Uma interpretação Intencionalista das Imagens

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Uma interpretação intencionalista da imagem: percepção e comunicação visual humana Sylvio Állan Programa de Pós-Graduação em Teoria e Pesquisa do Comportamento Universidade Federal do Pará O presente trabalho propõe avaliar a relevância do uso do conceito de intencionalidade para a investigação de interações imagéticas humanas; em particular, da percepção e comunicação visual. O trabalho consiste em: (a) revisão e apresentação de um tratamento alternativo do conceito de intencionalidade; (b) descrição de abordagens representativas da percepção e comunicação visual humana, identificando suas principais características e críticas dirigidas a elas; (c) análise da coerência interna destas abordagens, a partir das categorias internalismo semântico e externalismo semântico; (d) interpretação da percepção e comunicação visual humana, a partir do conceito de intencionalidade, tal como proposto em a. Palavras-chave: intencionalidade; percepção visual; comunicação visual. ................................................................................................. As linhas de investigação das interações imagético-visuais humanas 1 têm proposto distintos modelos interpretativos e conceituais, dependentes dos referenciais teóricos e dos objetivos específicos compatíveis com seus focos de interesse. Elas também têm abordado distintos aspectos da produção e recepção de imagens visuais, com destaque para os aspectos sociais envolvidos na determinação das relações dos espectadores com as imagens visuais, principalmente: os meios e as técnicas de produção das imagens visuais; seu modo de circulação e reprodução; os contextos de acessibilidade a imagens visuais e os seus suportes de difusão (AUMONT, 1990). Mas a interpretação de interações imagético-visuais humanas depende também das ''expectativas'' dos indivíduos humanos em relação a seus objetivos ao interagirem imagético-visualmente com o mundo (JOLY, 1994). Alguns autores (p.ex., DENNETT, 1971; SEARLE, 1983; TOMASELLO, 1999, 2003) analisaram estas expectativas, quando investigando interações humanas em geral, dando destaque para o conceito de intencionalidade, tradicionalmente utilizado na filosofia da mente para designar uma propriedade referencial de certos estados mentais. No entanto, tais interpretações são, na sua maioria, voltadas para interações verbais humanas (p.ex.., leitura e comunicação verbal) ou interações não-imagéticas humanas (p.ex., crenças, desejos, ações intencionais). Por outro lado, os estudos especificamente voltados para interações imagético-visuais humanas que utilizam o conceito de intencionalidade, geralmente o fazem de modo generalizado, sem um tratamento preciso deste conceito. ÁLLAN (2007) e ÁLLAN e SOUZA (2010, no prelo) analisaram alguns tratamentos contemporâneos do conceito de intencionalidade em interpretações da cognição e da linguagem verbal humana. Eles propuseram que, salvo alguns pontos problemáticos (p.ex., a recorrência a conteúdos mentais e a justificação da intencionalidade como essência mental), o conceito de intencionalidade pode ser útil para a interpretação da cognição e da linguagem verbal humana, na medida em que ele enfatiza aspectos relacionais destas interações; evitando, por conseguinte, os problemas teórico-conceituais tradicionalmente envolvidos nas abordagens mentalistas da cognição e da linguagem verbal humana (p.ex., teorias estruturalistas da linguagem verbal). Considerando isto, o presente trabalho propõe avaliar a relevância do uso do conceito de intencionalidade para a interpretação de interações imagético-visuais humanas. Especificamente, analisaremos duas destas modalidades de interação; tradicionalmente, objetos de estudo da contemporaneidade: ''percepção visual'' e ''comunicação visual''. Embora defendamos a relevância do conceito de intencionalidade para análises das interações humanas, reconhecemos as dificuldades de lidar com este conceito, devido a uma série de implicações teóricas associadas ao seu uso tradicional, o que consideramos incompatível com nosso objetivo maior de analisar os fenômenos psicológicos humanos em termos de relações do homem com o mundo, sem a

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Sílvio Állan

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  • Uma interpretao intencionalista da imagem: percepo e comunicao visual humana

    Sylvio llan

    Programa de Ps-Graduao em Teoria e Pesquisa do Comportamento

    Universidade Federal do Par

    O presente trabalho prope avaliar a relevncia do uso do conceito de intencionalidade para a investigao de interaes imagticas humanas; em particular, da percepo e comunicao visual. O trabalho consiste em: (a) reviso e apresentao de um tratamento alternativo do conceito de intencionalidade; (b) descrio de abordagens representativas da percepo e comunicao visual humana, identificando suas principais caractersticas e crticas dirigidas a elas; (c) anlise da coerncia interna destas abordagens, a partir das categorias internalismo semntico e externalismo semntico; (d) interpretao da percepo e comunicao visual humana, a partir do conceito de intencionalidade, tal como proposto em a.

    Palavras-chave: intencionalidade; percepo visual; comunicao visual.

    .................................................................................................

    As linhas de investigao das interaes imagtico-visuais humanas1 tm proposto distintos modelos interpretativos e conceituais,

    dependentes dos referenciais tericos e dos objetivos especficos compatveis com seus focos de interesse. Elas tambm tm abordado

    distintos aspectos da produo e recepo de imagens visuais, com destaque para os aspectos sociais envolvidos na determinao das relaes

    dos espectadores com as imagens visuais, principalmente: os meios e as tcnicas de produo das imagens visuais; seu modo de circulao e

    reproduo; os contextos de acessibilidade a imagens visuais e os seus suportes de difuso (AUMONT, 1990).

    Mas a interpretao de interaes imagtico-visuais humanas depende tambm das ''expectativas'' dos indivduos humanos em relao

    a seus objetivos ao interagirem imagtico-visualmente com o mundo (JOLY, 1994). Alguns autores (p.ex., DENNETT, 1971; SEARLE,

    1983; TOMASELLO, 1999, 2003) analisaram estas expectativas, quando investigando interaes humanas em geral, dando destaque para o

    conceito de intencionalidade, tradicionalmente utilizado na filosofia da mente para designar uma propriedade referencial de certos estados

    mentais. No entanto, tais interpretaes so, na sua maioria, voltadas para interaes verbais humanas (p.ex.., leitura e comunicao verbal)

    ou interaes no-imagticas humanas (p.ex., crenas, desejos, aes intencionais). Por outro lado, os estudos especificamente voltados para

    interaes imagtico-visuais humanas que utilizam o conceito de intencionalidade, geralmente o fazem de modo generalizado, sem um

    tratamento preciso deste conceito.

    LLAN (2007) e LLAN e SOUZA (2010, no prelo) analisaram alguns tratamentos contemporneos do conceito de

    intencionalidade em interpretaes da cognio e da linguagem verbal humana. Eles propuseram que, salvo alguns pontos problemticos

    (p.ex., a recorrncia a contedos mentais e a justificao da intencionalidade como essncia mental), o conceito de intencionalidade pode ser

    til para a interpretao da cognio e da linguagem verbal humana, na medida em que ele enfatiza aspectos relacionais destas interaes;

    evitando, por conseguinte, os problemas terico-conceituais tradicionalmente envolvidos nas abordagens mentalistas da cognio e da

    linguagem verbal humana (p.ex., teorias estruturalistas da linguagem verbal).

    Considerando isto, o presente trabalho prope avaliar a relevncia do uso do conceito de intencionalidade para a interpretao de

    interaes imagtico-visuais humanas. Especificamente, analisaremos duas destas modalidades de interao; tradicionalmente, objetos de

    estudo da contemporaneidade: ''percepo visual'' e ''comunicao visual''.

    Embora defendamos a relevncia do conceito de intencionalidade para anlises das interaes humanas, reconhecemos as dificuldades

    de lidar com este conceito, devido a uma srie de implicaes tericas associadas ao seu uso tradicional, o que consideramos incompatvel

    com nosso objetivo maior de analisar os fenmenos psicolgicos humanos em termos de relaes do homem com o mundo, sem a

  • pressuposio de construtos mentais mediadores ou causalmente relevantes destas relaes.

    Deste modo, consideramos necessrio rever os pressupostos tericos sob os quais o conceito de intencionalidade est firmado e

    propor um quadro alternativo de hipteses que d fundamentao a um tratamento do conceito de intencionalidade compatvel com uma

    investigao relacionalista das interaes humanas. O resultado de tal empreendimento constituir o Captulo I do presente trabalho, o qual

    nos servir no apenas como referencial terico para a conduo de nossas investigaes ao longo do trabalho; mas tambm, servir para

    introduzir o leitor ao modo como as questes sero abordadas nos captulos seguintes. Devemos esclarecer, de antemo, que tais questes

    no so de ordem metodolgica, mas conceitual. Com efeito, nossa preocupao ao introduzir o conceito de intencionalidade anlise da

    percepo visual e da comunicao visual humana discutir como tais fenmenos podem ser pensados enquanto problemas conceituais. As

    implicaes metodolgicas da investigao destes fenmenos no fazem parte do escopo do presente trabalho, mas podem ser norteadas pelas

    ou beneficiar-se das questes derivadas das discusses aqui apresentadas.

    Nossa investigao consiste de quatro etapas: (a) reviso e apresentao de um tratamento alternativo do conceito de intencionalidade;

    (b) descrio de abordagens representativas da percepo visual e da comunicao visual humana, identificando suas principais caractersticas

    e crticas dirigidas a elas; (c) anlise da coerncia interna destas abordagens, a partir das categorias internalismo semntico e externalismo

    semntico; (d) interpretao da percepo visual e da comunicao visual humana, a partir do conceito de intencionalidade, tal como proposto

    em a.

    Intencionalidade

    Se aceitarmos o estatuto relacional das interaes humanas, podemos identificar trs tipos de relao ou modos de funcionamento

    destas interaes: ''sintaxe'', ''pragmtica'' e ''semntica''. A sintaxe pode ser definida por uma ''necessidade causal'' entre os elementos da

    interao, estabelecida pelas leis naturais e pela configurao original destes elementos (morfologia e fisiologia). A pragmtica pode ser

    definida por uma causalidade ''contingencial'' entre os elementos da interao, estabelecida por processos de seletividade em distintos nveis

    (filogentico, ontogentico e scio-cultural). A semntica pode ser definida por uma causalidade ''referencial'' entre os elementos da interao,

    estabelecida por processos naturais e scio-culturais.

    A cada um destes modos de funcionamento podemos atribuir um nvel de descrio causal das interaes humanas: um nvel

    ''sinttico'' (ou ''estrutural''), com destaque para a configurao e combinao dos elementos da interao; um nvel ''pragmtico'' (ou

    ''funcional''), com destaque para os efeitos das interaes, sejam estes sobre o prprio indivduo humano ou sobre o mundo; e um nvel

    ''semntico'' (ou ''intencional''), com destaque para as condies do mundo referidas ou significadas nas interaes humanas.

    Os modos sinttico, pragmtico e semntico de funcionamento das interaes humanas no so ''ontologicamente redutveis'' entre si,

    porque a condio de existncia de um no justificada pela condio de existncia do outro, embora tanto o modo sinttico quanto o

    pragmtico se manifestem no modo semntico. Mas os trs modos so fenmenos naturais e reais porque as interaes humanas so

    fenmenos naturais e reais. Os nveis sinttico, pragmtico e semntico de descrio causal das interaes humanas no so

    ''epistemologicamente redutveis'' entre si, porque a condio de acessibilidade a um destes modos no justificada pela condio de

    acessibilidade a outro modo.

    Portanto, a intencionalidade pode ser definida como um tipo de relao ou modo de funcionamento semntico das interaes humanas.

    O erro das hipteses materialistas da intencionalidade2 reduzir a semntica pragmtica (externalismo semntico) ou sintaxe (internalismo

  • semntico), porque a semntica ontolgica e epistemologicamente irredutvel sintaxe e pragmtica. Por outro lado, o erro das hipteses

    dualistas da intencionalidade tomar esta irredutibilidade ontolgica e epistemolgica da intencionalidade como justificativa para consider-la

    um fenmeno real, mas no-natural, no sentido de no-fsico. A intencionalidade to natural e real quanto sintaxe e pragmtica. Mas,

    neste caso, ''natural'' no se confunde com ''material''.

    A intencionalidade possui caractersticas semnticas especficas que lhe tornam distinguveis dos modos sinttico e pragmtico de

    funcionamento das interaes humanas: (a) a intencionalidade especifica ''condies relevantes'' (significados) de determinao e justificao

    destas interaes; (b) a intencionalidade depende de uma ''descrio semntica'', que enfatize estas condies relevantes; (c) embora a

    intencionalidade seja ontologicamente objetiva, tal qual a sintaxe e a pragmtica, ela ''epistemologicamente subjetiva'', i.e., acessvel apenas

    pela adoo da perspectiva na 1a pessoa; (d) a intencionalidade de uma modalidade de interao humana no ocorre isoladamente; ao invs

    disso, ela depende de sua relao com a intencionalidade de outras modalidades de interao humana que compartilham do mesmo campo

    semntico; alm de outras modalidades que agem como suporte para este campo semntico, embora no sejam, elas mesmas, baseadas em um

    modo de funcionamento semntico; (e) a intencionalidade depende de um modo de organizao e funcionamento ''sistmico'' da interao

    humana com o mundo, e no de partes do indivduo humano; (f) a intencionalidade pode ser estendida a contextos mais amplos e duradouros

    do que aqueles nos quais instncias de uma modalidade especfica de interao humana manifestam-se.

    As interaes humanas podem ser ditas possurem qualidade de self, no sentido de que o indivduo humano, ao interagir com o

    mundo, experiencia a si prprio de certo modo, sendo esta experincia acessvel somente a ele (epistemologia subjetiva). A qualidade de self

    no uma caracterstica sinttica, pragmtica ou semntica, porque ela no uma condio relacional das interaes humanas; mas ela

    justificada pelos modos sinttico, pragmtico e semntico de funcionamento das interaes humanas, pois ao interagir com o mundo, o

    indivduo humano manifesta uma qualidade de self.

    Em resumo, a intencionalidade um fenmeno to legtimo de investigao quanto os modos sinttico e pragmtico de funcionamento

    das interaes humanas. Mas, devido s caractersticas especficas a este modo de funcionamento, o desenvolvimento de uma teoria da

    intencionalidade, tal como concebemos este fenmeno, ainda est por realizar-se, requerendo para isso, a adoo de um aparato conceitual e

    metodolgico especfico, esforo este que apenas comeamos a esboar.

    Teorias da percepo visual humana

    As principais teorias da percepo visual humana (descritas nos Captulos II e III) podem ser classificadas em termos de como o

    sujeito percebe os objetos e estados de coisas do mundo, seja indireta ou diretamente. Em outras palavras, se a percepo justificada ou no

    pela mediao de estados e processos cognitivos.3

    A maior parte das teorias da percepo analisadas podem ser consideradas semanticamente internalistas, porque elas justificam o

    conhecimento derivado da percepo visual humana a partir de experincias perceptuais; e identificam estas experincias com estados e

    processos cognitivos/mentais internos. E na medida em que estas teorias defendem que as experincias perceptuais so semnticas (possuem

    significado), elas relacionam o contedo semntico das experincias perceptuais aos contedos mentais (estados e processos

    neurofisiolgicos).

    Consideramos que o erro das teorias da percepo visual humana semanticamente internalistas est no fato de que estados e processos

  • cognitivos so baseados em um modo sinttico de funcionamento e, portanto, no so condio suficiente para determinar ou justificar o

    modo semntico de funcionamento da percepo visual humana.

    Uma alternativa so aquelas teorias que rejeitam a hiptese de que a percepo visual humana determinada ou justificada por

    experincias perceptuais. Ou ento, defendem que as experincias perceptuais no so estados e processos cognitivos, mas relaes

    funcionais entre o sujeito que percebe e o mundo. Na medida em que elas propem que as informaes sensoriais para a construo do

    conhecimento perceptual esto no mundo, e no no sujeito que percebe, o contedo semntico da percepo visual humana tambm est no

    mundo. Assim, estas teorias da percepo visual humana podem ser denominadas ''semanticamente externalistas''.

    O problema com as teorias da percepo visual humana semanticamente externalistas que elas no conseguem justificar a existncia

    de objetos sensoriais ontologicamente dependentes das experincias perceptuais, nem o carter aspectual destas experincias.

    Em resumo, retomando o argumento apresentado no Captulo I: a inadequao das teorias semanticamente internalistas em lidar com a

    questo do significado da percepo visual humana est em reduzir a semntica na sintaxe da percepo visual humana. Do mesmo modo

    como, a inadequao das teorias semanticamente externalistas em lidar com a questo do significado da percepo visual humana est em

    reduzir a semntica na pragmtica da percepo visual humana.

    Interpretao intencionalista da percepo visual humana

    Parece-nos que a inadequao das teorias semanticamente internalistas e externalistas da percepo visual humana derivada de um

    erro de categoria lgica: a hiptese do ''objeto perceptual''. Quer dizer, a hiptese de que a percepo visual humana pressupe um objeto ou

    estado de coisas, sejam estes materiais ou mentais, apreendidos pela/na percepo visual (um correlato desta hiptese conhecido como o

    problema da ''transparncia'' da percepo). Esta hiptese levou estas teorias da percepo busca infrutfera de identificar os objetos

    perceptuais (p.ex., enquanto dados sensoriais, cdigos ou categorias perceptivas, esquemas ou representaes mentais analgicos ou

    simblicos, operaes algortmicas, objetos e estados de coisas do mundo, affordances).

    O erro categorial da hiptese do objeto perceptual considerar que perceber apreender algo; portanto, algo deve existir, de modo a

    ser apreendido pela/na percepo (se p q, ento q). Perceber visualmente ou em qualquer modalidade sensorial interagir com o mundo de

    um modo especfico, que lhe define como tal. Em outras palavras, perceber ''como'', no ''o que''. Por exemplo, a percepo visual de uma

    estrada de tijolos amarelos no revela informaes sobre o que percebido (p.ex., a estrada de tijolos amarelos), mas de que modo o sujeito

    percebe o mundo (p.ex., ''do modo'' de uma estrada de tijolos amarelos). Identificar o modo desta percepo visual significa identificar o

    modo de funcionamento semntico desta interao. Em outras palavras, a intencionalidade da percepo visual humana. A estrada de tijolos

    amarelos no um objeto ou estado de coisas do mundo ou representaes mentais do sujeito; mas, parmetros de configurao da

    experincia perceptual do sujeito, no sentido de condies relevantes (ou ''significado'') para que esta percepo visual funcione deste modo.

    Se no h algo no mundo material ou mental que seja percebido, e perceber no apreender algo, evitamos um problema caro s

    teorias da percepo: o problema do ''erro perceptual'', i.e., como justificar casos em que percebemos objetos e estados de coisas que no so

    aquilo que percebemos ou no existem quando percebemos. Se perceber interagir de certo modo, supe-se que este modo pode manter-se

    inclusive em circunstncias nas quais no h ''aquilo'' que percebemos. Isso nos permite lidar com o problema de como a percepo parece

    nos dar acesso a informaes do mundo (isto conhecido como o problema da ''abertura'' da percepo): porque perceber interagir ''com'' o

    mundo, no perceber ''o'' mundo.

  • Nossa interpretao pode ser acusada de solipsista4, na medida em que, ao admitimos que a percepo visual humana possui um

    modo de funcionamento semntico, epistemologicamente subjetivo, invalidamos a possibilidade de compartilharmos nossas experincias

    perceptuais com outros indivduos humanos. Mas o que invalidamos a descrio das experincias perceptuais de um sujeito sem considerar-

    se o modo como este sujeito percebe; e isto requer a adoo da perspectiva do sujeito que percebe.

    Interpretao intencionalista da comunicao visual

    Um problema clssico com o qual as teorias da comunicao visual tm se defrontado a justificao de formas de representao

    visual (p.ex., uma pintura, um desenho, uma fotografia, uma tira de quadrinhos) como sistemas de significao autnomos e a identificao

    dos processos pelos quais elas significam. Basicamente, as discusses giram em torno da hiptese de que representaes visuais possuem

    uma legibilidade justificada por cdigos icnicos especficos, independentes dos regimes de significao lingustica.

    Tendo apresentado nossa interpretao do fenmeno da intencionalidade, e derivado desta interpretao uma anlise do fenmeno da

    percepo visual, os passos que seguiremos para uma anlise do fenmeno da comunicao visual sero derivados dos modos como

    abordamos estes dois fenmenos anteriormente. Quer dizer, ao considerarmos que a comunicao visual uma modalidade de interao

    humana, sugerimos que possvel identificar nela um modo de funcionamento semntico (intencionalidade), ontolgica e

    epistemologicamente irredutvel ao seu modo de funcionamento sinttico e pragmtico. O desafio justificar no que consistem este modo de

    funcionamento no caso especfico da comunicao visual; em outras palavras, o que a comunicao visual significa quando significa.

    Para respondermos a isso necessrio analisarmos a relao entre comunicao visual e representao visual e entre representao

    visual e percepo visual. Comearemos pela ltima.

    Tradicionalmente, considera-se que formas de representao visual representam objetos e estados de coisas perceptveis; sejam estes,

    entidades materialmente existentes (fatos do mundo) ou no (p.ex., dados sensoriais, esquemas mentais, conceitos abstratos). Assim,

    representar visualmente significa uma percepo visual; e como perceber visualmente significa objetos ou estados de coisas percebidos

    (objetos perceptuais), a representao visual uma forma de significao de segunda ordem, cujo significado uma significao de objetos

    perceptuais.

    Agora, analisemos a relao entre comunicao visual e representao visual. Podemos propor duas hipteses sobre esta relao. A

    primeira afirma que as formas de comunicao visual significam formas de representao visual, pois ao comunicar visualmente, o que

    comunicado so informaes acerca de objetos e estados de coisas significados pela representao visual. Denominaremos esta hiptese de

    teoria representacional da significao visual5, no sentido de que a significao visual justificada por informaes previamente

    estabelecidas. Consequentemente, se comunicar visualmente significar uma representao visual; e esta, por sua vez, significa uma

    percepo visual, a qual significa objetos perceptuais, ento a comunicao visual uma significao de terceira ordem.

    Outra hiptese afirma que as formas de representao visual significam formas de comunicao visual, pois toda representao visual

    elaborada com o objetivo de comunicar informaes. Denominaremos esta hiptese de teoria comunicacional da significao visual6, no

    sentido de que a significao visual justificada pelos seus efeitos sobre uma audincia. Mas estes efeitos no esto relacionados s

    informaes da representao visual, e sim, s informaes da percepo visual. Quer dizer, a representao visual significa uma

  • comunicao visual que, por sua vez, significa uma percepo visual; ento a comunicao visual uma significao de segunda ordem. Por

    conseguinte, a representao visual uma significao de terceira ordem.

    Contudo, se propomos que a percepo visual no significa a apreenso de objetos perceptuais, mas modos de interao perceptual

    com o mundo, isso implica em dizer que ambas as hipteses representacional e comunicacional da significao visual so equivocadas. Pois

    nem a representao nem a comunicao visual significam a significao de objetos perceptuais, pois no existem objetos perceptuais

    significados pela (na) percepo visual.

    Em outras palavras, representar ou comunicar visualmente certo objeto ou estado de coisas no quer dizer que exista algo (o

    significado visual) equivalente a tais objetos ou estados de coisas, que seja apreendido pela (na) representao ou comunicao visual. Pois,

    se a representao e a comunicao visual significam alguma coisa, o que elas significam so modos de interao perceptual com o mundo.

    Mas ainda necessrio um esclarecimento: representao visual e comunicao visual possuem distintos significados. Porque

    enquanto a representao visual significa a percepo visual, a comunicao visual significa a representao visual. Isto difere da hiptese

    representacional da significao visual porque esta hiptese defende que o significado da representao e da comunicao visual idntico. O

    que sugerimos que o significado da representao visual a expresso visual do modo pelo qual o sujeito percebe no mundo. E o

    significado da comunicao visual a inteno de realizar esta expresso visual.

    Esta interpretao da comunicao e representao visual nos permite lidar com o problema do iconismo pela rejeio de significado

    icnico por analogia, pois no h uma realidade equivalente configurao icnica das representaes visuais. O que h a equivalncia entre

    modos de interao perceptual com o mundo e a configurao icnica das representaes visuais. E esta equivalncia depende tanto de

    processos naturais quanto scio-culturais, na medida em que percepo visual, representao visual e comunicao visual podem ser

    definidas por um modo de funcionamento semntico (intencionalidade), determinada por processos naturais e scio-culturais. Os processos

    naturais determinam as caractersticas semnticas destas modalidades de interao; os processos scio-culturais determinam os parmetros de

    configurao destas modalidades.

    Referncias

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