Uma Juíza Bruxa na Corte de Justiça

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1 osto das criaturas que sabem andar na noite. Sei muito bem quais são visíveis e quais são invisíveis. Sei quando nos enganam e quando nos ajudam, murmurando em nossos ouvidos, como se fossem o vento, em que devemos e não devemos acreditar. Eu mesma sou uma criatura da noite.

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osto das criaturas que sabem andar na

noite.

Sei muito bem quais são visíveis e quais

são invisíveis. Sei quando nos enganam e quando

nos ajudam, murmurando em nossos ouvidos, como

se fossem o vento, em que devemos e não devemos

acreditar.

Eu mesma sou uma criatura da noite.

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Até durante o dia, ando nesses corredores toda ves-

tida de preto. Essa roupa preta se chama toga. Sou

uma juíza e sou uma bruxa. Poucos sabem disso.

Só você e eu.

*Nos corredores dessa Casa de Justiça (ou Corte de

Justiça!) têm muita dor e muito mistério. É por isso

que as sombras estão neles. Para você e para mim.

Vamos entrando aqui devagar e com muito, muito

cuidado.

*Vi o Velho Juiz pela primeira vez quase às seis horas

da tarde.

Os corredores estavam vazios, havia poucas pessoas

no prédio e a luz fraca do sol caindo lá fora não

conseguia entrar inteira pela janela.

Ele parecia estar lá, naquela sala, há muito tem-

po e por toda a vida dele. Só uma parte do seu

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rosto era clara. A outra, um tanto sumida, eu quase

não via.

Mas eu o olhei com bastante atenção.

Ele não se mexeu. Não fez nenhum gesto. Os olhos

bem parados, atrás dos óculos.

Só ele estava lá, naquela sala quieta e deserta. Sen-

tado na cadeira de juiz, a mão estendida sobre um

processo.

Fui na direção dele até a porta. Ele continuou parado.

Tentei abrir a porta e estava trancada. Totalmente

trancada e ele, atrás dos vidros. Puxei um canto da

barra da toga e forcei a maçaneta. A porta estava

totalmente trancada e era a única da sala. E, quando

levantei de novo os olhos para a cadeira, ele havia

sumido. Não havia ninguém mais na sala. Foi assim

que eu soube. Eu sou uma juíza e sou uma bruxa.

E nesses corredores andam, com as sombras,

soturnos e silenciosos, os velhos juízes.

*

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Sou uma juíza esquisita, eu sei que sou.

Meu nome é Constança.

Sou magra como uma vassoura e, às vezes, não

penteio o cabelo, só para dar um susto nos outros

juízes.

Às vezes pego um lápis vermelho, verde ou azul e

ponho uma faixa colorida nos meus cabelos de bruxa.

Por causa disso, levei uma bronca do juiz guardião

das leis. Ele disse que juiz deve ser apresentável,

imponente, bem limpo, bem penteado, para dar o

exemplo.

E o exemplo é que ninguém deve entrar nessa Cor-

te, nessa Casa de Justiça, se não estiver limpo, bem

penteado, bem vestido e apresentável.

E foi por causa dessa bronca que eu conversei, pela

primeira vez, com o Velho Juiz.

Eu estava triste, tirando a tinta vermelha do cabelo,

quando o vi de novo, sentado na cadeira de Juiz. E

ele disse, com uma voz bem rouca:

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– Deixe disso.

Não era voz de gente que anda, ri, chora, come e

dorme. Era voz de gente parada. Assim, parada para

sempre.

– Você faz o que aqui?, ele perguntou.

– O mesmo que você já fez, respondi malcriadamente.

– Então deixe disso, repetiu ele, já um pouco bravo.

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– Vá até a rua. Veja quem são as pessoas que entram aqui.

– Ou nem conseguem entrar. Ande! – ordenou, vá até a rua!

E de repente eu estava na rua. Não sei como cheguei

tão rápido. Só podiam ser meus poderes de bruxa.

As pessoas estavam lá, esperando. Queriam falar

com o juiz. A maioria delas era pobrezinha. Algumas

tinham a roupa bem usada. Outras não tinham cor-

tado o cabelo. E algumas tinham pés quase descal-

ços, numas sandálias rasas.

Você sabe o que faz um juiz?

Ele vai dizer o que as pessoas podem ou não fazer,

ou ter, conforme uma lei manda. Se estão se desen-

tendendo por comportamento de uma delas, ou por-

que querem ter uma mesma coisa, só um juiz pode

dizer como a lei manda. O resultado que se alcança,

interpretando a lei.

Quem não é juiz não pode dar esse resultado e for-

çar os briguentos a cumpri-lo, bem como não pode

dizer com certeza como a lei será entendida.

Lei é coisa muito complicada.

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Você precisa primeiro ter certeza que você é uma

pessoa ou um ser vivente. Que coisas pode ter ou

não. E como pode usar essas coisas.

Por exemplo: você pode querer uma casa. Para ter

essa casa, vai precisar de um pedreiro ou, então,

você mesmo tentará fazer essa casa. Vai precisar de

tijolos. Vai precisar de cimento. De madeira para as

janelas. De telhas para os telhados.

E vai precisar de dinheiro para comprar tudo isso. E

se você não tem? E se lhe falta um emprego? E se

seu pai não é rico? E nunca foi rico?

Então você não pode ter uma casa. Vai ser muito

difícil conseguir essa casa. Também vai ser difícil

conseguir roupas limpas, boas e apresentáveis. Vai

até ser muito difícil conseguir cortar e pentear bem

os seus cabelos.

Por isso a lei vai até dizer que você tem direito a ter

uma casa, alimentos, roupas boas e ser apresentável.

Mas, quando falta dinheiro e nem se sabe onde

buscá-lo, você continua assim, sem casa, sem roupas

e sem seu cabelo arrumado. Porque a lei não lhe dá

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nada disso e o juiz pode entender que você deve tê-

las, mas ele também não lhe conseguirá isso.

Leis e juízes são coisas muito complicadas.

Eu voltei para a sala e o Velho Juiz não estava mais lá.

Fiquei com a tinta vermelha no cabelo e fui andan-

do, devagar, pelos corredores, pensando.

E aí passou um vento e uma sombra com a mesma

voz rouca do Velho Juiz e disse:

– Não tente dar um exemplo de ostentação se poucas

pessoas podem segui-lo. Deixe de ser tola e arrogante.

Foi assim que eu soube que os velhos juízes andam

pelos corredores, sem mãos, sem pés, só com suas

sombras.

*Nesses compridos corredores há entradas secretas

de caminhos subterrâneos.

Se você consegue encontrar algumas, ouvirá vozes.

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Nem todas falam a mesma língua.

Você vai pensar que juízes pensam igual, trabalham

juntos, dão-se as mãos e são muito amigos uns dos

outros. Não. Não é bem assim.

Há os Juízes Guardiões das Leis.

Eles passam todo o tempo lendo essas leis e dizendo

o que as pessoas perdem ou ganham com essas leis.

Ou podem ou não podem fazer. O que a lei diz, o

juiz manda.

E você fica com a impressão de que esses juízes pas-

sam dias e noites decorando essas leis. Eles sempre

as têm na ponta da língua.

Por isso, às vezes, eu mostro a minha língua no espe-

lho. Quero ver se eu também estou ficando com leis

grudadinhas nela. E, se estou, corro lavá-la com água

e sabão e passo o resto do dia com um gosto ruim

na boca para me lembrar sempre que…: repetir, re-

petir e repetir as leis, sem pensar no que elas dizem

ou podem dizer melhor, é como contar mentiras.

A gente tem que ter sempre a boca lavada com sabão.

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*Depois há os Juízes Com Amor pela Justiça.

A Justiça é uma mulher bonita, vestida de grega,

com uma balança em uma mão e uma espada na ou-

tra e um lenço sobre os olhos. É isso que você sabe

da Justiça? Então é bem pouco. Porque isso é uma

imagem, um retrato ou o que fizeram da Justiça.

A Justiça, na verdade (e isso é um segredo que lhe

conto!), é a ideia do Bem que a gente tem. O Bem que a

gente quer que nos aconteça. E às pessoas que amamos.

Por exemplo, ter uma casa, um abrigo, uma cama.

Eu adoro a minha cama. Não sei se você gosta da

sua, mas eu, Ah!, como gosto de mergulhar nos

lençóis lavados, cheirando bom, com uma manta ou

um edredom, quando faz frio! Como é bom! Mas se

penso naqueles que vagam pelas ruas e são criaturas

das noites frias e chuvosas, ou de grandes tempesta-

des e sem uma casa, eu cubro a minha cabeça, por-

que é muito difícil dar uma casa para essas pessoas.

Outro exemplo é ter uma mesa e se sentar em volta

dela. E encontrar, em cima dela, leite, café, pão,

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frutas ou arroz e feijão, todos os dias! Mas também

não é uma lei que vai conceder isso a todos que

caminham pelas ruas com a barriga vazia e a cabeça

sonhando com um alimento bom.

Outro Bem enorme é ter um trabalho. A gente

sempre prefere um trabalho que se gosta de

fazer. Mas, na verdade, viver sem nenhum

trabalho e sem receber dinheiro ou salá-

rio por causa dele, é o primeiro passo

para se tornar um sem-teto ou um

sem-comida.

Agora você pensa melhor o que é o Bem.

É a segurança. É o conforto. É a aparência

boa que a pessoa tem, quando tem isso

tudo.

E por isso a Justiça não é aquela grande

dama branca de olhos vendados para

não ver quem está brigando, mas ape-

nas repetir as leis. Ela é a Ideia de que

todos devem ter direito à segurança,

ao conforto e a uma aparência boa,

conquistada com o seu trabalho.