Uma história de amor

1
www.arquidiocesedesaopaulo.org.br | 17 de dezembro de 2014 a 7 de janeiro de 2015 | Especial de Natal | 19 “Mamãe. Pega, pega. Bola. Mamãe, olha. Bolacha. Nuna. Vem. Mas pé, pé, pé. Banana. Nana. Mãe, toma.” Durante quase duas horas de entrevista na casa de Andreia Schweitzer, 43, e de Sandor Rezende, 52, essas foram as palavras de João Pedro Schweitzer Rezende, 3 anos e 6 meses. Claro que a palavra mãe ele falou outras tantas vezes, além de chutar a bola, brincar de carro, quebra-cabeça, comer bolacha, banana e bolo, nessa or- dem. Andreia é paulistana do Bixiga e tra- balha na Editora Paulinas e ele, o Sandor, é assessor do desembargador do Tribunal Regional do Trabalho e dá aulas de direito. Casados há dez anos, resolveram adotar uma criança, depois de várias tentativas sem sucesso para engravidar. Contando assim, a história fica leve porque o vocabulário engraçado e inusita- do de João, o personagem principal, ajuda e muito. Mas para o casal foi um tempo de tensão e espera. Vamos brincar de outra coisa? “Como a maioria dos casais, a gen- te tentou muito tempo ter um filho por métodos naturais. Fui a um especialista em fertilização, fizemos uma primeira tentativa de inseminação artificial e não deu certo. Depois, a fertilização “in vitro”. Engravidei, mas perdi o bebê”, contou Andreia. Para uma mulher que está tentando en- gravidar, cada perda é um luto. E foi assim que partiram para a adoção. “A primeira ‘No dia seguinte, eu era mãe’ ‘NÃO HÁ UM DIA PARA CONTAR. MAS DIAS EM QUE SE CONTA AOS POUCOS E, UM DIA EM QUE A CRIANÇA PERGUNTA SE ELA FOI ADOTADA’, EXPLICOU MONICA NATALE, MEMBRO FUNDADOR DO GRUPO DE APOIO À ADOÇÃO DE SÃO PAULO NAYÁ FERNANDES [email protected] O trabalho do Gaasp é, so- breudo, de conscientização. “Ainda há uma cultura de ado- tar somente bebês e, muitas vezes, preconceitos acerca da etnia e do histórico familiar das crianças. Por esse motivo, há uma preparação de ambos os lados e isso pode fazer com que o processo demore um pouco mais”, explicou Monica. A partir da lei 12.010, de 2009, ficou estabelecido que o prazo máximo que uma criança pode ficar institucionalizada é de dois anos. Nesse tempo, pro- cura-se a reinserção no círculo familiar. Se não for possível, a criança fica disponível para adoção. Em São Paulo há cerca de 8 a 10 mil pretendentes e 2 mil crianças para adoção. Ela sa- lientou que tem crescido o nú- mero de pretendentes na capi- tal devido às novas formações familiares, casamentos tardios, pares homoafetivos e segunda união. Mãe adotiva, coordenadora da Associação dos Grupos de Apoio à Adoção e membro con- sultor da Frente Parlamentar de Adoção da Assembleia Legisla- tiva, Monica enfatizou que é im- portante compreender que “elas, as crianças, não têm a condição de coitadinhas. Quando peque- nas, acham que a culpa é delas e, no caso de terem passado por maus-tratos, há marcas difíceis e etapas a serem superadas”. Processos vitais nos escolheu”, contou Andreia, sentada no sofá, enquanto João, na sala do apartamen- to da família, chutava a bola sobre o olhar cuidadoso da “mãe de primeira viagem”. A história do Alberto e da Bruna Sentados no sofá também estavam Mo- nica Natale e seu esposo para a foto em que esperavam o primeiro filho. O caso deles também é de infertilidade, como a maio- ria dos casais que decidem adotar hoje no Brasil. “Tive vários abortos espontâneos e o médico falou que meus óvulos eram fracos e, além disso, havia uma incompatibilidade de sangue com meu marido que hoje não é mais um problema. Havia alguns métodos e eles me foram apresentados, mas meu marido e eu resolvemos adotar. À época, uma emissora de televisão fazia uma cam- panha de adoção e liguei. Falei com um pequeno grupo em São Paulo.” Monica teve o primeiro contato com o Grupo de Apoio à Adoção de São Paulo (Gaasp), em 2003 e participou da fundação oficial do órgão em 2005. Mas, foi em 2004 que ela experimen- tou, de fato, o significado da adoção. “Eu queria um bebê e, por isso, me cadastrei em 25 cidades. O Alberto veio de Porto Alegre (RS), recém-nascido. A mãe biológica dele, desde a gestação, havia manifestado desejo de entregar para a adoção”, contou a mãe que completará 12 anos de atuação volun- tária no Gaasp em 2015. Quatro anos depois do Alberto, ela foi buscar a Bruna em São João Del Rei (MG). “Ela era ruiva de olhos azuis e tinha pouco mais de 2 meses de idade. Lá, me contaram a história triste da família da Bruna...”. Os pais, desde quando decidiram ado- tar, começaram a fazer um álbum. “Tira- mos uma foto esperando no sofá. Aquela espera era a nossa gravidez. Depois, fotos deles com a gente nas cidades em que nas- ceram. Eu nunca falo em: o dia que você nasceu, mas o dia em que você chegou. Um dia, ele me perguntou, aos 3 anos e meio: ‘Mãe, eu não sai da sua barriga, né?’ Aí, eu contei a sua história.” para os pais, mas pais para as crianças e foi assim que, em agosto de 2010, eles recebe- ram a primeira ligação. “Eram três irmãos e eu fiquei muito empolgada, mas o San- dor me ajudou a entender que não tínha- mos nem mesmo espaço suficiente. Chorei muito, respirei fundo e fui em frente.” A segunda ligação, eles receberam quando estavam em viagem de férias. “Fal- tava uma semana para voltar ao Brasil e a assistente social disse, ao telefone, que não podia esperar. Foram os dias mais longos que vivi”, contou a mãe do João. Quando voltaram, a menina, de 10 meses já havia sido adotada. Uma semana depois, outro telefone- ma: “‘É um menino de 9 meses, de etnia negra... se vocês quiserem conhecer’. Fo- mos. O Sandor, curioso, virou a página do processo que a assistente social tinha em mãos e foi a primeira vez que vimos o João. Naquele momento, no ‘entre olhares’, ele fase é burocrática e, a partir daí, a gente preenche um formulário em que faz algumas opções acer- ca da criança.” A maioria dos ca- sais no Brasil escolhe crianças de 0 a 3 anos. Andreia e Sandor entraram com o processo para se torna- rem pretendentes à adoção, em março de 2009 e só em novem- bro, depois de várias visitas e entrevistas, receberam a habi- litação. “Na visita em casa, da assistente social, eu estava muito nervosa. Afinal, era uma avalia- ção para dizer se eu poderia ou não ser mãe.” O casal tinha consciência de que não se procuram crianças A primeira noite “No dia seguinte, eu saí do trabalho e disse: ‘Vou buscar meu filho’. Era dia 8 de março de 2011. Às 17h, fomos ao Tribunal assinar o termo e levamos duas horas para chegar à Pinheiros, onde era o abrigo do João. Só em casa me dei conta que não tínha- mos fraldas. Sandor saiu para comprar e, naquele momento, pensei... ‘E se ele estranhar?’ Quando coloquei o João no ber- ço, ele balbuciou: “Ma ma ma ma”. Dormiu a noite inteira e, no dia seguinte, eu era mãe”, contou emocionada Andreia, enquanto seu filho comia bolacha sentado no seu colo. Arquivo pessoal

description

Ela o colocou no berço e pensou: "Ele vai estranhar a primeira noite?" Mas, ao acomodá-lo, o João balbuciou: "Ma ma ma" e, no dia seguinte, eu era mãe.

Transcript of Uma história de amor

Page 1: Uma história de amor

www.arquidiocesedesaopaulo.org.br | 17 de dezembro de 2014 a 7 de janeiro de 2015 |Especial de Natal | 19

“Mamãe. Pega, pega. Bola. Mamãe, olha. Bolacha. Nuna. Vem. Mas pé, pé, pé. Banana. Nana. Mãe, toma.” Durante quase duas horas de entrevista na casa de Andreia Schweitzer, 43, e de Sandor Rezende, 52, essas foram as palavras de João Pedro Schweitzer Rezende, 3 anos e 6 meses. Claro que a palavra mãe ele falou outras tantas vezes, além de chutar a bola, brincar de carro, quebra-cabeça, comer bolacha, banana e bolo, nessa or-dem.

Andreia é paulistana do Bixiga e tra-balha na Editora Paulinas e ele, o Sandor, é assessor do desembargador do Tribunal Regional do Trabalho e dá aulas de direito. Casados há dez anos, resolveram adotar uma criança, depois de várias tentativas sem sucesso para engravidar.

Contando assim, a história fica leve porque o vocabulário engraçado e inusita-do de João, o personagem principal, ajuda e muito. Mas para o casal foi um tempo de tensão e espera.

Vamos brincar de outra coisa?“Como a maioria dos casais, a gen-

te tentou muito tempo ter um filho por métodos naturais. Fui a um especialista em fertilização, fizemos uma primeira tentativa de inseminação artificial e não deu certo. Depois, a fertilização “in vitro”. Engravidei, mas perdi o bebê”, contou Andreia.

Para uma mulher que está tentando en-gravidar, cada perda é um luto. E foi assim que partiram para a adoção. “A primeira

‘No dia seguinte, eu era mãe’‘Não há um dia para coNtar. mas dias em que se coNta aos poucos e, um dia em que a criaNça perguNta se ela foi adotada’, explicou moNica Natale, membro fuNdador do grupo de apoio à adoção de são paulo

Nayá [email protected]

O trabalho do Gaasp é, so-breudo, de conscientização. “Ainda há uma cultura de ado-tar somente bebês e, muitas vezes, preconceitos acerca da etnia e do histórico familiar das crianças. Por esse motivo, há uma preparação de ambos os lados e isso pode fazer com que o processo demore um pouco mais”, explicou Monica.

A partir da lei 12.010, de 2009, ficou estabelecido que o prazo máximo que uma criança pode ficar institucionalizada é de dois anos. Nesse tempo, pro-cura-se a reinserção no círculo familiar. Se não for possível, a criança fica disponível para adoção.

Em São Paulo há cerca de 8 a 10 mil pretendentes e 2 mil crianças para adoção. Ela sa-lientou que tem crescido o nú-mero de pretendentes na capi-tal devido às novas formações familiares, casamentos tardios,

pares homoafetivos e segunda união.

Mãe adotiva, coordenadora da Associação dos Grupos de Apoio à Adoção e membro con-sultor da Frente Parlamentar de Adoção da Assembleia Legisla-tiva, Monica enfatizou que é im-portante compreender que “elas, as crianças, não têm a condição de coitadinhas. Quando peque-nas, acham que a culpa é delas e, no caso de terem passado por maus-tratos, há marcas difíceis e etapas a serem superadas”.

Processos vitais

nos escolheu”, contou Andreia, sentada no sofá, enquanto João, na sala do apartamen-to da família, chutava a bola sobre o olhar cuidadoso da “mãe de primeira viagem”.

A história do Alberto e da Bruna

Sentados no sofá também estavam Mo-nica Natale e seu esposo para a foto em que esperavam o primeiro filho. O caso deles também é de infertilidade, como a maio-ria dos casais que decidem adotar hoje no Brasil.

“Tive vários abortos espontâneos e o médico falou que meus óvulos eram fracos e, além disso, havia uma incompatibilidade de sangue com meu marido que hoje não é mais um problema. Havia alguns métodos e eles me foram apresentados, mas meu marido e eu resolvemos adotar. À época, uma emissora de televisão fazia uma cam-panha de adoção e liguei. Falei com um pequeno grupo em São Paulo.”

Monica teve o primeiro contato com o Grupo de Apoio à Adoção de São Paulo (Gaasp), em 2003 e participou da fundação oficial do órgão em 2005.

Mas, foi em 2004 que ela experimen-tou, de fato, o significado da adoção. “Eu queria um bebê e, por isso, me cadastrei em 25 cidades. O Alberto veio de Porto Alegre (RS), recém-nascido. A mãe biológica dele, desde a gestação, havia manifestado desejo de entregar para a adoção”, contou a mãe que completará 12 anos de atuação volun-tária no Gaasp em 2015.

Quatro anos depois do Alberto, ela foi buscar a Bruna em São João Del Rei (MG). “Ela era ruiva de olhos azuis e tinha pouco mais de 2 meses de idade. Lá, me contaram a história triste da família da Bruna...”.

Os pais, desde quando decidiram ado-tar, começaram a fazer um álbum. “Tira-mos uma foto esperando no sofá. Aquela espera era a nossa gravidez. Depois, fotos deles com a gente nas cidades em que nas-ceram. Eu nunca falo em: o dia que você nasceu, mas o dia em que você chegou. Um dia, ele me perguntou, aos 3 anos e meio: ‘Mãe, eu não sai da sua barriga, né?’ Aí, eu contei a sua história.”

para os pais, mas pais para as crianças e foi assim que, em agosto de 2010, eles recebe-ram a primeira ligação. “Eram três irmãos e eu fiquei muito empolgada, mas o San-dor me ajudou a entender que não tínha-mos nem mesmo espaço suficiente. Chorei muito, respirei fundo e fui em frente.”

A segunda ligação, eles receberam quando estavam em viagem de férias. “Fal-tava uma semana para voltar ao Brasil e a assistente social disse, ao telefone, que não

podia esperar. Foram os dias mais longos que vivi”, contou a mãe do João. Quando voltaram, a menina, de 10 meses já havia sido adotada.

Uma semana depois, outro telefone-ma: “‘É um menino de 9 meses, de etnia negra... se vocês quiserem conhecer’. Fo-mos. O Sandor, curioso, virou a página do processo que a assistente social tinha em mãos e foi a primeira vez que vimos o João. Naquele momento, no ‘entre olhares’, ele

fase é burocrática e, a partir daí, a gente preenche um formulário em que faz algumas opções acer-ca da criança.” A maioria dos ca-sais no Brasil escolhe crianças de 0 a 3 anos.

Andreia e Sandor entraram com o processo para se torna-rem pretendentes à adoção, em março de 2009 e só em novem-bro, depois de várias visitas e entrevistas, receberam a habi-litação. “Na visita em casa, da assistente social, eu estava muito nervosa. Afinal, era uma avalia-ção para dizer se eu poderia ou não ser mãe.”

O casal tinha consciência de que não se procuram crianças

A primeira noite“No dia seguinte, eu saí do

trabalho e disse: ‘Vou buscar meu filho’. Era dia 8 de março de 2011. Às 17h, fomos ao Tribunal assinar o termo e levamos duas horas para chegar à Pinheiros, onde era o abrigo do João. Só em casa me dei conta que não tínha-mos fraldas. Sandor saiu para comprar e, naquele momento, pensei... ‘E se ele estranhar?’ Quando coloquei o João no ber-ço, ele balbuciou: “Ma ma ma ma”. Dormiu a noite inteira e, no dia seguinte, eu era mãe”, contou emocionada Andreia, enquanto seu filho comia bolacha sentado no seu colo.

arquivo pessoal