indecidível, o

“entre” que acolhe e que excede a oposição presença/ausência. Tal como a tradutologia,

a oposição é substituída pelo par experiência/reflexão, que na obra corpus desta

dissertação é a experiência do autor tida como reflexão para a pretensa apropriação

lingüística por alguma comunidade – o que busco “desconstruir” aqui.

No ponto em que intervém o conceito de différance, com a cadeia que o acompanha, todas as oposições conceituais da metafísica, na medida em que elas têm por referência última a presença de um presente (sob a forma por exemplo, da identidade de um sujeito, presente a todas as suas operações,...), todas essas oposições metafísicas (significante/significado; sensível/inteligível; fala/escrita...) tornam-se não pertinentes. Elas acabam, todas, em um momento ou outro, por subordinar o movimento da différance à presença de um valor ou de um sentido que seria anterior à diferença, mais originário que ela e que, em última instância, a excederia e a comandaria. Trata-se ainda da presença daquilo que nós chamamos anteriormente de ‘significado transcendental’.45

A différance revela a impossibilidade do discurso sem uma promessa elementar.

Mesmo que esta promessa não seja cumprida, mesmo que ela se realize como perjúrio,

como acontece na obra de Derrida, a mesma possibilidade é requerida. Cada vez que

alguém fala em nome de sua cultura ou invoca sua identidade cultural, ainda assim se

pratica a linguagem, ainda assim se percebe a singularidade das múltiplas alienações da

língua, reconhecendo-se como identidade alienada, seja por aspectos lingüísticos ou

culturais, a experiência que a língua permite é a experiência do exílio, da disseminação,

experiência essa que é universal. O movimento da différance não se faz subordinado à

45 DERRIDA (2001 c) p.35-36

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presença de um valor ou de um sentido que lhe seria anterior; na ausência de tal

significado, resta apenas o “jogo” no seu movimento incessante, jogo este que se

vincula a uma abertura irredutível, é uma implicação que não encontra possibilidade de

controle, um jogo disseminante, de busca de uma origem, que, em verdade, não é

origem, é repetição. “A différance seria, pois, o movimento de jogo que produz as

diferenças, os efeitos de diferença.”46

Como a estrutura da língua também é uma repetição, ela é “submissa” à

memória e ao testemunho, posto que nada pode acontecer realmente sem alguma

memória e alguma promessa. Talvez seja por esta razão que a língua própria,

determinada em seu uso, por alguma comunidade que a faz “viver”, resiste como o

último valor de verdade, do sentido; o que explica a sacralização da língua enquanto

suporte de uma cultura, povo ou nação que queira provar sua autenticidade. “Minha

pátria, minha língua” é uma frase comumente empregada como defesa da manutenção

de determinados padrões lingüísticos. Evitar a descaracterização do idioma mantém-se

como a possibilidade de salvação. Daí a íntima relação entre pensar a língua e pensar a

identidade nacional, a noção de pertencimento e todos os seus conceitos correlatos,

como cidadania e soberania nacional. O próprio filósofo sofreu a perturbação da

identidade pela pretensa língua comunitária, o francês, bem como a privação da

cidadania francesa por algum período. Seria então a cidadania o que responde pela

inserção em algum grupo? Há um caráter estranho em estabelecer tal critério, pois não

se escapa do pertencimento, assim como não se escapa da língua. Aliás, o filósofo nem

mesmo busca dela escapar, o que busca é manter o olhar crítico sobre qualquer tentativa

de essencialização do pensamento. Daí a différance como:

46 SANTIAGO, p.24

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A différance como espaçamento (movimento inseparável da temporização-temporalização) estabelece a possibilidade de conceitualização no interior do sistema lingüístico. O conceito significado nunca está presente de forma plena (o que concederia ao presente o poder de “síntese”), mas constitui-se a partir do traço nele dos outros elementos da cadeia ou do sistema, fazendo-se necessário que “um intervalo o separe daquilo que não é ele para que ele seja ele próprio.47

A différance não busca separar o pensamento do culto identitário, da mesma

forma que indica que não podemos dele escapar. Indicar que haveria uma possibilidade

de escape seria desrespeitar a singularidade de cada caso, a particularidade de cada

situação histórica. Por isso a desconstrução atua na margem, à borda da impossível

determinação dos sentidos, apoiados pela vigorosa relação entre pensamento e

linguagem, relação esta que não se submeteria a imposições de verdade, por conta de

nem mesmo acreditarmos na verdade.

2.3 Uma impossível apropriação

O monolinguismo do outro seria em primeiro lugar esta soberania, este lei vinda de algures, sem dúvida, mas seria também e em primeiro lugar a própria língua da Lei. E a Lei como Língua. A sua experiência seria aparentemente autônoma, porque tenho de a falar, a esta língua, e de a apropriar para a ouvir como se eu próprio ma desse; mas ela permanece necessariamente, assim o quer no fundo a essência de toda a lei, heterônoma.48

Ter algo como próprio, ser dono de algo, é uma relação mercantil muito forte em

nossa cultura ocidental. Porém, seria verdadeiramente possível ser dono de sua língua?

47 Ibid, p.24 48 DERRIDA (2001 b), p. 56

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Essa é a grande discussão de O Monolinguismo do Outro e que busco aqui interpretar.

A apropriação de uma língua é, por vezes, possível e necessária, interpretando a língua

como um bem próprio que deve ser defendido, comum a um grupo, apta a identificar

determinada comunidade lingüística. Seria um elemento de certificação de

pertencimento, seria a “uni-identidade” da língua, o caráter uno e comum, idêntico a

todos os “pertencentes” deste grupo lingüístico, que põe a língua como um duplo objeto

de apropriação e identificação. No tocante às línguas, a assimilação da linguagem ainda

é uma forma de ameaçar as culturas, pois as formas mais extremas de violência política

incluem o fantasma idiomático, como foi o caso vivido pelo filósofo na Argélia.

Sua autobiografia expõe uma situação singular, uma ligação particular ao

francês, uma reflexão que alimenta a insuficiência da apropriação e identificação a este

idioma, e que o acompanham:

Eis a minha cultura, ela ensinou-me desastres em direção aos quais uma invocação encantatória da língua materna precipitou os homens. A minha cultura foi imediatamente política. “A minha língua materna”, dizem eles, falam eles, quanto a mim, cito-os e interrogo-os. Pergunto-lhes, na sua língua, evidentemente, para que me ouçam, porque isto é grave, se eles sabem bem o que dizem e de que falam. Sobretudo quando celebram tão levianamente a “fraternidade”, no fundo é o mesmo problema, os irmãos, a língua materna, etc.49

A descrição de tal situação não é meramente autobiográfica: ela serve como

pressuposto para a “desconstrução” da língua como propriedade de um grupo. Embora o

filósofo use seu próprio nome para descrever a tensão vivida, há uma universalidade em

seu discurso, dado que o monolinguismo que o faz falar de uma língua materna é

sempre o monolinguismo do outro – e tal outro é universal. A compreensão de seu

monolinguismo como sendo do outro, visto a citação de início deste capítulo, seria a

49 Ibid, p.49

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revelação de uma cultura não como característica natural, mas como essência colonial,

como uma lei heterônoma, uma autonomia que vem do outro, que chega até o indivíduo,

o qual é obrigado a respeitá-la. Interpretar a língua como uma propriedade natural,

como aquilo que nos integra em uma comunidade, vai de encontro à proposta de

Derrida, pois para ele, “a língua é a lei que outros nos impuseram”, e não “o seio que

sugamos desde a infância”, metaforicamente falando, que recebemos abertamente.

Como a relação entre a mãe e o bebê, que recebe a fala da mãe como uma língua de

chegada, sem algo que o pré-exista, é o posicionamento do monolinguismo do outro –

que em um primeiro momento é a mãe – pois serve como ponto de partida para a

emergência do sujeito.

Não é raro ouvir discursos em que o idioma é a propriedade que permite incluir-

nos em um grupo, ser a nossa identificação, bem como a sempre presente ameaça a tal

propriedade, por conta dos estrangeirismos, das palavras fora de uso, enfim, que

poderiam causar algum tipo de apagamento deste pólo identificador. Estando a língua

sempre ameaçada, a necessidade de reafirmação de seu estatuto seria imprescindível, da

mesma forma que a sua proteção e salvação, salvação essa que apenas a própria

linguagem é apta a oferecer. No entanto, a ameaça está no por vir da língua: não se tem

acesso a locutores futuros, não se pode controlar a interpretação, o que explicaria,

talvez, os discursos nacionalistas autoritários de pertencimento a linguagens. A língua é

sempre do outro, do colono, autoritária, pois nos ensinam a pensar de acordo com seus

pressupostos, nos “colonizam”.

[...] independentemente do que queira ou faça, não pode entretecer com ela (língua própria) relações de propriedade ou de identidade naturais, nacionais, congenitais, ontológicas; porque não pode acreditar e dizer esta apropriação senão no decurso de um processo

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não natural de construções político-fantasmáticas; porque a língua não é o seu bem natural...50

É através de tal caráter inapropriativo da língua que surgem tentativas de

classificação lingüística, por pureza ou riqueza, da mesma forma que alguns tentam

impô-la a grupos ou contabilizam seus falantes. Para os que fazem isso, é preciso

guardar a hegemonia de sua expressão. A língua é objeto de exigências políticas, pois

não vemos ninguém renegando a sua língua nem tampouco sua cultura; muito pelo

contrário, o que é observado é que há um forte valor em “guardar” sua língua, dita

materna, preservá-la como a um tesouro, interpretando que uma comunidade lingüística

é algo homogêneo e organizado. Ora, assim como o pressuposto do diálogo, que implica

superficialmente uma equiparação entre os falantes, mas na verdade é a imposição de

uma das partes e aceitação imediata por parte da outra, - sem mesmo se “rendre

compte” disto - o ideal de uma comunidade homogênea é falso, pois tal ideal está

escondido na alienação ao que figura como lei, ao que vem de “fora”, ao que é

colonizador. Neste momento, surge um importante questionamento: se tal

monolinguismo é sempre do outro, sempre das alteridades que me cercam e que me

compõem, como continuar a falar, se somos construídos por outros? Somos então

alienados?

Para responder a tais questões, é necessário buscar uma dupla certeza: estamos

realmente certos que não mais falamos a língua do outro, uma vez que é a mesma língua

que falamos, por conta de seu caráter repetitivo? As ilusões de pertencimento e domínio

já foram “deixadas para trás”? Afinal:

Como é que se pode dizer e como saber, com uma certeza que se confunde consigo mesmo, que jamais se habitará a língua do outro, a outra língua, quando ela é a única língua que se fala, e que se fala

50 Ibid, p.37-38

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na obstinação monolíngüe, de modo ciosamente e severamente idiomático, sem jamais por isso estar nela em sua casa?51

Estas duas hipérboles apresentadas pelo desconstrutor são, no fundo, a mesma

coisa da dupla certeza que se busca possuir, duas certezas que além de uma experiência

singular da língua são também uma forte resposta política às dinâmicas de relação para

com a língua. Para tanto, ele apresenta uma marca gramatical que indicará o caráter

decisivo de sua reflexão: o uso do imperativo. “[...] inventa pois na tua língua se fores

capaz ou se quiseres ouvir a minha, inventa se podes ou queres dá-la a ouvir, a minha

língua, como tua...52” Tal imperativo exclama a invenção como tarefa do tradutor, ou

qualquer um que esteja em posição de tradutor (como até mesmo um leitor), exclama o

interesse na dinâmica de construção de conteúdo. Se “nada é intraduzível num sentido,

mas num outro sentido tudo é intraduzível, a tradução é o outro nome do impossível53”,

o filósofo nos indica que o tempo todo há tradução, quando se lê há uma nova leitura e

uma nova “tradução”, sendo, portanto, inesgotável, sendo então tudo tradução, algo

inatingível. Se a tradução é o outro nome do impossível, ao mesmo tempo estar na

língua é tradução todo o tempo, só o impossível acontece: se só o possível ocorre, isto

que ocorre, na verdade, não é acontecimento, é apenas uma reprodução, continuação,

condições de possibilidade. Logo o impossível, apenas o impossível acontece, não

sendo este acontecimento uma mera confirmação do previamente esperado, perpetuação

ou prolongamento do mesmo. Se tal afirmação pode talvez soar paradoxal, esta

impossibilidade é refletida na necessidade de invenção do idioma, a necessidade de uma

referencialidade aberta, um evento de leitura que, se ocorreu, estava em outro local. As

várias alteridades que atravessam o leitor, e que são acolhidas, não são características

51 Ibid, p. 88 52 Ibid, p. 89 53 Ibid, p.88

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prévias do eu deste leitor: ora, toda leitura é então acontecimento, é invenção.

Entretanto, é preciso que haja responsabilidade nesta invenção, não é algo meramente

subjetivo como a interpretação possa vir a sugerir – sendo uma simples revolta contra a

ordem do suposto sentido, é antes um interesse em desmontar as ilusões de identificação

e aproximação, a busca das armadilhas do monolinguismo.

2.4 A promessa do acontecimento

A ruptura com a tradição, o desenraizamento, a inacessibilidade das histórias, a amnésia, a indecifrabilidade, etc., tudo isto desencadeia a pulsão genealógica, o desejo do idioma, o movimento compulsivo para a anamnese, o amor devastador pelo interdito.54

Inicio este subcapítulo com a confissão derridiana de seu amor pelo francês,

língua interdita, da mesma maneira que esta confissão não é restrita apenas ao filósofo:

é o que ocorre com todos os que estão na linguagem, posto que tais objetos inatingíveis

sempre fizeram parte dela. Não é sem risco que a língua é feita como intento de uma

promessa, o que pode ser o meio mais radical de agravar a “raiva apropriadora” de que

o filósofo tem consciência, esta raiva que se impossibilita na falta de propriedade

natural no corpo da língua. Como apenas promessa que a língua o é (promete uma

presença), a língua nunca chega a acontecer como tal, e o pensamento desconstrutor

desubstancializa a noção do acontecimento.

Ao mesmo tempo, esta tradução intraduzível, este novo idioma faz acontecer, esta assinatura faz acontecer, produz acontecimentos na língua dada à qual é ainda preciso dar, por vezes acontecimentos

54 Ibid, p. 92

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não constatáveis ilegíveis. Acontecimentos sempre prometidos mais do que dados. Messiânicos. Mas a promessa não é nada, não é um não-acontecimento.55

Esta é a essência da promessa, um acontecimento messiânico, sem conteúdo

“por vir”, “é a abertura estrutural, a messianicidade, sem a qual o próprio messianismo,

no sentido estrito ou literal, não seria possível. A menos que isso seja justamente,

talvez, o messianismo, esta promessa originária e sem conteúdo próprio.56” Promessa

que sustenta o desejo de reconstituição da língua mãe, da ante-primeira língua destinada

a traduzir essa memória sem origem. Esse desejo vem da própria linguagem: o sujeito é

arrastado por esse desejo, desejo de primeira língua, desejo de uma prévia, prestes a

presentificar a intenção da língua. O que há em cena é um acontecimento que não

acontece, um espectro, que na figura de um arquivo se destina a dar as boas-vindas às

alteridades. 57

O sujeito se constitui através das línguas de chegada, – várias línguas singulares,

alteridades que o perpassam – sendo, portanto, pré-subjetivo. Esse mesmo sujeito que,

pressupostamente, transportaria o desejo, a verdade o desejo já o antecedem, pois já está

presente nas línguas de chegada. Mas o que este desejo deseja? É um desejo daquilo que

nunca se teve, por isso é desejo de invenção. Se fosse desejo de algo que se perdeu, não

seria de invenção e, sim, de retomada. Por conseguinte, a relação que se possui com o

que é interpretado é algo que nunca existiu, nunca houve comunidade para com o objeto

da promessa. Não há pertencimento com o objeto, tal é o caráter da différance. Como

cada acontecimento se dá no indivíduo, e tal indivíduo se constitui a partir da sua

monolíngua, nada é mais que a língua do outro, uma vez que esta unidade já estaria

contaminada pelo outro.

55 Ibid, p. 99 56 Ibid, p. 101 57 cf. apontamentos de aula do curso “Tópicos Especiais de Filosofia Contemporânea”, ministrado pelo Profº Dr. Paulo César Duque Estrada.

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Conseqüentemente, a língua não é. “[...] Ela é rastro e o que a reúne é sua

estrutura messiânica de promessa, de espera sem horizonte de espera, enfim, sua

dispersão58”. É a partir de uma estrutura desta forma que o monolinguismo do outro é

possível, não através de uma “unicidade a vir”, mas de uma singularidade. O

monolinguismo não é unidade, não é sinônimo de hospitalidade nem de nenhum

processo de homogeneização; prometido em cada “ato de fala”, ele é, ao contrário, a

cada instante possível.

No decorrer deste discurso, a voz desconstrutora é a apresentação pura do

sentido,59 pois quando se fala já há contaminação: nunca apenas se fala, desconectado

de um contexto de ação. A alteridade é estrutural à linguagem, pois o monolinguismo é

sempre atravessado por outro através de uma estrutura de promessa, que já existe

previamente na linguagem. A promessa anuncia que o monolinguismo não é

transferência de sentidos. Há promessa no que há desejo, desejo de se obter o desejado,

– “espera sem horizonte de espera” – um horizonte último na apreensão do ser.

Exatamente por não haver um horizonte de promessa não se tem consciência do que

esperar: quando falo, não sei o que me espera no final da frase, portanto há promessa e

há ausência de consciência. Há uma ameaça, fator que a desconstrução não deixa

esquecer que é necessário para o pensamento.

Mas por esta razão mesma que o que reúne os indivíduos, enquanto estrutura do

monolinguismo, é o habitar a borda, e esta reunião é, identicamente, unicidade sem

unidade e dispersão: “este monolinguismo não faz um consigo mesmo60”, nunca é

unidade e ele “fala uma língua de que está privado61”. Esta é a estrutura do louco

58 CONTINENTINO, p. 123 59 Lembrar dos Speech Acts (Atos de Fala) de Austin; que indicam que os atos de fala são felizes quando se cumprem, quando há as condições para que estes ato enunciativos se cumpram, eles buscam assegurar a apreensão, ter um resultado e demandar respostas. (cf. OTTONI, 1998) 60 DERRIDA (2001 b), p. 97 61 Ibid, p. 93

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acontecimento, que integra e desintegra, que faz do apagamento textual o seu vigor para

a posteridade, que faz do luto a sobrevida da monolíngua, mantendo-a espectral na

busca de sua origem.

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Capítulo 3 - O caráter deste monolinguismo

3.1 O que há de hospitalidade na monolíngua

Ainda uma palavra para epilogar um

pouco. O que aqui delineio, não é sobretudo o começo

de um esboço de autobiografia ou de anamnese, nem

mesmo um ensaio tímido de Bildungsroman

intelectual. Mais do que a exposição de mim, isto

seria antes a exposição do que, para mim, terá

obstaculizado esta auto-exposição. Do que me expôs,

portanto, a este obstáculo, e me atirou contra ele. O

grave acidente de circulação no qual não páro de

pensar.61

Em uma grande angústia, o título O Monolinguismo do Outro promete uma

língua que já fala a língua – francesa – sobre a qual a própria obra trata. Mas a obra trata

também de sua própria língua como língua estrangeira, tal é a realidade do título que

duplica, complica e traduz a obra: quantas línguas, e mesmo qual língua? Poderíamos

falar da língua em uma única língua? Surge então de imediato uma experiência

paradoxal, a de alteridade como indissociável daquilo que tradicionalmente se associa a

uma identidade: uma cultura, um território, uma língua. O título já promete uma língua

inapropriada, tão inevitável quanto impossível; uma promessa na qual toda língua

desafia a língua, uma apropriação de algo que não o pode ser, um testemunho no qual a

língua é a condição originária e, ao mesmo tempo, o obstáculo.

O idioma francês foi na Argélia francesa a língua do outro, maître ou colono,

enquanto o árabe, estranho e inquietante, era a língua do vizinho, do outro como o

próximo mais próximo... uma língua, várias línguas sempre interditas. Seria, portanto,

difícil dizer um “eu me lembro” válido quando é preciso inventar sua língua e seu

61 DERRIDA (2001 b) p.103

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próprio “eu”, inventá-los ao mesmo tempo, além da extensão da amnésia que provocou

esta dupla interdição. Afinal, “como dizer um ‘eu recordo-me’ que valha, quando é

preciso inventar e a sua língua e o seu eu, inventá-los ao mesmo tempo, para além do

desprendimento de amnésia que desencadeou o duplo interdito?62”.

É preciso lembrar (o que é um tanto quanto problemático nesta obra), nesta

língua e com o risco de perdê-la, que o idioma francês de Derrida é produto de uma

história de língua indissociável de sua língua, o que afeta profundamente a constituição

do eu (je): pelo acesso proibido a toda língua não-francesa na Argélia (árabe dialetal ou

literário, berbère etc.), na época de sua infância, mas igualmente, de forma deturpada,

diferente e perversa, acesso proibido ao francês. Ou seja, o que está sempre em jogo é a

(in)comunicação e a necessidade de tradução permanente.

Além da exemplaridade e do universal, a desconstrução fala da língua que ela

não fala. Paradoxal? A língua é a expressão dos desejos e sofrimentos nesta obra, das

expectativas e das preces, as quais não estão situadas em nenhum lugar, posto que a

língua é do outro, vem do outro, e apenas existe nessa relação com o outro. Uma das

hipóteses centrais deste livro, o rastro de um acidente eterno, é partilhado por uma tênue

linha superficial do movimento da desconstrução. A monstruosidade de uma língua

outra, esse acidente interno, e a imposição colonial da língua do colonizador (maître)

formariam de fato o entorno de uma ferida na obra em toda língua, condição

violentamente indispensável de toda promessa, de toda memória, de todo acolhimento,

de toda monolíngua e de “mais de uma língua”63.

62 Ibid, p. 46 63 Derrida, em “É favor inserir”, anexo da obra O Monolinguismo do Outro, na página dois, confessa: “O diagnóstico, presta-se de boa vontade, mas não sem reserva, aos que aí querem ler uma hipótese

genealógica, a autobiografiazinha de um gosto imoderado pelo que se chama a “desconstrução”. De que

a única definição alguma vez arriscada, a única formulação explícita, foi um dia, é melhor lembrá-lo

aqui ‘mais de uma língua’. Esta definição também aparece em: “Se tivesse de arriscar, Deus me valha, uma única definição da desconstrução, breve, elíptica, econômica como palavra de ordem, diria sem

frase: mais de uma língua.”[DERRIDA, Jacques. Mémoires pour Paul de Man, Galilée, 1988, p.38]

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A língua é de fato o que torna possível essa articulação de uma singularidade

excepcional da estrutura universal que nos fixa a uma única língua, ao mesmo tempo,

proibindo-nos de apropriá-la. Falar uma língua não significa possuí-la, pois não existe

propriedade natural na língua, assim como uma revolução ou emancipação pode

confirmar uma herança lingüística, mas não a propriedade da língua. “A minha língua, a

única que me ouço falar e me ouço a falar, é a língua do outro 64”, posicionamento ético

que guia o pensamento do filósofo e exemplificado através do caso árabe. O

monolinguismo desse outro intensifica o terror que já assombrou a desconstrução: nós

recebemos a língua em uma escala muito mais ampla que a criamos. Esta relação para

com a língua sempre partiu de nós mesmos, somos destinados, “entrelaçados” a uma

língua como a um endereço.

O árabe era importante para manter as relações hierárquicas, para ordenar e ser

ordenado, o que muito influenciou o seu ensino enquanto língua estrangeira nas

instituições de ensino. Já o francês que era ensinado desconsiderava quaisquer sotaques

regionais, práticas ou hábitos grupais, ou seja, o idioma praticado era fortemente

metropolitano, o que gerou a imagem de uma França espectral. Quem dominasse esse

padrão lingüístico teria um melhor posicionamento social e possuiria representação de

força mais ampla. É válido comentar que, atualmente há um movimento inverso ao que

ocorreu anos atrás, como a parasitação do idioma. Hoje, a Argélia busca recuperar seu

renome intelectual árabe e luta para conseguir reaver Jacques Derrida como um legítimo

pensador argelino. Talvez se o filósofo ainda estivesse vivo (faleceu em 2004),

rejeitasse tal proposta, visto que nunca se sentiu confortável em tal cenário africano.

Ele, que saiu de sua terra natal aos 19 anos, e somente retornou alguns anos mais tarde,

64 Ibid, p. 39

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após sua celebridade, confessou não reconhecer lá um ambiente tão sedutor, como foi

para ela a “paisagem” francesa.

3.1.1 Uma possível substituição?

O francês era apropriado enquanto substituto da língua materna, uma situação

extremamente dramática para africanos, que tiveram suas fronteiras apagadas e que

tiveram suas diferenças geográficas e políticas descartadas. O francês também

reafirmava a proibição de reconhecimento do mundo de fora das paisagens naturais e

sociais da Argélia, uma vez que apenas construía espectros, imaginários da França. Em

Derrida, foram justamente esses espectros os responsáveis por tamanho sentimento pela

literatura francesa, pois lá ele poderia despregar-se da paisagem a que tinha acesso. É

nesta impossível apropriação de uma língua, nessa intimidade interior a partir da qual

existe as línguas, que é preciso politizar mais uma vez o combate contra os fantasmas

nacionalistas de apropriação da língua.

Ao relembrar quase que linearmente a experiência do tempo da infância e da

adolescência na Argélia, utiliza a língua francesa, que nunca pôde chamar de língua

materna, para retomar esta doença da colonização e o remédio que só a escrita lhe pode

oferecer (pharmakon65), enquanto espaço para despregar-se da paisagem. Daí o

monolinguismo também ser apresentado enquanto efeito de dominação.

O filósofo tem uma ligação essencialmente forte com o francês, língua esta que

possui formas que ele julga como “névrotiques”, neuróticas, o que explicaria, talvez, seu

estilo tão particular de escrita, tido pelas pessoas como de difícil acesso.

65 cf. DERRIDA (1972)

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66

O meu apego ao francês assume formas que às vezes julgo ‘neuróticas’. Sinto-me perdido fora do francês. As outras línguas,

aquelas que melhor ou pior leio, decifro, falo às vezes, são línguas

que nunca habitarei. Aí onde ‘habitar’ começa a querer dizer

alguma coisa sobre mim. E morar. Não estou apenas

desencaminhado, perdido, condenado fora do francês, mas tenho o

sentimento de honrar ou de servir todos os idiomas, numa palavra,

de escrever ‘mais’ e ‘melhor’ quando agudizo a resistência do meu

francês, da ‘pureza’ secreta do meu francês, aquela de que falava

antes, a sua resistência encarniçada à tradução: em todas as

línguas, incluindo um certo francês.66

Ele lê e fala em outras línguas, porém ele se sente totalmente perdido fora do

francês; pois são línguas as quais ele não habitará jamais. Portanto, Derrida possui um

sentimento de servir a todos os idiomas quando ele trata da resistência secreta de seu

francês e da resistência intrínseca à tradução. Segundo o próprio, o intraduzível

demanda a economia poética de um idioma, já que ele confessa não cultivar esse

intraduzível. “Nada é intraduzível num sentido, mas num outro sentido, tudo é

intraduzível.” Portanto, “a tradução seria o outro nome do impossível.”67

A monolíngua guarda a herança dessa amnésia ligada às condições históricas de

expropriação colonial: ela guarda, mas ela destrói também, ela guarda no que ela

destrói. Isto sempre foi uma contradição muito dolorosa a Derrida, para quem o motivo

da “pureza” jamais deixou de ser questionado. A memória desse eu o impulsionava à

perda do sotaque em situação pública, legitimando o poder francês dentro da “colônia”

argelina.

Não me orgulho disso, não faço disto uma doutrina, mas é assim: o

sotaque, qualquer sotaque (francês) que seja, e acima de qualquer

outro o forte sotaque meridional, parece-me incompatível com a

dignidade intelectual de uma palavra pública. (Inadmissível, não é?

Mas confesso-o.)68

66 Ibid, p.85-87. 67 Ibid, p.88 68 Ibid, p. 63

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67

Não podendo referir-se à cultura árabe-berbère como sua, sendo a metrópole

francesa distante de seus olhos, a qual apenas tinha acesso pela literatura, conforme dito,

menos ainda a cultura judaica, pois não foi inserido em seu sincretismo, Derrida sente-

se “desencaminhado, perdido, condenado”69 fora do idioma francês. Daí o seu

monolinguismo, uma ruptura, um estranhamento, destinado a traduzir a sua memória

sem origem.

Esta mesma monolíngua conserva a memória de uma língua que não foi jamais

falada, pois nunca falamos apenas uma língua (“não se tem nunca senão uma única

língua”70) e ela promete – espera sem o horizonte de espera – uma língua que ela ainda

não a fala. É esta não-identidade a si originária que oferece à língua, ao mesmo tempo

completamente insubstituível, entretanto sempre disponível para substituição, para a

outra língua.

A língua, monstruosidade ao interior da intimidade mais insubstituível, comporta

nela mesma o desdobramento da prótese, enquanto originária, em ser ela mesma a

substituição. Há uma língua para a língua, sempre em falta, tida como testemunho, no

flagrante de um delito de invasão em sua própria morada, demonstração de sua própria

monstruosidade da prótese. É a estranha familiaridade da prótese da origem, a prótese

do subtítulo da obra, dificilmente visível e dificilmente legível, que resulta no

monolinguismo do outro enquanto prótese, substituto, da origem.

69 Ibid, p. 87 70 Ibid, p. 99

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68

3.2 Tripla dissociação no monolinguismo

No capítulo sete, Derrida remonta a uma tripla dissociação que sua comunidade

(judaica-magrebina-argelina) sofreu. Eram elas:

1. Foi, em primeiro lugar, privada e da língua e da cultura árabe ou berbère

(mais propriamente magrebina);

2. Foi também privada e da língua e da cultura francesa, numa palavra,

européia que não é para ela senão um pólo ou uma metrópole afastada,

heterogênea à sua história;

3. Foi finalmente, ou para começar, privada da memória judaica, e da história

e da língua que é suposto serem suas, mas que num dado momento deixaram

de o ser. Pelo menos de um modo típico, para a maioria dos seus membros e

de modo suficientemente “vivo” e interior. 71

Vale ressaltar que além de ser magrebino – ou seja, ele nasceu na região

denominada Magreb – ele era, ao mesmo tempo, um cidadão francês, embora ser

magrebino não signifique uma cidadania. Derrida se dizia um e outro, e ambos de

nascença. O fato de ser franco-magrebino, para ele, não era uma riqueza de identidades,

mas sim um problema de identidades. O que caracterizava esse problema era

principalmente o sentimento de exclusão, proveniente do fato de pertencer e não

pertencer à língua francesa, que era a única que possuía (uma vez que o francês não era

a língua falada em seu país, mas era a língua oficial por conta da colonização). Outra

parte do problema era o temor da possibilidade de perder a cidadania que lhe havia sido

concedida, pois algo semelhante já havia acontecido com os judeus da Argélia: estes

ganharam o direito à cidadania francesa através do decreto Crémieux em 1870 e em

1940 a perderam, tendo sido retirada pelo Estado francês. Três anos mais tarde a

reouveram.

71 Ibid, p.76-79.

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Já do ponto de vista lingüístico, ser um judeu na Argélia, tal como o filósofo o

era, significava não ter praticamente nenhum acesso à língua e à cultura árabe ou

berbère. Também era não dispor de nenhum idioma interior à comunidade judaica, –

dado às diferentes comunidades judaicas da Europa central e oriental – como o yiddish,

que poderia constituir uma língua comum familiar. Bem como era receber o francês

como a língua da metrópole, uma língua prestigiada, apenas encontrada através da

nobreza que habitava do outro lado do mar.

Pois bem, para Derrida lhe faltava esse mar. O mar separa a realização do desejo

pela mãe-metrópole72, a cidade da língua materna, um país longínquo, um local

espectral, um alhures mítico.

Porque, como nós sabíamos, com um saber obscuro mas firme, a

Argélia não era de modo nenhum a província, nem Argel um bairro

popular. Para nós, desde a infância, a Argélia era também um país,

Argel uma cidade num país, num sentido estranho desta palavra que

não coincide nem com o Estado, nem com a nação, nem com a

religião, nem mesmo, ouso dizê-lo, com uma autentica

comunidade.73

O alhures mítico discute a questão da origem, visto que se trata de um local não-

localizado. Isto informa que o que existe são reenvios a algo não pontual, havendo um

caráter insituável de tudo o que está na língua. A potência colonial, por sua vez, impõe

sua Lei e sua espectralidade através da figura de um mestre escolar, tendo como função

colonizar: alguém ensina e outros se sujeitam a aceitar determinado pensamento, não

havendo como escapar.

A violência é aguçada no íntimo do filósofo, pois ele não enxerga a origem, ele

não possui tal horizonte; somente deste modo pode-se perceber as violências coloniais.

72 Há o fato biográfico de a mãe de Derrida ter tornado-se afásica no final de sua vida, esquecendo, até mesmo, o nome do filho. Este fato dialoga com a fala afásica de Derrida, perdida no esquecimento de sua língua materna e de sua tradição. 73 Ibid, p. 59-60

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Fica assim facilitada a apropriação do francês como o substituto da língua materna,

permuta tanto mais dramática quanto as correlações que daí se estabelecem. As

diferenças geográficas e culturais são apagadas, bem como as fronteiras, sustentando,

contudo, o veto ao reconhecimento do mundo exterior às paisagens naturais e sociais

argelinas, paisagens que habitam seu mundo interior, seu imaginário.

Por isso nosso autor confessa que a literatura francesa foi o único ensinamento

escolar da Argélia que amou ter recebido, pois através dela experimentou um mundo

sem continuidade sensível para com o qual ele vivia, uma vez que ele lia uma literatura

capaz de criar uma realidade repleta de paisagens as quais ele não tinha acesso, não

conhecia. Era como uma vitrine da língua francesa.

Remonta-se, conseqüentemente, à tripla visão da tradução, pois aos judeu-

magrebinos, quando privados de seus referenciais lingüísticos supracitados, faltou o

exercício ético da fidelidade (visão poética), a ligação com a verdade da origem (visão

filosófica) e o reconhecimento do outro enquanto outro (visão ética). A tradução como

experimentação para esse grupo, incluindo Derrida, seria falha, apontando o problema

de alteridade presente no discurso da obra.

3.2.1 Uma estranha e pretensa identificação

O árabe era, em território argelino, ainda ensinado, a título de língua estrangeira,

em sua maior parte das vezes aos filhos de colonos franceses, para estimular a

comunicação com fins de dominação, seja nos trabalhos agrícolas ou para fins técnicos.

Significava “saber falar para saber ordenar e ser bem compreendido”. Isso para o

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71

filósofo era uma inquietante estranheza (Unheimlich74), pois ele sempre considerou a

língua árabe como a língua do vizinho, dado que sua experiência foi a de viver em um

bairro limítrofe, afastado, onde a segregação era “tão eficaz quanto sutil75”. Entendemos

que o francês invadiu esta língua do outro, destruindo-a e tomando seu lugar, o que

serviu para manter focos de xenofobia e racismo, motivadores da guerra civil que se

estende até hoje.

A língua seria esta lei a que se é obrigado respeitar, esta lei autônoma,

impositiva e atravessada pela alteridade. Como nós pedimos às línguas para serem um

pólo de identificação, a propriedade que nos permite dizer quem nós somos, e que este

pedido não pode jamais ser plenamente satisfeito, as línguas aparecem como

propriedades sempre ameaçadas, pois sua alteridade possível (palavras esquecidas,

palavras estrangeiras etc.) ameaça de impossibilidade essa identificação. A língua se

transforma assim em alguma coisa que não se trata somente de promover e desenvolver,

mas que se deve proteger.

Porque (o mestre) não possui como próprio, naturalmente, o que no entanto chama a sua língua; porque, independentemente do que

queira ou faça, não pode entretecer com ela relações de

propriedade ou de identidade naturais, nacionais, congenitais,

ontológicas; porque não pode acreditar e dizer esta apropriação

senão no decurso de um processo não natural de construções

político-fantasmáticas; porque a língua não é o bem natural, ele

pode justamente por isso historicamente, através de uma violação

de uma usurpação cultural, ou seja, sempre de essência colonial,

fingir apropriá-la para a impor como ‘a sua’.76

A língua é o que nunca se deixou de apropriar e essa apropriação deve vir de si

mesmo, posição ética que guia o pensamento de Derrida: “[...] eu não tenho senão uma

língua e ela não é minha, a minha própria língua é-me uma língua inassimilável. A

74 Conceito comentado por Freud, em seu ensaio “O Estranho”. Unheimlich (em alemão) = estranha familiaridade. 75 Ibid, p.53 76 Ibid, p. 37-38

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minha língua, a única que me ouço falar e me ouço a falar, é a língua do outro77”. Ainda

de acordo com o filósofo, toda cultura é violência: “qualquer cultura é originariamente

colonial. [...] Toda a cultura se institui pela importância unilateral de alguma ‘política’

da língua.78” Por isso, compreender seu monolinguismo próprio como monolinguismo

do outro volta a inverter os termos do problema. O que a língua institui - como língua

do outro, que impõe sua lei, que revela sua cultura - não é sua característica natural, mas

a sua essência colonial. Essa soberania de essência colonial, como foi classificada, traz

o monolinguismo que faz designar a língua que se fala como língua materna, que

deveria ser indefectivelmente conectada, é tida sempre como o monolinguismo do

outro, deste outro autônomo que se deixa atravessar por uma alteridade.

3.3 Sobre a diglossia do bilingüismo africano

A escrita africana de expressão européia já é, em grande parte, o resultado das

negociações entre os diferentes modos de apresentação – cultura da tradição oral

africana e os discursos narrativos europeus. Tal variedade é evocativa de duas tradições

e seria o resultado de um tipo de bilingüismo, natural à escrita pós-colonial. Neste

contexto, pode-se pensar que este resultado híbrido euro-africano já é, em si, tradução,

uma vez que mistura esse discurso narrativo oral da cultura-fonte colonizada e uma

cultura lingüística que aparece posteriormente como homogênea.

Normalmente, o escritor africano é um sujeito bilíngüe e bi-cultural, que possui

um bom domínio de seu idioma materno e também desta língua européia da escritura.

“Essa característica de mestiçagem cultural no escritor africano se manifesta em sua

77 Ibid, p.39 78 Ibid, p. 55

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obra por uma diglossia lingüística e literária que evidencia as relações de poder entre a

língua e a cultura do colonizado e a língua e a cultura do colonizador”79, de acordo com

Bandia. Vale ressaltar que Derrida não é um sujeito bilíngüe, como confessa em O

Monolinguismo do Outro. Deve-se observar que tal diglossia80 destaca também a

polêmica da identidade textual, de sua nacionalidade, bem como a construção de sua

referência geográfica/territorial, influenciando seus emissores.

Esta escritura diglóssica se opera pela mediação entre a perda da referência de

território lingüístico bem como da cultura do Outro, uma vez que cada língua possui sua

própria interpretação de mundo. Daí o sentimento de muitos escritores africanos de

resistir intimamente às normas lingüísticas e culturais da cultura colonizadora,

parasitando-as a fim de desconstruir sua estrutura pela interferência de estruturas e

culturalismos africanos. O que ocorreria na literatura africana seria a pretensa oposição

de dois códigos (africano x o outro), destacando que, tais escritores, os que operam

deste modo, estariam engajando-se em uma prática de manutenção da tradição oral

africana; – seja por enunciação, narração ou relação intertextual – ainda que perdendo

seus referenciais históricos e literários.

79 BANDIA (2001) – (tradução minha) “Cette caractéristique de métissage culturel chez l’écrivain africain se manifeste dans son oeuvre par une diglossie lingüistique et littéraire qui met en évidence les

relations de pouvoir entre la langue et la culture du “colonisé” et la langue et la culture du

“colonisateur”. 80 cf. NOVO DICIONÁRIO AURÉLIO, o vocábulo diglossia é definido como: “Numa sociedade, a existência de dois ou mais códigos distintos, cada qual deles com funções claramente diversas, determinadas pela estratificação social, mas em que apenas um deles goza de prestígio.”

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3.4 Cenário argelino

A região do Magreb, composta pela Argélia, Tunísia e Marrocos, distante de ter

a idéia de uma nação, é pensada como um lócus de travessia do global, uma vez que se

localiza entre o Oriente, o Ocidente e a África. Tal região é sinônimo de pluralidade

(lingüística, cultural e política), porém não se pode esquecer de sua exterioridade,

Une pensée-autre, telle que nous l’envisageons, est une pensée en langues, une mondialisation traduisantes de codes, de systems et des

constellations de signes qui circulent dans le monde et au-dessus de

lui… Chaque societé ou group de societés est un relais de cette

mondialisation. Une stratégie qui ne travaille pas activement à

transformer ce relais est, peut-être, condomnée à se devorer, à

tourner sur elle-même, entropiquement. 81 [Um outro pensamento, como o concebo, é um pensar em línguas, uma globalização por meio da tradução de diferentes códigos, bem

como de sistemas e constelações de signos que viajam ao redor e

sob o mundo... Cada sociedade ou grupo de sociedades é uma

parada e uma encruzilhada de estruturação global. Qualquer

projeto estratégico que não se dirija a esses locais e não os envolva

ativamente está, talvez, condenado a ser devorado, a voltar-se

contra si mesmo, entropicamente.]

Antes de tratar deste caráter plural, deve-se fazer uma breve contextualização

histórica da Argélia, país natal de Derrida.

A Argélia tornou-se colônia da França em 1834, durante a chamada “Era do

Imperialismo”. Apesar de a resistência à dominação francesa ter sido uma constante por

todo o período colonial, foi somente após a II Guerra Mundial (1939-1945) que

ocorreram os primeiros movimentos organizados em prol da independência argelina. A

FNL (Frente de Libertação Nacional) se constituiu como o principal grupo de

resistência organizada contra o domínio francês. Este grupo organizava dezenas de

ataques contra as tropas francesas, que, por sua vez, respondiam com maior envio de

soldados a fim de reprimir qualquer movimento emancipacionalista. 81 MIGNOLO (2003) p.115

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A luta pela independência se estendeu até 1962, quando o governo francês, após

a realização de um plebiscito, deu início às conversações com as lideranças argelinas

com o objetivo de negociar a paz e o processo de independência. Neste ano, a França

reconheceu a emancipação da Argélia através da assinatura dos acordos de Evian,

incluindo um cessar-fogo.

Logo em seguida a FNL declarou-se como partido único, sofrendo um golpe

militar três anos mais tarde. O novo presidente colocou a Argélia sob a órbita da União

Soviética e nacionalizou as empresas de petróleo francesas; já em fins dos anos 70, sob

o comando de outro presidente (Bendjedid), a Argélia buscou se aproximar do Ocidente.

Em 1989, a Argélia optou pelo pluripartidarismo, importante passo da história, bem

como limitando o poder ao prazo de cinco anos. Daí destacou-se o FIS (Frente Islâmica

de Salvação), compostos por pessoas que transformam princípios religiosos tradicionais

em ações políticas, os chamados fundamentalistas. Com uma proposta baseada nos

preceitos muçulmanos, o FIS conquistou um amplo espaço na política argelina, por ir de

encontro aos anseios da população muçulmana tida desde a época colonial como “povo

de segunda classe”. Foi feita a anistia política, instituição do árabe como língua oficial e

uma campanha contra os hábitos ocidentais foi lançada.

No entanto, em dezembro de 1991, mesmo com vantagem no primeiro turno das

eleições, o Exército recusava a vitória de um partido confessional. O presidente

Bendjedid foi deposto por um golpe militar em janeiro seguinte e milhares de militantes

e islâmicos foram presos. Como reação, grupos extremistas iniciaram suas atividades

terroristas e a partir daí, o país passou a viver em um clima de guerra civil. Desde 1999

há propostas de pacificação, a partir da Lei de Conciliação Civil, que ofereceu anistia

total a aquele que entregar sua arma, exceto se o portador participou de crimes

hediondos. Sabendo que as disposições desta Lei não se aplicam aos integrantes de

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atentados, o clima de guerra civil continua, pois muitos resolveram não se entregar. Não

se sabe até qual ponto a guerra pode chegar ou se a violência continuará a crescer, é

uma incógnita o futuro desta nação, que já foi considerada como exemplo de

desenvolvimento por países do “terceiro-mundo”82.

3.5 Khatibi x Derrida

Retornando ao caráter plural, é importante refletir que o Magreb, desde o século

XVI com a expulsão dos mouros da Península Ibérica, até a colonização francesa no

início do século XIX e a descolonização política na segunda metade do século XX,

sofre processos (des)colonizadores. E para a compreensão de tais processos, será

apresentada uma figura ímpar da obra de 1996.

Abdelkebir Khatibi é um filósofo marroquino que também argumenta a

colonização francesa no Magreb, tal como Derrida o fez. Talvez aí esteja a razão para

que ambos dialoguem, ainda que não explicitamente, em O Monolinguismo do Outro.

Khatibi apóia-se em seus dois conceitos-chave para estabelecer um paralelo à

Derrida: a “double critique” e “une pensée autre”. O primeiro seria a crítica dos

discursos imperiais, aquele responsável pela construção do Magreb como região, bem

como dos discursos que afirmam a identidade e as diferenças articuladas nos e pelos

discursos imperiais; sendo, portanto, considerado como uma estratégia importante para

a idealização de macronarrativas83 na perspectiva da colonialidade. Já o “outro

82 Ainda que sendo politicamente incorreta, uso esta expressão para nomear países colonizados recentemente, como o Brasil, por exemplo. 83 As macronarrativas, segundo Mignolo são precisamente “os lugares nos quais “um outro pensamento” poderia ser implementado, não para dizer a verdade em oposição às mentiras, mas para pensar de outra

maneira, caminhar para uma “outra lógica” – em suma, para mudar os termos, e não apenas o contexto

da conversação.” MIGNOLO (2003) p.106

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pensamento” seria uma forma de pensar que não seria inspirada em suas próprias

limitações e não pretende sujeitar e degradar; seria uma forma de pensar que é

coletivamente marginal e aberta, logo não é nacional, residindo aí seu potencial ético. A

“dupla crítica” é condição para o “outro pensamento”, somente realizável enquanto

diferentes histórias locais e suas singulares relações de poder. “Uma dupla crítica libera

conhecimentos que foram subalternizados, e a liberação desses conhecimentos

possibilita “um outro pensamento84”. No caso de filósofo marroquino, estamos na

interseção do francês (ocidental) e do árabe, tal como Derrida, mas não na reprodução

da epistemologia ocidental. Ele ainda propõe que o “outro pensamento” é manifestado

como contestação a grandes questões que hoje perpassam o planeta, rearranjando

geopoliticamente o conhecimento da forma, seja pelo “ocidentalismo (enquanto

imaginário dominante e autodefinição do sistema mundial moderno), seja pelo

orientalismo (um exemplo particular em que se localizava a diferença do mesmo)85”,

juntamente com as ciências sociais. O potencial desta “outro pensamento” é

epistemológico, pela crítica às limitações das tradições cristã e islâmica.

A modernidade inclui um conceito ‘racional’ de emancipação que afirmamos e presumimos. Mas, ao mesmo tempo, desenvolve um

mito irracional, uma justificativa para a violência genocida. Os pós-

modernistas criticam a razão moderna como uma razão do terror,

nós criticamos a razão moderna por causa do mito irracional que

ela esconde.86

Para Khatibi, a região do Magreb seria esse lócus de dupla crítica, distante da

definição de nação, é para o filósofo um local de colonialidade, de subalternização do

conhecimento. Lá, a descolonização não produziu uma forma crítica de pensar, não teria

84 Ibid, p.103 85 Ibid, p.104 86 Ibid, p.104-105

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sido uma desconstrução; o que permitiu a expansão do etnocentrismo para todo o

mundo, – o que complementa a desconstrução pós-moderna de Derrida – da mesma

forma que critica a desconstrução dos saberes produzidos em sociedades árabes.

Khatibi, por conseguinte, ao mesmo tempo em que se alia a Derrida, distancia-se

dele; pois “distingue uma crítica da modernidade na perspectiva da própria

modernidade; por outro lado, empreende uma crítica da modernidade na perspectiva da

colonialidade87”. Para o marroquino, o conhecimento partilha-se na linguagem, o que

faz com que a tradução valha tanto para a “dupla crítica” quanto para o “outro

pensamento”.

O afastamento de Khatibi e Derrida e Foucault ocorre,

precisamente, quando a língua e a tradução são trazidas para o

terreno do conhecimento e da epistemologia, para o terreno da

colonialidade e da dupla crítica, distanciando-se da tradução

lingüística no interior da mesma metafísica dominadora, que ignora

o que está envolvido na tradução do conhecimento [...] A tradução

permite a Khatibi explorar sua idéia de um outro pensamento como

um ‘pensar em línguas’88.

No pretenso diálogo que estabelecem em O Monolinguismo do Outro, o

argumento de Derrida, para que a única língua que se tenha não seja a sua, ilustra o

limite da desconstrução da variedade da metafísica ocidental ao encarar a “dupla crítica”

e o “outro pensamento” propostos por Khatibi. Esta variedade é, como o próprio

filósofo ratifica, monolíngüe; no entanto, a proposição de Khatibi é inversa, é bilíngüe.

Ele explica o bilingüismo na região do Magreb ao mostrar que o intelectual

árabe/islâmico era por si só um tradutor, pois precisava interpretar desde o início uma

gama de disciplinas e conhecimentos que foram formados em outro lugar, conforme já

dito anteriormente. Segundo Khatibi, “a poderosa produção intelectual do Ocidente

87 Ibid, p.106 88 Ibid, p.107

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torna assimétrica a situação bilíngüe e epistemológica, transformando o conhecimento

produzido em língua árabe num conhecimento de tipo subalterno.89” Não devemos

esquecer, entretanto, que no passado, os árabes foram os responsáveis pela execução de

traduções gregas toda a linguagem filosófica e científica, o que acaba dificultando a

aceitação da língua árabe como capacitada a produzir este tipo de linguagem, como se

não fosse flexível a produzir conhecimento próprio. A partir desta perspectiva, um

“outro pensamento” transforma-se em um ideal de tradução, em um modo de pensar em

línguas, ao fazer circular no mundo os códigos e sistemas de signos, ideal que pode ser

repassado a quaisquer situações bilíngües no planeta, não somente ao árabe/francês,

onde o pensar e o falar em línguas são formas de conquistar poder e descolonizar o

conhecimento, de acordo com Khatibi.

Penso que Derrida se mostra um pouco distante desta versão, pois o filósofo se

mostra pouco a vontade para falar do colonialismo:

Não posso aqui analisar de frente esta política da língua e também não me queria servir demasiado facilmente da palavra

‘colonialismo’. Qualquer cultura é originariamente colonial. Não

tenhamos apenas a etimologia em conta para o lembrar. Toda a

cultura se institui pela imposição unilateral de alguma ‘política’ da

língua. A magistralidade começa, como se sabe, pelo poder de

nomear, de impor e de legitimar as designações.90

Compreender seu monolinguismo próprio como monolinguismo do outro volta a

inverter os termos do problema. O que a língua, como língua do outro, que me impõe

sua lei, revela da cultura, não é sua característica natural, mas a sua essência colonial.

Derrida insiste em “uma perspectiva universal apoiada por sua crítica monotópica

radical do logocentrismo ocidental, compreendido como uma categoria universal

89 Ibid, p. 122 90 DERRIDA (2001 b) p.55

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desvinculada do mundo colonial moderno.91” A língua, a cultura é essencialmente

colonial, este é um caráter intrínseco. O que para Khatibi é irrelevante, pois o que

realmente importa é que a colonialidade é conivente do mundo moderno, bem como

convém que a história e a localização do Magreb em relação ao colonialismo francês

potenciam a descolonização como uma maneira singular de desconstrução92.

O ponto principal aqui não é eleger qual opção seguir, qual escolha eleger, mas

sim entender esta diferença entre os dois filósofos, bem como compreender o potencial

liminar do “outro pensamento” de Khatibi. O “outro pensamento” é pensar em línguas,

entre duas línguas e suas relações históricas no sistema mundial moderno e a

colonialidade do poder93”.

A argumentação derridiana não leva em conta o mundo colonial e as diferenças

que o habitam que Khatibi contextualiza. O filósofo argelino participa da tendência

universal de “universais abstratos”, como, por exemplo, a que cita em sua obra de 1996:

a de que “a Língua é a Lei”: “O monolinguismo do outro seria em primeiro lugar esta

soberania, este lei vinda de algures, sem dúvida, mas seria também e em primeiro lugar

a própria língua da Lei. E a Lei como Língua94”.

O pensamento liminar estrutura-se, por fim, em uma dupla consciência, uma

dupla crítica ao imaginário do sistema colonial moderno e da

modernidade/colonialidade. Os universais abstratos, como a crítica ao imaginário

moderno a partir de seu interior, pensados por Derrida, opõem-se a uma crítica ao

sistema moderno a partir de seu exterior, como o faz Khatibi. Embora enfoquem o

mesmo assunto, a articulação ao contexto de colonialidade a partir da “dupla crítica” e

do “outro pensamento” norteia a perspectiva epistemológica apresentada em O

91 MIGNOLO (2003) p.123-124 92 Há uma coincidência histórica dos períodos em que ocorriam as lutas de descolonização magrebina e o projeto desconstrutor do filósofo argelino. 93 Ibid, p.112 94 DERRIDA (2001 b) p.56

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Monolinguismo do Outro através do pretenso diálogo entre os filósofos no decorrer da

obra.

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Capítulo 4: Uma análise do outro

4.1 A lei, o pertencimento e a linguagem

O silêncio deste traço de união não pacifica nem acalma nada, nenhum tormento, nenhuma

tortura. Nunca fará calar a sua memória. Poderá

mesmo agravar o terror, as lesões, as feridas. Um

traço de união nunca bastará para encobrir os

protestos, os gritos de cólera ou de sofrimento, o

barulho das lágrimas, dos aviões e das bombas.94

Já foi mencionado no capítulo um desta dissertação que o escritor se localiza

num local não situável, um local onde se dá o testemunho, um local que é atravessado

pelas paixões da língua, sempre no limite, à borda da linguagem. A grande discussão de

fundo da obra é saber o que é que garante a identidade de um povo, – se a língua o é

capaz – e a questão da lei a que estamos destinados: lei de experimentação da

linguagem. O monolinguismo em que habita o falar francês, o faz sofrer, posto que para

o escritor, estar na linguagem é sofrer. Entretanto, tal monolinguismo se funda na aporia

mote da obra: ter apenas uma língua e esta não pertencer a ele. Tal aporia é um

absurdo lógico, além de uma contradição performativa, “uma mentira desde então

incrível que arruína o crédito da tua retórica”95, pois o outro (o filósofo) afirma isso se

utilizando da língua que diz não possuir. Ora, tal dupla afirmação, tal double bind96

94 DERRIDA (2001 b), p.24 95 Ibid, p.15 96 Podemos pensar a estrutura do double bind como a estrutura de qualquer discurso, no qual a língua oferece uma tensão entre o traduzível - o que está “dentro”, o nome comum, a generalidade e o “querer-dizer do sentido – e o intraduzível – o “fora”, o nome próprio, a singularidade do ser, o que não é claramente explícito na língua. Vale se lembrar do mito de Babel, no qual a linguagem traz aquilo que nunca teve e propicia a “confusão” entre o nome próprio, o nome do pai (Deus pai) e o nome comum Babel, a multiplicidade das línguas, bem como o estado de confusão das pessoas. “Em primeiro lugar: em qual língua a torre de Babel foi construída e desconstruída? Numa língua no interior da qual o nome

próprio Babel podia, por confusão, ser traduzido também por “confusão”. O nome próprio Babel,

enquanto nome próprio, deveria permanecer intraduzível mas, por uma espécie de confusão associativa

que uma única língua tornava possível, pôde-se acreditar traduzi-lo, nessa mesma língua, por um nome

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acaba colocando-o como sujet (súdito/assunto/sujeito) da língua francesa, na intenção

de servir ao idioma, ao francês que declara tanto amar.

Retornando ao título da obra de 1996, monos funciona como único, enquanto o

subtítulo Prothèse de l’origine, nos remonta ao remplacement, à substituição que a

prótese oferece. Como algo único pode ser substituível?

Pois bem, tais idéias incompatíveis assumem a forma de lei, a lei necessária que

dita a necessidade de nos relacionarmos com algo que é sempre inatingível (por ser uma

estrutura de double bind) e que se submete a uma divisão ativa, de acordo com a

nomenclatura de Khatibi. Este a classifica como sendo algo caracteristicamente formal,

a propósito da língua, posto que a relação entre a língua materna e o que nela se enxerta

(o que é estrangeiro) não é uma relação pacífica: é uma relação de guerra, são

colonizações, crueldades, imposições de linguagem. Tal colonização possui uma relação

intrínseca à língua, como em “franco-magrebino”, onde é possível interpretar tal hífen

como o silêncio, como a tortura.

Esta poderosa divisão é integrante da própria estrutura da linguagem, que nunca

foi para o escritor um bem, um patrimônio. Para ele, sempre que se fala já se fala

enxertando elementos pessoais, pensantes a cada um de nós; as outras tantas línguas da

narrativa autobiográfica de cada ser. Há, portanto, um jogo, uma tensão de “pulsão

genealógica” entre essas duas línguas. Há a necessidade de se experimentar a

linguagem: o nosso discurso nunca esteve ali, nunca houve a origem, dado que o

originário é a repetição de um pretenso objeto do discurso. Originário é a repetição de

comum significando o que nós traduzimos por confusão.” (DERRIDA, 2002, p.12). Logo em seguida vem uma nova explicação: “Seja por um jogo de palavras ou por uma associação confusa, pouco importa: “Babel” podia ser entendida numa língua com o sentido de confusão. Por conseguinte, da

mesma forma que Babel é ao mesmo tempo nome próprio e nome comum, um como o homônimo do

outro, o sinônimo também, mas não o equivalente, pois não seria questão de confundi-los no seu valor.” (Ibid, p.21)

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sempre se referir a algo por via da linguagem97. Isto rompe a idéia de “habitar uma

língua”, pois não dispor do que se habita, do que se é impossível ter é o que torna

incansável a memória, memória amplamente descrita nas páginas de O Monolinguismo

do Outro.

Na estrutura lingüística, há “algo” que nomeia o que já existe, uma metafísica da

presença (tensão), que é sempre narrado, nunca existe por si só, há, desde o princípio,

uma referência primeira. Esta linguagem é feita por uma divisão; sequer existe a

pretensa língua pura e as línguas que a ela se referem: na verdade, ambas referem-se

mutuamente. Os objetos lingüísticos são interditados, uma vez que tudo o que falamos

não se vê, não se tem, são apenas referências da linguagem. O filósofo introduz sua

demonstração da divisão ativa nos apresentando a lei da língua:

Porque os fenômenos que me interessam são justamente aqueles que

vêm misturar estas fronteiras, aqueles que as ultrapassam deixando

assim aparecer o seu artifício histórico, isto é, as relações de força

que aí se concentram e, na verdade, aí se capitalizam a perder de

vista.98

Ora, se tais objetos estão fora de nosso alcance, como é citado por Derrida:

“Mas, estás a ver, não é muito original e repeti-lo-ei ainda mais tarde, eu sempre pensei

que a lei, tal como a língua, era louca – ela é em todo o caso o único lugar e a primeira

condição da loucura. 99”, tal desejo do impossível faz da língua, como da lei, o lugar da

loucura, da crueldade, da violência. Semelhante lei é a tradução, enquanto vida, inserida

na dinâmica da estrutura da língua (divisão ativa): a tradução é universal, pois cada vez

que é conceitualizado ou é criado um discurso filosófico, está se traduzindo à luz do um

determinado horizonte, a partir de enxertos lingüísticos. O próprio ato de linguagem é

97 As noções de repetição e originalidade já foram anteriormente explicitadas. 98

DERRIDA (2001 b), p. 21 99 Ibid, p. 22

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um ato de tradução, enquanto reflexão, a tradução seria a lei da linguagem; tal processo

de divisão ativa que ocorre no seio da língua nos lançaria ao destino criativo e

impossível de fazer justiça às coisas, na tentativa de dizê-las com propriedade.

Ao considerar o trabalho de tradução, de pensamento, como um trabalho de

desdobramento e de derivação contínua, o texto derridiano não termina em si, ele se

prolonga em suas palavras, gerando um processo contínuo “traduções”, de

interpretações. Como um texto deriva em outro e de outro, como um pensamento se

desdobra e se origina a partir de outro, somos colonizados pela linguagem dos autores

que lemos e nos apaixonamos. Podemos até dizer que o professor coloniza ao lecionar,

que o indivíduo coloniza ao escrever... Todo universalismo é particular, pois o diálogo é

colonialismo e o que é colonizado faz uma tradução para a sua monolíngua. O próprio

diálogo já seria um trauma, ainda que possua um ideal de pacificação, pois é em seu

conteúdo a imposição da “leitura” melhor apresentada – muitas vezes até imposta pela

força. Há uma violência, um mal implícito no diálogo. Daí o perigo de pacificação

pressuposto na comunidade, pois implica na aceitação, por muitos, de ideais

colonizadores.

Lembrando o trabalho de Austin sobre a linguagem performativa, esta surge na

ruptura: “um ato é percebido e por isso produz ação, ação do eu, do corpo. O corpo é

compartilhado, o ato é compartilhado100”. Em suas reflexões, uma imagem pode ter

várias interpretações a depender de que forma/ângulo é vista; ora, há uma estreita

relação entre a referência e a percepção, relação que pode ser aplicada em diversas

circunstâncias, como a própria linguagem. A relação entre verdadeiro e falso é,

portanto, desfeita, bem como aquela entre o corpo e a linguagem e o sujeito e o objeto.

Tais contradições performativas apresentadas, como o ideal de pacificação, são o que o

100 OTTONI (1998), p. 89

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filósofo quer desconstruir, a ilusão metafísica que desconstrói o ideal de saber, a

autoridade do colono, por vezes em pele de mestre, professor, soberano...

4.2 Uma interrogação da verdade

A discussão que aqui apresento se funda na identidade: o que seria a identidade,

o que formaria a constituição de um ser? Derrida se apresenta como a única pessoa que

se pode dizer franco-magrebina, afirmando com isso uma riqueza de identidades que

não é em si própria. Caracterizando-se desta forma, o filósofo impede qualquer

apropriação, pois se encontra “à borda”. Ele “pode” se classificar de tal forma, porque

dizer “eu posso” exprime a potencialidade da divisão ativa, exprime um “eu” abstrato

anterior à capacidade de se pensar enquanto sujeito, a ipseidade. Derrida menciona tal

conceito em O Monolinguismo do Outro:

E antes da identidade do sujeito, o que é a ipseidade? Esta não se

reduz a uma capacidade abstrata para dizer “eu”, que terá sempre

precedido. Significa talvez, em primeiro lugar, o poder de um “eu

posso”, mais originário do que o “eu”, numa cadeia em que o

“pse” de ipse não se deixa mais dissociar do poder, do domínio ou da soberania do hospes.101

Uma interpretação da ipseidade seria como sendo aquilo que marca a

singularidade de um ser, partindo do controverso pressuposto do eu abstrato. Sabe-se

que o eu vem de muitos enxertos na língua, que nem sempre foram escolhidos

conscientemente, mas que habitam cada indivíduo; muitas vezes são impostos a si,

violentados pela linguagem. A identidade do filósofo é alienada, perturbada por aquilo

101 DERRIDA (2001 b), p. 27

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que o é, pelas múltiplas identidades que a ele foram somadas. Reconhecer tal

perturbação é encontrar-se em um estado de “loucura”, de violência, por conta de um

desejo impossível de apropriação, de busca da origem, de busca da “economia poética

do idioma”, a que habita intrinsecamente a linguagem: “Mas veja você, não é muito

original, e eu o repetirei mais tarde, eu sempre suspeitei que a lei como a língua são

loucas, em todo o caso o único lugar e a pré-condição da loucura”102. É válido aqui

recordar as noções assinaladas pela palavra “economia” para o filósofo, de acordo com

a obra de SANTIAGO:

1) O gesto derridiano de conservar no seu discurso os termos do discurso que quer desconstruir, efetuando isso por uma generalização, um

deslocamento de sentido;

2) A função polissêmica de todo significante (o que constitui sua reserva

semântica), precisando, por isso, ser sustentado por um discurso ou num

contexto interpretativo;

3) O conjunto finito em cujo fechamento (clôture) se dá o movimento do jogo relacional dos elementos;

4) A compensação ao desperdício de significação, pela utilização no

discurso desconstrutor de termos que permitem reenviar simultaneamente para

toda a configuração de suas significações, por serem irredutivelmente

polissêmicos. 103

Para o filósofo, portanto, a busca desta “economia” lingüística relaciona-se com

a vontade de conservar em seu discurso a tensão de sua memória, a tensão de um

caminho sem horizonte prévio, passível de alteração causada pela polissemia das

alteridades que o habitam.

102 Ibid, p. 22 103 SANTIAGO, p. 27

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4.3 O terreno do crível

Porque só se pode testemunhar senão pelo incrível. Em todo o caso pelo que apenas pode ser

crido, do que, excedendo a prova, a indicação, o

constato, o saber, apenas apela à crença, e portanto a

palavra dada. Sempre que pedimos que acreditem na

nossa palavra, estamos já, queiramo-lo ou não,

saibamo-lo ou não, na ordem do que apenas é crível.

Trata-se sempre do que é dado à fé, do que apela à fé,

do que apenas é “crível” e portanto tão incrível

quanto um milagre. Incrível porque apenas “crível”.

A própria ordem da atestação testemunha do

milagroso, do crível-incrível: do que de qualquer

modo é preciso crer, crível ou não.104

A língua é promessa, espera e ameaça: falar é uma promessa de presença, que se

perpetua na locução dos indivíduos, sempre renovada e atravessada por várias

alteridades e várias interpretações; é “espera sem horizonte de espera”, sem idéia de

realização; e é ameaça como interdito que não pode ser extirpado; não se sabe quem

serão os locutores futuros, nem qual será a futura interpretação de nosso discurso. Isto é

estar na linguagem:

Uma estrutura imanente de promessa ou de desejo, uma espera sem

horizonte de espera informa toda a palavra. A partir do momento

em que falo, antes mesmo de formular uma promessa, uma

esperança ou um desejo como tais, e aí onde ainda não sei o que me vai acontecer ou o que me espera no fim de uma frase, nem quem,

nem o que espera quem ou o quê, já estou nesta promessa ou nesta ameaça – que reúne desde então a língua, a língua prometida ou

ameaçada, prometedora até na ameaça e vice versa, assim reunida na sua própria disseminação.

105

Ao sermos acompanhados por um testemunho autobiográfico em O

Monolinguismo do Outro, somos precipitados no terreno do inacreditável, daquilo que

somente apela à possibilidade do crível. Aqui se encontra a tensão vivida: falar em um

104 DERRIDA (2001 b), p. 34 105 Ibid, p. 35-36

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nome próprio e haver universalidade neste falar: através da linguagem, acredita-se no

testemunho, faz-se um voto de confiança (verossimilhança). Derrida insiste que, na

ordem da palavra, estamos expostos a primeira condição da interação lingüística, que é

a fé, pois alguém testemunha em uma linguagem que ultrapassa a singularidade da

situação, o que a transforma em algo transcendental ou ontológico. Além dessa

condição da fé, existirá sempre uma ameaça que está no dever da língua, ameaça do

interdito, pois “se a língua é promessa e ameaça, a estrutura que a antecede é um

“acreditar em algo” sem o qual o falar não seria possível. Há um ato de fé implicado na

fala, ato que comunga da mesma lógica paradoxal sustentada pela desconstrução.106”

Para a desconstrução, estar na linguagem é ter fé, que se apresenta como um

compromisso e engajamento em se falar sobre algo, como uma promessa (língua) que

está condenada a não se cumprir, uma promessa inseparável do perjúrio.

A veracidade deste “ato de fé” é anterior mesmo à verdade como demonstração.

Há um “ato de fé” implicado na fala, colocando o testemunho como condição de fala.

Porém, como se interrogar quanto à verdade quando nela não se acredita? Como a levar

a sério? Para responder tais questões é preciso saber que o conceito de testemunho está

diretamente ligado à questão da promessa e da verdade. Só se pode dar o testemunho

daquilo que não se presta à prova, daquilo que não se presta à contestação, ao saber; e,

sim, apenas à crença. Só se testemunha o inacreditável, pois em nenhum momento ele

se pôs como verdade ao leitor: queremos nos referir ao terreno do inacreditável, ao

terreno daquilo que apela somente à possibilidade do crível e, sendo assim, à palavra

dada107. A verdade do testemunho supõe a veracidade do meu dizer, logo, será que

realmente há crença nesta verdade?

106 CONTINENTINO, p. 118 107 cf. apontamentos de aula do curso “Tópicos Especiais de Filosofia Contemporânea”, ministrado pelo Prof° Dr. Paulo César Duque Estrada.

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Segundo o filósofo, não se pode testemunhar senão pelo incrível, pelo espectro.

Supomos que apenas se testemunha aquilo em que se esteve presente, baseando-se em

suas relações de singularidade, embora partilhe a universalidade com os outros. Quando

se esteve presente, houve a descrença, visto que não há a necessidade de “crer” em

algo: se esteve presente, vivenciou. Já quando há suspensão desta mesma descrença,

parte-se para o domínio do verossímil, daquele que “precisa” acreditar no que ouve

como testemunho. Nunca se comprova a verdade e a posteriori se comenta: ocorre

justamente o contrário, supomos a veracidade do testemunho pela crença, pela fé de

estar na linguagem.

A língua como experiência singular de interdição é, sobretudo, uma estrutura

imanente de promessa e espera de dizermos com propriedade as coisas mesmas, tal

como a estrutura da divisão ativa, destino impossível e criativo de fazer justiça às

coisas, divisão ativa que promete e ameaça. Essa propriedade pode, de acordo com o

filósofo, se instituir pela autoridade do mestre, constituindo o “terror nas línguas”, terror

que aponta para o colonialismo, para uma língua e para uma cultura que deseja vigorar

como verdade, tal como o caso do francês na Argélia.

E mesmo um terror nas línguas (existe, doce, discreto ou gritante,

um terror nas línguas, é o nosso tema). Porque, contrariamente ao

que somos a maior parte das vezes tentados a crer, o senhor não é

nada. E não tem nada de próprio. Porque não possui como próprio,

naturalmente, o que no entanto chama a sua língua; porque,

independentemente do que queira ou faça, não pode entretecer com

ela relações de propriedade ou de identidade naturais, nacionais,

congenitais, ontológicas; porque não pode acreditar e dizer esta

apropriação senão no decurso de um processo não natural de

construções político-fantasmáticas; porque a língua não é o seu

bem natural, ele pode justamente por isso historicamente, através

da violação de uma usurpação cultural, ou seja, sempre de essência

colonial, fingir apropriá-la para a impor como “a sua”.108

108 DERRIDA (2001 b), p.37-38

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Porque a língua é condição de promessa? Pois se nunca se teve a verdade,

havendo apenas a veracidade, procura-se buscar uma promessa, buscar o sentido do

discurso, em vias de aprender a presença. Verdade supõe veracidade, promessa de

verdade, que ocorre entre pessoas que se entendem e compartilham a mesma língua,

ainda que esta língua seja sempre a do outro. O monolinguismo seria o caráter

testemunhal da língua, revestido de promessa de verdade verossímil.

Todos falam em singular situação. Cada um tem seu próprio idioma. Por mais

que tenhamos a mesma língua, cada indivíduo tem um saber, uma experiência,

expectativas, temores... Eu não posso nunca falar uma língua fora da minha

singularidade, surgindo sempre uma nova alteridade. Quando se fala, supõe-se a

veracidade, e essa língua é sempre comum a um determinado grupo. Essa língua é a voz

do outro, é do outro. O meu idioma já é língua do outro, – línguas idiomáticas – pois já

é repleto de influências e alteridades; quando falamos sentimo-nos interpelado pelo

outro. Ao mesmo tempo, se somente eu falasse a minha língua, esta acabaria, pois o

monolinguismo não se afirma como tal. Percebe a dinâmica paradoxal da língua? A

língua como uma escritura, uma marca; a promessa como verdade e a ameaça como a

veracidade textual que o indivíduo possui, sendo sempre possível que uma alteridade

esbarre em seu pensamento e o “desconstrua” por completo.

Aceitar que a sua orientação pode “ruir” é um pressuposto da desconstrução. Em

todo campo de conhecimento há configurações do monolinguismo, no qual há objetos e

certezas válidas dentro do contexto no qual o campo foi estabelecido. Nada impede que,

em outro campo de configurações, as certezas se anulem e sejam diferentemente

interpretadas: ou seja, saber que as suas “verdades” não são leis. Para a desconstrução,

ser consciente é tornar-se cada vez mais inconsciente de suas orientações; as promessas

de verdade estarão sempre ameaçadas por um conjunto de alteridades que venham a

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atravessar seu caminho. Talvez tenhamos que mudar nossa forma de escrita, leitura e

interpretação; pois não existem fronteiras, do contrário, vamos substancializar as coisas.

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Conclusão

No primeiro capítulo desta dissertação busquei explicitar o pensamento da

“teoria” da desconstrução – teoria aqui entre aspas, pois, como já dito, nunca foi

realmente formulada uma teoria. Seu posicionamento quanto à singularidade do ser foi

o que guiou este trabalho. Uma discussão do texto é a questão da identidade e do

pertencimento. Uma revolução ou emancipação pode confirmar uma herança

lingüística, mas não a propriedade da língua, como é o caso árabe. É importante

mencionar a questão da herança presente em Espectros de Marx, uma vez que falar uma

língua não significa possuí-la. O povo africano, colonizado por europeus, recebeu uma

cultura muito distante daquela que integrava. Por muitas vezes eram obrigados a adotar

línguas, hábitos e costumes que não reconheciam como tal, marcados principalmente

pela distância geográfica que os separavam. Derrida ao ser magrebino nunca encontraria

na língua francesa uma verdadeira morada, pois dentro dela sempre sentia um incômodo

estrangeiro, uma “doença” da qual não poderia escapar. Além disso, Freud tem exímia

importância nos diálogos com Derrida, ao enxergá-los como um modo particular de

leitura, no qual a presença e a ausência são articuladas sob a forma de escritura.

Buscando abalar as estruturas previamente estabelecidas, ou que, ao menos, pensamos

estar estabelecidas, o psicanalista auxilia o debate sobre a origem da língua (que se

pensa existir). Em seguida vimos a dívida da tradução, dívida esta que existe desde

Babel, bem como a impropriedade do conceito de pertencimento da linguagem ao

estado nacional, ainda que seja a linguagem fator importante para a fixação de uma

nação.

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No segundo capítulo, dediquei-me a esmiuçar a disciplina da tradutologia, os

parâmetros criados por Antoine Berman que serviram de matriz teórica para o

desenvolvimento desta dissertação. A ética concernente à tradução foi debatida, posto

que tradução ocorre todo o tempo – ainda que seja definida como sendo o outro nome

do impossível. Também mencionamos uma antiga “disputa” entre os teóricos que visam

a língua alvo contra aqueles que visam a língua fonte. Outro fator importante para a

execução deste trabalho é a figura do estrangeiro. Como definir o que é estrangeiro, bem

como de que forma é possível acolhê-lo. A hospitalidade é assunto primordial nos

trabalhos derridianos. Continuando o capítulo, a différance como disseminação foi

apresentada, além da impossível apropriação lingüística que debato. Terminando o

capítulo escrevi sobre a linguagem como promessa e o acontecimento como também

não-acontecimento, o que é perpassado continuamente em O Monolinguismo do Outro.

Já no terceiro capítulo, dedicado ao monolinguismo enquanto estrutura

lingüística, foi comentado sobre a hospitalidade e a possível substituição que uma

língua pode vir a sofrer. Aqui foi o local escolhido para mostrar a tripla dissociação que

ocorre no monolinguismo, também estruturada na “divisão ativa”, proposta por Khatibi,

talvez o pensador com o qual Derrida pretende um diálogo na obra. Este capítulo foi

igualmente o local destinado a explicitar a diglossia do bilingüismo africano, estrutura à

qual poderíamos opor o monolinguismo proposto pelo desconstrutor. Não menos

importante foi a exposição do cenário argelino à época da infância derridiana, bem

como o contexto em que se apresenta atualmente. É de extrema valia as relações

históricas para a compreensão da obra. Terminando o capítulo, restou o embate entre

Khatibi e Derrida, que ao longo da obra apresentam suas idéias, contrapondo-as

continuamente.

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O último capítulo destinou-se a fazer uma análise do outro. A lei da língua foi

descrita, da mesma forma que o pertencimento a linguagem foi debatido, como

possibilidade de acontecimento. Ao mesmo tempo, direcionei-me para um

questionamento sobre o que seria o acontecimento, se seria possível vinculá-lo à

verdade. Também foi neste capítulo que analisei o terreno do crível, anexando-o com o

conceito do testemunho em Derrida. Por ser um livro autobiográfico, não há escapatória

do testemunho e, por isso mesmo, promessa de verossimilhança.

Nesta pesquisa empenho-me em tratar o texto como escritura, como um trabalho

de escrita metalingüístico, no qual seu objeto é explicitado por meio dele mesmo. Como

foi apresentado no primeiro capítulo, o pensamento desconstrutor dedica-se a uma

releitura da obra através de um viés metalingüístico, na perspectiva de recuperar dele

seu caráter de originalidade. Seria possível pensar que todo texto é, em alguma medida,

autobiográfico, por colocar em cena o desejo estrutural e irreprimível de retorno à

origem, tal como O Monolinguismo do Outro apresenta seus pressupostos

desconstrutores. Assim sendo, aproximo-me de pesquisas que visam reler Jacques

Derrida, com o amparo dos pressupostos da tradutologia, disciplina criada por Antoine

Berman, seu colega no Collège International de Philosophie, do mesmo modo que o

projeto de pesquisa “A metalinguagem literária legada por Roland Barthes, Michel

Foucault e Jacques Derrida”, da qual faço parte desde 2004, e que é desenvolvida pela

minha orientadora, a Professora Doutora Anamaria Skinner.

Cronologicamente falando, esse trabalho foi impulsionado pelos artigos escritos

por Derrida, por mim lidos durante a Iniciação Científica. Naquela ocasião, meu

primeiro contato com o filósofo foi em uma pesquisa sobre a invisibilidade do tradutor

no texto, através de fragmentos da obra Circonfissão. A seguir, a leitura do célebre

ensaio “A Tarefa do Tradutor”, de Walter Benjamin. Daí em diante, não foi possível

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escapar aos desejos de reconstrução da origem, discussões sobre o tradutor e demais

questionamentos que derivam da leitura derridiana. Impulsionado pela obra Torres de

Babel, decidi instaurar-me nesta linha que entende a experiência como um pressuposto

da reflexão para a escritura textual.

De acordo com Benjamin, a tarefa do tradutor é, de certa forma, tentar preservar

a “impureza original” do texto. Derrida pensa a tradução, portanto, como sobrevida de

um texto legado, de uma herança, representação máxima de uma inadequação de uma

língua a outra, questão central em O Monolinguismo do Outro. O tradutor estaria

vivenciando a experiência de aprender a lidar com o não-acabamento, com a

impossibilidade mesma de completude, de totalização. Sabe-se, entretanto, que ao

tradutor somente resta a tradução, é necessário agir, decidir, embora este momento exija

talvez uma grande dose de cálculo.

É a partir deste aspecto “ético-político” que esta experiência de

(in)traduzibilidade e que a vivência enigmática do estrangeiro, da língua de um outro,

que surge a hospitalidade, pois é ela quem permite o fim de um certo “colonialismo” do

logos, da imposição de certa língua, de uma verdade absoluta. Pode-se até pensar que

tentar falar várias línguas ao mesmo tempo ou permitir que várias línguas “falem” ao

mesmo tempo em um texto abre espaço para uma experiência de hospitalidade na

própria escritura, um trabalho de reflexão tradutória, defendido por Berman.

Lembrando a única definição proposta por Derrida para a desconstrução – “mais

de uma língua” – pode-se pensar que a desconstrução seria a tradução, vivenciada

enquanto experiência da hospitalidade, acolhimento em geral, uma vez que a

desconstrução não “impõe” conceitos, é sinônimo de um pensamento acolhedor. O ato

da hospitalidade é em si próprio ficcional, tradutório, possivelmente até equiparado à

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alteridade, pois frente ao estrangeiro, que dita as regras no mundo do monolíngüe, não

se pode fugir, apenas abrir as portas e as línguas.

Seria válido para o salvamento e libertação dos homens que se renunciasse à sua

própria língua? Renunciar ao menos às melhores condições de sobrevivência “a

qualquer preço” de um idioma? Atualmente, isto é algo questionável, pois na terra dos

homens, alguns são obrigados a ceder às línguas dominantes, obrigados a aprender a

língua dos senhores, do capital e das máquinas em busca da continuação de suas vidas,

bem como à perda de seu idioma “materno” com o mesmo fim. Economia trágica,

conselho impossível. A quem cabe decidir o que é indecidível? Seria esta “salvação”

dada ao outro uma suposição de salvação do idioma?

O monolinguismo é o murmúrio de uma confissão animada, é a ficção de uma

conversa dramática. O filósofo fala de uma língua materna que ele não possui - o árabe -

e de um francês que ele procura possuir perfeitamente para se compensar da falta do

árabe, ou seja, de um francês atravessado por outra língua. Neste texto autobiográfico, a

parte concreta de sua vida é centralizada na adoração de uma língua que é a língua do

outro. Sua identidade de sentido acabou por ser reprimida devido às alteridades as quais

era exposto. Sendo a “voz109” a expressão do sentido e do discurso, ela experimenta a

própria língua, através das alteridades que a atravessam, algumas reprimidas por uma

certa violência e fragilidade. A língua como experiência de interdição é, sobretudo, uma

estrutura imanente de promessa e espera de dizermos com propriedade as coisas

mesmas, tal como a estrutura da divisão ativa, destino impossível e criativo de fazer

justiça às coisas. Esta estrutura é vinculada à leitura do bilingüismo, proposta por seu

interlocutor e amigo marroquino Khatibi. O acontecimento se dá no sujeito, no sujeito

desejoso que se faz na monolíngua, que se constitui na sua monolíngua: a própria

109 A palavra voz está apresentada entre aspas pois no livro encontramos seu discurso de escritura, o qual representa sua voz, posto que é uma autobiografia.

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estrutura do desejo de reconstituição, de restauração de uma língua de chegada (que

deveria ter chegado) já está contaminada pelas diversas alteridades que ao indivíduo são

vinculadas. Tal é a aporia do espectro: ser mais de um e menos de um, um ser nem

singular nem plural.

Ao mesmo tempo em que o francês não era a sua língua materna, o filósofo foi

privado de sua língua de partida, o que o inseriu em um modelo de tradução absoluta

contínua: como não tenho uma língua própria, de partida, estou fadado a esta tradução

absoluta, que não tem pólo de referência, da mesma forma que por conta dessa privação,

só existem línguas de chegadas. Sempre se está em processo de chegada, processo no

qual tal língua nunca realmente chega, como já foi discutido anteriormente.

Retorno aqui à questão da transparência tradutória: o desconstrutor explicita que

não há tradução sem perda, sem luto, logo, a disseminação da palavra é uma prova do

desajuste, do resto. O tradutor tem a necessidade de saber o que se deve destacar, mettre

en relief, o que se deve conservar, uma vez que a tradução, de fato, está sempre

endividada. Desta forma, a fidelidade toca tanto a língua alvo como a língua fonte; o

que, evidentemente, não exclui estratégias de transformação e transição para a língua-

alvo, como adaptações, paráfrases, uso de notas de rodapé ou metáforas, dentre outras.

No que diz respeito à tradução, a frase “Le duel et le don vont à la mort. La

chose reste un autre dont la loi demande l’impossible110" é ótima para elucidar a

proposta derridiana da tradução ser o outro nome do impossível, pois essa tradução

estaria sempre em dívida. Aqui tentei melhor compreender as questões sobre a busca da

origem tradutória, se haveria realmente uma origem a buscar, fato que compreendi

como não existir; posto que o acontecimento é sempre prometido, enquanto tentativa de

acontecer. A teoria da tradutologia que expus neste trabalho proporciona a reflexão

110 DERRIDA (1984), p. 15

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sobre os trabalhos de tradução, conseqüentemente, à postura desconstrutora que revela

por si só preceitos condutores.

Já na lógica de Goldschmidt, citada no segundo capítulo, a nota do tradutor

deixa de ser empregada em um registro específico e transforma-se em um objeto de uso

generalizado. Tudo se transforma em margem, paratexto. A nota seria indispensável

para a compreensão da reescritura do texto freudiano. Logo, a glosa explicativa e a

tradução seriam inseparáveis, o que seria desmotivado pela tradutologia: a partir desta

disciplina, a reflexão seria essencial para a observação e, em seguida, compreensão

textual. Faço aqui uma proposta tradutória que lembra a tarefa do tradutor em sua

relação para com a cultura – “uma reconciliação possível entre as línguas” -, que

permite o posterior engrandecimento e desenvolvimento do “original”111. Pode-se reter

deste trabalho que é realmente possível discutir todo o processo da tradução,

privilegiando a disseminação da palavra e a reflexão que ela nos proporciona,

justamente o que Derrida destaca na realização de uma tradução.

Outra importante discussão nesta dissertação foi a questão da memória, forma

pela qual o discurso da obra é apresentado, através de uma memória violentada pela

imposição do outro. Como haver memória do que não há, do que deveria ter chegado e

não chegou? Estar na linguagem é a tradução, é a memória que nos arrebata sem nunca

ter acontecido, essa memória do que não teve lugar, mas que, ao menos, deve ter

deixado algum rastro (livros, textos, filmes...). Esses são os espectros de algo que

supostamente deveria existir em sua presença, espectros sensíveis por causarem

sentimentos como os que causam em Derrida, porém espectros passíveis de debate, por

viverem na linguagem.

111 Nomeio o texto fonte como original por questões habituais. O conceito de original é problemático, como vimos nesta dissertação.

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Esse é o caráter desconstrutivista da linguagem, um caráter colonizador em

querer ser algo que chega (mas que se não tem origem, como saber de onde chega?),

mas que é absolutamente diferente do colono. A língua nos passa conteúdos que ela não

tem; o gesto de recepção do intérprete, – gesto da escrita sobre algo – bem como o que

ele vê não existe, é algo espectral. Da mesma forma, cada vez que leio um autor

contribuo para a sua morte, pois o modifico, ainda que com desejo de salvá-lo: crio

dossiês sobre algo morto. “Mas esta salvação, porque é uma salvação endereçada à

mortalidade do outro e um desejo de salvação infinita, é também uma arranhadela e uma

enxertadela.112”

Além disso, nesta obra encontramos três tipos distintos de relação com a

linguagem. A primeira, uma relação desintegrativa, quando se observa que não há um

modelo, uma verdade estável e todas as experiências são perdidas; a segunda é uma

relação inclusiva, na tentativa de inclusão do pensamento em uma totalidade também é

outra forma de esquecimento, e a última relação é uma espécie de hipermemória, que se

desenrola no limite das duas relações anteriores. Ora, essas três formas de interpretação

da linguagem debatem todo o tempo no discurso de O Monolinguismo do Outro e, por

isso mesmo, causam uma grande perturbação no filósofo.

O peculiar emprego da autobiografia nos indica algo relevante: ao assinar, o

filósofo autentica que isto que escreve é realmente seu, ratifica a afirmação que tange a

toda sua obra, exemplifica que o que é escrito é certamente seu, ainda que não esteja

explicitamente assinado (não existir uma assinatura em seu nome próprio). Ora, a

escritura derridiana indica uma assinatura geral, não se prendendo a esse ou aquele

nome, o que ocorre em sua obra de 1996. Demonstra-se, portanto, que a situação

112 DERRIDA (2001 b), p. 98

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descrita poderia acontecer a qualquer um que vivesse em sua mesma posição, a eterna

posição de tradutor.

O monolinguismo de que falo fala uma língua de que está privado. Não é a sua, o francês. Porque está assim privado de toda e

qualquer língua, e não tem outros recursos – nem o árabe, nem o

berbère, nem o hebreu, nem nenhuma das línguas que terão falado

os antepassados – porque este monolíngüe é de certo modo afásico

(talvez ele escreva porque é afásico), está lançado na tradução

absoluta, uma tradução sem pólo de referência, sem língua

originária, sem língua de partida. Não existem para ele senão

línguas de chegada, se quiseres, mas línguas que, singular aventura,

não chegam a chegar, uma vez que não sabem mais de onde partem,

a partir de onde falam, e qual é o sentido do seu trajeto.113

A citação acima explicita o resumo da obra, escrita pelo próprio filósofo em seu

livro. Derrida aborda a questão violência lingüística através do paradoxo de se ter

somente uma única língua e, ao mesmo tempo, esta língua que não ser a sua. Quando o

filósofo apresenta tal paradoxo, ele testemunha a pulsão da différance, lei que não

obedece à lei da casa, pois não pode ser domesticada. As fronteiras que perpassam a

desconstrução são apagadas e a idéia “clássica” da língua é subvertida, colocando a

língua como vindo de um alhures, língua vindo, primeiramente, do outro. Para o

filósofo, pensar o espectro, o que não é nem vivo nem morto, o fantasma, é

compreender a ameaça do pensamento que não se atém à significados, à línguas que não

se vinculam com seus sujeitos. Para tanto, repito uma citação já feita anteriormente:

Porque os fenômenos que me interessam são justamente aqueles que

vêm misturar estas fronteiras, aqueles que as ultrapassam deixando

assim aparecer o seu artifício histórico, isto é, as relações de força

que aí se concentram e, na verdade, aí se capitalizam a perder de

vista.114

Este pensamento espectral denuncia o caráter violento da linguagem, denuncia o

paradoxo indicador da pluralidade da língua, ao desejo de totalidade e de propriedade 113 Ibid, p.93 114 Ibid, p. 21

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que perpassa seus falantes. Derrida faz uso deste pensamento por conta da abertura para

as alteridades que o circundam, pelo desejo de apropriação que busca recuperar a

língua, como uma “pulsão genealógica” desenfreada que por sua história e filiação.

Visto que tal desejo de apropriação é sempre desejador, por conta da dificuldade em

apropriar-se da língua, tal “pulsão” sempre se relaciona com um passado, com uma

busca pela origem, desviada e assombrada pelas alteridades. Para além da memória

“nem sequer falo de um desvelamento último, mas do que, desde todo o sempre,

permaneceu estranho à figura velada, à própria figura do véu.115” O filósofo teria velado

a língua, embora ela não tivesse morrido. É estranho esse emprego da figura do véu, que

indica tanto uma presença quanto uma ausência116: tal é o caráter do interdito – ele

existe como desejo de presença, de uma voz viva que se velou na infância, e como terror

debruçado na colonização francesa.

Este local de presença e ausência simultânea é a différance, que se aplica na

língua como lei, lei de tradução. O filósofo é condenado à différance por conta da

crueldade dos desejos de alteridade que o perpassam, localizados no seio da língua. No

entanto, devemos prestar atenção na palavra “local”. Para o filósofo, a língua não se

localiza, pois estamos sempre à borda, à margem. Nesta margem buscamos uma fantasia

de estabilidade, que se apresenta como impossível: desejar o que é impossível faz da

língua um lócus de crueldade. “Mas, estás a ver, não é muito original e repeti-lo-ei ainda

mais tarde, eu sempre pensei que a lei, tal como a língua, era louca – ela é em todo o

caso o único lugar e a primeira condição da loucura.117” Habitar esta borda indica a não-

domesticação, a crueldade da língua que é prometida, mas também ameaçada.

“[...] “algures” deste outro absoluto com o qual fui obrigado a

manter, para me guardar mas também para dele me resguardar,

115 Ibid, p. 106 116 cf. DERRIDA (1998) 117 Ibid, p. 22

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como de uma temível promessa, uma espécie de relação sem

relação, resguardando-se uma da outra, na espera sem horizonte de

uma língua que apenas sabe fazer-se esperar.”118

Tal ameaça é um risco da linguagem, do próprio pensamento espectral da

desconstrução. Outrossim, antes mesmo da própria linguagem, há um antecedente, um

“ato de fé” implicado na lógica do falante, igualmente na do ouvinte, que deve sustentar

algum crédito de fé na palavra do sujeito. Como afirma o desconstrutor, “só podemos

acreditar no inacreditável”, no que não se presta à prova. O testemunho do que é

acreditável é o que move toda a universalidade, como foi explicitado no quarto capítulo.

Quando testemunhamos, atestamos com a fala um critério de verossimilhança, um “ato

de fé” do que é demonstrado. A experiência lingüística do testemunho revela a “divisão

ativa” da língua, reveladora dos desejos, das sujeições, da universalidade. O habitar a

borda se mostra como o lócus do testemunho, do engajamento na relação entre os

sujeitos.

O que constitui o “terror” das línguas é justamente quando a relação entre os

sujeitos da língua acontece a partir de uma presença impositiva, uma autoridade colonial

que, na verdade, existe em todos os idiomas e em todas as culturas; pois todas as línguas

e todas as culturas desejam se instituir como verdadeiras, como uma promessa, como

uma lei. O monolinguismo do outro é esse desejo de dominação, é essa língua do outro

que me percorre, seria “esta soberania, esta lei vinda de algures, sem dúvida, mas seria

também e em primeiro lugar a própria língua da Lei. E a Lei como Língua.119” De onde

quer que eu venha, esse monolinguismo que me faz designar a língua que falo como

uma língua materna é sempre o monolinguismo do outro e compreendê-lo como tal é

compreender a imposição de sua essência colonial.

118 Ibid, p. 104 119 Ibid, p. 56

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De acordo com o filósofo, as alteridades são constitutivas do indivíduo,

afirmando a identidade do ser. Desta forma, as identidades se fundam entre si, abalam-

se entre si cada vez que são “cruzadas” com outras experiências de alteridades. Isto

ocorre em cada instante da memória e da herança que recebemos. A lei da língua, da

contaminação está aberta à herança, à hospitalidade e, portanto, à borda. Esta lei que

interdita o pagamento da dívida do sujeito perante a língua, que traz a escritura e a

disseminação. “Para a desconstrução, a língua já é uma repressão da escritura – toda

fala, toda apropriação como movimento recalcante da escritura é, desde sempre, um ato

de violência que cria suas hierarquias bem como as estruturas que deseja preservar.120”

A língua corresponderia à política de seu mestre, enquanto a escritura seria uma

violência sem conteúdo, compromisso com a disseminação lingüística: a língua teria um

compromisso com seus próprios efeitos.

Em O Monolinguismo do Outro é descrito um amor pela promessa da língua,

essa condição de promessa que pode ser perpetuado, esse acontecimento sempre

prometido e nunca realizado. Esse acontecimento sempre por vir, promessa sem

conteúdo próprio, promessa que sustenta o desejo da mãe, da reconstituição da língua,

da origem. Desejo de prévia, de uma primeira língua que seria a mãe que nunca teve, de

uma ante-primeira língua destinada a “traduzir” esta memória de restauração da língua

materna. Essa memória, na verdade, não é. Não é posto que é rastro, é “espera sem

horizonte de espera”, é estrutura que possibilita o monolinguismo do outro.

Fazer da língua um bem natural, como propriedade, é esquecer todo o seu caráter

de lei, explicitado por esta dissertação. Derrida rompe com um pressuposto natural da

língua como seio, como morada, como mãe. Mesmo ao “pedirmos” às línguas para

serem um pólo de identificação, esse pedido não pode ser jamais satisfeito, visto que

120 CONTINENTINO, p. 121

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são “propriedades” sempre ameaçadas pela impropriedade da identificação que possam

vir a ter. Fazer da língua uma propriedade natural é impor sua reapropriação, como se

todo “defeito” ameaçasse sua integridade; ela se transforma no elemento que deve ser

salvo para poder salvar, proteger seus sujeitos. O caráter inapropriado da língua faz

surgir as ameaças hegemônicas que algumas comunidades fazem, classificando-a como

um tesouro no qual são guardados a história e a riqueza da língua. Esta alienação

irredutível da língua a uma cultura é justamente o que revela a impossibilidade de

apropriação da língua. Cada vez que alguém fala em nome de sua cultura ou invoca sua

identidade cultural, quando pratica sua língua, esse alguém esquece – ou esconde – a

alienação que atravessa seu discurso, a alienação que figura como lei e que vem de um

“algures”.

Em todos os capítulos desta dissertação houve uma tentativa de busca da prótese,

daquilo que estaria apto a funcionar como mãe. De toda a forma que falamos apenas

uma língua, nós também não a temos, visto que é “vinda do outro, permanecendo do

outro, ao outro reconduzida121” Este texto sempre crítico, indecifrável, impede qualquer

pretensão de propriedade da língua do outro, ao contrário, obriga a enfrentar a

multiplicidade das línguas, tal como Babel o fez. O pensamento do filósofo nos leva a

crer que afirmar-se frente ao estrangeiro, aquele que dita o meu monolinguismo e do

qual não é possível evadir-se, é a obrigação de cada sujeito, ao mesmo tempo em que o

acolhimento do outro deve ocorrer. É nesta medida que esta pesquisa poderia ainda

muito se estender, e busco tal desejo de escritura com o qual sou levada a crer na

experiência da linguagem, em seu caráter de memória e acontecimento. Termino esta

dissertação com a seguinte frase, acerca do monolinguismo: “trata-se de experiência

121 DERRIDA (2001 b), p. 57

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geracional que se apresenta com dois gumes: o da política e o da ética por um lado e,

por outro, o da faca só lâmina com a qual se recorta o indecidível.” 122

122 REIS, p.239

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Apêndice:

Alteridades judaicas – outros exemplos

No capítulo sete da obra123, há uma extensa nota de pé de página, – a qual

perpassa por vinte e quatro páginas (na versão original)124 – dedicada a apresentar três

curiosas situações de célebres judeus para com suas línguas, tal como o judeu Derrida

apresenta a sua durante a obra.

O primeiro deles é Franz Rosenzweig. Ele não possui língua própria, apenas a

língua do hóspede, pois o “povo judaico nunca mais se identifica inteiramente com a

língua que fala (wächst das jüdische Volk mit den Sprachen, dis es spricht, nie mehr

ganz zusammen).” 125 Rosenzweig atenua a desapropriação, pois sua experiência foi a de

alienação em relação à língua. Ele conclui que:

esta língua... não é sua (nicht die eigene ist: não é a

língua própria)”: “mesmo quando fala a língua do

hóspede que o acolhe (die Sprache des Gassvolks), um

vocabulário próprio ou pelo menos uma seleção

específica no vocabulário comum, modos próprios, um

sentimento próprio do que é belo ou feio na língua em

questão, tudo isso trai o fato de esta língua... não ser

sua.126

Esta língua sionista era santa e sua atualização independia de sua vontade, pois

“a linguagem é nome (Sprache ist Namen)”127 e seria neste nome que o sagrado, o

tamanho poder da linguagem, estaria selado. Lembra F. Rosenzweig que o judeu, ainda

que desprovido desta língua santa, poderia reabilitar-se a amar a língua do hóspede

como se fosse a sua própria, ainda que não possuindo a noção territorial de “seu” país.

123 As questões referentes às alteridades judaicas estudadas neste apêndice foram suscitadas no seminário ministrado pelo Prof° Dr. Paulo César Duque Estrada no curso “Tópicos Especiais de Filosofia Contemporânea”. 124 Na tradução portuguesa esta nota se estende por quatorze páginas. 125 ROSENZWEIG, Franz. L’étoile de la rédemption, trad. fran. A. Derczaski e J.L. Schlegel. Paris: Seuil, 1982 apud DERRIDA (2001 b) p. 75 126 Ibid, p. 75 127 Ibid, p.75

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Viveria, portanto, em um país que não era colônia (no sentido lato da palavra,

agrupamentos de pessoas, como viviam os judeus) e amaria a língua alemã sem

reservas. Fê-lo de tal forma ao ponto de oferecer um Gastgeschenk, um presente de

hospitalidade à língua alemã, cujo resultado foi a tradução de um texto sagrado, a

Bíblia, em alemão: o hóspede que agradece e compromete-se com a hospitalidade

recebida. O filósofo também remarca que a língua sagrada, aquela da oração, uma

língua própria ao povo judeu, é por ele compreendida e lida, ainda que na liturgia.

Façamos alguns comentários a respeito. Primeiramente, o alemão de

Rosenzweig não era um alemão de colonizado, tal como o era para Derrida. Seu alemão

era talvez um metropolitano, mas jamais foi similar ao de um povo que sofreu com a

colonização – Rosenzweig era um judeu ashkenaz, ou seja, uma “linhagem” superior

dos judeus, ditos os europeus, diferentemente dos sefarditas, comparados aos judeus do

norte da África. Já a língua sagrada, que segundo o filósofo alemão era por ele

compreendida, deve-se ressaltar que, por vezes, era pronunciada na prece. Ao menos

nas situações litúrgicas, o povo judeu compreendia sua língua própria, inclusive sendo

capaz de lê-la. A situação do franco-magrebino expunha justamente a perda destes

critérios citados por Rosenzweig, pois o francês que Derrida possuía era, ao contrário,

um francês “materno”, um francês colonizado dito não “autêntico”, já que não era

metropolitano. O judeu-espanhol não se praticava e a língua sagrada, nos casos que

ainda era pronunciada, não era compreendida. Esta língua já não era mais ensinada há

muitos anos, o que nos leva a crer que, salvo exceções, não era verdadeiramente

decifrada.

Outro ícone judeu apresentado nesta extensa nota é Hannah Arendt. Em sua

entrevista “Só permanece a língua materna”, ela diz que sua língua materna

permanecerá sempre em si. A ética que Rosenzweig apresenta para com o alemão não

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foi o caso de Arendt, a qual não teve nenhum recurso lingüístico alemão em sua

trajetória. Ela suportou muito bem a distância natal, ao exilar-se nos Estados Unidos,

fugindo do medo do nazismo. Ao ser questionada se teria realmente sobrevivido bem ao

tempo que passou exilada, ela diz immer (sempre): ela sempre manteve uma ligação de

familiaridade absoluta, o sempre com seu longo caráter adverbial temporal, diz que a

língua materna está sempre presente. Da mesma forma, Arendt menciona que não há a

experiência do sempre senão onde há algum rastro de fidelidade ao outro, de “fidelidade

indefectível à língua128”. Tudo o que escapasse a este caráter verossímil à língua, como

a mentira e o perjúrio, suporia a fé na língua, visto que não é possível mentir sem crer

no idioma, como vimos no início do quarto capítulo desta dissertação.

Sobre os tempos mais difíceis do nazismo, a filósofa diz que uma língua em si

mesma não pode ser razoável nem delirante: ela não poderia ficar louca, não se pode

interná-la nem cuidá-la pessoalmente. “Quem poderia afirmar a demência de uma

língua? Apenas um louco”, responde ela. Sendo assim, não foi a língua que ficou louca,

mas sim os homens, aqueles que se julgam senhores da linguagem. A língua é muito

mais antiga que eles, ela sobreviverá ao nazismo, continuará a ser falada por alemães

que não mais serão nazistas e até mesmo por não-alemães. Da mesma forma, Arendt

afirma que nada pode substituir a língua materna, em seu caso, o alemão. Esta frase, ao

correlacionar-se com a afirmação da loucura explicitada acima, forma um elo de

conseqüência da perpetuação proposta do alemão mesmo além dos tempos cruéis do

nazismo.

O que Arendt parece não observar é que entre essas duas afirmações há um

grande abismo. A língua, por um lado, pode ser a própria loucura, o local da loucura:

para que os sujeitos enlouqueçam é preciso que seu “ambiente” seja louco, o que a

128

DERRIDA (2001 b), p.80

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filósofa talvez não queira imaginar. Quando os sujeitos enlouqueceram, de certo que a

língua teve alguma influência nesta instância, alguma possibilidade para tal loucura a

língua ofereceu. Para que a língua persista pelo immer, como diz a judia, é bem preciso

que “a língua seja mais e algo diferente de um instrumento, para ficar consigo além dos

deslocamentos e dos exílios”, pois somente assim o indivíduo enlouquece em uma

língua louca, na qual as palavras são corrompidas. Do nazismo, nada se compreenderá

se dele se extrair a linguagem. Por outro lado, do mesmo modo que Derrida teve uma

mãe afásica, a mãe de Arendt, a mãe da língua dita “materna” deve ter sido louca. Se a

língua é realmente algo insubstituível, ela seria louca, no fantasma da unicidade de sua

própria loucura, desse fantasma que “assombra”, “ameaça” a linguagem. Esse fantasma

traz consigo a possibilidade de adicionar, ampliar o insubstituível, portanto, substituir o

inicialmente dito como impossível de ser feito. A mãe, como instância de absoluto

acolhimento, o local único, instância de substituições onde se dá o chez soi (lugar, casa,

morada), é a loucura, ao mesmo tempo em que a linguagem, instância radical de

acolhimento, acolhimento de alteridades impõe-se como se fosse algo próprio, apto a

substituir o que quer que se queira: o local de substituição é também o local onde se

aloja a loucura e a pretensão do insubstituível.

Entende-se que a mãe, que inicialmente era a única insubstituível, é a própria

loucura, e somente a é pelo seu caráter substitutivo, traduzível porque primeiramente era

intraduzível. O relacionamento da mãe para com seu filho (a língua para com seu ser

falante) é enlouquecedor, pois a linguagem é o local da loucura. Tanto como a ausência

de identidades como a sua multiplicidade enlouquece, o que vai de encontro ao sempre

respondido por Arendt.

Na verdade, alguém pode esquecer sua língua materna. Tenho

exemplo disso ao meu redor, e essas pessoas, aliás, falam línguas

estrangeiras bem melhor do que eu. Sempre tenho um sotaque muito

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perceptível, e muitas vezes não me exprimo de forma idiomática.

Essas pessoas são capazes disso, mas estamos lidando então com

uma língua em que surge um clichê atrás do outro, porque a

produtividade de que dispomos em nossa própria língua foi cortada,

à medida que essa língua foi esquecida.129

A filósofa explicita a possibilidade da perda da língua materna, o que é sabido

que ocorre, porém, para que isto venha a acontecer, é preciso que algum fato

desencadeie isto, como o nome Auschwitz, ela responde a seguir: “Veja bem, o decisivo

para nós foi o dia em que ouvimos falar de Auschwitz.130” Ela diz que quase sempre

este esquecimento é conseqüência de um recalque psíquico, reconhecendo que

movimentos políticos podem sim ser responsáveis por substituições e apagamentos.

Ora, o abismo inicialmente formado por suas afirmações é aprofundado: a abordagem

de tais questionamentos vai muito além da lógica da consciência; este abismo tem um

cunho político o qual não é nada simples de ser resolvido. Situações de loucura como

estas ainda continuam a operar, tal como a situação de imposição do francês na Argélia,

a situação vivida por Derrida.

O terceiro e último exemplo de alteridade judaica exposto nesta grande nota de

rodapé do livro é de Emmanuel Lévinas. Nele, há pouca referência à língua materna,

uma experiência completamente diferente da de Arendt e Rosenzweig. Ele viveu e

escreveu na língua francesa durante quase toda a sua vida, ao mesmo tempo em que

viveu com o russo, o lituano, o alemão e o hebreu. Para quem a linguagem embasa-se na

hospitalidade, o francês foi para Lévinas uma língua do hóspede, mas também de

adoção ou eleição.

Ao contrário de Arendt, a hospitalidade em Lévinas é adquirida, a língua pode

ser adquirida, nada tem de originária, materna. Para a filósofa, a língua materna é

129 ARENDT, p.134 130 Ibid, p. 134

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reafirmada como a um solo, propriedade que cada indivíduo transporta. Já para Lévinas,

seu pensamento de substituição e acolhimento de alteridades é vinculado ao caráter

expressivo da linguagem, esta que pode receber todo o sentido que vem de algures. Esta

ligação intrínseca entre o indivíduo e sua língua materna na realidade não existe, pois a

ordem da ética para o outro, o caráter santo da lei é um apelo à loucura da língua. O

francês é reconhecidamente a língua do hóspede e isso, em nenhum momento, o

impediu de declarar o seu agradecimento.

Por que haveria que, de uma certa maneira, romper com a raiz ou

com a originariedade presumida natural ou sagrada da língua

materna? Para romper com a idolatria da sacralização, sem dúvida,

e para lhe opor a santidade da lei. Mas não será também um apelo

à desembriaguez da loucura materna em nome da santa lei paterna

(embora a presença da schekhina seja também feminina)? Em nome

de um pai que, ainda por cima, Rosenzweig lembra-o, não está

fixado à terra? Quanto à unicidade da língua paterna, dever-se-ia

poder repetir, no essencial, o que dissemos acima da língua materna

e da sua lei. Pai e mãe, haverá que o admitir, são “ficções legais”

que Ulisses reserva à paternidade: ao mesmo tempo substituíveis e

insubstituíveis.131

É preciso compreender em Lévinas seu questionamento quanto à mãe e o pai,

pois ambos são substituíveis, ambos são ficções de alteridades que se somam. O caráter

sacro (ordem da religião) e o santo (ordem da ética) da língua são aqui opostos com a

finalidade de indicar que diversas alteridades formam a linguagem, bem como apresenta

o caráter louco da lei que a constitui. É preciso repensar o pai, marcado pela alteridade

que o constitui, da mesma forma que o pai da autoridade, nem sempre explicitamente

presente, é desde sempre submetido à lei, lei de doação (o que faz dele um pai). O

fantasma como fenômeno de expressão de alteridade, como estrutura espectral do que

nunca há, do não acesso total ao outro, diferentemente do fantasma arendtiano que é

ameaça à língua.

131 DERRIDA (2001 b), p. 86

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No final desta extensa nota, o filósofo indica que a relação destes três filósofos

para com o judaísmo é forte, pois nenhum deles tentou dela se abandonar. O cruzamento

do judaísmo para com a individualidade e pensamento de cada um deles fez surgir um

indivíduo único, capacitado a “pertencer” a um estado nacional, sem para isso afirmar a

“maternidade” lingüística que possuía. Até mesmo porque tal indicação é trabalhosa a

definir: francês-sefardita-argelino-ashkenaz-alemão? O entrelaçamento de todas estas

filiações formará um ser ainda por vir, algo que não se pode definir através de pai ou

mãe unicamente. Algo que Derrida deixa por indicar, por ainda capacitar, não se sabe de

onde parte e não se tem língua de chegada, como a estrutura da tradução, algo que se

deixa por vir.