Uma Juíza Bruxa na Corte de Justiça
-
Upload
diagrama-editorial -
Category
Documents
-
view
216 -
download
3
description
Transcript of Uma Juíza Bruxa na Corte de Justiça
1
osto das criaturas que sabem andar na
noite.
Sei muito bem quais são visíveis e quais
são invisíveis. Sei quando nos enganam e quando
nos ajudam, murmurando em nossos ouvidos, como
se fossem o vento, em que devemos e não devemos
acreditar.
Eu mesma sou uma criatura da noite.
2
Até durante o dia, ando nesses corredores toda ves-
tida de preto. Essa roupa preta se chama toga. Sou
uma juíza e sou uma bruxa. Poucos sabem disso.
Só você e eu.
*Nos corredores dessa Casa de Justiça (ou Corte de
Justiça!) têm muita dor e muito mistério. É por isso
que as sombras estão neles. Para você e para mim.
Vamos entrando aqui devagar e com muito, muito
cuidado.
*Vi o Velho Juiz pela primeira vez quase às seis horas
da tarde.
Os corredores estavam vazios, havia poucas pessoas
no prédio e a luz fraca do sol caindo lá fora não
conseguia entrar inteira pela janela.
Ele parecia estar lá, naquela sala, há muito tem-
po e por toda a vida dele. Só uma parte do seu
3
rosto era clara. A outra, um tanto sumida, eu quase
não via.
Mas eu o olhei com bastante atenção.
Ele não se mexeu. Não fez nenhum gesto. Os olhos
bem parados, atrás dos óculos.
Só ele estava lá, naquela sala quieta e deserta. Sen-
tado na cadeira de juiz, a mão estendida sobre um
processo.
Fui na direção dele até a porta. Ele continuou parado.
Tentei abrir a porta e estava trancada. Totalmente
trancada e ele, atrás dos vidros. Puxei um canto da
barra da toga e forcei a maçaneta. A porta estava
totalmente trancada e era a única da sala. E, quando
levantei de novo os olhos para a cadeira, ele havia
sumido. Não havia ninguém mais na sala. Foi assim
que eu soube. Eu sou uma juíza e sou uma bruxa.
E nesses corredores andam, com as sombras,
soturnos e silenciosos, os velhos juízes.
*
4
Sou uma juíza esquisita, eu sei que sou.
Meu nome é Constança.
Sou magra como uma vassoura e, às vezes, não
penteio o cabelo, só para dar um susto nos outros
juízes.
Às vezes pego um lápis vermelho, verde ou azul e
ponho uma faixa colorida nos meus cabelos de bruxa.
Por causa disso, levei uma bronca do juiz guardião
das leis. Ele disse que juiz deve ser apresentável,
imponente, bem limpo, bem penteado, para dar o
exemplo.
E o exemplo é que ninguém deve entrar nessa Cor-
te, nessa Casa de Justiça, se não estiver limpo, bem
penteado, bem vestido e apresentável.
E foi por causa dessa bronca que eu conversei, pela
primeira vez, com o Velho Juiz.
Eu estava triste, tirando a tinta vermelha do cabelo,
quando o vi de novo, sentado na cadeira de Juiz. E
ele disse, com uma voz bem rouca:
5
– Deixe disso.
Não era voz de gente que anda, ri, chora, come e
dorme. Era voz de gente parada. Assim, parada para
sempre.
– Você faz o que aqui?, ele perguntou.
– O mesmo que você já fez, respondi malcriadamente.
– Então deixe disso, repetiu ele, já um pouco bravo.
6
– Vá até a rua. Veja quem são as pessoas que entram aqui.
– Ou nem conseguem entrar. Ande! – ordenou, vá até a rua!
E de repente eu estava na rua. Não sei como cheguei
tão rápido. Só podiam ser meus poderes de bruxa.
As pessoas estavam lá, esperando. Queriam falar
com o juiz. A maioria delas era pobrezinha. Algumas
tinham a roupa bem usada. Outras não tinham cor-
tado o cabelo. E algumas tinham pés quase descal-
ços, numas sandálias rasas.
Você sabe o que faz um juiz?
Ele vai dizer o que as pessoas podem ou não fazer,
ou ter, conforme uma lei manda. Se estão se desen-
tendendo por comportamento de uma delas, ou por-
que querem ter uma mesma coisa, só um juiz pode
dizer como a lei manda. O resultado que se alcança,
interpretando a lei.
Quem não é juiz não pode dar esse resultado e for-
çar os briguentos a cumpri-lo, bem como não pode
dizer com certeza como a lei será entendida.
Lei é coisa muito complicada.
7
Você precisa primeiro ter certeza que você é uma
pessoa ou um ser vivente. Que coisas pode ter ou
não. E como pode usar essas coisas.
Por exemplo: você pode querer uma casa. Para ter
essa casa, vai precisar de um pedreiro ou, então,
você mesmo tentará fazer essa casa. Vai precisar de
tijolos. Vai precisar de cimento. De madeira para as
janelas. De telhas para os telhados.
E vai precisar de dinheiro para comprar tudo isso. E
se você não tem? E se lhe falta um emprego? E se
seu pai não é rico? E nunca foi rico?
Então você não pode ter uma casa. Vai ser muito
difícil conseguir essa casa. Também vai ser difícil
conseguir roupas limpas, boas e apresentáveis. Vai
até ser muito difícil conseguir cortar e pentear bem
os seus cabelos.
Por isso a lei vai até dizer que você tem direito a ter
uma casa, alimentos, roupas boas e ser apresentável.
Mas, quando falta dinheiro e nem se sabe onde
buscá-lo, você continua assim, sem casa, sem roupas
e sem seu cabelo arrumado. Porque a lei não lhe dá
8
nada disso e o juiz pode entender que você deve tê-
las, mas ele também não lhe conseguirá isso.
Leis e juízes são coisas muito complicadas.
Eu voltei para a sala e o Velho Juiz não estava mais lá.
Fiquei com a tinta vermelha no cabelo e fui andan-
do, devagar, pelos corredores, pensando.
E aí passou um vento e uma sombra com a mesma
voz rouca do Velho Juiz e disse:
– Não tente dar um exemplo de ostentação se poucas
pessoas podem segui-lo. Deixe de ser tola e arrogante.
Foi assim que eu soube que os velhos juízes andam
pelos corredores, sem mãos, sem pés, só com suas
sombras.
*Nesses compridos corredores há entradas secretas
de caminhos subterrâneos.
Se você consegue encontrar algumas, ouvirá vozes.
9
Nem todas falam a mesma língua.
Você vai pensar que juízes pensam igual, trabalham
juntos, dão-se as mãos e são muito amigos uns dos
outros. Não. Não é bem assim.
Há os Juízes Guardiões das Leis.
Eles passam todo o tempo lendo essas leis e dizendo
o que as pessoas perdem ou ganham com essas leis.
Ou podem ou não podem fazer. O que a lei diz, o
juiz manda.
E você fica com a impressão de que esses juízes pas-
sam dias e noites decorando essas leis. Eles sempre
as têm na ponta da língua.
Por isso, às vezes, eu mostro a minha língua no espe-
lho. Quero ver se eu também estou ficando com leis
grudadinhas nela. E, se estou, corro lavá-la com água
e sabão e passo o resto do dia com um gosto ruim
na boca para me lembrar sempre que…: repetir, re-
petir e repetir as leis, sem pensar no que elas dizem
ou podem dizer melhor, é como contar mentiras.
A gente tem que ter sempre a boca lavada com sabão.
10
*Depois há os Juízes Com Amor pela Justiça.
A Justiça é uma mulher bonita, vestida de grega,
com uma balança em uma mão e uma espada na ou-
tra e um lenço sobre os olhos. É isso que você sabe
da Justiça? Então é bem pouco. Porque isso é uma
imagem, um retrato ou o que fizeram da Justiça.
A Justiça, na verdade (e isso é um segredo que lhe
conto!), é a ideia do Bem que a gente tem. O Bem que a
gente quer que nos aconteça. E às pessoas que amamos.
Por exemplo, ter uma casa, um abrigo, uma cama.
Eu adoro a minha cama. Não sei se você gosta da
sua, mas eu, Ah!, como gosto de mergulhar nos
lençóis lavados, cheirando bom, com uma manta ou
um edredom, quando faz frio! Como é bom! Mas se
penso naqueles que vagam pelas ruas e são criaturas
das noites frias e chuvosas, ou de grandes tempesta-
des e sem uma casa, eu cubro a minha cabeça, por-
que é muito difícil dar uma casa para essas pessoas.
Outro exemplo é ter uma mesa e se sentar em volta
dela. E encontrar, em cima dela, leite, café, pão,
11
frutas ou arroz e feijão, todos os dias! Mas também
não é uma lei que vai conceder isso a todos que
caminham pelas ruas com a barriga vazia e a cabeça
sonhando com um alimento bom.
Outro Bem enorme é ter um trabalho. A gente
sempre prefere um trabalho que se gosta de
fazer. Mas, na verdade, viver sem nenhum
trabalho e sem receber dinheiro ou salá-
rio por causa dele, é o primeiro passo
para se tornar um sem-teto ou um
sem-comida.
Agora você pensa melhor o que é o Bem.
É a segurança. É o conforto. É a aparência
boa que a pessoa tem, quando tem isso
tudo.
E por isso a Justiça não é aquela grande
dama branca de olhos vendados para
não ver quem está brigando, mas ape-
nas repetir as leis. Ela é a Ideia de que
todos devem ter direito à segurança,
ao conforto e a uma aparência boa,
conquistada com o seu trabalho.