UMA LEITURA DE DESENREDO DE GUIMARÃES ROSA:...

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  • UMA LEITURA DE DESENREDO DE GUIMARES ROSA: O (DES) CONSTRUTOR DE PALAVRAS LUCILA TEREZA ROCKENBACH MANFROI (ESCOLA ESTADUAL "NOVA CANA"), ELIZABETH DA SILVA MENDONA. Resumo A partir da leitura do conto Desenredo, que est no ltimo livro publicado em vida por Joo Guimares Rosa, Tutamia: Terceiras Estrias, este trabalho prope analisar os elementos da narrativa apresentados nos seguintes tpicos: ContadorNarrador: Oralidade e Escrita em que discutiremos a existncia de dois tipos de narradores, bem como aspectos da narrativa oral e escrita; Intertextos e sentidos dos nomes dos personagens, em que enfocamos a anlise dos nomes das figuras principais, fazendo uma intertextualidade com personagens de outras estrias literrias, especialmente Ulisses da Odissia de Homero, a Bblia (Ado, Eva, J), levandose em conta a concepo de polinomsia de Machado; no O desenredo dos provrbios nos deteremos em comparar mximas desconstrudas de Joo Guimares Rosa em relao a ditos populares e por fim, no tpico Funcionalidade espaotemporal trabalharemos as relaes espaotemporais em evidncia no conto. A metodologia que marcar a anlise deste trabalho est pautada nos conceitos de tempo e de espao de Vitor Manuel de Aguiar e Silva e de Mikhail Bakhtin, ampliada atravs de textos crticos de Ana Maria Machado, Alfredo Bosi, Irene Gilberto Simes e Cleusa Rios Pinheiro Passos. Com essa breve anlise, esperamos que nosso trabalho possa contribuir com os estudos sobre a obra de Joo Guimares Rosa. Palavras-chave: Guimares Rosa, Desenredo, Provbios.

    I-INTRODUO

    Sobre o ltimo livro de Guimares Rosa lanado em vida em 1967: Tutamia: Terceiras Estrias (no qual o conto Desenredo est inserido), Simes afirma:

    As narrativas curtas das "Terceiras Estrias" caracterizam-se pela sntese e condensao e, contudo, o "estilo telegrfico" dos contos (que no uma constante de seus textos) pode ser entendido como o resultado de pesquisa e revelar a necessidade de condensao devido ao espao da revista: (Pulso) onde foram publicados pela primeira vez. (SIMES, 1988, p. 15)

    Os contos rosianos de Tutamia transformaram-se devido a sua "sntese telegrfica" numa travessia rdua para o leitor em busca do texto. Ainda de acordo com Simes as estrias do livro por serem curtas, sintetizam, ou seja, dizem com poucas palavras muita coisa, bem diferente dos contos anteriores, que so mais longos. J para Bosi a literatura de Rosa definida como, "toda voltada para as foras habituais da linguagem" fazendo desta forma, "quedar as fronteiras entre narrativa e lrica" (BOSI, 1988, p. 430).

    Em Desenredo, J Joaquim conhece Livria, Rilvia, Irlvia ou Vilria que era casada. Se apaixonam e tornam-se amantes. Porm, o marido a flagra com outro homem (um terceiro) e mata-o. Tal fato faz com que J se afaste desiludido. Mais tarde, o marido da personagem feminina morre e J casa-se com ela. Tempos depois, J Joaquim quem a flagra com outro e a expulsa do vilarejo, porm sem esquec-la,

  • consegue com muita artimanha convencer o povoado de que ela nunca o havia trado. Sabendo disso, a mulher volta do anonimato e os dois so felizes.

    II-CONTADOR-NARRADOR: ORALIDADE E ESCRITA

    O contexto oral em que est presente o contador, pode ser notado logo no incio do conto. Alm disso, podemos perceber que para ter essa oralidade, o autor utiliza-se de pontuao especfica. A marca do discurso direto, ou seja, o uso de dois pontos e travesso, identificando a fala/oralidade do contador percebida j no comeo:"Do narrador a seus ouvintes: _ J Joaquim, cliente, era quieto, respeitado (...)" (ROSA, 2001, p.72)

    J as pausas freqentes, tpicas da oralidade, so identificadas no conto pelas inmeras vrgulas e pontos finais. "J Joaquim, derrubadamente surpreso, no absurdo desistia de crer, e foi para decbito dorsal, por dores, frios, calores qui lgrimas, devolvido ao barro, entre o inefvel e o infando." (p. 72)

    Essas pontuaes do ao conto, uma caracterstica de lentido, detalhamento com inteno de prender a ateno do ouvinte/leitor sobre o que se conta.

    Sobre as interrogaes, pode-se perceber que o narrador/comentador estabelece uma relao de questionamento com o ouvinte/leitor. Percebe-se que ao perguntar ao seu narratrio, muitas vezes responde em seguida de forma metafrica usando de provrbios e intertextualidade, antecipando muitas vezes o narrado.

    "A bonana nada tem haver com a tempestade. Crvel? Sbio sempre foi Ulysses, que comeou por se fazer de louco. Desejava ele, J Joaquim, a felicidade _ idia inata. Entregou-se a remir, redimir a mulher, cota inteira. Incrvel? de notar que o ar vem do ar." (p. 74). Em relao ao narrador, percebe-se que a estria de J Joaquim contada em 3 pessoa (oniscincia), com um ponto de vista externo, assumindo dois papis: o de narrador e o de comentador, como bem alerta Simes: "O narrador acumula duas funes: contador de estrias e a de comentarista que analisa as situaes, filosofa sobre o assunto, trazendo o leitor para o presente, o tempo da enunciao." (SIMES, 1988, p. 176) Quando ele narra, podemos observar que os tempos verbais esto no pretrito, indicando que os fatos j ocorreram no momento em que ele enuncia: "Tinha o para no ser clebre." J como comentador, nota-se que os tempos verbais mudam para o presente: "Com elas quem pode, porm?", pois ele interage com os ouvintes/leitores questionando, utilizando-se dos ditos populares, do suspense, refletindo, antecipando, fazendo todo um jogo de cena tpico da oralidade.

    Segundo Simes (1988), todas as intromisses que o narrador-comentarista faz na estria, so uma marca que determina uma espcie de parada narrativa, em que deixa transparecer o que ele pensa do personagem, do enredo, discutindo com o ouvinte/leitor atravs de frases-sentenas, das interrogaes, possveis formas diferentes de se interpretar o narrado. Portanto, essas intromisses do narrador-comentarista, no so por acaso, mas representam dentro do conto, outras leituras para o mesmo.

    Dentro da estria, pode-se perceber que J Joaquim tambm tem a funo de narrador. Ele autor-personagem de sua fbula, pois narra, reconstri a sua saga e a da mulher amada para si e para o povoado. "Trouxe boca- de- cena do mundo de caso raso, o que fora to claro como gua suja." (ROSA, 1988, p. 74)

    Durante todo o conto, percebemos que o narrador-contador nos mostra todo o processo efetuado pelo segundo narrador (J Joaquim), de desenredar a sua

  • estria, atravs de: "(...) conversinhas escudadas, remendados testemunhos. J Joaquim, genial, operava o passado (...). Criava nova, transformada realidade (...)." (ROSA, 1988, p. 74)

    Essa nova realidade, a que ser verdadeira, sem outras verses, pois passar da oralidade para a estria escrita. J consegue convencer os habitantes do povoado, no deixando pontos de interrogaes ou reticncias: " E ps-se a fbula em ata.", com final definitivo e feliz para os amantes, j que a ata tem um carter documental, diferente da dinmica da oralidade, pois uma vez escrita, no h possibilidade de ser refeita.

    III-INTERTEXTOS E SENTIDOS DOS NOMES DOS PERSONAGENS

    A abordagem do nome da personagem importante na sua compreenso, pois como argumenta Machado: "O nome um signo, polissmico e hiperssmico, que oferece vrias camadas de semas e cuja leitura varia medida que a narrativa se desenvolve e desenrola." (MACHADO, 1991, p. 19). Posto desta forma, o leitor tem diversas possibilidades de interpretar e dar sentido ao texto, ou seja, as caractersticas da personagem j esto implcitas em seu nome e podem ser verificadas no decorrer da leitura.

    O primeiro nome (J), apresenta uma intertextualidade bblica que se refere pacincia, a persistncia num epteto clssico recuperado junto aos provrbios populares que fazem aluso pacincia de J, como tambm cantiga ldica popular, Escravos de J. Podendo ser relacionada alternncia, troca, tanto na msica (tira, pe, deixa ficar) como a fartura, a perda desta e novamente sua recuperao no que se refere ao J bblico que perde e depois recupera bens, entes queridos e sade, e ao J do conto em questo, que perde e depois tem de volta a mulher amada.

    Ressaltamos, porm, que o J bblico paciente, pois confia que Deus vai restaurar-lhe a sua antiga condio, uma vez que nunca havia deixado de temer a ele em sua fartura ou misria. Outro elemento importante a ser visto, que a personagem bblica em sua desgraa impotente ao argumentar com o Todo-Poderoso sobre sua restaurao, embora se considere puro, justo e temente, pois Deus diz que seus argumentos so invlidos, j que a Divindade inquestionvel.

    J a personagem do conto rosiano, paciente no momento de desenredar a estria de traio da qual ele protagonista. Ou seja, ele usa a linguagem, associada ao tempo para convencer as pessoas do vilarejo que o enredo no tinha acontecido como eles pensavam "(...) conversinhas escudadas, remendados testemunhos. J Joaquim, genial, operava o passado _ plstico e contraditrio rascunho." (ROSA, 1988, p. 74) Isto , ele pode mudar e contar a sua verso dos fatos que vai ser a verdadeira no final do conto, transformando assim, a imagem da amada, pois este J, ao contrrio do bblico, autor/sujeito/Deus de sua estria, ele que remodela do barro uma imagem de Eva (Vilria), ideal, conforme os arqutipos platnicos: boa, bela e verdadeira. "O real e vlido, na rvore a reta que vai para cima. Todos j acreditavam. J Joaquim primeiro que todos." (ROSA, 1988, p. 75).

    Alm da intertextualidade com o J bblico do primeiro Livro Sapiencial, J Joaquim tambm identificado com Ado: "Foi Ado dormir, e Eva nascer." Se ela (casada), lhe trouxe o paraso, tambm o fez perder por duas vezes. Primeiro, quando se soube coadjuvante ao saber que ela tinha "o p em trs estribos", ou seja, tinha um marido e dois amantes, um desses J Joaquim. Segundo, quando de amante passa a marido (aps a morte do primeiro esposo) e a descobre com

  • outro. E neste momento, sabendo-se trado, volta ao barro, a uma condio amorfa, "(...) derrubadamente, surpreso, no absurdo desistia de crer e foi para o decbito dorsal, por dores, frios, calores qui lgrimas, devolvidas ao barro, entre o inefvel e o infando." (ROSA, 1988, p. 73)

    Se Ado sai do barro pelas mos de Deus, J volta a ele pelas amarguras que a amada lhe causa. Da mesma forma que Ado expulso do paraso por ter "pecado", J perde seu paraso ao sentir-se trado. O primeiro ao perder a condio de protegido de Deus, sofre. J a personagem rosiana, ao no se sentir nico tambm sofre, mas ao contrrio de Ado, reage, desconstruindo ardilosamente o motivo de sua angstia, conseguindo a reabilitao de sua "Eva", e assim voltam ao paraso. "(...) retomaram-se, e conviveram, convolados, o verdadeiro e melhor de sua til vida."(p. 75)

    Quando J Joaquim comea a maquinar para remodelar a imagem da mulher amada, visvel no conto uma referncia ao mito grego de Homero, A Odissia. "Sbio sempre foi Ulysses, que comeou por se fazer de louco." O heri grego se faz de insano para no ir a guerra de Tria, embora no consiga convencer aos seus. J usa de artimanha semelhante ao dissimular para desacreditar, ele e aos outros, sobre a estria da traio j que: "De sofrer e amar, a gente no se desafaz. Ele queria apenas os arqutipos, platonizava. Ela era um aroma" (ROSA, 1988, p. 74)

    Em relao a personagem feminina apresentada no incio do conto com uma indefinio de nome Livria, Rivlia ou Irlvia e no final com um nico nome, Vilria, sugere que no princpio da estria ela uma personagem multifacetada, dissimulada, enigmtica que provoca espanto ao prprio (amante depois marido) J Joaquim, pois o mesmo no "(...) imaginara-a jamais a ter o p em trs estribos", (p. 73), ou seja, alm dela ter o marido, e J como amante, havia um terceiro. Os trs nomes iniciais podem significar que ela usava um nome para cada parceiro.

    Na composio dos quatro nomes da protagonista percebe-se um anagrama, ou seja, um nico nome combinando as letras de vrias formas (possui trs is, um l, um v, um r, um a). Isso significa que esta personagem ambgua e inconstante sempre foi mesma em sua essncia, embora poderia se comportar diferentemente para cada um de seus amantes e marido. A este respeito, podemos dizer que poderia se chamar Livria para o marido, Rivlia para o amante morto pelo primeiro cnjuge e Irlvia para J Joaquim. A ltima e definitiva nominao: Vilria atribuda a ela por J quando este desconstri o passado, e conseqentemente os nomes e ambigidades da amada para transform-la em imagem nica de mulher "nua e pura"

    Mas apesar de J crer e fazer acreditar no modelo de esposa ideal e casta, o nome final continua com as mesmas letras dos nomes anteriores, isso significa que sua essncia permanece, o que mudou foi s a imagem que J construiu dela, pois: "O real e vlido, na rvore, a reta que vai para cima."

    Podemos tambm traar alguns paralelos em relao personagem feminina do conto com a Eva bblica, no tocante a tentao, seduo. "Antes bonita olhos de viva mosca, morena mel e po" (p.72). J fica fascinado, atrado e entrega-se ao amor sem importar-se dela ser casada e proibida. Mesmo aps a primeira traio da amada, ele no consegue desvenciliar-se de sua teia: "Vai, pois, com a amada se encontrou _ ela sutil como uma colher de ch, grude de engodos, o firme fascnio". (p. 73). J vivia pacatamente, sua modesta vida "(...) era quieto, respeitado (...) Tinha o para no ser clebre. Com elas quem pode, porm? Foi Ado, dormir, e Eva nascer." (p. 72). Ela surge e lhe oferece o paraso, repleto de

  • delcias. Tal qual Eva, ela oferece a Ado, no caso J Joaquim, o paraso e o pecado tambm, afinal era casada e proibida. Esta culpa faz com que sejam expulsos por duas vezes do "paraso" e por fim, J como um Deus, a reconstri, no como Eva criada no Gnesis, isto , no corporalmente, atravs da costela de Ado, mas a refaz usando a palavra para desenredar a imagem dela, construindo com isso, a sua prpria e arquetpica Eva.

    IV-FUNCIONALIDADE ESPAO-TEMPORAL

    Toda a trama do Desenredo, se passa num vilarejo em que todos se conhecem e os valores morais das pessoas so bem definidos, como por exemplo a no aceitao do adultrio. O mesmo no pode se dar em espao pblico, vista de todos, mas ocorre em um local secreto: "Mas muito tendo tudo de ser secreto, claro, coberto de sete capas (...) as aldeias so a alheia vigilncia. Ento ao rigor geral os dois se sujeitaram, conforme o clandestino amor em sua forma local, conforme o mundo mundo." (ROSA, 1988, p. 72).

    Os espaos pequenos, isto , os vilarejos do interior esto muito mais sujeitos a vigilncia, por isso a amada de J foi flagrada traindo em dois momentos distintos. Apenas quando J era ainda amante o flagrante no ocorreu, pois para se encontrarem os dois eram extremamente cuidadosos.

    A inverso do padro de valores deste espao acontece quando o marido, J Joaquim, ao ser trado no "lava" sua honra com sangue, como todos esperavam, j que, "De amor no a matou, pois no era para truz de tigre ou leo." (p. 73). Tal ato choca-se com regras morais cristalizadas deste espao, por isso o personagem masculino se sente posteriormente "culpado", "histrico", pois age de forma indita, ao no matar a mulher e seu amante, apenas expulsando-a, o que no era comum e aceito no povoado.

    Alm do vilarejo citado, h no conto um outro espao no revelado, onde a mulher foi ao ser expulsa por J, "E viajou fugida a mulher, a desconhecido destino." Sobre este local no citado nenhum detalhe, como tambm ignora-se o que se passa com ela neste lugar. Este espao ignorado pode ser subentendido como campo de atuao do dito popular, Longe dos olhos, perto do corao, pois o fato da mulher estar afastada do vilarejo favorece a recriao de sua imagem por parte de J, "Chegou-lhe l a notcia, onde se achava em ignota, defendida, perfeita distncia." (p. 75).

    Tempo e espao esto intimamente ligados no texto literrio. Esta juno vista num todo que se materializa, ou seja, o texto em si. Bakhtin, chama essa interligao do tempo-espao de cronotopo. De acordo com o ensasta russo, "(...) o tempo condensa-se, comprimi-se, torna-se artisticamente visvel, o prprio espao intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da fbula." (BAKHTIN, 1998, p. 211)

    J Joaquim por ser um personagem paciente, tinha como aliado o tempo. Quando conheceu sua amada: "Era infinitamente maio", este ms simboliza a fertilidade e propcio ao amor. "Infinitamente", porque o tempo pra dando uma noo de atemporalidade e eternidade a este momento. Mas por ser a mulher casada, o encontro se dava secretamente, no a qualquer lugar ou momento, devendo ser calculado, premeditado, por isso nunca foram descobertos: "No se via quando e como se viam."

    Se o inesperado aconteceu para o amante J: foi trado (por um terceiro), o fato de o primeiro marido matar o amante da mulher e de ter fugido depois, o que acabou

  • culminando na morte do mesmo, um exemplo de como o tempo age de forma favorvel na vida de J. Ele, depois de sentir-se trado, espera desgostoso e: "(...) as coisas amaduravam." Sem interferir, o tempo transcorre engenhosamente em seu benefcio, pois com a morte do marido, a mulher est livre e J com ela se casa.

    No trecho: "(...) os tempos se seguem e parafraseiam-se." (p. 73), o autor utiliza-se de uma prolepse que conforme Aguiar e Silva seria um recurso anacrnico que consiste na: "(...) antecipao no plano do discurso, de um facto ou de uma situao que, em obedincia cronologia diegtica, s devam ser narrados mais tarde." (p. 754) Ou seja, assim como a personagem feminina j havia trado seu marido e J anteriormente (quando este era amante), ela o far de novo, desta vez, sendo J o marido, j que se casaram depois da morte do primeiro esposo.

    Se o espao importante na reconstruo da imagem da amada, o tempo outro fator essencial. a partir da passagem do tempo que J Joaquim em seu vilarejo, costura o passado e recria no presente, uma mulher perfeita para suas pretenses: "(...) sem malcia, com pacincia, sem insistncia, principalmente (...)"(p. 74).

    V-O DESENREDO DOS PROVRBIOS

    Todo o conto Desenredo construdo a partir da idia de desestruturao e desconstruo de enredos, "complexos ns se desatam graas a anagramas, jogos lingsticos, inverso de provrbios, reconstituio de recados e, sobretudo, causos espetaculares que reiteram, em ponto menor, eixos textuais bsicos."(PASSOS, 2001:58). Percebe-se isso em vrias palavras com prefixos negativos e idias de refazer como: "desmatreio, anamatemtica, refritar almndegas, antipesquisas, acronologia, remendar testemunhos." (p. 74)

    Estas metforas desconstrutivas podem representar que o personagem J no se preocupa com a lgica dos fatos, o que lhe interessa a sua verso, no importando que para isso, precise reconstruir uma nova realidade, como bem afirma Passos: "(...) a artimanha do enamorado est em reoperar cenas pretritas, apoiado em negaceios, desvios da lgica aristotlica, rupturas com a cronologia dos fatos etc."(p. 58)

    Embora sejam os provrbios resgatados junto oralidade popular, no conto eles aparecem estruturados, resignificados numa reinterpretao que Guimares Rosa faz da palavra, dos ditos, pois a realidade posta, a tradicional, a popular, a prtica, o personagem J Joaquim no aceita.

    Nos provrbios "(...) num abrir e no fechar de ouvidos", e, "Foi Ado dormir e Eva nascer", temos o trocadilho com o j conhecido provrbio tradicional, "Num abrir e fechar de olhos." No primeiro citado, h a denotao da rapidez com que J ficou apaixonado por sua "Eva". J o segundo, mostra a velocidade com que ele convencido e reata com a amada, depois da traio, e morte do marido, pois esta lhe exercia um "fascnio", como Eva sobre Ado.

    No, "O trgico no vem a conta-gotas", Rosa mantm o significado do dizer popular: A desgraa no vem sozinha, pois com o flagrante que o primeiro marido d na mulher e no amante, matando-o, J tambm se descobre trado: "Imaginara-a jamais a ter o p em trs estribos." Apesar disso, "O tempo engenhoso", ou O tempo o melhor remdio pois devido a morte, o marido fugiu e acabou morrendo, isso beneficiou a J sem que ele precisasse tomar atitude alguma, o que retoma o dito popular: Nada como um dia aps o outro. O tempo curou as feridas da traio e J casou-se com sua amada.

  • Utilizando-se dos ditos populares, Nada dura para sempre, e, Uma vez ladro sempre ladro, podemos responder a pergunta proverbial rosiana: "Sempre vem imprevisvel o abominoso?" pois o prprio narrador confirma a mxima com outra (...) "os tempos se seguem e parafraseiam-se", j era previsvel no conto que a personagem feminina trairia novamente. Ou seja, tudo cclico, tudo se repete.

    O dito, "A bonana nada tem a ver com a tempestade", contraria o adgio popular: Depois da tempestade vem a bonana. Se neste ltimo, o ser humano tem de passar pela provao para alcanar a bonana, como acontece no episdio do J bblico. No primeiro, h a indicao de que a bonana obtida por J no final da estria, no est ligada a tempestade/sofrimento ocasionada pela traio, pois esta gratificao construda devido a J costurar o passado pelo "absoluto amor", pois o mesmo no aceita e apaga os vestgios da tempestade (traio).

    Refutando a tempestade e ficando s com a bonana ao remodelar a imagem da amada para si e para o povoado, confirma-se o provrbio rosiano: "Haja o absoluto amar - e qualquer causa se irrefuta", ou seja, a bonana relaciona-se com o amor, s ele, e no a tempestade, foi capaz de fazer mudar o destino.

    O dito, "V-se a camisa que no o dela dentro", assemelha-se com a frase popular: Vo os anis e ficam-se os dedos, pois aps os sofrimentos que a traio e a partida da amada provocam, J volta a ser, "(...) de novo respeitado e quieto", (p. 74), ou "De sofrer e amar, a gente no se desafaz", visto que ele de "sofrer e amar", no desacostumou, porque a amada era a essncia de sua vida. Tanto que depois de ser trado, projeta e pe em prtica, idias para redimir junto ao povoado a imagem da mulher amada: "Ele queria apenas os arqutipos, platonizava", (p. 74). j que o importante para ele era o de "dentro" (amor-sentimento), e no a "camisa" (que pode simbolizar apenas o aspecto carnal do amor, no caso a traio).

    No provrbio rosiano, (...) "to claro como gua suja", a traio entendida como a "gua suja", evidente para J e os demais, porm como ele a amava e a queria de volta, traz a "lenda" novamente para ser reencenada, de acordo com suas convices, mesmo que para "limpar" a sujeira da gua era preciso ser contrrio lgica que se apresentava clara a todos. Embora isto no era (...) "to fcil como refritar almndegas", pois neste caso era s refazer o j feito, e J no poderia repetir, mas recriar, fazer uma nova estria, desconstruindo a existente, tendo como parceiros, a pacincia, a astcia e o tempo. Conseguiu. Deixou as razes (a traio) enterradas, evidenciando a copa exuberante para ser vista por ele e todos, pois, "O real e vlido, na rvore, a reta que vai para cima", isto , para viver a sua estria de amor, ele tinha que descaluniar a amada.

    Pelo trabalho rduo de reconstruir a imagem da mulher, podemos perceber que J Joaquim no aceita o dito popular: A felicidade bate na porta uma vez, pois primeiro feliz na condio de amante, alegria esta que se desfaz pela primeira traio da personagem feminina. A felicidade resgatada quando ele se casa com ela, mas a perde de novo, pelo mesmo motivo. Pela terceira vez, feliz ao ter a amada de volta, "nua e pura", devido as suas artimanhas de transformar o passado, desta forma o provrbio usado por Guimares Rosa, "Trs vezes passa perto da gente a felicidade", concretizado no conto, desconstruindo a sabedoria popular.

    VI-CONSIDERAES FINAIS

    A principal marca do conto Desenredo a desconstruo do popular. Discutimos isso no que se refere ao narrador que de popular-oral passa para um narrador-

  • oficial, tirando com isso, todos os resqucios e pontos de interrogaes sobre a pureza de Vilria. Assim depois de J Joaquim reconstruir a imagem da mulher utilizando-se do desmanchamento, reinterpretao e desenredando o que estava feito e convencendo todo o vilarejo a aceitar a sua verso dos fatos. A estria deixa a dinamicidade da oralidade e passa oficialidade do documento escrito, a ata. Enfim, o que norteia e liga todos os demais elementos analisados neste conto, so os provrbios recriados por Rosa. Eles funcionam como antecipadores, sntese, modificando sentidos cristalizados, invertendo a ordem dos fatos, pois desestruturam e propem uma releitura dos ditos, da moral posta e do prprio conto.

    BIBLIOGRAFIA

    AGUIAR E SILVA, Vitor. Teoria da Literatura. 8 ed. Coimbra: Livraria Almedina,1999.

    BAKHTIN, Mikhail. Questes de Literatura e de Esttica. A teoria do romance. 4. ed. SP: Hucitec, Ed. da Unesp, 1998.

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    ROSA, J. G. Tutamia - terceiras estrias. RJ: Nova Fronteira, 1985.

    SANTILLI, Maria Aparecida. Joo G. Rosa e Jos L. Vieira, criadores de linguagens. Scripta, n 3 BH: PUCMINAS, 1998.

    SIMES, Irene G. Guimares Rosa: as paragens mgicas. SP: Perspectiva, 1988.