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TRANSNATIONAL e DOCUMENTOS DE DEBATE NOVEMBRO 2004 no 11 TNI Briefing Series No 2004/8 Programa Droga e Democracia Programa Crime e Globalizaçao T N I Uma Guerra sem Sentido Drogas e Violência no Brasil

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T R A N S N A T I O N A L

e

DOCUMENTOS DE DEBATE

NOVEMBRO 2004

no 11

T N I B r i e f i n g S e r i e sNo 2004/8

Prog rama Droga e Democrac iaProg rama Cr ime e G loba l i zaçao

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U m a G u e r r a s e mS e n t i d oD rog a s e Vi o l ê n c i a n o B ra s i l

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C O N T E Ú D OAUTORESJorge Atilio Silva IulianelliLuiz Paulo GuanabaraPaulo Cesar Pontes FragaTom Blickman

REDATORJorge Atilio Silva IulianelliLuiz Paulo Guanabara

DISEÑOJan Abrahim VosLogo Drugs & Conflict:Elisabeth Hoogland

IMPRESSÃODrukkerij Raddraaier,Amsterdam

APOIO FINANCEIROMinisterio de AsuntosExteriores(Países Bajos)

CONTATOTransnational InstitutePaulus Potterstraat 201071 DA AmsterdamPaíses BajosTel: -31-20-6626608Fax: [email protected]/drugs

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Amsterdam, Novembro 2004

● Editorial 3

● Mapa 6

● Brasil rural: cannabis e violência 7◆ A planta Ayhuasca 8◆ Série histórica de apreensões nas regiões brasileiras 16◆ Taxas de Morte por Homicídios de Homens em

algumas Cidades do Submédio São Francisco 16

● Nova Lei de Drogas: avanços limitados? 17◆ Redução de Danos 20

● Brasil urbano: narcotráfico e violência 22◆ Grupos de extermínios 21◆ Taxas de homicídios no Rio de Janeiro 22◆ Apreensão de armas do Rio de Janeiro 24◆ Pessoas desaparecidas no Rio de Janeiro 24◆ Cárceres e comandos 25◆ Jogo do Bicho 26◆ Incursão militar 27

● Conclusão e Recomendações 29

● Referências e Sítios web úteis 31

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Europa y el Plan Colombia Documento de Debate No. 1, abril 2001

Fumigaciones y Conflicto en Colombia.Al calor del debateDocumento de Debate No. 2, septiembre 2001

Afganistán, drogas y terrorismo. Fusión de guerrasDocumento de Debate No. 3, diciembre 2001

Desarrollo alternativo y erradicación. Un enfoque desequili-brado Documento de Debate No. 4, marzo 2002

Polarización y parálisis en la ONU. Superando el impasseDocumento de Debate No. 5, julio 2002

Agenda para Viena. Cambio de rumboDocumento de Debate No. 6, marzo 2003

Desarrollo alternativo y conflicto en Colombia.A contraviaDocumento de Debate No. 7, junio 2003

Centros Operativos de Avanzada - FOLDocumento de Debate No. 8, septiembre 2003

Drogas y conflicto en Birmania. Los dilemas de las respuestaspolíticasDocumento de debate n. 9, diciembre 2003

Movimientos cocaleros en el Perú y Bolivia. - ¿Coca o muerte?Documento de Debate No. 10, abril 2004

Todas las ediciones de la serie están disponibles en el sitioweb en inglés y castellano:www.tni.org/reports/drugs/debate.htm

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o amanhecer da sexta-feira da SemanaSanta de 2004, 60 membros de umafacção armada,carregando fuzis e metral-hadoras,vestidos de preto e usando cole-tes à prova de bala, saíram da favela do

Vidigal, no Rio de Janeiro. Eles desceram do morro,roubaram diversos carros no asfalto matando umamulher que tentou fugir com seu carro e foram emdireção à favela da Rocinha, que fica a poucos quilô-metros de distância dali.Ao chegar,desfecharam umataque sobre a facção local para obter pela força ocontrole das “bocas de fumo” como são conhecidosos pontos de venda a varejo de maconha e cocaínamais lucrativas da cidade, que gera cerca de 3,5milhões de dólares por mês para a gangue que a con-trola. Embora conflitos como esses não sejam inco-muns nas mais de 700 favelas no Rio, desta vez aviolência chegou às manchetes internacionais.

O ataque e a subseqüente incursão da polícia pros-seguiram até segunda-feira, quando mais de 1.200policiais militares invadiram as duas favelas, tentan-do acabar com a disputa que deixou um saldo de 10pessoas mortas, entre transeuntes inocentes, mem-bros das gangues e policiais. Enquanto isso, tiroteiosesporádicos entre os bandidos e a polícia partiu acidade em duas durante o feriado da Semana Santa,já que ambas as favelas se situam numa região quesepara os ricos bairros da Zona Oeste da Zona Sulonde estão localizadas Copacabana e Ipanema, comsuas famosas praias e do Centro da cidade. Enquan-to naquele fim de semana os prósperos habitantesda Zona Oeste não sabiam como iriam chegar aosseus escritórios,na semana seguinte,muitos residen-tes da Rocinha uma das maiores favelas da AméricaLatina, com cerca de 150.000 habitantes não conse-guiam nem mesmo regressar aos seus modestosbarracos.

O tiroteio ainda nem havia cessado, quando o vice-governador do Rio, Luiz Paulo Conde, propôs quese cercasse a favela da Rocinha com um muro de trêsmetros, indicativo de que a violência havia atingidoum nível por demais perturbador para as classes pri-vilegiadas. A proposta foi duramente criticada porcriar apenas “apartheid social”, quando o que ascomunidades carentes precisam é de investimentose rapidamente retirada de pauta. Entretanto, elademonstra uma atitude inerente das autoridades,que

simplesmente abandonaram as favelas, gerando umvácuo de poder que é preenchido por gangues queencontraram uma lucrativa forma de ganhar dinhei-ro na indústria das drogas ilícitas.

Os níveis de violência no Rio são comparáveis aosde uma zona de guerra. A cada ano as armas matammais jovens com menos de 18 anos no Rio do queem regiões mais tradicionalmente conhecidas porseus conflitos, como Colômbia. No conflito entrejudeus e palestinos, por exemplo, 467 menoresmorreram em conseqüência da violência armada,entre 1987 e 2001, enquanto no mesmo período asbalas mataram 3.937 jovens apenas no Estado do Rio,segundo um estudo sobre jovens envolvidos nas dis-putas territoriais travadas entre facções do tráfico.1Além disso,muitos habitantes das favelas estão viven-do de fato em territórios ocupados, dominadospelos autoproclamados “frentes” (chefes) da comu-nidade, enquanto o estado em grande parte seausenta na promoção de segurança e de condiçõessociais e habitacionais adequadas.

O Brasil é o segundo maior país consumidor de coca-ína do mundo, depois dos EUA, e as drogas intensi-ficam os tremendos problemas sociais e de violên-cia criminal do país. Estimase que cerca de 10.000pessoas estão envolvidas na distribuição local de dro-gas.De acordo com um estudo da Organização Mun-dial do Trabalho, muitas dessas são crianças.2 Origi-namse dos mais pobres dos pobres. A maioria delasingressa e permanece nas gangues de drogas paraobter prestígio e poder e ganhar dinheiro para com-prar os objetos que de outra forma não poderiampossuir.Acabam inebriadas pela adrenalina do dia-a-dia do tráfico de drogas, desfrutando os confrontosarmados com a polícia ou grupos rivais, como tam-bém demonstrando força e destemor.Os laços coma gangue são um fator importante e, depois de umtempo, é quase impossível abandonar a rede social,porque os envolvidos sabem demais e se tornaramconhecidos dos grupos rivais e da polícia. Algunsingressam com apenas oito anos de idade.Depois deentrar para a gangue,grande parte deles morre den-tro de um ano.

Tornando o problema ainda maior, existe uma dis-seminada corrupção policial e colaboração com asgangues de drogas, além de excessiva violência poli-

1 Crianças Combatentes em Violência Armada Organizada: um estudo de crianças e adolescentes envolvidos nas disputas territoriais dasfacções de drogas no Rio de Janeiro, Luke Dowdney, ISER/Viva Rio, Rio: 2002.2 Crianças no narcotráfico: Um diagnóstico rápido, Jailson de Souza e Silva e André Urani, Organização Internacional do Trabalho; Ministé-rio do Trabalho e Emprego, Brasília: 2002. (http://www.ilo.org/public/portugue/region/ampro/brasilia/info/download/livro_narcotraf.pdf)

cial. A luta contra a violência no Brasil é caracteri-zada pelo emprego abusivo e indiscriminado da forçae desrespeito aos direitos humanos,de parte dos efe-tivos policiais, que operam na certeza da impunida-de, de acordo com o sociólogo Geraldo Tadeu M.Monteiro.3 Enquanto entre 1997 e 2003 a força poli-cial aumentou em 45%, entre 2001 e 2003, o núme-ro de prisões decresceu 31%. Ao mesmo tempo, onúmero de mortes resultantes de “resistência àprisão” aumentou 236% entre 1998 e 2003, calcu-lou Monteiro. Em média, as vítimas tinham 4.3 feri-mentos de bala,dos quais 61% localizados na cabeça.As execuções sumárias parecem ser o método pre-ferido da polícia carioca. A “guerra contra o crime”tem resultado apenas numa escalada de violência, eparece claro que a tarefa não pode ser deixada nasmãos das forças de segurança, sem que haja antesuma completa reforma da polícia. Devido ao fracas-so da polícia no enfrentamento da violência, os mili-tares estão sendo enviados às favelas.

Não são apenas os centros urbanos brasileiros queestão sujeitos a elevados níveis de violência.No Nor-deste, no chamado “polígono da maconha”, localiza-do nos estados de Pernambuco e Bahia, os níveis deviolência são às vezes ainda maiores, por conta dasbrutais disputas pela terra e dos conflitos relaciona-dos ao cultivo ilícito de maconha. De acordo com oMinistério Público do Trabalho do Estado de Pernam-buco, existem 40.000 trabalhadores rurais nas plan-tações de maconha, e muitos são forçados a trabal-har nesse plantio pelas gangues criminosas. Entreestes,10.000 são crianças e adolescentes.É claro quea indústria de drogas ilícitas não é o xis do proble-ma, mas também é claro que as atuais políticas decontrole de drogas intensificam a violência associa-da aos conflitos sociais, na sociedade brasileira.

Nesta edição de Drogas & Conflito, o cenário daviolência relacionada às drogas nas áreas de cultivode maconha localizadas no Nordeste,assim como nasfavelas do Rio, é descrito por Jorge Atílio Iulianelli ePaulo César Fraga, enquanto Luiz Paulo Guanabarafaz uma crítica da nova lei de drogas aprovada pelaCâmara e hoje em tramitação no Senado (outubrode 2004). Embora essa lei seja um passo à frente nosentido de se buscar uma clara distinção entre umtraficante de drogas e um usuário, permanece adúvida se tratará efetivamente do problema, dado oseu âmbito limitado.

Seria um erro, no entanto, limitar o problema àpobreza e à desigualdade que levam alguns a encon-trar na indústria de drogas ilícitas o seu meio de sub-sistência. Em 2000, uma Comissão Parlamentar deInquérito (CPI) sobre o narcotráfico revelou,em umgrande número de casos, o envolvimento de pesso-as que certamente podem ser classificadas como“colarinho branco”.O relatório recomendava o indi-ciamento de três membros do Congresso nacional,diversos deputados estaduais, empresários, advoga-dos, ex-juízes e ex-policiais e um punhado de genteimportante.

Relutantemente,mas cada vez mais, o Brasil é arras-tado para a militarizada “guerra às drogas” do con-tinente, de inspiração americana. O Brasil é umaimportante rota para drogas produzidas nos vizin-hos Colômbia, Bolívia e Peru, em trânsito para osEUA e Europa.Um dos chefões da droga mais impor-tantes do Rio, Fernandinho Beira-Mar, foi preso naColômbia,no que as autoridades descreveram comouma transação armas-por-drogas,envolvendo guerril-heiros das FARC.O Brasil está envolvido com o con-flito colombiano por meio do compartilhamento deinteligência e de uma escalada de atividades milita-res e policiais na fronteira, com o objetivo de detero tráfico de armas e de drogas e impedir um derra-mamento da violência colombiana no país.As forçasmilitares e policiais são reforçadas numa inútil ten-tativa de monitorar a infindável fronteira com aColômbia e com o Peru.

O Sistema de Vigilância da Amazônia (SIVAM) que uti-liza estações de radar, reconhecimento aéreo einformações de satélite para monitorar o tráfegoaéreo,o movimento marítimo,as atividades de fron-teira e para interceptar comunicações, foi todoimplementado recentemente. Embora originalmen-te projetado para proteger a floresta amazônica dediversos tipos de depredação ambiental, ele agoratambém será usado para impedir a entrada no Bra-sil de aviões transportando drogas,e fornecer infor-mação em tempo real para unidades de fronteira.4Em junho de 2004, o Senado aprovou uma lei quepermite às forças armadas assumir funções policiaisna luta contra as drogas. Em julho, foi sancionada achamada Lei do Abate,que dá poderes à força aéreabrasileira para derrubar qualquer aeronave não-identificada suspeita de contrabandear drogas.

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3 As forças de insegurança, Geraldo Tadeu Moreiro Monteiro, O Globo, 23 Julho de 2004.4 Sivam já abastece a PF com informações, Folha de São Paulo, 2 Novembro de 2003.

A constitucionalidade da lei está sendo questiona-da. Não existe pena de morte no Brasil, e, emborao governo afirme que não,alguns especialistas e arti-culistas em direito sustentam que a medida resultade fato na execução de traficantes de drogas. “Osproblemas éticos e jurídicos levantados pela regula-mentação da Lei do Abate são muito maiores do queos benefícios que essa medida extrema pode trazer”,diz o editorial do influente diário O Estado de SãoPaulo.“Essa pena será aplicada ao arrepio da Justiça,por decisão administrativa do comandante da Aero-náutica,que terá poder de vida e morte sobre as tri-pulações e passageiros dos aviões em vôo irregular.”As sugestões do ex-secretário antidrogas WálterFanganiello Maierovitch, de que se investigassem ascompras suspeitas de aeronaves e se detivessem osaviões, as drogas e os pilotos na aterrissagem, foramdesconsideradas.5

O sistema brasileiro para vigiar suas fronteiras e abacia amazônica é semelhante à infra-estrutura mili-tar que o Comando Sul dos EUA montou na região,por intermédio da instalação dos chamados postosavançados de operação (Forward Operating Loca-tions FOLs, na sigla em inglês) no Ecuador, Aruba,Curaçao e El Salvador, complementadas por basesmilitares domésticas e postos de radares nas regiõescaribenha e andina. Projetadas inicialmente parainterditar o comércio de drogas ilícitas na região,seuslimites foram ampliados para incluir contra-insurgên-cia e contra-terrorismo, e outras metas de longoalcance da política externa americana, tais como agarantia do acesso aos recursos naturais, especial-mente ao petróleo.6 Apesar da relutância do Brasilem se envolver, parece ser apenas uma questão detempo antes de os sistemas estarem integrados.

No entanto,a militarização da guerra às drogas,espe-cialmente nas vizinhanças pobres e nas áreas rurais,será um tiro pela culatra, a não ser que os progra-mas de repressão sejam cuidadosamente elaboradosem combinação com políticas abrangentes que levemem consideração a segregação social e os extremosníveis de desigualdade existentes no Brasil.No planogeopolítico,o Brasil tende a ser cada vez mais arras-tado para uma guerra às drogas que não tem apre-sentado quaisquer resultados significativos: a cocaí-na,por exemplo,continua disponível em abundância,com preços cada vez menores. Por outro lado, ela

gerou uma devastação ambiental com as fumigaçõesde herbicidas sobre as plantações de coca, quepodem afetar a Amazônia brasileira, e está instigan-do o cruel conflito interno na Colômbia e inquie-tação social no Peru e na Bolívia.

Não há dúvida de que é preciso com urgência umanova abordagem para o controle de drogas. Issodeveria ser uma tarefa para o governo de centro-esquerda do presidente Luiz Inácio ‘Lula’ da Silva,que,desde que assumiu o poder em janeiro de 2003, temsimplesmente dado continuidade às políticas de seusantecessores nesta área.O assunto está intimamen-te relacionado às questões de fome e de pobrezacom as quais o governo de Lula se comprometeu.O Brasil demonstrou liderança nas negociações con-duzidas no âmbito da Organização Mundial do Tra-balho, para a formação de uma coalizão de reformada atual ordem econômica internacional.Em seu dis-curso na 59ª Assembléia Geral das Nações Unidas,Lula disse:“Poderosa e onipresente,uma engrenageminvisível comanda à distância o novo sistema. Nãoraro, ela revoga decisões democráticas, desidrata asoberania dos Estados, sobrepõese a governos elei-tos,e exige a renúncia a legítimos projetos de desen-volvimento nacional.”

Ele poderia muito bem estar se referindo ao atualregime global de controle de drogas, que não con-seguiu abordar o problema de uma forma humana eé utilizado para impor políticas que alimentam con-flitos e miséria. O Brasil deveria seguir apenas o seupróprio exemplo.O país resistiu com sucesso à opo-sição de grandes companhias farmacêuticas e dogoverno dos EUA às suas políticas de redução dedanos para usuários de drogas injetáveis, quandocomercializou medicações de baixo custo produzi-das localmente, driblando desse modo as patentesque impediam uma efetiva política de saúde públicapara HIV/AIDS. A política brasileira de redução dedanos tem sido aclamada como uma das mais bem-sucedidas do mundo.Em coalizão com outras naçõesorientadas para a reforma, o Brasil poderia ajudar aconstruir uma política de redução de danos na áreade controle de drogas,englobando toda a cadeia quevai da produção ao consumo uma política na qual acura não é pior que a doença.

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5 A Lei do Abate, editorial O Estado de São Paulo, 21 de julho de 2004.6 See: Forward Operating Locations in Latin America:Transcending Drug Control,TNI Drugs & Con-flict No. 8, setembro de 2003.

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6 D r o g a s e C o n f l i t o n o 1 1 - N ov e m b r o 2 0 0 4

BRASIL

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Océano Atlántico

Submedio Saõ Francisco

Cult ivos de marihuana

necessário considerar que o Brasil,diferentemente dos países amazônico-andinos, como Peru, Bolívia e Colôm-bia,não tem um histórico de cultivo tra-dicional de coca. Em relação à macon-ha, embora existam registros de

absorção do cultivo pelas culturas indígenas,como no caso da tribo dos Guajajara, no esta-do do Maranhão,não se trata de cultivo ances-tral e milenar. Além disso, o emprego de mão-de-obra para o cultivo da maconha nos dias dehoje segue o modelo do agronegócio, confor-me comprovam nossas observações na regiãodo Submédio São Francisco.Os pequenos pro-dutores são introduzidos nas áreas de plantioou são instados a ceder as terras para esse fim,recebem os insumos e tem a garantia de com-pra da colheita. Essa é uma relação estabeleci-da pelos empresários e gerentes da atividadeagrícola para lidar com os pequenos produto-res e agricultores. E assim como no agronegó-cio – por exemplo,no caso dos integrados pelafruticultura de exportação, naquela mesmaregião –,os pagamentos que eles em geral rece-bem pela atividade são superiores aos que serecebe em atividades não-integradas.2Um grande problema brasileiro, talvez o maior,são o alto grau de concentração de renda e oabismo da desigualdade social. No caso cam-ponês, a isso se acresce a alta taxa de concen-tração fundiária.Tudo isso implica na necessi-dade de realização da cidadania das classessubalternas – em termos de vigência de direi-tos –, tanto no campo quanto na cidade. Essasclasses subalternas a que nos referimos sãoaquelas que realizam o serviço braçal,o trabal-ho pesado - o que aproxima esse segmentosocial do campo àquele da cidade (Marques:2002, 109).

No Brasil, a exploração das classes subalternasnas zonas rurais tem sua força na própria con-centração fundiária e na exploração da massacamponesa, quer po r meio do latifúndio, querpelo agronegócio. Ambas as formas de explo-ração, como registra o relatório da ComissãoPastoral da Terra (CPT: 2004), têm uma sana

assassina em relação aos camponeses.A violên-cia no campo, sob a forma do assassínio decamponeses, é uma constante da realidadeagrária brasileira - e nas regiões do agronegó-cio isso também é um fato. Um mapa daquestão do campo no Brasil precisa incluiresses dados alarmantes.

O Brasil é um País de 8,3 milhões de km2,sendo que mais de 80% desse território é cons-tituído por espaços rurais.Temos a maior con-centração fundiária do planeta: 1% do total deimóveis cadastrados ocupa 45% das terrascadastradas, enquanto 89,1% dos imóveiscadastrados se apertam em 20% das terrascadastradas. Esse aperto e essa concentraçãoexplicam, em certa medida, o alto número deconflitos sociais agrários no Brasil.Além disso,temos a exploração do trabalho infanto-juve-nil no campo.E ainda mais estarrecedor,no iní-cio do século XXI ainda temos trabalho escra-vo em várias fazendas no Brasil.

Após essa ilustração do contexto camponês noBrasil,observaremos como é o circuito econô-mico das substâncias qualificadas como ilícitasnos espaços rurais.Precisamos de um olhar queseja diacrônico e sincrônico. Iniciamos com aatualidade do contexto desses espaços rurais.Agora, é necessário identificar uma certa tra-jetória histórica da presença dessas substânciasqualificadas como ilícitas, para depois poder-mos retornar ao momento presente.

Uma breve história

Podemos nos perguntar se é histórica a pre-sença das substâncias atualmente consideradasilícitas nas áreas rurais no Brasil? A resposta ésim! No caso da maconha,há registros do sécu-lo XVIII. Como algumas substâncias nativasforam qualificadas como entorpecentes, esseregistro é ainda mais ancestral: é o caso, porexemplo, do santo daime, uma raiz amazônicacom a qual se faz um chá (a origem do uso reli-gioso contemporâneo é bastante curiosa,

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1 Filósofo, pesquisador da CAPES, professor de Filosofia da Educação na Estácio de Sá, coordenador do Programa Trabalhadores Rurais eDireitos de KOINONIA – Presença Ecumênica e Serviço2 No caso da maconha, em comparação com as diárias para a cebola, a diferença é muito expressiva: enquanto a cebola paga R$ 7,00/10,00(US$ 2,00/3,30), a maconha paga entre R$ 20,00/100,00 (US$ 6,60/33,00).

porém não há espaço para explorar o assun-to). Em relação à coca,há registros de sua pre-sença na região amazônica muito anteriores aoséculo XVI.

Vamos nos concentrar no registro histórico dapresença da cannabis sativa, a maconha. Esse éum registro que está vinculado ao processo decolonização e ao sistema escravocrata.Sabe-seda utilização do cânhamo nos encordoamen-tos e velas das naus, caravelas e galeões queconduziram os ibéricos na travessia da Euro-pa para a conquista da América e dos povosnativos.O plantio de cânhamo na Europa - tra-zido da Índia e disseminado por causa da uti-lização de suas fibras na fabricação de tecidosresistentes - é uma etapa do mercantilismo eda industrialização.Por outro lado,precisamosnotar o uso recreativo da cannabis entre ospovos de origem africana, que também possuiregistro histórico.Nesse caso,essa informaçãoé relevante para a compreensão do circuito dassubstâncias atualmente qualificadas como ilíci-tas nas zonas rurais do Brasil.

No caso brasileiro, esse cultivo migrou, emespecial, para a região Nordeste. O cultivo dacannabis se alastrou do Nordeste setentrional,em especial do Maranhão, para o Nordestecentral, de modo significativo na região quemais tarde passou a ser conhecida como Sub-médio São Francisco, que inclui os atuais esta-dos da Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas.Essa extensa área manteve cultivos e usosrecreativo e medicinal muito antes de qualquercriminalização dessa planta e do seu cultivo. Éimportante fazer esse registro para que se notesua importância nas sociedades rurais nordes-tinas. Efetivamente, há registro de uso históri-co em pelo menos uma tribo indígena,que oravive no atual estado do Maranhão: os Guajaja-ra.Atualmente existe registro de cultivo da can-nabis entre os Tuxá,na Bahia.Porém,em relaçãoa esse povo, nada permite argumentar contraou a favor da tese de cultivo e de uso ances-trais dessa erva.

São abundantes os registros do cultivo da

maconha entre os povos de origem africana,os afro-brasileiros, e as informações nos rela-tórios médicos do início do século XX seconfiguram como um elemento racista. Aliás,racismo e elitismo transpiram nesses relatóriosque identificam o uso da cannabis como umelemento definidor do atraso das populaçõesdo sertão nordestino. De qualquer modo, ficaevidenciada a presença do cultivo da cannabismuito antes de sua criminalização.Assim comofica registrada a continuidade desse cultivo namesma área, ininterruptamente,apesar da polí-tica pública de erradicação3. Com efeito, emrelação a esse objetivo de erradicar o plantio,proeminente nessa política aplicada entre1940-2004, cabe notar que, como se podeperceber, ele não logrou ser alcançado.

No Brasil, a presença de substâncias qualifica-das como ilícitas no campo não se restringe àcannabis. Nem os usos são restritos ao entre-tenimento pessoal e coletivo. Há usos medici-nais e rituais – no caso da cannabis, para o pri-meiro tipo de uso, na região do Submédio SãoFrancisco, no tratamento da asma, e para osegundo tipo, entre os Guajajara, conforme

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3 No Brasil, a erradicação é feita por meio da queimada da produção.Até onde se sabe, nunca houve operações de fumigação. Essasqueimadas contam com mão-de-obra local arregimentada pela Polícia Federal. Segundo os trabalhadores rurais do Submédio São Fran-cisco, há arregimentação de lavradores pela Polícia Federal, por meio de coerção física violenta, caracterizando trabalho forçado e degra-dante.

A planta ayhuasca (daime) é tradicio-nalmente usada em cultos religiosos dospovos amazônico-andinos. No Brasil, elafoi qualificada como entorpecente peloConfen, em 1984, e incluída na lista daDimed. Em 1986, foi retirada da listaapós um primeiro parecer, ratificado em1992. Os pareceres liberaram o uso dodaime para finalidades religiosas. Em2002, houve novo parecer que proíbe,mesmo em cultos religiosos, a bebera-gem da ayhuasca para menores de 18anos, ainda que acompanhados dospais. Também nos EUA, onde o daimechegou por meio da União do Vegetal, aplanta era considerada entorpecente até2002. A partir daquele ano, o uso religio-so também foi permitido naquele país.

A planta Ayhuasca

registros antropológicos (Henman: 1986). Nocaso da cocaína, os registros são muito recen-tes. Há indicativos de sua presença nos anos1970, especialmente na Amazônia. Nos anos1980, aparecem suspeitas de uso de cocaínaentre canavieiros no interior de São Paulo,nasregiões de Ribeirão Preto e Bauru.Não há mui-tos registros referentes à presença de opiáce-os,muito embora,em 1997,uma Comissão Par-lamentar Externa sobre o Polígono da Macon-ha tenha indicado a possível presença de heroí-na na região do Submédio São Francisco. Issonos leva agora a uma exploração da presençadas substâncias qualificadas como ilícitas naszonas rurais do Brasil.

As presenças das substânciasqualificadas como ilícita nas zonasrurais

Há duas presenças que são notadas. A primei-ra é relativa ao circuito produtivo, o cultivo. Asegunda se refere ao circuito comercial, aque-le das vias de transporte e do consumo. Emambos os casos, as questões pertinentes aoprocesso de comercialização são significativas.Assim, o que faremos nos parágrafos seguin-tes será oferecer algumas informações qualifi-cadas sobre como esses processos econômi-cos,esses circuitos,se combinam com elemen-tos das culturas locais, perfazendo, muitasvezes, dramas trágicos para a vida das popu-lações subalternas. Há que se buscar notarcomo as populações rurais são vulnerabiliza-das nesse processo, numa dupla ordem defatores. O primeiro proveniente da organi-zação do agronegócio ilícito – que nasce coma ilicitude. E o outro condizente com os pro-cessos repressivos conduzidos pelo aparelhorepressivo do Estado – as forças policiais e osistema judiciário.

Em relação ao cultivo, devemos notar que eleé principalmente consignado à cannabis sativa,uma produção voltada para o consumo nacio-nal.Existe uma dúvida razoável.Ao analisarmosa magnitude dos dados da Polícia Federal refe-rente às apreensões de gramas de maconha,pode-se deduzir que, ou a maior parte da

maconha consumida no Brasil advém de forado país – do Paraguai, como se tem notíciadesde 2002, referente ao consumo na cidadede São Paulo - ou a notificação de erradicaçõesregistrada pela Polícia Federal não correspon-de a uma devastação das áreas de plantio,como se alardeia. Efetivamente, como se podenotar pela tabela do Departamento de PolíciaFederal, a maior área de cultivo ainda é aregião Nordeste.E nos anos 2000 – entre 2000e 2003 – nota-se uma queda constante naquantidade de pés erradicados.

Em um outro estudo, indicamos alguns dadosreferentes à área de plantio na região da Bahiae Pernambuco (Iulianelli:2003). Inexistem estu-dos empíricos que quantifiquem as áreas cul-tivadas com maconha no Nordeste brasileiro.Entretanto, na região do Submédio São Fran-cisco (SMSF), considerando-se apenas os qua-tro estados que se intersectam (Bahia,Pernam-buco, Alagoas e Sergipe), estimativas como asda Polícia Federal,de uma área cultivável de 3,5mil hectares, aparentemente não correspon-dem, por exemplo, à estimativa do MinistérioPúblico do Trabalho do Estado de Pernambu-co,4 de 40 mil agricultores ocupados nesse cul-tivo, dentre os quais 10 mil crianças e jovens.Pessoalmente, estimei em 118 mil hectares aárea de plantio na região,usando as proporçõesdo Escritório das Nações Unidas de Prevençãoao Crime e às Drogas (UNDCP), relativas aoproduto apreendido, produção e área agricul-tável. Essa estimativa foi considerada incorre-ta pelo Superintendente da Polícia Federal,Dr.Wilson Dalmázio, em Seminário da Organi-zação Internacional do Trabalho (OIT),do qualambos participamos.

Em 2003, no Nordeste, foram apreendidos642 kg de maconha,especialmente nas capitais,e erradicados 1,8 milhões de pés de maconha,sobretudo no SMSF,mas também no Maranhão,Rio Grande do Norte e Paraíba. A PolíciaFederal e a Secretaria Nacional Anti-Drogas –que por pressão do Ministério da Saúde e desetores da Sociedade Civil alterou seu nomepara Secretaria Nacional de Política de Drogas– argumentam que as operações de erradi-cação do plantio de maconha têm sido bem

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4 O Ministério Público do Trabalho é um órgão da União que atua em diferentes regiões do Brasil. Nesse caso, estamos nos referindo aoMinistério Público do Trabalho da 5a. Região. Nesse texto as referências serão sempre a essa secção desse Ministério.

sucedidas.Com efeito,como se pode observarno anexo 1, há um decréscimo dos pés demaconha erradicados entre 1999-2003, de 3milhões para 1,8 milhões.

Além disso, é verdade que as cidades que con-centravam uma alta taxa de mortes por homi-cídio, como era o caso de Floresta (Pe), têmconseguido reduzir os índices.5 Em 2001,a taxaretorna ao patamar em que se encontrava nasegunda metade da década de 1980, com umataxa de homicídios de homens ao redor de50/100 mil habitantes.Esses fatos não são nadadesprezíveis. Porém, também não o são a pre-sença de uma mão-de-obra estimada em 40 milpessoas, nem o desemprego aberto na região,nem os pagamentos para a atividade do plan-tio ilícito.Tudo isso faz crer que o plantio decannabis permanecerá existindo na região doSMSF e demais regiões do Nordeste, alimen-tado por uma tradição histórica e por deman-das de consumo nada desprezíveis (segundouma pesquisa de 2001 do Observatório deDrogas, 6.9% da população brasileira conso-mem maconha nas principais capitais do país).6

É necessário indicar, além do plantio, outrasmodalidades de presença das substâncias qua-lificadas como ilícitas em outras zonas ruraisbrasileiras.Existem três áreas prioritárias paraessa percepção.Primeiramente,a região Norteapresenta particular importância. Tanto pelaszonas fronteiriças com alguns dos principaisprodutores de coca, como Peru e Colômbia,como pela natureza estratégica da regiãoamazônica.

Em segundo lugar, é importante notar a regiãoCentro-Oeste, palco do aumento da violênciacontra os camponeses perpetrada por umnovo ator social – o agronegócio. Em vez dolatifúndio, que continua homicida, agora é oagronegócio, conforme o estudo da CPT(2004),que interfere de modo violento e assas-sino contra o campesinato.Nessa região,comoidentificado pelo professor Carlos Walter (In

CPT: 2004), houve um aumento na intensida-de das agressões e dos homicídios realizadospelo agronegócio contra os camponeses.Nessaregião, além da questão das vias abertas parao transporte das substâncias, sobretudo advin-das do Paraguai, conforme dados da PolíciaFederal, há um registro significativo de consu-mo desses produtos.

Existem indícios da presença de cultivo demaconha nas fronteiras entre o Paraguai e oBrasil, na região do Mato Grosso, Centro-Oeste do Brasil. Deve-se destacar que nessaárea também é intensa a monocultura, sobre-tudo de soja. É essa também a região em quese supõe haver um novo aumento na escala deprodução de maconha (torno a chamar aatenção para o fato de a Polícia Federal iden-tificar a procedência da produção como para-guaia). Ou seja, na região em que aumenta aviolência provocada pelo agronegócio nocampo, conforme o relatório da CPT, tambémcresce a produção e circulação de maconha.Finalmente,em terceiro lugar,na região Sudes-te, no interior de São Paulo, nas regiões deRibeirão Preto e de Bauru, há indícios de estí-mulo ao uso de substâncias qualificadas comoilícitas para indução de maior produtividadeentre os canavieiros.7 Note-se que, conformedados divulgados pelos próprios usineiros, aprodutividade nessa região mais do que tripli-cou nos últimos dez anos.

No caso da Amazônia, há duas relevantes pes-quisas desenvolvidas. A primeira é de autoriade Argemiro Procópio, professor da Universi-dade de Brasília. Ele indica a presença de rotasde tráfico por todo o interior da Amazônia,incluindo a presença de pistas clandestinas depouso e decolagem e a existência de diversoslaboratórios de transformação da coca.Segun-do ele,a absorção da mão-de-obra local nas ati-vidades relacionadas ao tráfico é muito maislucrativa do que as atividades econômicas líci-tas disponíveis na região. Ele não nos oferecemuitos dados, porém argumenta que o Brasil

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5 Isso pode ser observado no anexo 2.6 Pesquisa realizada pelo Cebrid em 2001 e divulgada pela Senad em 2002, no seu sítio eletrônico (http//www.senad.gov.br). Essa pes-quisa indica que a população da região Nordeste é a segunda maior consumidora de maconha no país – 1.2% consome maconha.7 Neste último caso, registro entrevistas com três fontes: um professor de uma universidade pública do Rio de Janeiro que fez pesquisasna região (fev, 2003); uma pessoa ligada à Pastoral dos Migrantes (out, 2003); e uma liderança sindical rural da região (maio, 2004).Astrês fontes informaram a existência de consumo de crack e de cocaína entre canavieiros, e suspeitavam da ingerência de fazendeiros doscanaviais na distribuição dessas substâncias, para aumentar a produtividades dos camponeses.

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seria o segundo maior consumidor de cocaí-na do mundo (1999; 2000).

A outra pesquisa é fruto do trabalho de umgrupo de estudiosos que conduziu uma inves-tigação sob o título Globalisation,Drugs and Cri-minalisation, coordenada pelo economistaMichel Schiray (2002).Esse grupo realizou umaanálise comparativa entre Brasil,China, Índia eMéxico.No Brasil, participaram da pesquisa asprofessoras Alba Zaluar (UERJ), Lia OsórioMachado (UFRJ) e Sandra Goulart, e os pro-fessores Ronaldo Araújo (Goeldi,Belém-PA) eChristian Geffray.As pesquisas sobre o Nortedo Brasil, na região amazônica, foram particu-larmente conduzidas por Osório, Araújo eGeffray. Eles analisaram diferentes regiões erecortes temáticos.Osório avaliou o Acre e osimpactos econômico-financeiros da presençanaquele estado do comércio de substânciasqualificadas como ilícitas. Araújo e Geffray, demodo distinto, analisaram a formação organi-zativa da operação comercial - o primeiro, noAcre, e o segundo, em Rondônia e Amapá.

As análises da professora Osório revelam aexistência de uma rede com altos investimen-tos financeiros, indicando o absoluto descom-passo entre a realidade agrícola e silvícola dascidades analisadas em comparação com o volu-me de dinheiro circulante e a quantidade deagências bancárias existentes na região. Isso,porsi só, demonstra a necessidade de haver algu-ma anuência do setor financeiro para o funcio-namento dessa atividade econômica do ilícito.Afinal os bancos não questionam a procedên-cia dos montantes nele depositados, ainda quea realidade econômica da região não corres-ponda aos mesmos.

O professor Araújo, por sua vez, faz uma aná-lise das operações criminosas de HildebrandoPascoal e de Cameli,dois personagens nos pro-cessos da Comissão Parlamentar de Inquéritosobre o Narcotráfico, ocorrida no final dosanos 1990.Seus argumentos procuram desven-dar o mistério da intensidade da violência apli-cada por esses grupos criminais. O professor

Geffray,entre outras coisas, indica a necessida-de de uma investigação mais profunda dosdiferentes ciclos da economia das drogas. Eleos denomina de ciclo de baixo – o do varejo– e de ciclo de cima – o dos financistas –, parauma melhor compreensão do processo.

As condições de trabalho e asociabilidade na área de plantio demaconha

Entre 1997 e 2003, mantivemos investigaçõessobre a situação dos trabalhadores rurais, rela-tivas ao plantio de maconha no SMSF. Oferece-mos aqui alguns dados dessas pesquisas. Elasforam conduzidas em diferentes momentos,com diferentes metodologias: entrevistas aber-tas com agricultores que plantam cannabis esofrem o efeito das ondas de violência - tantode parte da repressão do Estado,quanto daque-la conduzida pelos gerentes do plantio;entrevis-tas abertas com jovens que já foram aliciados ecom jovens que conhecem outros que foram ali-ciados; grupos focais de camponeses e jovens.8

O que faremos nessa seção é fornecer algumasindicações das condições de trabalho dessescamponeses, conforme identificado por meiodessas investigações.

Na região do SMSF, o plantio cresce em esca-la a partir da segunda metade da década de1980, especialmente a partir de 1986. Coinci-dentemente, esse é o período de acirramentoda repressão ao plantio de maconha no esta-do do Maranhão, que afeta a tribo dos Guaja-jara. No mesmo período, houve a crise dopreço de um dos principais produtos da região,a cebola, e o assim chamado escândalo damandioca - uma séria corrupção financeiraocorrida durante o governo de Collor deMello.Agrega-se a esse conjunto de fatores,quepauperizaram os camponeses, a existência deguerras de famílias,sobretudo na região de Per-nambuco (Belém do São Francisco e Floresta),verdadeiras batalhas por domínio e ocupaçãoterritorial.10

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8 Grupo focal é um método de entrevista que utiliza um espaço apropriado, uma abordagem soft com o grupo, e mantém o entrevista-dor na condição de um facilitador do diálogo exploratório. Descrições mais detalhadas podem ser obtidas, dentre outros, em Minayo: 1994.9 Esses conflitos não eram propriamente fundiários, embora incluíssem ocupações de territórios. Eram conflitos gerados por “questões dehonra” e que ainda hoje repercutem em mútuos assassínios entre as famílias.

Há um outro elemento que precisa ser agre-gado. Essa região foi palco de vultosos investi-mentos governamentais durante os governosmilitares,para a construção de hidrelétricas.Aconstrução de Sobradinho expulsou cerca de70 mil famílias da região,gerando profunda pau-perização desses camponeses.A construção deItaparica desalojou cerca de 7 mil famílias.Porém, neste último caso, elas se organizaramem torno do Pólo Sindical e conseguiram con-quistar um reassentamento irrigado.No entan-to,por 18 anos,o governo federal negou a essapopulação o resultado de sua conquista.

Durante esses 18 anos, a maior parte doscamponeses foi reassentada e permaneceusem irrigação da terra. Isso implicou em queessa população foi impedida de manter uma ati-vidade agrícola formal. Por isso, durante essetempo, o governo subsidiou-a com uma verbade manutenção temporária. Até 1997, apenas32% dos reassentamentos estavam funcionan-do. No corrente ano de 2004, 15% dos proje-tos ainda não estão funcionando.Um dos resul-tados de todo esse processo é que, em áreasde reassentamento irrigado,também se encon-tra, embora raros, casos de plantio de macon-ha.

Essa é uma condição do crescimento em esca-la comercial do plantio da cannabis no SMSF.Dentre outras condições - tais como a pre-sença histórica do plantio de cannabis, a crisenos preços dos produtos locais (como a cebo-la, em 1987), o escândalo da mandioca nogoverno Collor de Mello -, o desempregodessa massa camponesa criou uma mão-de-obra virtual para essa atividade. Especialmen-te os mais jovens,que não tinham uma tradiçãode trabalho agrícola, estavam prontos para serassociados a essa nova atividade lucrativa.Alémdisso, um outro ingrediente que explicaria aescala comercial nos anos 1990 é a associaçãoem rede dos empreendedores do plantio.Con-forme uma Comissão Parlamentar do Con-gresso Nacional, de 1997, haveria associaçãoentre os agenciadores do plantio na região doSMSF e o Comando Vermelho,do Rio de Janei-ro.

As áreas de plantio de maconha nessa regiãosão em geral pequenas propriedades rurais.São

ocupadas pelos gerentes do plantio, que ofe-recem os insumos agrícolas e o financiamentopara a lavoura,além de manter um grupo arma-do para a segurança. A segurança em geral érealizada por homens,adultos e jovens,que nãosão originários da mesma área em que ocorreo plantio. Os lavradores são adultos, jovens ecrianças (há informações sobre a presença decrianças a partir de doze anos).Não temos atéo momento informações sobre a presença demulheres como mão-de-obra.

Os lavradores são aliciados pelo menos de doismodos.Em algumas regiões,conforme as infor-mações que coletamos,as pessoas são associa-das ou porque buscam esse trabalho volunta-riamente ou porque são convidadas ao plantiopor alguém que as conhece, com quem têmintimidade (um amigo, ou parente). Os maisjovens – há notícias de lavradores no plantiocom 12 anos de idade – são em geral levadospelos pais. Em outras regiões, ocorre arregi-mentação violenta.Temos uma informação ilus-trativa, dentre outras, de um lavrador queandava de bicicleta na área do plantio e teriasido seqüestrado para trabalhar na lavoura. Oplantio duro em média 90 dias.A planta requertrês regas diárias.

As condições de trabalho desses lavradores -crianças, jovens ou adultos - são precárias. Aalimentação é feita no próprio campo,aquecen-do-se a comida com os meios disponíveis oualimentando-se com a caça. A água é um bemraro na região e é consumida em condiçõesmuito pouco saudáveis. Esses trabalhadoresvivem inseguros, pois a qualquer momentoalgum outro grupo pode querer ocupar aque-la determinada área de plantio ou pode haveruma operação policial,na qual eles,no mínimo,correm o risco de ser presos. Foi sob essascondições que esses camponeses produziram,durante várias décadas, o maior plantio demaconha do Brasil.

Há notícias de plantio na região de Petrolina.Segundo essas notícias,associada a essa preca-riedade e insegurança, há presença de umoutro tipo de exploração do trabalho infantil:a exploração sexual.Nos casos de Petrolina,deacordo com o Ministério Público do Trabalhode Pernambuco,a forma violenta de arregimen-

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tação de mão-de-obra é prioritária.É necessá-rio considerar que, na maioria dos casos, oingresso dos lavradores responde a umaquestão de necessidade econômica. Porém,deve-se atentar para a presença de trabalhoescravo (forçado) nesses plantios.

Podemos concluir essas notas sobre as con-dições de trabalho desses lavradores com umaindicação analítica das formas de sociabilidadeexistentes entre eles na região do SMSF. Nos-sas análises indicam três tipos-ideais de socia-lização. Um primeiro modelo é o da sociali-zação laboral: o trabalho é considerado umvalor social, uma forma de integração social.Isso é tão mais verdade em se considerandoas tradições camponesas da agricultura fami-liar. A atividade do plan-tio de maconha se tornadesse modo uma açãolegitima, conquanto ile-gal. A legitimidade éexpressa nas afirmaçõesdos lavradores, que indi-cam que eles se sentemhumanizados pelo trabal-ho naquela lavoura, mashumilhados quando sãopresos,porque perdem alegitimidade da rede de relações com os ami-gos,os vizinhos e os companheiros e compan-heiras: “somos hômi no trabalho, homilhadosquando presos”.

Um segundo tipo de sociabilidade é aquela dasocialização por meio da violência. O lavradornesse plantio,porquanto o proibicionismo legalo criminaliza, se vê enredado numa atividadeque supõe sistemas de segurança e de comba-te de parte dos aparelhos de repressão doEstado. Para compreendermos essa sociali-zação violenta precisaríamos fazer algumasobservações sobre o aliciamento violento paraesse plantio, a corrupção policial, o papel dasbrigas de família.No entanto, indicaremos ape-nas três ordens ou segmentos dessa sociabili-dade violenta.

Um primeiro segmento é da ordem da subor-dinação dos trabalhadores. Nesse aspecto, o

plantio do ilícito radicaliza aquela subordi-nação característica da exploração dos agro-empresários e da auto-exploração campone-sa (que inclui o trabalho infantil). Em segundolugar, há a violência no controle do desloca-mento da produção e do produto, que tem aver com os domínios territoriais de gruposarmados.10 Em terceiro,há a repressão policialque implica em duas formas de violência: arepressão armada, com a detenção ou elimi-nação do lavrador, e a coação de lavradorespara trabalharem na atividade de erradicaçãoda maconha.

A terceira e última forma de socialização quepodemos notar é o que chamamos de resistên-cia criativa (ou alternativa à ilicitude). Essa

socialização é promovidapelos movimentossociais, especialmentepelo sindicalismo rural epelas comunidades ecle-siais da região.Em ambosos casos, há um empen-ho na construção de umacultura de paz, de meca-nismos sociais para asuperação da violência.Esse modelo de sociali-

zação gera,no seio do sindicalismo rural, seto-res favoráveis a um debate público para alte-rar a legislação que penaliza os camponeses.Oque norteia essa discussão é a solidariedade emfavor dos direitos sociais e econômicos doscamponeses.

Uma palavra para concluir essas notas a res-peito da violência criminal assassina e darepressão policial. O efeito letal de ambas ébastante semelhante, senão maior aquele pro-vocado pela repressão policial. O fato é queentre 1997 e 1999,durante e após a OperaçãoMandacaru e Operações Asa Branca, a taxa dehomicídios nas cidades da região aumentou.Asituação da cidade de Floresta é paradigmáti-ca. Nessa cidade, os homicídios de homensaumentaram dentro do período citado, e adiminuição das taxas desses homicídios,naque-la cidade, no período seguinte, implicou noaumento das mesmas taxas no entorno - como

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10 Essa noção de domínio territorial de grupos armados está sendo desenvolvida por Jailson Silva, com relação aos grupos que contro-lam territórios nas favelas no Rio de Janeiro. Utilizo-o aqui de forma livre e análoga.

É necessário considerarque, na maioria doscasos, o ingresso dos

lavradores responde auma questão de

necessidade econômica

se pode notar na cidade de Petrolândia, porexemplo. As principais vítimas desses homicí-dios são homens jovens, com idades entre 15e 24 anos.

Considerações conclusivas erecomendações

Em relação à mão-de-obra empregada no cul-tivo da maconha é preciso chamar a atençãopara o fato de que, conforme relatos dos pró-prios trabalhadores rurais do Submédio SãoFrancisco,uma grande parte desses lavradoresingressam nesse cultivo por necessidade econô-mica de subsistência. Ainda mais, há denúnciasde rapto de lavradores, de parte dos gerentesdo tráfico, que os mantêm durante três mesesnas áreas de cultivo e colheita. Isso caracteri-za uma condição de trabalho escravo, por umperíodo determinado e com remuneraçãoacima da média local. Não podemos deixar deagregar a informação do trabalho forçado paraa erradicação da maconha, relatada pelos tra-balhadores rurais do SMSF, como ação condu-zida pela Polícia Federal.

Não haveria como falar, em geral, dos efeitosda presença do plantio, comércio e consumodas substâncias qualificadas como ilícitas naszonas rurais. Porém,precisamos fazer algumasnotações, e talvez o melhor modo seja o depontuá-las sinteticamente:11

• Aumento da morte de jovens de 15-24anos, nos campos e na cidade.12

• Incriminação de camponeses que são encon-trados nas áreas de plantio de maconha ouque tenham atuado como vendedores vare-jistas do produto, mesmo que forçados.Podem permanecer detidos por até 15 anos.

• Trabalho infanto-juvenil no cultivo damaconha e no comércio de drogas nocampo: conforme o Ministério Público do

Trabalho de Pernambuco, há 40 mil trabal-hadores rurais no plantio da maconha, ape-nas no SMSF. Dentre estes, 10 mil seriamcrianças e jovens.

• Trabalho análogo ao escravo,trabalho força-do para o plantio da maconha, ação dosagentes do crime (gerentes do plantio),assim como trabalho forçado para a erradi-cação das áreas plantadas,em ações da Polí-cia Federal.13

• Morte de lideranças sindicais:nos anos 1980,Manequinha (Juazeiro) foi assassinado e,em1997, Fulgêncio Manoel da Silva - liderançado Movimento dos Atingidos por Barragense do Pólo Sindical dos Trabalhadores Ruraisdo SMSF.

Finalmente apresento algumas idéias de alter-nativas possíveis. Precisamos notar que é umafalácia a afirmação do crescimento do crimevinculado à cadeia produtiva das substânciasqualificadas como ilícitas,diante da ausência doEstado. O Estado está presente na formarepressiva,por um lado,e naquela da corrupçãode seus agentes, por outro. O Estado tambémestá presente na medida em que o sistemafinanceiro atua e cresce nessas regiões ruraisde transporte,comércio e consumo de drogas.Tais presenças do Estado também são notóriasnas áreas de plantio de maconha.

A principal política pública do Estado emrelação a essa atividade agrícola, entretanto,tem sido a repressão e as operações de erra-dicação do plantio de maconha. São poucas etímidas as ações de caráter educativo e preven-tivo realizadas pelo Estado. Além disso, quan-do há propostas deste último tipo de ação,elassão formuladas com um discurso criminaliza-dor e pouco esclarecedor do fenômeno.Açõesde alternativa econômica para os lavradorespraticamente inexistem.

No ano de 1998, durante uma operação da

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11 Aproveito aqui parte do esquema que utilizei para relatar o tema na XVII Assembléia Nacional da Comissão de Pastoral da Terra, Goiâ-nia, maio de 2004.12 Em anexo, a tabela da incidência de mortes entre jovens de 15-24 anos, referente a algumas cidades do SMSF.13 Os advogados Rogério Rocco e Erika Macedo foram os primeiros a investigar a possibilidade do uso de excludente jurídico para ostrabalhadores rurais no plantio da maconha. Erika Macedo, assistente do Programa Trabalhadores Rurais e Direitos, de Koinonia, temfeito uma reflexão sobre o trabalho escravo do plantador de cannabis no SMSF.

Secretaria Nacional Anti-Drogas, denominadaOperação Mandacaru,houve uma ação econô-mica. Por meio dela se ofereceu, para a regiãodo Submédio São Francisco, a proposta dedesenvolvimento alternativo. Para tanto, foiaberta uma linha de crédito para os pequenosprodutores. Porém, a burocracia bancária doacesso ao crédito tornou essa ação inócua.Nenhum lavrador obteve acesso a esse crédi-to. O limite do desenvolvimento alternativo éo acesso à alternativa – bem como o proces-so por meio do qual a alternativa é gerada.

Há na legislação brasileira um dispositivo deexpropriação de terras usadas para plantio demaconha – ou de outra substância ilícita qual-quer -, para fins de reforma agrária. Entretan-to, a situação fundiáriana região do plantio demaconha, formada prati-camente por pequenosprodutores,com proble-mas de cadastramentoagrário, e a violência emtorno dessa atividadeeconômica, tornam essauma alternativa poucoprovável – e por issomuito pouco usada pelogoverno federal.

A construção de alternativas depende de medi-das muito mais profundas.Elas passam pela alte-ração da legislação nacional referente às dro-gas e por um amplo debate nacional sobre avelocidade da Reforma Agrária.O debate loca-lizado sobre a questão da cadeia produtiva dassubstâncias qualificadas como ilícitas é insufi-ciente.No caso camponês,como no demais nocaso dos países latino-americanos e do Brasilem particular,o problema central a ser enfren-tado é o da desigualdade social. Sem medidasque reduzam o abismo existente entre os maisricos e os mais pobres, que construam possi-bilidades de inclusão social para todos, nãohaverá processos sociais condizentes com oEstado democrático de direito.

Não se construirão alternativas socialmenteviáveis à repressão e à violência social agrega-das à ilicitude atribuída a certas substâncias,sem que se discuta a possibilidade do contro-le social de suas cadeias produtivas.A hipocri-sia e o temor que o proibicionismo dissemi-nou no imaginário social precisam ser supera-dos. Para os camponeses, a não penalizaçãodaqueles que se encontram em situação de tra-balho forçado (escravo),ou em extrema neces-sidade, e a descriminalização do plantio, sãomedidas que poderiam diminuir a violênciasocial a que estão submetidos. Diferente dospaíses amazônico-andinos, os lavradores doplantio da maconha no Brasil - e os lavradoresusados no processo comercial de outrassubstâncias qualificadas como ilícitas - não pos-

suem nenhuma organi-zação formal.Esses lavra-dores não pleiteiam direi-tos pessoais e coletivosinerentes à cidadania.Para eles, a lei é apenasalgo a temer, não umaferramenta para a cons-trução de seus direitos.

Para os lavradores queestão sendo assassinados

pela violência dos que financiam e dos quereprimem o plantio da maconha, coloca-se aquestão da garantia do direito de viver. Já exis-tem setores desses lavradores que identificamna ação repressiva e punitiva do Estado um ele-mento desencadeador de mais violência social.É necessário que se leve em consideração ogenocídio embutido nos processos sociais,gerados pela presença da cadeia produtiva demaconha e da repressão dela, frutos da políti-ca de drogas proibicionista. No limite, é a dis-cussão da política proibicionista que precisa serenfrentada. Até que isso ocorra, é precisotomar medidas em favor da sobrevivência doscamponeses, em especial dos mais jovens, quefavoreçam a não penalização de trabalhadoresagrícolas,pelo simples exercício de sua ativida-de laboral.

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É necessário que se leve emconsideração o genocídio

embutido nos processos sociais,gerados pela presença da

cadeia produtiva de maconha eda repressão dela, frutos da

política de drogasproibicionista

Fonte: DataSUS, elaboração da tabela Prof. Paulo César Pontes Fraga, UESC-BA.Notas sobre a Tabela acima:• Explicação preliminar : as taxas a partir do sistema DataSus têm o marco temporal de registro limitado em três anos passados consolidados. Isso dificulta uma apreensão da situaçãomais recente.• As cidades escolhidas na amostragem são aquelas mais importantes da região e mais importantes em relação às operações da Polícia Federal na erradicação ao plantio de maconha.• Pode-se notar que em todas essas cidades, no ano de 1997, há um aumento da incidência de mortes por homicídios em relação aos anos anteriores. Comparativamente a toda adécada de 1980, o aumento das taxas é da ordem de três a seis vezes. O caso de Petrolândia mostra uma constância nas taxas, com aumento da incidência nos últimos anos da déca-da de 1990 e nos anos 2000.• Ainda sobre o ano de 1997, houve na cidade de Floresta um brutal aumento da incidência dessa causa mortis. Em 1998, a taxa continua a crescer e desce nos anos subseqüentes. Oregistro do aumento de mortes por homicídio em Petrolândia evidencia como o entorno passou a ser mais violento com essa queda. Isso indica que a região permanece sob o mesmofoco de violência, modificando as áreas de disputa territorial.• No ano de 1997, a cidade de Floresta (PE) tinha um índice que era superior ao da cidade de Diadema (SP). Isso apresenta a brutalidade do fenômeno.• As maiores cidades, Paulo Afonso (BA) e Petrolina (PE), que estão nos extremos desse entorno, possuem índices diferenciados. Na Bahia, os efeitos da violência são menores. No ladopernambucano, ele é crescente. Registre-se que as operações da Polícia Federal se dão sobretudo no lado pernambucano. Isso pode ser um efeito vinculado, dentre outras, a esta causa.

* 01/01à 01/03/04 Fonte: Sítio Eletrônico da Polícia Federal, www.dpf.gov.br . Organização da tabela por Érika Macedo e Jorge Atilio S. IulianelliNotas referentes à tabela:• A região na qual há expressiva erradicação dos pés de maconha é o Nordeste.• Atente-se ao fato do crescimento da destruição dos pés de maconha durante os anos de 2000, 2001 e 2002. Observe-se que, nesse período, houve forte repressão ao plantio naregião do Submédio São Francisco.• Atente-se ao fato do decréscimo da apreensão no ano de 2003. Isso, segundo a Polícia Federal, indica uma diminuição na intensidade dessa atividade econômica. Por outro lado, por-que não poderíamos supor que isso significaria uma difusão das áreas de plantio, em locais menos conhecidos pela Polícia e de menor acesso à repressão?• Em todas as regiões a droga mais apreendida é a maconha, seguida da cocaína.• Observe-se a elevada taxa de apreensões de cocaína no Norte. Não que ela seja maior que no Centro-Oeste ou no Sudeste. Porém, essa apreensão indica a origem do circuito.Note-se, por isso, que as apreensões de pasta base nessa região são mais expressivas.

Tabela I: Série histórica de apreensões nas regiões brasileiras.

Cocaína (kg)

Pasta base (kg)

Maconha (kg)

pés de maconha (Ud)

CENTRO-OESTE

NORDESTE

Cocaína ( kg)

Pasta base ( kg)

Maconha (kg)

pés de maconha (Ud)

SUDESTE

Cocaína ( kg)

Pasta base ( kg)

Maconha (kg)

pés de maconha (Ud)

SUR

Cocaína ( kg)

Pasta base ( kg)

Maconha ( kg)

pés de maconha (Ud)

NORTE

Cocaína ( kg)

Pasta base ( kg)

Maconha (kg)

pés de maconha (Ud)

Tabela II: Taxas de Morte por Homicídios de Homens em algumas Cidades do Submédio São Francisco

Municipio 1980 1985 1990 1995 1997 1998 2000 2001

Paulo Afonso 4,21 6,39 19,97 22,78 40,01 21,84 18,65 13,31

Petrolina 11,50 9,51 36,81 57,59 51,40 56,24 53,53 51,06

Salgueiro 19,78 22,98 19,33 28,49 42,22 57,85 31,02 26,87

Floresta 24,82 58,86 43,31 92,20 112,63 114,73 68,74 55,63

Petrolândia 21,09 17,91 59,60 43,67 31,08 52,87 80,52 71,58

2000 2001 2002 2003 2004*

85 176 204 482 524 19

23 7 8 18 15 X

6.844 7.332 8.202 8.203 7.630 643

3.452.196 3.080.496 2.807.320 2.259.103 1.858. 340 117.102

1999 2000 2001 2002 2003 2004

1.782 1.152 4.499 2.095 1.304 277

77 13 35 10 10 19

40.785 123.034 97.210 102.294 66.016 27.790

X 309 1.542 X X X

1999 2000 2001 2002 2003 2004

2.231 1.696 2.478 4.780 5.099 418

X X 64 5 3 X

12.939 18.221 15.490 48.028 50.531 4.128

10.006 X 321 289 X X

1999 2000 2001 2002 2003 2004

899 689 497 825 1.257 230

0,5 X 4 12 3 X

8.616 10.630 25.639 33.709 40.786 7.406

4 12 5 18 X X

1999 2000 2001 2002 2003 2004

1.837 1.068 629 991 853 19

535 677 565 339 247 56

---- 169 132 507 853 5

12 618.844 1.014.658 61.980,00 10 -

1999

ara falar de política de drogas no Brasil,em primeiro lugar é preciso definir quaissão as drogas a que estamos nosreferindo. Como no resto do mundo,aqui também existe a dimensão tabu da

droga ilícita, onde se reúnem em uma sócategoria substâncias psicoativas muito diversasentre si. Um de seus dogmas é que todas asdrogas reunidas nesta categoria fazem mal àsaúde da mesma maneira. Nos anos 70, quandoo fenômeno do consumo desses produtos noBrasil se tornou mais visível, a “droga” referia-se à cannabis, cocaína, alucinógenos e algunsprodutos farmacêuticos, como as anfetaminas.

Com o advento da ditadura em 1964, foi pro-mulgada em 1976 a “Lei de Entorpecentes”(6368), substituindo legislações anterioresmenos repressivas.Em seu artigo 12,esta lei esta-belece a pena mínima de três anos e a máximade quinze anos de detenção para os criminal-mente enquadrados como traficantes de drogas.Já o seu artigo 16 determina de seis meses a doisanos de prisão para os usuários das drogas proi-bidas, pegos em flagrante. Esta lei atendeu aosinteresses internacionais sobre a matéria, prin-cipalmente aos dos Estados Unidos.Quando em1973 uma comissão de congressistas america-nos veio à América Latina para discutir com asautoridades locais o problema das drogas,o grupode trabalho formado foi dividido em quatroáreas: prevenção, tratamento, reabilitação e fis-calização e repressão. E é exatamente dessaforma que a nossa Lei 6368 é dividida, fundamen-tada nas idéias desta comissão, com o agravan-te de ter sido elaborada durante a vigência deum estado de exceção, em plena ditadura mili-tar.

E assim,enquanto suas forças de repressão per-seguiam os subversivos de esquerda, a políciaperseguia toda uma nova gama de criminosos dadroga,definidos na Lei de Entorpecentes promul-gada em 1976.

Com a nova lei em vigor, as apreensões de dro-gas pela polícia começam a aumentar, assimcomo sua oferta e demanda. É curioso comouma repressão maior contra as drogas temgerado mais oferta e consumo em toda parteonde é implementada. Mas que drogas eramessas? Não devemos nos esquecer de que o cri-

tério para a proibição de determinadas drogaspelas leis brasileiras é a sua capacidade de cau-sar dependência. E portanto não se pode negarque a única diferença entre as drogas lícitas e asilícitas é que essas últimas são ilícitas. Afinal osmaiores problemas de saúde pública associadosao uso de drogas no país estão relacionados àsbebidas alcoólicas e ao cigarro.Toda lei de dro-gas que não leva esse fator em consideraçãotende a se tornar irrealista.

A realidade nacional nos permite afirmar queeste é um país em que se consomem duas plan-tas ilícitas: a cannabis e a coca.Todos os produ-tos derivados dessas duas plantas também sãoproibidos, inclusive chá de coca e roupas feitasde cânhamo ou medicamentos produzidos comcannabis.Quanto ao não aproveitamento do cân-hamo para usos industriais, é o preconceito euma falta de visão econômica que prevalecem.Em relação ao uso medicinal da cannabis, pode-mos dizer que a falta de pesquisas no Brasil émais uma questão política e ideológica do quecientífica, já que diversos países em todo mundojá utilizam os cannabinóides para fins terapêuti-cos, inclusive os EUA.

Quando o usuário vai comprar “drogas” nas ruase favelas do Brasil hoje em dia, o que ele encon-tra à venda são basicamente maconha e cocaí-na. Em outras cidades que não o Rio de Janeiro,é provável que o crack esteja disponível,mas estasubstância também é um subproduto da coca.O crack não é vendido no Rio por determinaçãoda gerência do comércio de drogas local,que nãoquer seus funcionários envolvidos com seu uso.

Em relação às drogas sintéticas, estas são con-sumidas por um pequeno grupo, em geral declasse média, e a dinâmica econômica da ofertadesses produtos é outra,diferente do comércionas regiões e comunidades pobres: seus vende-dores também são de classe média e em geralfazem parte desses grupos ou tribos urbanas quecostumam freqüentar os circuitos de festas(raves) e shows. Em relação à heroína, pratica-mente não existe demanda,e somente muito devez em quando se ouve falar de pequenas apre-ensões dessa droga.

O fato de a violência oriunda do tráfico de dro-gas estar associada ao comércio de duas drogas

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N OVA L E I D E D R O G A S : AVA N Ç O S L I M I TA D O S ?

nos faz deduzir que uma divisão desse mercadoimplicaria em grande enfraquecimento do poderdo tráfico. Adotar um sistema tolerante semel-hante ao da Holanda, regulando o consumo decannabis,deixaria nas mãos do crime apenas umasubstância ilícita: a cocaína (e derivados como ocrack). Com isso também se corrigiria uma dis-torção que é a falta de diferenciação entre dro-gas leves e pesadas.Não devemos nos esquecerque diversas drogas hoje proibidas já foram per-feitamente legais no passado: até 1938, porexemplo, a cocaína podia ser comprada em far-mácias. Mas as autoridades estão longe de vis-lumbrar e ter vontade política de experimentarnovos caminhos para lidar com a problemáticadas “drogas”.

A Nova Lei de Drogas

O projeto para atualização da Lei de Entorpe-centes tramitou por mais de dez anos no con-gresso antes de se transformar na Lei Antidro-gas (10.409), sancionada em 11 de janeiro de2002 pelo então presidente Fernando HenriqueCardoso.Ao sancionar a lei,o presidente vetou,total ou parcialmente, 33 dos seus 59 artigos,tornando necessário a elaboração de um novodocumento. Em 20 de janeiro, nove dias depois,o governo enviou ao congresso um projetopropondo mudanças na Lei Antidrogas (PL7134/02). A nova lei criava o Sistema Nacionalde Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD);prescrevia medidas para prevenção do uso inde-vido, atenção e reinserção social de usuários edependentes de drogas;estabelecia normas pararepressão à produção não autorizada e ao trá-fico ilícito de drogas;definia crimes e dava outrasprovidências.

O objetivo é endurecer o combate ao crimeorganizado, dando caráter cumulativo àspunições. A pena mínima para o tráfico de dro-gas passa de três para cinco anos, e é mantida apena máxima de quinze anos. Esse crime, noentanto, tem agora vários agravantes: financia-mento da atividade criminosa; tráfico praticadopor policial ou servidor público; envolvimentode menor na atividade criminosa; formação dequadrilha para venda de drogas. Cada uma des-sas tipificações acarreta punições diferentes,e otraficante pode ter sua pena máxima aumenta-

da pelo acúmulo das infrações, uma fórmulaque não tem funcionado em nenhum lugar domundo.

Por outro lado, esse projeto de lei propõe umtratamento diferenciado para o consumidor dedrogas, que não será mais preso, e sim subme-tido a medidas de caráter educativo e penasalternativas - como prestação de serviços àcomunidade e pagamento de multas. Ocorren-do prisão em flagrante,o delegado de polícia fará,imediatamente,comunicação ao juiz competen-te e ao órgão do Ministério Público para enca-minhamento do infrator.Caso isso não seja pos-sível, este terá de assinar um termo de compro-misso,comprometendo-se a comparecer ao tri-bunal em data futura.O usuário poderá receberapenas uma advertência do juiz,no tribunal a quefoi encaminhado pela autoridade policial. Entre-tanto a relação entre usuário e polícia perma-nece obscura, pois se é o delegado de políciaquem encaminha a pessoa detida com drogas aojuiz, ela tem de ser levada até uma delegacia.Ali,após assumir o compromisso de comparecer aojuizado, é colocada em liberdade. Mas mantidoo envolvimento do consumidor de drogas coma polícia, certamente continuará havendo amesma corrupção policial que ocorre hoje emdia: o policial ou delegado extorquindo dinhei-ro do indivíduo detido para soltá-lo imediata-mente, para que ele não tenha de cumprir aspenas alternativas previstas na nova lei,para queseus parentes ou colegas de trabalho não fiquemsabendo que ele foi detido com drogas. Noentanto,em caso de processo judicial, a infraçãonão constará de sua ficha criminal, após as penasalternativas terem sido cumpridas.

Cabe aqui a seguinte questão:como o juiz pode-rá determinar com certeza se a substância ilíci-ta apreendida se destina a consumo pessoal ouao comércio? A lei não estabelece quantidadesque diferenciam consumo de tráfico. Outrasvariáveis serão consideradas, como o local e ascircunstâncias em que se deu o flagrante,as con-dições sociais do detido, sua conduta e perso-nalidade e a existência ou não de antecedentescriminais. Esses critérios podem ser muito sub-jetivos e apontam para a manutenção do atualsistema punitivo em relação às infrações às leisde drogas: de um modo geral, apenas os pobressão presos.

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O texto mantém a possibilidade de o consumi-dor ser submetido a tratamento compulsório,misturando justiça com terapia e não distinguin-do usuários de dependentes. Os debates sobreeste assunto vêm apontando que esta não é umaboa medida, o dependente de drogas quasenunca se beneficia de tratamento forçado.Quan-to mais o usuário de drogas estiver longe da jus-tiça,melhor para ele e sua família e para a socie-dade como um todo. Sua prisão, no entanto,poderá ocorrer quando ele ou ela se recusar acumprir a pena alternativa determinada pelo juiz.Portanto, a pena de prisão não foi abolida detodo, como a mídia andou noticiando.

Essa nova lei que está em debate desde maio de2002, foi retirada da pauta da Câmara em abrilde 2003, época em querecebeu parecer contrá-rio do Ministério daSaúde,que apontou com-ponentes que se conflita-vam com a política deálcool e outras drogas doatual governo - como amanutenção da penali-zação do consumo dedrogas e o impedimentodo uso de substâncias ilí-citas em ambiente terapêutico. Um outro gran-de problema desse documento é a linha divisó-ria entre usuários e traficantes, pois é conside-rado traficante quem “importar,exportar, remeter,preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor àvenda, oferecer, ter em depósito, transportar, trazerconsigo,guardar,prescrever,ministrar,entregar a con-sumo ou fornecer, ainda que gratuitamente, semautorização ou em desacordo com determinaçãolegal, produto capaz de causar dependência físicaou psíquica”. Ao incluir a expressão “ainda quegratuitamente”, o texto praticamente deixa defazer distinção entre usuário e traficante, já queo consumo de drogas ilícitas no Brasil - assimcomo as pessoas se reúnem para consumir bebi-das alcoólicas - é em sua maior parte realizadoem grupo. Ou seja, a nova lei pode ser conside-rada ainda mais severa e repressiva que a lei atual- que responsabiliza apenas o dono da substân-cia ilícita, em caso de o flagrante ocorrer emgrupo. Pela nova lei, todos do grupo podem sersuspeitos de tráfico.

Esse projeto também não foi considerado ade-quado pelos ministérios da Educação e da Justiça,nem pela Secretaria Nacional de Direitos Huma-nos e o Gabinete de Segurança Institucional/Secretaria Nacional Antidrogas - SENAD. Foientão constituído um grupo de trabalho paraapresentar propostas de emenda ao documento.Em fevereiro passado,o deputado Aloysio NunesFerreira (PSDB-SP), em discurso na Câmara dosDeputados, afirmou que faltava um passo ousa-do para que o projeto atendesse àquilo que paraele daria tratamento adequado ao fenômeno doconsumo de drogas em nosso país:“Sou da opi-nião de que o mero consumo de drogas não deveestar submetido ao tratamento do Direito Penal”.Em seguida ele parece ter resumido o pensamen-to de uma parcela expressiva dos profissionais

dessa área ao dizer: “Otratamento repressivo aoconsumo obedece à estra-tégia inspirada pela políti-ca criminal norte-ameri-cana, é mais uma manifes-tação da hegemonia dosEstados Unidos nomundo.Mas as estatísticassobre esse mal que afeta asociedade mostram que,nas últimas décadas,houve

aumento do consumo de drogas e do poder dotráfico, com todos os desdobramentos que issoproduz, inclusive corrupção policial. Portanto,sou favorável à idéia da descriminalização do usodas drogas”.

Em 11 de março de 2004, a Câmara dos Depu-tados aprovou a lei 7134/02, que agora tramitano Senado, onde provavelmente também seráaprovada, ao que parece, sem grandes modifi-cações.O deputado Paulo Pimenta (PT-RS),rela-tor do projeto aprovado, afirma que “a grandevirtude da proposta é a eliminação da possibili-dade de prisão para o usuário e dependente”,mas ressalva que usuário não está sendo deforma alguma descriminalizado, pois “o Brasil ésignatário de convenções internacionais queproíbem a eliminação desse delito”. O relatorexplica que o novo documento apenas modifi-ca os tipos de penas a serem aplicadas ao usuá-rio, excluindo a privação da liberdade comopena principal.“Para que o condenado não possase subtrair ao cumprimento das penas restriti-

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Quanto mais o usuário de

drogas estiver longe da

justiça, melhor para ele e

sua família e para a

sociedade como um todo

vas de direito previstas no substitutivo que oraapresentamos,estabelecemos a possibilidade decondenação do usuário nas penas do artigo330, do Código Penal em vigor.” Ou seja, caso ousuário não cumpra as penas restritivas alterna-tivas,novas medidas penais serão definidas, inclu-sive sua prisão, como já mencionamos.

Apesar de um parlamentar ter chegado aocúmulo de afirmar que essa pseudo-descrimina-lização do usuário era “praticamente a liberaçãodas drogas”,no fundo a nova lei não é muito dife-rente da velha Lei de Entorpecentes da épocada ditadura: a maquiagem foi retocada,mas per-manece inalterada a mesma ênfase no sistemajurídico-policial como forma principal de lidarcom a problemática das drogas.Ao fazer uma crí-tica a esse projeto, no Editorial do jornal OGlobo de 21 de fevereiro de 2004, o advogadoRogério Rocco afirma:“O Legislativo tem umas

virtudes curiosas, e uma delas é a de garantirgrandes mudanças em textos legais que,de fato,não mudam quase nada”.

Em relação ao Brasil não ter autonomia para des-criminalizar o usuário,é verdade que o país é sig-natário das Convenções de Drogas das NaçõesUnidas.No entanto,é preciso considerar,em pri-meiro lugar, que entre os princípios fundamen-tais da nossa constituição está o respeito à pri-vacidade, às liberdades individuais - uma esferaque não deve sofrer intervenção do Estado. Apunição do usuário de drogas vai de encontroao princípio da lesividade do direito penal, queconsiste em não punir atos que não ponham efe-tivamente em risco um bem jurídico tutelado.São os chamados “crimes sem vítima”,como porexemplo a auto-lesão, a prostituição e o suicí-dio, que em geral não sofrem qualquer espéciede punição de parte da legislação penal doT

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A redução de danos surgiu no Brasil devido à grande disseminação do vírus HIV entre a popu-lação usuária de drogas por via injetável. Suas primeiras ações ocorreram na cidade de San-tos, São Paulo, em 1989. Buscava-se implementar a medida sanitarista de troca de seringase agulhas, visando à contenção da epidemia entre usuários de drogas injetáveis (UDI) e pro-moção de sua saúde. No entanto, o programa de troca de seringas proposto pelo governomunicipal daquela cidade foi considerado crime pelo Ministério Público de Santos, basea-do numa interpretação de um artigo da Lei de Entorpecentes, que considera crime qualquerforma de facilitação do uso de drogas. Os médicos envolvidos no programa passaram entãoa realizar suas ações preventivas e educativas de forma clandestina, já que na época 60% dosUDI de Santos estavam infectados com HIV. Mais que uma questão sanitarista, era umaquestão humanitária.

Ao longo da década de 1990, a redução de danos foi se firmando como política de saúde públi-ca governamental. O Ministério da Saúde financia hoje os mais de 200 programas espalha-dos pelo país, com inusitado apoio da UNODC, em geral contrária às estratégias de reduçãode danos. Existem duas principais redes de redutores de danos, a Associação Brasileira deRedutores de Danos (ABORDA) e a Rede Brasileira de Redução de Danos (REDUC).

A nova Lei de Drogas incorpora a redução de danos como uma de suas políticas. Ao relataras atribuições do Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (SISNAD), a lei espe-cifica em seu artigo nono que cabe a esse Sistema regulamentar as atividades que visem àredução de danos e riscos sociais e à saúde. E em seu artigo vigésimo, rege que constituematividades de atenção ao usuário e dependente de drogas e respectivos familiares, para efei-to desta Lei, aquelas que visem à melhoria da qualidade de vida e à redução dos riscos e dosdanos associados ao uso de drogas.

Redução de Danos

mundo.Ou seja, a criminalização ou penalizaçãodo usuário de drogas fere a constituição brasi-leira.

Em segundo lugar, o Supremo Tribunal Federaljá reconheceu que as normas contidas nos tex-tos das convenções internacionais são incorpo-radas ao Direito Interno com o estatuto de leiordinária. Portanto, podem ser alteradas pordecisão da instância legislativa competente, nocaso, o Congresso Nacional.Infelizmente, a nova Lei de Drogas não se fun-damenta nessas diretrizes e sustenta umasituação de vigilância sobre os usuários de dro-gas ilícitas que, se pegos em flagrante pela polí-cia, serão penalizados de uma forma ou deoutra. Ou seja, o autoritarismo e a intolerânciapresentes na lei 6368 de 1976 continuam a fun-damentar a nova lei. Como diz Rocco em seuartigo mencionado acima,“Por não ousar tratar

da legalização da produção e do comércio dedrogas, após a aprovação final deste projeto, oBrasil continuará tentando sobreviver ao aumen-to da violência gerada pelo tráfico,e os usuáriospermanecerão alvos prediletos de policiaiscorruptos”.

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O Brasil pode desempenhar um importante papel internacional não apenas deoposição às abordagens repressivas a que estão sujeitos os usuários de drogas, como paraajudar a angariar apoio para uma política baseada em princípios de redução de danos. Em2004, o Ministério da Saúde brasileiro demonstrou que estava disposto também a promo-ver suas estratégias no interior do ambiente politicamente conturbado da Comissão de Entor-pecentes das Nações Unidas (Commission on Narcotic Drugs - CND) e da Comissão Intera-mericana de Controle de Abuso de Drogas (Inter-American Drug Abuse Control Commis-sion - OEA/CICAD).

Na sessão da CND em Viena, em março, o Brasil apresentou uma resolução controversa sobreHIV/AIDS e Redução de Danos que gerou tensos debates. Era um sinal significativo de queo Brasil havia conseguido que todos os países da América Latina e do Caribe (grupo GRU-LAC?) aderissem à iniciativa. Subseqüentemente, o texto da resolução foi consideravelmen-te desprestigiado por pressão dos EUA, da Rússia e de diversos países asiáticos. Referênciasdiretas à importância dos programas de troca de seringas e de outros serviços de reduçãode danos, assim como o apelo para que se apoiasse o fortalecimento de organizações de usuá-rios de drogas foram deixados de fora da versão por fim adotada.

Na 35a. sessão da CICAD em Washington, um mês depois, o Ministério da Saúde apresen-tou um quadro geral, mostrando como a abordagem de redução de danos brasileira resul-tou em um significativo decréscimo no número de novos casos de HIV entre usuários de drogainjetável. A delegação explicou que a intenção do governo é expandir os programas de reduçãode danos para o sistema prisional e enfatizou a importância de garantir a participação deusuários na elaboração e implementação de políticas públicas de drogas. Uma atitude ativacontínua do Brasil em nível internacional pode contribuir significativamente para fortale-cer a opção pela redução de danos, visível em diversos países da América Latina, como aArgentina e o Uruguai, e pode, de modo mais amplo, ajudar a levantar o astral do debate sobrepolítica de drogas mundial.

o longo dos anos 1980, ocorre no Brasilum fenômeno que os epidemiologistasclassificaram como transição epidemioló-gica. As doenças infecto-parasitárias, queiniciaram a década como o principal moti-

vo de mortalidade da população, encerram o perí-odo como a segunda causalidade. Passam a ocupara liderança, como agentes principais de óbitos, asdenominadas causas externas, que significam asmortes ocorridas por violência. No início daqueladécada, as causas violentas representavam o quar-to motivo de abreviamento da vida.Para além de umproblema de saúde pública, a alteração desses indi-cadores assinalou mudanças no comportamento dapopulação e nas relações interinstitucionais, cultu-rais e sociais.A violência ganha maior visibilidade nocontexto da sociedade brasileira.

O aspecto paradoxal do fenômeno é a constataçãodo incremento da violência, notadamente a crimi-nal, se intensificando justamente no fim da ditaduramilitar e início da chamada transição democrática.É em 1989, coincidentemente no ano da primeiraeleição livre para presidente da república desde1960, que as causas externas tornam-se a principalrazão de mortalidade.Ou seja,o período que abran-ge o regime militar, mantido no poder por meio douso constante e indiscriminado de extrema violên-cia - como perseguições e prisões arbitrárias e ile-gais, torturas de presos políticos e comuns, assassi-nato de lideranças políticas de esquerda e/ou opo-sitoras ao regime -, teve seus índices de mortalida-de violenta superados nas gestões de governos civisque o sucederam.Como veremos adiante,nos anos1990 ocorre um recrudescimento dos indicadores.

Quanto aos seus aspectos institucionais, este para-doxo tem sido elucidado pelo fato da sucessão degovernos militares e civis ser a expressão de ummesmo sistema de dominação de elites,e se dar numcontexto em que o restabelecimento das eleiçõeslivres não foi capaz de gerar instituições efetivamen-te democráticas, estáveis, que gozassem de confia-bilidade e pudessem estar submetidas ao controleda sociedade.2 Análises apontam que, além do usolegítimo da violência e da construção de um con-senso,os organismos de contenção e repressão uti-lizam largamente, como recurso de controle, o

abuso de poder e as práticas de torturas, dirigidosa determinados setores da população.Consolida-seainda uma institucionalidade na qual os tirocínios decorrupção se efetivam e se tornam elementos carac-terísticos da ação policial - práticas que na realida-de já existiam no período autoritário e se intensifi-caram após o fim da ditadura,que representam umacontinuidade institucional.

Em sua dimensão criminal, a ampliação dos indica-dores de violência possui um elemento que se des-taca: há uma coincidência entre o aumento doshomicídios e a presença cada vez maior do tráficode drogas no meio urbano (e rural) brasileiro. Noperíodo abarcado entre o final dos anos 1980 atéos dias de hoje, o tráfico de drogas, gradativamen-te, se incorpora ao cotidiano de várias cidades dopaís, principalmente nas Regiões Metropolitanas, ese destaca como a atividade criminal que mais cres-ce.São Paulo,Recife,Belo Horizonte e,principalmen-

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BRASIL URBANO: NARCOTRÁFICO E VIOLÊNCIAPaulo Cesar Pontes Fraga1

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1 Professor e Pesquisador da Universidade Estadual de Santa Cruz/BA2 Pinheiro, P. S.“Violência, Crime e Sistemas Policiais em Países de Novas Democracias.Tempo Social”, Rev. de Sociologia da USP, 9(1): 43-52, mayo de 1997.3 Coimbra, C.“Operação Rio: O mito das classes perigosas”. Intertexto/Oficina del Autor: Niterói/Ro de Janeiro, 2001.

Desde 1958 já se registrava a presença degrupos de extermínios que tinham comoobjetivo “diminuir” os índices de crimi-nalidade, assassinando criminosos. Apartir de 1964, contudo, com a criação daScuderie Le Cocq, um grupo de policiaisde elite, intensificam-se as ações de eli-minação de bandidos, geralmente pesso-as pobres da periferia. Esses policiais,em determinados momentos, se uniramaos órgãos de repressão da polícia polí-tica para colaborar na perseguição aosmilitantes de esquerda. Tornaram-secom isso intocáveis pela justiça, e aque-les que se propunham a denunciar suasações ou incriminá-los passavam a servistos como inimigos do Regime. Essegrupo inspirou outros grupos, paramili-tares ou não, que nas décadas seguintesse proliferariam nas periferias dos prin-cipais centros urbanos, principalmentedo Rio de Janeiro e de São Paulo, comapoio da imprensa conservadora e departe da população. Além de matar,extorquiam assaltantes e traficantes.3

Grupos de extermínios

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te, o Rio de Janeiro se caracterizam pela presençacada vez mais marcante do tráfico de drogas em seusterritórios.

É importante destacar ainda que as taxas de homi-cídio e de criminalidade associadas ao tráfico de dro-gas aumentam em um contexto marcado por umagrave crise econômica.Após um enorme crescimen-to durante os anos 1970, os anos 1980 serão con-hecidos como a década perdida, devido ao fracodesempenho da economia brasileira, às altas taxasde desemprego e ao corte significativo de investi-mentos públicos e extinção de programas públicosna área social4.Não se trata aqui de fazer uma corre-lação imediata entre taxas de desemprego ou oaumento da pobreza com o incremento da crimi-nalidade,mas compreender que essa conjuntura,alia-da a outros fatores culturais, políticos e sociaiscorresponde a um ambiente propício para o aumen-to da violência.

O Rio de Janeiro tornar-se-á, no contexto do qua-dro exposto anteriormente,um caso específico quemerece destaque,pela forma como o tráfico se orga-nizou, saindo dos guetos tradicionais e inerentes àsatividades ilícitas, estendendo a sua influência sobreáreas que até então estavam fora de seus domínios,e promovendo conflitos nessas áreas.Os homicídiostornam-se, a partir de 1998, a principal causa deabreviamento da vida no município, na longa faixaetária que vai de 10 a 49 anos.Os indicadores reve-lam que na cidade do Rio de Janeiro, em 20 anos,

no período 1983-2002,as taxas de homicídios cres-ceram 444% (Gráfico 1).

Variados índices criminais também aumentam suaincidência, com destaque para as armas apreendidase os desaparecimentos.Nos últimos 10 anos,a apre-ensão de armas pelo efetivo da Polícia da Capital Flu-minense cresceu consideravelmente.Em 1994,apre-enderam-se 745 armas;no ano passado,a apreensãochegou a 6068, um aumento de 714% (Gráfico 2).

As armas confiscadas pela polícia no período 1994-2003 totalizaram 25.490 unidades,número suficien-te para equipar o efetivo da corporação na cidade.Temos ainda uma cifra pouco explorada por analis-tas e especialistas da área de segurança pública,masque merece atenção:o número de desaparecidos nacidade.Entre 1993 e 2002, foram registrados 16.426desaparecimentos (Gráfico 3),em sua maioria de pes-soas jovens.Grande parte ainda continua desapare-cida, e avalia-se que um número considerável des-ses desaparecidos foi morto por grupos ligados aotráfico de drogas ou em ações ilegais de membrosda polícia e/ou grupos de extermínio.

O aumento dos homicídios, os desaparecimentos eas apreensões de armas não são mera coincidênciae têm estreitas ligações com o tráfico de drogas. Asarmas utilizadas pelos traficantes em seus pontos devendas são de alto poder de destruição, e algumassão de uso exclusivo das forças armadas,por se con-figurarem como armas de guerras (fuzis, granadas,

4 Dados recentes divulgados pela Secretaria de Segurança Pública do Estado de São Paulo revelam que entre 2001 e 2003 no Municípiode São Paulo, maior e mais importante cidade brasileira, há uma correlação entre o percentual de aumento do desemprego e o sucedi-mento de 33 tipos de ocorrências policiais. Para cada percentual de aumento na taxa de desemprego dá-se o mesmo percentual de aumen-to dessas ocorrências.

Gráfico I: Taxas de homicídios (100.000) no Rio de Janeiro 1983-2002

submetralhadoras,metralhadoras e até minas terres-tres). As armas, em sua maioria, não são fabricadasno Brasil, mas contrabandeadas de países como osEUA, Israel, Rússia e Suíça, sendo utilizadas pelo trá-fico para defesa do território de seus negócios. Noentanto, já se observam casos de desvio de armamen-tos das forças armadas para grupos de traficantes,como ficou claro na recente apreensão de minasterrestre que tinham numeração do mesmo lote dasminas adquiridas pela Força Aérea Brasileira5.

A presença de armas poderosas, o constante con-flito entre facções que disputam os pontos de vendade drogas, o confronto entre estas facções e a polí-

cia, a migração de parte dessas armas para outrasatividades criminosas e a própria eliminação depessoas ligadas ao tráfico, por seus comparsas, sãoalgumas das razões do aumento substancial dehomicídios na cidade.

É importante, no entanto, entender o porquê dacidade do Rio se tornar a principal metrópole bra-sileira do tráfico de drogas. O Rio já registrava apresença de venda de maconha na década de 1920.6Entretanto a maior repressão a esse tipo de ativi-dade e o aumento mais significativo do consumo sedará nos anos 1960, apesar do Código Penal Brasi-leiro considerar crime o consumo e a venda de

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5 Segundo dados da Divisão de Fiscalização de Armas e Explosivos (Dfae) da Polícia Civil, entre 1950 e 2001 foram identificadas, entre asmais de 200 mil apreensões realizadas no Rio, cerca de 35 mil armas de guerra de uso exclusivo da polícia e das Forças Armadas. A polí-cia realizou um rastreamento que comprovou que a partir de 1995 cerca de um terço dessas armas (cerca de dez mil armas) saiu dosquartéis diretamente para os morros. Representam muitas vezes lotes inteiros de granadas, fuzis, submetralhadoras e pistolas automáticas,encontradas nos últimos sete anos com traficantes.6 Misse, M. Os Malandros, Marginais e Vagabundos & a Acumulação Social da Violência no Rio de Janeiro.Tese de Doutoramento, IUPERJ.Río de Janeiro, 1999. Misse, M.“O Movimento: redes de mercado de drogas”.Tempo e Presença, nº 323. Pág. 7-12: Mai/Jun, 2002. // Souza,M. J. L.“O tráfico de drogas no Rio de Janeiro e seus efeitos negativos sobre o desenvolvimento sócio-espacial”. Cadernos IPPUR/UFRJ, anoVIII, n.° 2/3, set/dez, 1994. // Fraga, P. C. P.“Da Favela ao Sertão: Juventude, Narcotráfico e Institucionalidade”. En: Fraga, P.C.P. & Iulianelli, J.A.“Jovens em tempo real”, Río de Janeiro: DP&A, 2003.

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Gráfico 2: Apreensão de armas pela Polícia na Cidade do Rio de Janeiro - 1994-2003

Gráfico 3: Pessoas desaparecidas no Rio de Janeiro - 1994-2003

determinadas substâncias psicoativas, como amaconha, desde a década de 1940.

O consumo até então restrito às áreas próximas aospontos de vendas (Bocas de Fumo), em bairrospobres ou em “franjas” do submundo do crime ouem zonas de prostituição7 , se estenderá aos seto-res da classe média impulsionado pelo movimentocontracultural, como forma de expressão e derebeldia de intelectuais e artistas ante a dura reali-dade do país, sob uma ditadura militar. Isso acarre-tará à atividade ilícita maior status no mundo crimi-nal, devido ao aumento do dinheiro que ela passa amovimentar.

As “Bocas de Fumo”, em sua maioria, estavam loca-lizadas em favelas e bairros da periferia nesse perí-odo, e, como se observa por meio dos relatos demoradores mais antigos dessas comunidades, eramuito comum a presença de consumidores dos bai-rros de classe média nas favelas e periferias, que sedeslocavam ate lá para comprar a substância.A polí-cia passará a fazer achaques nas bocas de fumo, ini-ciando um tipo de conduta de corrupção que nãosomente se tornará uma prática difundida na cor-poração, mas que será fundamental para o desen-volvimento da atividade Ilícita.

A entrada da cocaína no mercado varejista da droga,na segunda metade dos anos 1970, tornar-se-á a ati-vidade mais lucrativa8. A maior adesão à cocaínapelos consumidores se deu pela diminuição dopreço desse produto, em um período em que háuma maior oferta da mercadoria, do que propria-mente por um aumento de sua procura. No entan-to, o grande impulso da atividade criminosa e suamaior letalidade ocorrerão com a maior organizaçãodo tráfico, que passa a ter uma estrutura empresa-rial: assalariamento dos participantes, entrada mas-siva de pessoas na atividade, forte hierarquização emaior esquema de segurança.8 Essa maior organi-zação se efetivará primeiro com grupos que, a par-tir de reivindicações por melhores condições de vidanas penitenciárias do Rio de Janeiro9, trazem paraa vida criminal um melhor planejamento e a conse-

qüente possibilidade de maiores lucros e êxito. Aestrutura da organização se dá na forma de oligo-pólio de uma cúpula de negócios, como já ocorriaanteriormente com o jogo do Bicho. Isso significaque determinados grupos dividem o território dacidade, e cada um deles monopoliza as vendas emdeterminados bairros ou favelas.É bastante comumos grupos rivais se hostilizarem,buscando tomar os

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7 Misse, op cit., 20028 A maior presença de drogas e, em especial, de cocaína no mercado brasileiro, a partir desse período, aparentemente se deve à iniciati-va de produtores de coca de menor porte, na Bolívia, de buscar mercados regionais para escoamento do seu produto de qualidade infe-rior, como os do Rio de Janeiro e de São Paulo devido principalmente à concorrência dos Cartéis de Cali e de Medelín.A Cidade doRio de Janeiro também foi usada como base de venda de drogas para outros países. Há controvérsia quanto ao volume de cocaína quepassa por terras brasileiras. Segundo a Polícia Federal, o volume nunca foi muito significativo.A maioria da cocaína do tráfico no Rio sedestina ao consumo interno. Mas há investigadores que acreditam que 8% de toda a droga produzida em países andinos passam peloBrasil (Misse, 2002).9 Fraga, Misse, op cit. // Peralva,A.“Violência e Democracia: O Paradoxo Brasileiro”, São Paulo: Paz e Terra, 2001.

No final dos anos 1970, os presos do Pre-sídio da Ilha Grande, em Angra dos Reis,Estado do Rio de Janeiro, se organizarampara reivindicar melhores condições detratamento e se opor às torturas e aosmaus tratos praticados por agentespenitenciários. A idéia era evitar con-frontos entre os presos e produzir entreeles uma solidariedade, visando ao obje-tivo comum, que era sair da prisão emelhorar a vida em seu interior. O êxitodesse grupo, autodenominado FalangeVermelha, extrapolou o sistema einfluenciou atividades criminais, comoos assaltos a bancos, mas, principalmen-te, o ascendente negócio da venda decocaína. O grupo inicial foi preso e des-mantelado pelos organismos derepressão no Governo de Moreira Fran-co, entre 1987 e 1990. Houve uma rear-ticulação no início da década de 1990.Esses novos grupos se mostraram maisviolentos e pouco ligados às comunida-des, impondo-se cada vez mais pelaforça das armas. Apenas o caráter deorganização empresarial do crime foimantido, mas subdividiram-se os gru-pos. Hoje as favelas do Rio são mapea-das e dividas entre diversas facções. Asmais importantes são: Comando Ver-melho, Terceiro Comando e Amigo dosAmigos. Mas há uma constante frag-mentação desses grupos.

Cárceres e comandos

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pontos de venda alheios para ampliar seus lucros eraio de ação.Essas hostilidades geralmente resultamna morte de muitas pessoas envolvidas ou não coma venda, ampliando seus efeitos para além dos limi-tes dos pontos de venda. Foi o que ocorreu recen-temente, em junho de 2004, na Favela da Rocinha,quando um grupo rival tentou invadir o morro paratomar os pontos de venda ali situados. Morreramcerca de 10 pessoas, os moradores foram impedi-dos de entrar e sair da Favela e seus reflexos foramsentidos nas vias públicas adjacentes, num raio de 4km, de onde podia se podia ver e ouvir os intensostiroteios com fuzis e submetralhadoras. Essa práti-ca é bastante comum, e somente no mês de agos-to de 2004 houve tentativas de tomada de Bocas deFumo em favelas como o complexo da Maré, oMorro dos Macacos e o Complexo do Alemão,ondemorreram cerca de 20 pessoas. A ação da polícialimita-se geralmente à ocupação do morro, depoisde o conflito estar instalado.

As atividades proliferam-se nos morros cariocas,embairros da periferia e em outras cidades da RegiãoMetropolitana e do Estado do Rio de Janeiro. Esti-ma-se que das 704 favelas existentes na Cidade,ape-nas em duas não haja a compleição do narcotráfi-co. Esta presença ao longo dos anos mudou com-pletamente a rotina da cidade e,notadamente,a vidanas favelas. Em determinados períodos de conflitoentre os grupos rivais, os traficantes impõem um“toque de recolher”: a partir de determinado horá-rio,os moradores devem permanecer em suas casascom as luzes apagadas e ninguém deve circular nasruas, sob risco de ser punido. Quando algum inte-grante do bando é morto pela polícia ou em con-fronto com grupos rivais, imprime-se um “luto” queforça os estabelecimentos comerciais e as escolasno interior dos morros e nas ruas adjacentes afecharem as portas.A lista de arbitrariedades e man-donismos é grande, seus itens incluem “grampear”telefones, tomar casas consideradas estratégicaspara o negócio, entre outros, visando a controlar oterritório de seus negócios.

No entanto, o fato mais marcante foi a paralisaçãode praticamente todos os municípios situados naRegião Metropolitana do Rio,no segundo semestrede 2002.Segundo versão mais fidedigna,uma ordempartida dos presídios,onde estão encarcerados tra-ficantes influentes na hierarquia do tráfico, impôs atodos os estabelecimentos comerciais e industriais,ônibus e escolas, que paralisassem suas atividades

durante todo o dia,ou seriam retaliados.Apesar dosapelos das autoridades e da presença de efetivos dapolícia na rua,para que as pessoas desempenhassemsuas funções normalmente naquele dia, parecia queera feriado nos municípios.Demonstrou-se com issoque os códigos do tráfico são conhecidos por pra-

O jogo do bicho é um jogo de azar, cujaexploração é considerada uma contra-venção penal, um crime menos grave.Criado no início do Século XX, consisteem que as pessoas apostem em umanumeração (dezena, centena ou milhar),a que correspondem determinados ani-mais. Iniciado na cidade do Rio de Janei-ro, existe hoje em quase todo o Brasil. Aexploração é feita por pessoas cuja ori-gem dos seus recursos está associadageralmente a outras atividades ilícitas,como o contrabando. A sua forma defuncionamento implica na divisão dacidade em várias regiões, e cada dono deuma determina região ou ponto deverespeitar o espaço de exploração dooutro. Quando isso não se dá, ocorreuma série de conflitos e mortes, quegeralmente resultam em uma redefi-nição de áreas, dos pontos de exploraçãoe dos próprios responsáveis pelo funcio-namento . Existente até hoje, esse tipo deatividade perdeu espaço nas últimasdécadas no gosto popular e sua explo-ração não rende mais tanto dinheiroquanto em outras épocas. Os bicheirosou banqueiros do bicho, denominaçõesusualmente utilizadas para definir ochefe das áreas, têm bastante poder einfluência nas regiões em que atuam,pois realizam ações de cunho paternalis-ta em benefício das populações maispobres. Historicamente, sempre estive-ram atrelados aos desfiles das escolas desamba, que eram patrocinados por eles.A polícia tem uma relação bastanteambígua com esse tipo de contravenção:em alguns períodos reprime mais e, emoutros, não faz qualquer tipo de hostili-dade. Essa oscilação se dá por conta dosacordos realizados entre os bicheiros e asautoridades policiais, mediados por pro-pinas e achaques.

Jogo do Bicho

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ticamente toda a população, e que esta não vê nasautoridades e nos agentes de segurança pública acapacidade para lhes oferecer proteção.

Apesar da extrema violência com que se manifestae atua, o tráfico do Rio não é uma máfia, nos mol-des que se conhece. Segundo Misse (2002), ele nãoestá subordinado diretamente nem a grandes ata-cadistas, nem a organizações verticais estrangeiras,ou organizações do tipo família, como as máfiasnovaiorquinas e italianas.Embora possa ter uma basefamiliar local, esta dificilmente extrapola o “dono”ou o “gerente” da “Boca de Fumo”. Outra caracte-rística é que a organização das redes que lhes dãosustentação é bastante fragmentada e vulnerável.O “capital inicial” empregado para a compra de dro-gas (cocaína e maconha) advém,em sua maior parte,de roubos a bancos e de trocas no Paraguai decarros roubados no Brasil por esses produtos.

O narcotráfico no Rio de Janeiro é hoje, sem dúvi-da,o maior desafio de segurança pública do país.Seusreflexos se dão principalmente no espaço da RegiãoMetropolitana: entrada massiva de jovens em suasfileiras; constantes tiroteios entre facções e entreestas e a polícia, que atemorizam a população;corrupção das instâncias de poder constituído; ins-titucionalidade que funda uma nova escala de valo-res, onde a vida é um elemento precário e a impo-sição da força bruta e do consumismo de massa gan-ham relevância; ocorrência do esvaziamento dasredes de solidariedade; aumento da violência poli-cial; e maior dispêndio de recursos públicos para secontrapor aos efeitos dessa conjuntura, como nocaso das emergências hospitalares.

Suas causalidades mais profundas e possíveissoluções estão,todavia,para além dos limites metro-politanos. O combate à corrupção em diversosórgãos,como as polícias Civil,Militar e Federal,é fun-damental para evitar a chegada de armas pelas fron-teiras e o seu escoamento pelos aeroportos, rodo-vias e portos. É urgente um maior controle sobreo Judiciário, para impedir que juizes e promotoresfacilitem habeas corpus a traficantes e funcionáriospúblicos igualmente comprometido com atos decorrupção e prevaricação. Necessita-se retirar asfavelas, que representam 40% da população cario-ca, do isolamento em que foram historicamentecolocadas, como se não pertencessem à cidade,

excluídas de políticas públicas de educação, saúde,emprego e renda, promoção social e segurança. Eevitar com isso que o único órgão estatal que che-gue às favelas seja a polícia, cuja atuação sempre sepautou pelo descaso e desrespeitos aos seus mora-dores.

As políticas para a juventude são urgentes, pois éeste o setor da população mais atingido pela violên-cia e criminalidade.Vários programas já existentesem diversas favelas cariocas têm demonstrado queo que empurra os jovens para compor as fileiras donarcotráfico é muito mais o abandono que se encon-tram em termos de políticas culturais e educacio-nais que valorizem a sua criatividade,do que a meranecessidade de sobrevivência. Em termos interna-cionais, o sistema da ONU precisa rever a políticaproibicionista expressa nas Convenções SobreEntorpecentes, buscando formas eficientes de des-mantelamento das redes criminosas, sem criminali-zação dos pequenos agricultores e usuários.

A situação é complexa. Uma sucessão de governosestaduais nas últimas décadas não foi capaz de

10 Coimbra, C.“Operação Rio: O mito das classes perigosas”. Intertexto/Oficina del Autor: Niterói/Ro de Janeiro, 2001.

Em novembro de 1994, após pressões desetores da mídia e de empresários enuma campanha de desmoralização daspolícias civil e militar, o Exército ocupaos morros do Rio de Janeiro em açõesdenominadas Operações Rio I e II. Asoperações se tornam ineficientes nosseus propósitos e desfazem o mito deque o Exército é incorruptível e está pre-parado para qualquer ação. Denúnciasvêm à tona, como os desvios de armas,oficiais circulando com carros roubadose a morte misteriosa de alguns oficiaisque investigavam esses casos, não divul-gados pela imprensa.10 As operaçõesficaram marcadas também por casos detorturas praticadas por agentes do exér-cito. Recentemente, com o confrontoentre traficantes na Favela da Rocinhaque deixou 11 mortos entre traficantes,moradores e policiais, voltou-se a solici-tar apoio do Exército, desta feita paramissão especial com armamentos.

Incursão militar

enfrentar o problema de maneira competente. Insis-te-se apenas na solução armamentista, bélica.Aumenta-se o efetivo da polícia,equipa-se a corpo-ração com armamentos mais poderosos, recorre-se ao auxílio das forças armadas como forma demaior repressão. No entanto, a cada ano os resul-tados mostram-se mais ineficientes.Não há soluçãoou diminuição da criminalidade sem um amploinvestimento na reforma das instituições de segu-rança pública,visando a sua eficiência,melhores con-dições de trabalho e, principalmente, à transparên-cia de suas ações e respeito aos preceitos consti-tucionais.Da mesma forma,não é possível qualquermelhoria efetiva dos números sem a inclusão dapopulação em geral e, mais particularmente, dosmoradores das favelas, na formulação e implemen-tação de políticas públicas que efetivamente invis-tam em sua inclusão social e, finalmente,os integremà vida da cidade.

Apesar dos graves problemas que o tráfico de dro-gas traz para a população do Rio de Janeiro, a cida-de não está em guerra, como querem fazer acredi-tar os setores conservadores, a própria polícia eparte significativa dos meios de comunicação. A

questão do tráfico se insere, além dos fatoresexpostos anteriormente, no âmbito da segurançapública, e não é de forma alguma um problema desegurança nacional. Impulsionar essa mentalidade,reforçar esse argumento, significa dar salvo condu-to para o aumento de violações aos direitos huma-nos de grande parcela da população pobre da cida-de, que já são alarmantes. As drogas viraram asenha para chacinas, prisões arbitrárias e inculpardeterminadas pessoas de crimes. A perseguiçãoaos inimigos do regime militar parece ter sido subs-tituída nesses tempos neoliberais pelo estigma detraficante. A ilegalidade do tráfico de drogas foitransformada em uma prática delinqüente pelasinstituições do poder.Entendo com isso que sua ins-titucionalização nos morros cariocas, a prática vio-lenta de seus principais atores e sua capacidade dese tornar elemento de socialização na vida de mil-hares de crianças, adolescentes e jovens não sãoações paralelas ao poder. Não se constituem, por-tanto, como estranhas às artimanhas do poder,masfazem parte de seu continuum, que envolve a justiçapenal, os órgãos de detenção e repressão. Enfim,para usar uma expressão consagrada por Foucault(1997), é uma delinqüência útil.

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Dono Da Boca / Chefe

Fornecedor / Matuto

Gerente Geral

da pó

Endoladores

Bonde do Dono

Gerente Seguranças

Olheiros / Fogueteiros

Prestadoresde Serviço

Abastecedores Abastecedores

Vapores Vapores

Consumidor

Fluxo Hierárquico

Fluxo das Drogas

da Maconha

Estrutura Organizacional e Fluxo das Drogas em Boca de Fumo

Prestadores de Serviço: Não possuem um vínculo fixo com o tráfico. Fazem os chamados “manda-dos” ou “bicos”, que vão desde a compra de refeições para os integrantes da boca até a entrega de dro-gas em outras localidades . Olheiro/ Fogueteiro: Avisar, através de rádio transmissores ou fogos de artifício a chegada da polícia ou degrupos rivais.Seguranças/ Soldados: Fazem a segurança armada do ponto de venda. “O segurança fica fazendo a proteçãoda boca”Bonde do Dono: Grupo fortemente armado que faz a segurança particular do dono.Vapor: Encarregado de vender a droga.Endolador: Preparam a droga para o consumo, embalando-as em recepientes próprios e misturando-as à outras substâncias para obtenção de maior rendimento. Abastecedores: É o encarregado de abastecer os vapores com a droga já embalada para a venda.Gerentes da Maconha e do Pó: Administram a endolação e venda da mercadoria pela qual são responsáveis.Normalmente há gerentes para cada tipo e preço de droga. Prestam contas com o Gerente Geral.Gerente Geral: É o braço direito do chefe. Administram todo o processo de venda. Alguns moram na própriacomunidade, outros aparecem apenas para recolher o lucro das vendas.“Dono”: Indivíduo que comanda toda a estrutura da “boca”. Dificilmente moram na comunidade.

s análises precedentes permitem notaruma situação gerada por um nó derelações que brota do emaranhado dedisputas das políticas de drogas noBrasil. Se, do ponto de vista da pro-dução de substâncias ilícitas o Brasil

não se encontra na mesma situação que os paí-ses andino-amazônicos, nem por isso ele nãoé um país produtor.Aliás,essa discussão sobrepaíses produtores, consumidores e pontes éabsolutamente ideológica visto que,de algumamaneira, todos os países pertencem ao circui-to econômico das drogas. Por outro lado, asituação de violência urbana teve um incremen-to conjuntamente à presença do comércio dedrogas.Há, também,a violência nas áreas ruraisproduzida a partir da presença dessa cadeiaprodutiva.

Atualmente,no Brasil, existem três tendênciasrelativas a política de drogas. A que possuiposição hegemônico na prática e discursogovernamental é aquela proibicionista, repres-siva e militarizada. Os atores principais dessapolítica são a Senad, o Ministério do Exterior,o Ministério da Defesa e o Ministério da Jus-tiça. Por meio dela se implementam o reforçolegal – com justiça terapêutica e lei do abate,com o fito de coibir a oferta e a demanda.Umasegunda é aquela da redução de danos.O prin-cipal agente dessa política é o Ministério daSaúde. Essa é uma política que surge ligada àação de contenção da pandemia do HIV/AIDS,especialmente com a medida terapêutica dasubstituição de seringas.Tal medida se apóia,também,no sucesso das políticas públicas rela-tivas à prevenção do HIV/AIDS. Uma conquis-ta dessa postura da redução de danos foi a alte-ração do nome da Senad,de Secretaria Nacio-nal Anti-Drogas para Secretaria Nacional dePolítica de Drogas.

Uma terceira tendência, muito mais débil queas anteriores, tem que ver com o debate públi-co sobre controle social das drogas.Os atoresprincipais são o Ministério da Justiça e a Secre-taria Especial de Direitos Humanos. Nessecaso,se chega até a formular a possibilidade douso terapêutico da cannabis.De fato, no Semi-nário do Cebrid, realizado em 2003, recomen-dou-se que a cannabis fosse retirada da Lista1,de entropecentes,e aposta na Lista 4,de fár-

macos controlados. Trata-se de um cenárioainda em construção.

As conseqüências das políticas de drogas e daorganização empresarial para a cadeia produ-tiva das drogas têm sido nefastas para a socie-dade brasileira. Do ponto de vista imediato, éa questão do alto índice de homicídios, dejovens,pobres,negros,entre 15-24 anos,o quemais preocupa.Um outro efeito nefasto é pro-vocado para o mundo rural com a prisão detrabalhadores rurais que constroem estratégiasde sobrevivência possíveis. Preocupante, tam-bém, é a situação dos jovens nas comunidadesdas periferias urbanas que encontram nas ati-vidades comerciais relativas às drogas estilosde vida que lhes permitem sentir-se superior.Finalmente, é atordoante o tratamento legalque se tem oferecido à situação dos usuáriosde drogas, tratados como doentes e delinqüen-tes. É necessário que uma série de medidaspossa ser tomada para modificar o quadroatual. Isso tudo nos leva a sugerir que se apro-funde o debate público e, por isso, apresenta-mos as seguintes recomendações:

1.Nada significativo em termos de políticas dedrogas será realizado em países tão social-mente desiguais como o Brasil sem que polí-ticas sociais sejam implementadas. Para aquestão da economia política das drogas, daprodução ao consumo,são indispensáveis polí-ticas como a Reforma Agrária – políticas agrí-colas, fundiárias, crédito rural –; ações educa-tivas e formativas da população – especialmen-te voltada para as crianças e jovens das peri-ferias, ações que saldem o déficit habitacional– em especial nos centros urbanos;e uma sériapolítica cultural.

2. Em relação aos produtores rurais envolvi-dos na cadeia produtiva das substâncias ilícitasé necessário que se atente ao fato da necessi-dade econômica que os lança a tal atividade.Ainda antes de um debate público sobre a pro-priedade ou não de produzir-se tais substân-cias é imperioso que se discuta a ilegitimidadeda detenção e apenação dos agricultoresencontrados em áreas de cultivo. Até mesmo,há operadores do direito que propõem o usodo excludente jurídico nesse caso e,dependen-do das circunstâncias, que se avalie o fato des-

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C O N C L U S Õ E S E R E C O M E N D A Ç Õ E S

ses trabalhadores estarem submetidos a con-dições de trabalho degradante e de trabalhoescravo.

3. Em relação aos jovens envolvidos nas ativi-dades laborais do circuito das substâncias ilí-citas nas áreas rurais e urbanas, deve-se pro-mover,como nos demais campos de atividadeslaborais, a erradicação do trabalho infantil –com a conseqüente ação de promoção de ati-vidades educacionais e formativas para essasjovens em idade escolar e a uma formação cul-tural e cidadã integral. Além disso, há que seconstruir alternativas de geração de empregoe renda.

4. O problema da violência urbana precisa sertratado com a especificidade necessária. Devehaver a identificação do tipo de crime come-tido e dissociar-se as ativi-da-des vinculadas aoporte e uso de drogas daqueles outros atos cri-minosos com os quais são imiscuídos. Dessaforma, ao homicida que se lhe julgue o homi-cídio e não o fato de ser, tam-bém, por-tadorou usuário de drogas.

5. No marco do Estado de direito,a segurançaé uma das principais e mais urgentes necessi-dades. E necessário que se incentive campan-has pelo desarmamento e a aprovação de legis-lação sobre esse tema. Assim como é impor-tante que se debata os impactos que umalegislação menos repressiva no trato daquestão da cadeia produtiva de substâncias ilí-citas teria para esse fim. É importante estimu-lar-se experiências de comunidades não defen-didas, nas quais as populações possam, pormeios pacíficos,com o auxílio de atores locais,como escolas e igrejas traçar acordos de paz– que não seja a lei do silêncio. É necessáriouma completa reforma da polícia para comba-tir a corrupção policial, além de excessivaviolência policial.

6. Ainda em relação à violência urbana, éimportante que os legisladores observem naproposta de lei que ainda se encontra em tra-mitação no Senado a criação da figura do usuá-rio difusor. Essa figura termina por imputar aousuário o crime de tráfico que, conforme aatual legislação, é crime hediondo. Isso impu-tará ao usuário penalidade para trafi-cante,

detenção de 3 a 15 anos.É importante que nãose permita que esse e outros aspectos danin-hos da lei em pauta sejam aprovados.

7. O conjunto dos temas referentes às drogasdeveria ser tratado a partir do marco de umdebate sobre a redução de danos e o contro-le social das drogas. É necessário que se pro-duzam estudos mais acurados sobre os proces-sos produ-tivos e de circulação, seus efeitossocietários nas comunidades camponesas eurbanas, bem como polí-ticas públicas deredução de danos para as populações mais afe-tadas. Sem um tratamento mais objetivo dotema permaneceremos com políticas repres-sivas de impacto duvi-doso para os propósitosque se atêm – redução da oferta e da deman-da.

8. É necessária uma discussão sobre a coope-ração internacional e a questão regional nessetema no marco dos direitos humanos – espe-cialmente relativos aos direitos econômicos,sociais,culturais e ambientais.O processo polí-tico regional faz com que o Brasil tenha umpapel significativo que pode permitir um tra-tamento do tema a partir do desen-vol-vi-mento sustentável.O Brasil poderia contribuirpara reduzir os danos sociais e ambientais quea atual política de drogas em América Latinaproduzem. Seria necessário contribuir paraque estudos sobre os nefastos efeitos dasfumi-gações sobre a população humana e omeio ambiente na Amazônia fossem feitos, esolicitar ao governo colombiano que inter-rompesse essa ação. Bem como poderia soli-citar que se discutisse na América Latina usosindustriais e terapêuticos – sob o estrito con-trole do Estado – de plantas culti-vadas secu-lar-mente no continente, para o benefício daspopulações.

9. Seria oportuno se o Ministério da Saúde emseu Grupo de Trabalho sobre Política de Dro-gas, vinculado à Secretaria de Redução deDanos,ampliasse o espectro de discussão.Paratanto, seria importante que se oportunizasseespaço para os discursos dos usuários,das víti-mas de violência,dos trabalhadores rurais,e deespecialistas dessas áreas.

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C o n c l u s õ e s e R e c o m e n d a ç õ e s

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SÍTIOS WEB ÚTEIS

http://www.aborda.org.br Associaçao Brasileira de Redutores de Danos (ABORDA)

http://www.ibgf.org.brInstituto Brasileiro Giovanni Falcone

http://www.koinonia.org.brKoinonia

http://www.psicotropicus.orgPsicotropicus - Movimento Antiproibicionista

http://www.senad.gov.brSecretaria Nacional Antidrogas (SENAD)

http://www.unodc.org/brazilUnited Nations Office on Drugs and Crime (UNODC) Brazil Regional Office

REFERÊNCIAS

● Arantes, E “Considerações sobre a Lei Anti-Drogas”. Revista do Conselho Federal de Psicología,mayo de 2004.

● Emenda Substitutiva Global ao Proyecto de Ley n 7.134, de 2002 Senado Federal PLS115/2002.

● Foucault, M. Vigiar e Punir. Petrópolis. Ed.Vozes, 1997.

● Fraga, P. C. P.“Juventude,Violência e Narcotráfico no Brasil, Para Além do Rural e do Urbano.En: Iulianelli, J. A. & Mota. A. M. Narcotráfico e Violência no Campo. Río de Janeiro: DP&A, 2000.

● Fraga, P. C. P.“Violência no Brasil e vínculos com a organização criminal”. Tempo e Presença, nº323. Pág. 13-17: Mai/Jun. 2002.

● Proyecto de ley sobre drogas. Sigue el modelo americano y no trata del lucro delnarcotráfico. Brasilia, página web (http://noticias.correoweb.com.br) 14 de enero de2004.

● “Repressão, Descriminalização e Legalização”, Revista Crítica. Publicación del Centro AcadémicoCándido de Oliveira. Editora Forense, octubre/noviembre de 1993.

● De Souza, Jailson & Urani, André, Children in Drug Trafficking:A Rapid Assessment, Geneva: Inter-national Labour Organization, International Programme on the Elimination of Child Labour(IPEC), 2002. (www.ilo.org/public/english/standards/ipec/simpoc/brazil/ra/drug.pdf)

● Sustitutivo ao Projeto de Lei n 7.134, de 2002, Senado Federal PLS 115/2002

● Tema em Discussão: Consumo de Drogas. O Globo, 21 de febrero de 2004.

● Sergio Seibel,“Uma grande mudança que nada altera”. Folha de São Paulo, 11 de mayo de 2004.

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A indústria de drogas ilícitas impulsiona ostremendos problemas sociais e de violênciacriminal no Brasil. Os níveis de violênciarelacionados ao tráfico de drogas em centrosurbanos são comparáveis ao de uma zona deguerra. As armas matam mais jovens commenos de 18 anos a cada ano no Rio deJaneiro do que na Colômbia. No Nordesterural brasileiro, no chamado “polígono damaconha”, os níveis de violência são às vezesainda mais elevados, em virtude das brutaisdisputas pela terra e dos conflitosrelacionados ao cultivo ilícito de maconha.

Nesta edição de Drogas & Conflito, é descritoo pano de fundo da violência relacionada àsdrogas nas áreas de cultivo de maconha doNordeste. A nova lei que está em tramitaçãono Congresso também é avaliada. Embora anova lei seja um passo à frente para se fazeruma clara distinção entre um traficante e umusuário, permanece a dúvida se trataráefetivamente do problema, dado o seu âmbitolimitado.

É claro que as drogas não são a essência doproblema, mas as atuais políticas paracontrole delas apenas intensificam a violênciaque acompanha os conflitos sociais no Brasil.Esse é um enorme desafio para o governo dopresidente Lula. Fazendo uma aliança comoutras nações que querem reformar as leis dedrogas, o Brasil poderia ajudar a desenvolveruma política de redução de danos na área decontrole de drogas, o que implica toda acadeia que vai desde a produção até oconsumo - uma política na qual a cura não épior que a doença.

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Fundado en 1974, el TNI es unared internacional de activistas einvestigadores comprometidosa analizar críticamente los pro-blemas globales presentes yfuturos. Tiene como objetivoproporcionar apoyo intelectual alos movimientos sociales preo-cupados por conseguir unmundo más democrático, equi-tativo y sustentable.

El programa Drogas y Democraciadel TNI analiza, desde 1996, lastendencias de la economía ilegalde las drogas y de las políticas glo-bales sobre drogas, sus causas yefectos en la economía, la paz y lademocracia.

El programa realiza investigacio-nes de campo, promueve el deba-te político, provee información afuncionarios y periodistas, coordi-na campañas internacionales yconferencias, produce artículos ydocumentos de análisis, y mantie-ne un servicio electrónico de infor-mación sobre el tema.

El objetivo del programa y de laserie Drogas y Conflicto es promo-ver una reevaluación de las políti-cas actuales y presionar a favor depolíticas basadas en principiosacordes con la reducción del daño,el comercio justo, el desarrollo, lademocracia, los derechos huma-nos, la protección de la salud y elmedio ambiente y la prevenciónde conflictos.

O projeto Crime e Globalizaçãoinvestiga a sinergia entre globali-zação e crime e seus efeitos crimi-nogênicos, tais como a marginali-zação e o incremento de econo-mias informais, que obrigam aspessoas a “migrar para a ilegalida-de”. O projeto também focalizaacordos e convenções multilate-rais sobre lavagem de dinheiro,crime organizado transnacional eterrorismo,e seu impacto sobre asliberdades individuais, os direitoshumanos e a soberania nacional.

T R A N S N A T I O N A L