Uma história sobre a geometria de Os elementos de Euclides ...

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1 | 17 0 SNHCT ANAIS ELETRÔNICOS Uma história sobre a geometria de Os elementos de Euclides no Códice Atlântico de Leonardo da Vinci JEOVÁ PEREIRA MARTINS (UFPA) IRAN ABREU MENDES (UFPA) Resumo: Este trabalho relata um recorte de uma pesquisa mais ampla, em desenvolvimento e tem como foco a geometria de Os elementos de Euclides re- fletida no Códice Atlântico de Leonardo da Vinci. Neste texto pretendemos ar- gumentar que os fundamentos da geometria de Os elementos de Euclides foram tomados como base dos estudos de Leonardo da Vinci para a elaboração de di- versas das suas obras. Neste sentido, objetivamos identificar e descrever aspectos da geometria de Os elementos de Euclides registrada pelo artista em suas ano- tações e desenhos presentes no Códice Atlântico aqui tomado como uma fonte histórica, segundo Barros (2004), composta por 1119 folhas, nas quais Leonardo registrou seus estudos e apontamentos sobre temas ligados a arte, matemática e ciências naturais, dentre outros. A pesquisa se concretizou como um estudo investigativo exploratório na forma de uma pesquisa bibliográfica com base em uma edição em língua portuguesa do referido Códice, composta por 602 folhas de desenhos e transcrições organizadas em 10 volumes nos quais identificamos aspectos relativos à geometria de Os elementos de Euclides em pelo menos 36 folhas nas quais há indícios dessa geometria nos estudos de aprofundamento sobre o assunto ou feitos com a intenção de estabelecer correspondências e ana- logias entre a geometria e a arte. Deste modo, constatamos mais uma vez que Os elementos de Euclides foi uma das obras de geometria de maior importância para a constituição matemática de diversas artes visuais no desenvolvimento da relação entre arte e matemática na história. Em nosso estudo destacamos, ainda, que Leonardo da Vinci foi um dos estudiosos que estabeleceu amplamente essas relações entre arte e matemática em seu período histórico, pois o pintor renas- centista tomava como princípios de sua atividade artística a busca de correspon- dência entre a arte e a natureza, isto é, aproximações da arte com as ciências naturais, particularmente por meio da geometria. Palavras-Chave: Os elementos de Euclides; Da Vinci; Códice Atlântico; Histó- ria da Matemática e da Arte

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Uma história sobre a geometria de Os elementos de Euclides no Códice Atlântico de Leonardo da Vinci

JEOVÁ PEREIRA MARTINS (UFPA)IRAN ABREU MENDES (UFPA)Resumo: Este trabalho relata um recorte de uma pesquisa mais ampla, em

desenvolvimento e tem como foco a geometria de Os elementos de Euclides re-fletida no Códice Atlântico de Leonardo da Vinci. Neste texto pretendemos ar-gumentar que os fundamentos da geometria de Os elementos de Euclides foram tomados como base dos estudos de Leonardo da Vinci para a elaboração de di-versas das suas obras. Neste sentido, objetivamos identificar e descrever aspectos da geometria de Os elementos de Euclides registrada pelo artista em suas ano-tações e desenhos presentes no Códice Atlântico aqui tomado como uma fonte histórica, segundo Barros (2004), composta por 1119 folhas, nas quais Leonardo registrou seus estudos e apontamentos sobre temas ligados a arte, matemática e ciências naturais, dentre outros. A pesquisa se concretizou como um estudo investigativo exploratório na forma de uma pesquisa bibliográfica com base em uma edição em língua portuguesa do referido Códice, composta por 602 folhas de desenhos e transcrições organizadas em 10 volumes nos quais identificamos aspectos relativos à geometria de Os elementos de Euclides em pelo menos 36 folhas nas quais há indícios dessa geometria nos estudos de aprofundamento sobre o assunto ou feitos com a intenção de estabelecer correspondências e ana-logias entre a geometria e a arte. Deste modo, constatamos mais uma vez que Os elementos de Euclides foi uma das obras de geometria de maior importância para a constituição matemática de diversas artes visuais no desenvolvimento da relação entre arte e matemática na história. Em nosso estudo destacamos, ainda, que Leonardo da Vinci foi um dos estudiosos que estabeleceu amplamente essas relações entre arte e matemática em seu período histórico, pois o pintor renas-centista tomava como princípios de sua atividade artística a busca de correspon-dência entre a arte e a natureza, isto é, aproximações da arte com as ciências naturais, particularmente por meio da geometria.

Palavras-Chave: Os elementos de Euclides; Da Vinci; Códice Atlântico; Histó-ria da Matemática e da Arte

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1. IntroduçãoEste trabalho tem como foco a geometria de Os elementos de Euclides re-

fletida no Códice Atlântico de Leonardo da Vinci. Trata-se de um recorte de uma pesquisa mais ampla que dentre outras ações categorizou as folhas do referido códice que têm como tema central a geometria. Dentre tais categorias tomamos para este trabalho aquela que contém folhas que refletem a geometria de Os ele-mentos de Euclides. Trata-se de uma pesquisa bibliográfica de cunho qualitativo desenvolvida com o objetivo de identificar e descrever aspectos da geometria de Os elementos de Euclides registrada pelo artista em suas anotações e desenhos presentes nas folhas que compõem o Códice Atlântico.

Leonardo da Vinci (1452-1519) foi um polímata e desempenhou funções dis-tintas nas cortes de reis e governantes da Itália e da França nas quais atuou como pintor, escultor, arquiteto, engenheiro, mecânico. Sua obra é rica e volumosa pois, após sua morte em 1519 na França, seus estudos constituíam uma coleção com cerca de 13.000 páginas das quais, atualmente, conhece-se o paradeiro de mais ou menos 7000 reunidas em Códices como o Códice Atlântico da Biblioteca Ambrosiana de Milão com 1119 folhas de estudos de Da Vinci que foram orga-nizadas e publicadas por Pompeo Leoni no final do século XVI em Milão (ISAAC-SON, 2017; WHITE, 2002).

Recebe o nome de Códice Atlântico por se tratar de um manuscrito (códex) em folhas no formato atlântico, ou seja, folhas que têm as dimensões daquelas usadas na elaboração dos Atlas da época (65cm x 44cm). Nas décadas de 1960 e 1970 o Códice foi restaurado e, posteriormente, publicado em 12 volumes com as 1119 folhas. A esses volumes foram adicionados outros 12 contendo a trans-crição das anotações de Leonardo da Vinci, uma descrição de cada folha e notas explicativas, que compõem um aparato crítico elaborado por Algusto Marino-ni (1911-1997). Os 24 volumes, reproduzidos (em fac-símile) em edição luxuosa com tiragem de 998 exemplares, foram publicados pela editora Giunti-Barbera em Florença (NAVONI, 2012).

Em 2000 foi publicada uma edição em 3 volumes e em 2006 foi publicada uma edição em 20 volumes, ambas pela editora Giunti-Barbera em Florença com o mesmo conteúdo dos 24 volumes da edição anterior. Essa edição em 20 vo-lumes foi publicada pela Editora fólio na Espanha e dela foi feita uma tradução1 publicada no Brasil. A edição brasileira, foi a que tomamos como fonte para este estudo feito em 10 dos seus volumes que contemplam as 602 primeiras folhas do Códice Atlântico.

O Códice Atlântico reúne uma coleção de documentos que abarcam prati-camente toda a vida artística e científica de Leonardo, pois foram feitos de 1478 a 1519. Contém estudos e apontamentos práticos e teóricos sobre temas como:

1 Somente a introdução da coleção, a descrição e as notas (de cada folha) foram traduzidas para a Língua portuguesa.

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arquitetura, arte da guerra, mecânica, astronomia, hidráulica, óptica, anatomia, botânica, zoologia, estudos sobre o voo, estudos sobre a água, textos literários, anotações autobiográfica, perspectiva, aritmética e geometria, este último o foco de nossa pesquisa (ISAACSON, 2017; SÁNCHEZ; ALMARZA, 2008).

Os estudos de Da Vinci, sobre essa pluralidade de temas, foram motivados por sua atividade artística e por sua curiosidade em aprender sobre tudo o que a ele se apresentava. Na geometria, por exemplo, ele buscou elementos que pu-dessem conferir a suas pinturas a ideia de movimento e o fez quando estabeleceu analogias entre a sua arte e os conceitos da geometria de Os elementos de Eucli-des como as transformações volumétricas, da geometria sólida, e transformações entre figuras geométricas planas.

A analogia entre a geometria e as pinturas de Leonardo se estabeleceu quan-do ele percebeu que um corpo em movimento, se desloca, e mantém seu volume inalterado, ou seja, muda somente a forma. Partindo desse princípio, Leonardo empreendeu esforços nos estudos geométricos sobre alguns temas como a con-servação da área de figuras geométricas planas, o estudo da geometria sólida, no que se refere a conservação do volume de sólidos geométricos e a outros temas como a quadratura do círculo e a duplicação do cubo (ISAACSON, 2017).

O principal fundamento tomado por Da Vinci em seus estudos sobre geome-tria foram Os elementos de Euclides, um conjunto de 13 livros publicados por vol-ta do século IV a.C., por Euclides, com boa parte da geometria desenvolvida até então por ele e outros estudiosos antigos. Dede essa época, essa geometria vem influenciando estudiosos da matemática e de outras áreas como Da Vinci, cujos estudos sobre Os elementos, foram registrados em um número considerável de folhas dentre essas, as do Códice Atlântico (BICUDO, 2009).

Em nosso estudo identificamos, dentre as folhas do Códice, 36 folhas que contém indícios da geometria de Os elementos de Euclides materializados em anotações e desenhos de Da Vinci feitos em seus estudos de aprofundamento sobre o assunto ou com a intenção de estabelecer correspondências e analogias entre a geometria e a arte na representação de corpos e objetos naturais. Os pro-cedimentos e fundamentos dessa identificação estão na seção seguinte.

2. Identificações das folhas do Códice Atlântico que refletem geometria euclidianaA pesquisa se concretizou como um estudo investigativo exploratório na for-

ma de uma pesquisa bibliográfica com base na edição em língua portuguesa do referido Códice (já mencionada) composta por 602 folhas de desenhos e trans-crições organizadas em 10 volumes. O estudo exploratório se materializou pela leitura das 602 folhas o que demandou tempo e gasto de energia, consideráveis, devido ao grande volume de informações e as dificuldades em compreender o conteúdo das 602 folhas.

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As folhas contêm desenhos e anotações de Da Vinci sobre temas diversos que foram registrados por ele sem uma ordenação por temas, ou seja, uma única folha tem registro de vários temas e, em algumas, há desenhos que se sobre-põem aos outros. Além disso, por se tratar de manuscritos feitos nos séculos XV e XVI, as marcas do tempo também contribuem para que, em alguns casos, seja difícil entender qual o conteúdo da folha e a que ele se refere.

Diante disso, para identificar as folhas em que Da Vinci trata da geometria de Os elementos, lançamos mão do aparato crítico, referente a cada folha que consiste em uma descrição, em Língua Portuguesa, a transcrição do texto de Da Vinci em italiano (arcaico) e algumas notas explicativas sobre a transcrição. Em nosso trabalho esse manuscrito é uma fonte textual histórica tomada como ob-jeto de estudo segundo a perspectiva da fonte como “discurso”, ou seja, como portadoras de informações em si, cujo texto (no sentido ampliado) é abordado qualitativamente na busca por informações que estão submersas em suas cama-das complexas (BARROS, 2004, p. 135).

A identificação dos temas da geometria euclidiana refletida nas folhas foi mediada por uma “arqueologia” (BARROS, 2004, p. 32) que buscou pequenos indícios nos desenhos e anotações de Leonardo, bem como nos aparatos críticos, e os reuniu em um todo que evidenciou aspectos históricos da geometria, pois se trata de um manuscrito do século XV que, além de conter estudos sobre temas ligados a arte e matemática contém, também, os fundamentos desses estudos que remetem definições e proposições de Os elementos de Euclides. Nosso estu-do, então, se materializou pela correlação das informações dos desenhos com o aparato e se materializou nas seguintes etapas:

Leitura da descrição de cada folha para identificar sobre que temas ela se re-fere, pois, na maioria dos casos, essa descrição consegue fornecer tal informação. Porém, nem todas as descrições deixam claro do que a folha trata e em alguns casos as informações da descrição não correspondem aos desenhos da folha ou não conseguimos estabelecer correlação entre a descrição e os desenhos.

Leitura dos desenhos para os correlacionar com a descrição, pois, foi preciso constatar no desenho aquilo que está dito no texto, ou seja, visualizar nos dese-nhos os temas mencionados, por exemplo, se a descrição fala que há um triângu-lo retângulo que Da Vinci fez quando tentava demostrar o teorema de Pitágoras e que usou alguma proposição de Os elementos de Euclides nessa demonstração, olhamos a folha para identificar esse desenho e a demonstração do referido teo-rema segundo a geometria Euclidiana.

Leitura da transcrição do texto de Leonardo e das notas explicativas, pois, além do desenho e da descrição, o texto de Da Vinci fornece informações importantes sobre o que ele fez ou tentou fazer naquela folha e as notas explicativas trazem algumas informações que complementam o referido texto por terem sido feitas por pesqui-sadores especialistas no estudo dos manuscritos de Da Vinci. Como o texto está em Italiano, por vezes precisamos fazer uma tradução livre para melhor compreender.

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O estudo dos desenhos e dos aparatos críticos foi uma verdadeira “arqueo-logia” (BARROS, 2004, p. 32) por meio da qual fomos obtendo pequenas infor-mações e as correlacionando para comprovar se determinada folha trata ou não de aspectos sobre a geometria de Os elementos de Euclides e se nessa folha esse aspecto foi abordado de forma intencional por Leonardo da Vinci.

Os resultados obtidos indicam que, em pelo menos 36 folhas do referido Códice, há aspectos relativos à geometria de Os elementos de Euclides. Há folhas em que Leonardo faz referências diretas à geometria de Euclides, em outras há evidências de seus estudos de aprofundamento sobre o assunto, tendo em vista sua utilização prática na elaboração de desenhos e em outras folhas do Códice Atlântico os princípios euclidianos estão materializados nos próprios desenhos, com a intenção de estabelecer correspondências e analogias entre a geometria e a arte na representação de objetos naturais ou projeções arquitetônicas em geral.

As 36 folhas que identificadas foram: 43r, 44r, 44v, 81r, 81v, 100r, 225v, 281r, 295r, 395av, 409r, 453r, 462ar, 462av, 462br, 462bv, 474br, 474bv, 476v, 481v, 483br, 483bv, 502v, 506ar, 506br, 523r, 526av, 529r, 529v, 544r, 544v, 550v, 552r, 593r, 593v e 596r. Nelas há indícios de que Leonardo da Vinci fez estudos sobre a geometria de Os elementos de Euclides e a utilizou nos seus estudos geométricos, como tratamos na seção seguinte;

3. A geometria de Os elementos de Euclides refletida nas folhas do Códice Atlântico A identificação das 36 folhas já mencionadas fornece um panorama inicial

sobre a presença da geometria euclidiana no Códice Atlântico de Leonardo da Vinci, mas diante da amplitude de temas tratados em Os elementos de Euclides foi necessário saber, que geometria está refletida nas folhas em estudo? Para res-ponder tal questão, foi feito um estudo mais detalhado das 36 folhas, seguindo os mesmos fundamentos e procedimentos da identificação no que se refere à busca arqueológica por fragmentos de informações, nos desenhos, na descrição, na transcrição e nas notas explicativas que foram correlacionadas para que se constatasse quais definições e/ou proposições de Os elementos de Euclides esta-vam refletidas nas folhas identificadas.

Os resultados permitiram identificar, pelo menos duas formas de abordagem da geometria de Os elementos de Euclides nas folhas do Códice Atlântico em estudo: uma parte das folhas contém estudos de aprofundamento de Leonardo da Vinci sobre a geometria euclidiana; outra parte das folhas contém estudos de Leonardo sobre outros temas para os quais ele mobilizava os conhecimentos adquiridos sobre a geometria euclidiana.

Pa sintetizar esses resultados elaboramos o quadro 12 que trata das folhas com estudos de aprofundamento de Da Vinci sobre a geometria de Os elementos

2 Usamos as seguintes notações: noção comum (Nc), postulado (Pt), Definição (D) e proposição (P).

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e o quadro 2 que trata das folhas sobre outros temas para os quais Da Vinci utili-zou a geometria euclidiana. Cada quadro contém: as folhas identificadas, o tema abordado por Da Vinci na folha e a geometria euclidiana mobilizada ou estudada, ou seja, a proposição ou definição de Os Elementos de Euclides refletida no texto e/ou nos desenhos.

Quadro 1: estudos sobre Os elementos de Euclides nas folhas do Códice Atlântico

Nº Folha Os elementos Tema estudado1 462ar 5 Pt. e 9 Nc. livro I Retas, ângulos e circunferências.2 462 av P. 7, 13 e 14 I Ângulos e retas3 462 br P. 17,18,19 e 20 do I Soma dos ângulos internos do triângulo4 462 br P. 12 I Retas perpendiculares5 474br P. 1 I Triângulo equilátero6 474bv P. 10 I Divisão de um seguimento ao meio7 481v D. 14 XI Definição da esfera8 483br P. 13 e 14 I Retas perpendiculares e ângulos 9 483bv P. 7, I Retas, perpendiculares e ângulos10 502v Não especifica Retas perpendiculares e ângulos11 506ar P. 47 e 48 I; 1, 4, 6 II Teorema de Pitágoras12 506br P. 5 I. Triângulos isósceles13 544r P. 34 e 43 I; def. 2 II Quadratura do retângulo14 544V P. 34 e 43 I; D. 2 II Quadratura do retângulo15 552r P. 1 e 2 VII e 3 X Divisão de seguimentos16 593r P. 2 VI Construção de triângulos equivalentes17 593v P. 2 VI Construção de triângulos equivalentes

Fonte: elaborado pelos autores

O quadro 1 contém 17 folhas cujo conteúdo reflete a geometria de Os ele-mentos de Euclides e revelam a dedicação de Da Vinci para aprender tal geome-tria dentre essas folhas, cinco tratam de estudos sobre a geometria dos triângulos por meio das proposições 1, 5, 17,18,19 e 20 do Livro I e na proposição 2 do livro VI; seis abordam estudos sobre retas, ângulos ou circunferências por meio dos 5 postulados, 9 noções comuns e das proposições 7, 12 13 e 14, todos do Livro I; duas se referem a divisão de seguimentos pelas proposições 10 do livro I, 1 e 2 do livro VII e 3 do livro X; duas tratam da quadratura do retângulo por meio das proposições 34 e 43 do livro I e da definição 2 do livro II; uma contém estudos sobre o teorema de Pitágoras por meio das proposições 47 e 48 do livro I e 1, 4 e 6 do livro II e; em uma folha Leonardo da Vinci registrou seus estudos sobre a definição da esfera, definição 14 do livro XI.

A partir do quadro pode-se observar que das 17 folhas, somente na folha 481v Da Vinci trada da geometria sólida, nas demais aborda a geometria plana. Além disso, somente na folha 502v não ficou claro qual geometria de Os elementos de Eu-clides foi estudada mas, como essa folha trata do estudo de retas perpendiculares e ângulos, subentende-se que pode ter sido algo do Livro I já que em todas as demais folhas sobre esse tema foi estudado alguma definição ou proposição desse Livro.

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Além disso, pode-se inferir do quadro 1 o conteúdo de Os elementos que foi estudado por Da Vinci nessas 17 folhas, qual seja: Livro I: 5 postulados, 9 noções comuns e as proposições 1, 5, 7, 10, 12, 13, 14 17, 18, 19, 20, 34, 43, 47 e 48; Livro II: definição 2 e proposições 1, 4 e 6; Livro VI: proposição 2; Livro VII: Proposições 1 e 2; Livro X: proposição 3 e; livro XI: definição 14. A partir daí pode-se perceber que o livro que mais foi estudado, nessas folhas foi o Livro I o que pode indicar que elas podem ter sido feitas no momento em que Leonardo da Vinci teve os primeiros contatos com Os elementos de Euclides.

Para exemplificar esses estudos de Da Vinci destacamos as folhas: 462ar, na qual ele estudas os 5 postulados e as 9 noções comuns do Livro I, e a folha 462av na qual estudas as proposições 7, 13 e 14 do Livro I. As folhas estão retratadas na figura 1.

Figura 1: folhas 462ar e 462av do Códice Atlântico

Fonte: Sanchéz e Almarza (2008)

Nas folhas em estudo é possível perceber que os desenhos prevalecem em relação ao texto escrito pois, DA Vinci estudava o texto de Os elementos e elabora desenhos como se estivesse traduzindo essa geometria para a linguagem com qual tinha mais familiaridade, a da Arte. Ele registrou os conceitos da geometria euclidiana por meio de desenhos, que era uma das técnicas artísticas que domi-nava. A exemplo disso, a folha 462ar (figura 1 à esquerda), contém duas colunas de desenhos. Na coluna da esquerda há alguns desenhos de retas e circunferên-cias referentes aos 5 postulados do Livro I e na coluna da direita há desenhos que se referem às 9 noções comuns do Livro I. A folha 462av, por sua vez contém de-senhos de retas ângulos e circunferências que se referem às proposições 7, 13 e 14 do Livro I. Possivelmente essas folhas faiam parte de um fascículo dedicado ao estudo de Os elementos de Euclides desenvolvido por Leonardo e que ele estaria organizando (SÁNCHEZ; ALMARZA, 2008).

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Os estudos de Leonardo, provavelmente se basearam no manuscrito de Campano pois, no período de 1496 a 1499 Leonardo da Vinci conviveu, na corte de Ludovico Sforza, com o frade franciscano Luca Pacioli (1447-1517), célebre matemático italiano que em 1494 publicou o livro Summa de Arithimética o qual foi comprado por Leonardo segundo registro em um de seus cadernos. Pacioli chegou em Milão por volta de 1496 e sua amizade com Leonardo foi produtiva e duradoura (ISAACSON, 2017).

A amizade mencionada, foi de suma importância para os estudos de Leo-nardo sobre matemática, principalmente geometria uma vez que Da Vinci pre-tendia “aprender a multiplicação de raízes com o maestro Luca” bem como “as sutilezas e belezas da geometria euclidiana” (DA VINCI, apud ISAACSON, 2017, p. 233). Leonardo por sua vez, poderia oferecer ao amigo, sua habilidade sem igual de desenhar, o que se concretizou quando ele fez as ilustrações para o livro De Divina Proportione publicado por Pacioli em 1509. Vale ressaltar que tais ilustrações “foram os únicos desenhos que ele publicou ao longo da vida” (ISAACSON, 2017, p. 230).

Quando Leonardo fala sobre aprender as sutilezas da geometria euclidiana possivelmente se referia a Os elementos de Euclides cuja primeira edição impres-sa foi publicada em Veneza em 1482, em Latim, fruto da invenção da imprensa pelo alemão Johannes Gutenberg (? -1468) na década de 1430. Essa edição foi baseada em um manuscrito de Campano (um clérigo do século XIII) e pode ter sido adquirida por Leonardo que menciona Campano em algumas folhas do Códice Atlântico como 483br, 483bv, 474br e 483r. Além disso, Luca Pacioli pu-blicou uma edição de Os elementos de Euclides em 1509 que também pode ter sido adquirida por Leonardo da Vinci (ISAACSON, 2017; SÁNCHEZ; ALMARZA, 2008; TÓPICOS).

O que se infere desses fatos é que Leonardo pode ter aprendido a geome-tria Euclidiana com Pacioli visto que Da Vinci dominava o grego e o latim, por isso, deve ter contado coma a ajuda do amigo que, a essa altura, já deveria estar trabalhando na tradução da edição de Os elementos que publicou em 1509. Esse aprendizado foi levado por Leonardo por toda a vida o que se pode verificar no Códice Atlântico no qual tenta demonstrar as proposições a seu modo, por meio de desenhos, que era a ferramenta que dominava além de mobilizar a geometria euclidiana nas tentativas de demonstrações de seu interesse, como, por exemplo, a quadratura do retângulo e a quadratura do círculo, temas que podem ser ob-servados no quadro 2.

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Quadro 2: a geometria euclidiana mobilizada nas folhas do Códice AtlânticoNº Folha Euclides Tema01 43r Não especifica Equivalência entre retângulo quadrado e triângulos. 02 44r Não especifica Quadratura do círculo. Teorema de Pitágoras03 44v Não especifica Quadratura do círculo. Quadratura do retângulo.

04 81r P. 11 do V Quadratura do círculo. Proporcionalidade entre círculos e porções de círculo.

05 81v P. 10 e 11 V Quadratura do triangulo06 100r Não especifica Equivalência de volumes: cilindro e cone, prisma e pirâmide.

07 225v P. 2 XII, 37 e 47 I e 5 II

Quadratura do círculo. Superposições de superfícies e teorema de Pitágoras

08 281r P. 2 XII Quadratura do círculo. Proporcionalidade entre círculos09 295r P. 14 II Quadratura do círculo. Quadratura do retângulo10 395av P. 2 VI Decomposição da pirâmide11 409r Nc 7 I e P. 38 I. Equivalência entre triângulos, definição de círculo.

12 453r P. 2 XII Quadratura do círculo. Proporção entre os quadrados dos diâmetros dos círculos.

13 476v Não especifica Quadratura do círculo. Quadratura do retângulo.14 523r P. 6 I Quadratura do círculo. Equivalência por sobreposição. 15 526av P. 6 I Proporão: triângulo e paralelogramo16 529r P. 34 e 43 I Transformação entre pirâmides. Quadratura do retângulo17 529v P. 34 e 43 I Transformação de um sólido em outro. 18 550v P 37 I Equivalência entre triângulo e retângulo

19 596r P 14 II Quadratura do círculo. Construção geométrica da raiz quadrada de 1 a 15

Fonte: elaborado pelos autores

A partir do quadro é possível concluir que o tema mais frequente é a qua-dratura do círculo que, juntamente com a duplicação do cubo e a trissecção do ângulo, ficaram conhecidos como os três problemas de geometria da antiguida-de grega. Esse problema, que consistia em desenhar com régua e compasso um quadrado com área equivalente à de uma circunferência dada, foi um dos temas mais estudados por Leonardo que teria dedicado 10 anos de sua vida às tentati-vas de resolvê-lo. No quadro 1 pode-se verificar que ele o estudou nas folhas 44r, 44v, 81r, 225v, 281r, 295r, 453r, 476v, 523r e 596r (10 das 19 folhas).

Nas tentativas de demostrar tal problema Leonardo mobilizou a geometria de Os elementos de Euclides como um meio para se chegar a essa demonstração. A exemplo dessa mobilização temos a folha 225v na qual Da Vinci fez uso da pro-posição 47 do livro I que trata do teorema de Pitágoras e a folha 295r que contém indícios de que ele fez uso da quadratura do retângulo segundo a proposição 14 do livro I, ambas retratadas na figura 2.

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Figura 2: folhas 225v e 295r do Códice Atlântico

Fonte: Sánchez e Almarza (2008)

Na folha 225v (à esquerda) há 5 colunas de desenhos e anotações e, na última coluna, junto a margem direita há um desenho que se refere ao teorema de Pitá-goras (segundo desenho na vertical) no qual é possível visualizar que há um cír-culo inscrito em cada quadrado construído sobre os lados do triângulo. Na folha 295r (à direita), o desenho que se refere à quadratura do retângulo é o desenho maior que tem um desenho análogo mais abaixo (SÁNCHEZ; ALMARZA, 2008).

A geometria de Os elementos de Euclides foi tema de estudo de Leonardo que nela buscou elementos que fundamentassem sua arte cientificamente e, com isso, agregassem à sua atividade artística, particularmente à pintura, maior res-peito e credibilidade na sociedade do renascimento, pois, a pintura era tida como uma arte mecânica (de menor valor intelectual) cuja execução exigia, apenas, exercícios mecânicos, braçais, sem a necessidade de mobilizar o pensamento ao passo que as narrativas históricas, a poesia e a música, por exemplo, seriam de maior valor no contexto social e cultural da época (ISAACSON, 2017).

Nesse contexto Leonardo precisava defender a importância da pintura em debates públicos que recebiam o nome de Paragones (comparação, em italiano) e tinham como objetivo comparar “o valor de diversas disciplinas intelectuais, da matemática a arte, passando pela filosofia” e para os quis precisava estudar. Le-onardo se destacou em um paragone que ocorreu em 1498 cujo debate versava sobre geometria, escultura, música, pintura, e poesia (ISAACSON, 2017, p. 285)

Ele fez uma rigorosa defesa científica e estética da pintura – que na época era con-siderada uma arte mecânica -, argumentando que ela deveria ser tida na verdade como a mais elevada de todas as artes liberais, superando a poesia, a música e a escultura (ISAACSON, 2017, p. 285).

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A necessidade de defesa da pintura, consequentemente a sua fundamenta-ção nas ciências da época, aliada à mente inquieta de Leonardo, ávida por co-nhecimento, o impeliam a estudar e investigar sobre temas variados como a ge-ometria de Os elementos de Euclides, pois o pintor renascentista tomava como princípios de sua atividade artística a busca de analogias entre a arte e a natureza, isto é, aproximações da arte com as ciências naturais, particularmente por meio da geometria.

4. ConcussõesPara finalizar este texto destacamos que Leonardo da Vinci foi um dos estu-

diosos que estabeleceu amplamente as relações entre arte e matemática em seu período histórico por meio do estabelecimento de correspondência entre a arte e temas das matemáticas, ciências naturais e da própria natureza. A partir dessa constatação, identificamos e descrevemos a geometria de Os elementos de Eucli-des refletida em 36 folhas do Códice Atlântico de Leonardo da Vinci.

A identificação e descrição se materializou na elaboração dos quadros 1 e 2 que evidenciaram as folhas identificadas, os respectivos temas abordados e os conteúdos de Os elementos de Euclides refletidos nessas folhas. Os quadros foram comentados para que se esclarecesse seu conteúdo que foi, ainda, exem-plificado por 4 folhas do Códice Atlântico retratadas nas figuras 1 e 2. Portanto consideramos que os objetivos pré-estabelecidos foram alcançados.

Consideramos que este trabalho apresenta contribuições para o campo da a história das ciências por conter informações e aspectos históricos sobre as re-lações que foram estabelecidas entre as ciências e a arte no renascimento, prin-cipalmente para a história da matemática e arte por meio das relações entre arte e matemática estabelecidas por Leonardo da Vinci aqui representadas pela geometria de Os elementos de Euclides refletida nas folhas do Códice Atlântico.

Constatamos mais uma vez que Os elementos de Euclides foi uma das obras de geometria de maior importância para a constituição matemática de diversas artes visuais no desenvolvimento da relação entre arte e matemática na história, ou seja, se constituiu nos fundamentos que influenciaram estudiosos da Mate-mática, da Geometria, da Arte e de outros campos de conhecimento desde sua organização no século IV a.C

Consideramos que a elaboração deste trabalho contribuiu para a nossa for-mação pois, por mais que seja um trabalho curto, demandou gasto de energia e cognição na realização do estudo e na escrita do texto e isso que contribui para o aprimoramento intelectual e ampliação do campo de conhecimentos dos au-tores. Por fim esperamos que os leitores possam, também, apreender um pouco mais ao ler este trabalho e que ele provoque reflexões sobre a história das rela-ções entre arte e geometria como representantes das relações entre as ciências e a arte na história.

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