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    Arthur Moura

    Uma Liberdade Chamada Solido: a formao do rap independenteno Rio de Janeiro (1990 2013)

    Tese de concluso de curso apresentado ao Programa deGraduao em Histria da Universidade FederalFluminense sob orientao da Professora Adriana

    Facina e leitora crtica a professora Ana Lcia dodepartamento de Antropologia.

    NITERI - 2013

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    Sumrio

    INTRODUO .........................................................................................4

    MODERNIDADE E CAPITALISMO tempos de enfrentamento .... ...........11

    A CONSTRUO DO RAP INDEPENDENTE ........................................ 18

    UM S CAMINHO E A RUA E NOIZ: ideologias de poder e consumo ..... 36

    A CONSTRUO DE UM MERCADO ALTERNATIVO ........................ 50

    O USO DA MDIA E A QUESTO DAS RODAS DE RIMA ................... 65

    FILIPE RET, PS-MODERNIDADE E O RAP INDEPENDENTE ............ 71

    O ENCANTAMENTO DOS SENTIDOS .................................................. 85

    CONCLUSO ......................................................................................... 99

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    A todas as resistncias do hip hop.

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    AGRADECIMENTOS

    A tese que aqui apresentamos resultado de uma pesquisa e uma vivncia

    intensa no rap independente. Foram muitas pessoas envolvidas para que enfim eu

    apresentasse aqui uma parte simblica de reflexes sobre os rumos de um segmentocultural ao qual pessoalmente fao parte. No s integrantes do rap me auxiliaram na

    pesquisa, mas amigos prximos, familiares e alguns professores. Agradeo a professora

    Ana Lcia do departamento de Antropologia da UFF por se dispor a ser minha leitora

    crtica. Agradeo minha me, Lilian Azevedo, por investir na minha educao e

    mostrar que o caminho da reflexo imprescindvel para modificar as coisas que

    acreditamos. Gostaria de agradecer tambm ao coletivo Comando Selva, Leonardo

    Manarino (Gori Beatzz), Wallace Carvalho, Filipe Ret e De Leve tanto por me conceder

    entrevistas importantes para as minhas concluses como por ampliarem meu campo deviso para analisar melhor as contradies que aqui tratamos. Agradeo tambm aos

    leitores do blog umaliberdadechamadasolidao.wordpress.com por interferir diretamente

    nas teses que apresento.

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    Pensar o rap pensar a sociedade, as mentalidades. pensar o momento em que

    vivemos, a arte e as inquietaes de um determinado grupo que ganha voz, de umamaioria apagada que faz dessa voz um instrumento de luta que entoa sentimentos,

    saberes, conhecimentos, canes, relaes de fora e ideologias. Pensar o rap discutir

    comportamentos, vivncias e valores. questionar o que uma parcela da populao

    pensa e o que ela prope enquanto mudanas. pensar o porqu dessa parcela se

    arriscar em linhas que fomentam uma luta, e que luta essa. pensar o giro do bboy, os

    riscos do DJ e as expresses do grafiteiro. Pensar o rap no se limitar a um modelo

    estritamente relacionado com as necessidades da indstria fonogrfica e de toda

    estrutura da indstria cultural. O rap por princpio problematiza a sociedade, porm o

    rap tambm pode ser problematizado perante seus posicionamentos e propostas de

    mudanas da sociedade. Perante tudo isso, adentremos nossa discusso.

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    INTRODUO

    Seria errneo subestimar o valor combativo das teses que, aqui,apresentamos. Elas renunciam ao uso de um grande nmero de noestradicionais tais como o poder criativo e genialidade, valor de eternidade emistrio cuja aplicao incontrolada (e, no momento, dificilmentecontrolvel) na elaborao de dados concretos torna-se passvel de justificarinterpretaes fascistas. O que distingue as concepes que empregamos aqui eque so novidades na teoria da arte das noes em voga, que elas no podemservir a qualquer projeto fascista. So, em contrapartida, utilizveis no sentidode formular as exigncias revolucionrias dentro da poltica da arte.WalterBenjamin A Obra de Arte na poca de suas Tcnicas de Reproduo (1936)

    No contexto cultural brasileiro, num primeiro momento o rap encontrou lugar

    significativo principalmente entre a juventude. Num segundo momento ganhou novos

    segmentos e trouxe em suas prticas o reconhecimento de uma nova linguagem

    transformando-se com o tempo em forma econmica e poltica. No Brasil podemos

    entender as suas diferentes inseres, assim como propostas polticas principalmente a

    partir da dcada de 80. A dcada de noventa, por sua vez, trouxe diversas formas

    musicais tona. Bandas como Nirvana, Rage Against the Machine, Faith no More,

    Alice in Chains, Primus, Soundgarden, Pearl Jam, Green Day, Blink 192 (novo punk

    pop), Planet Hemp, O Rappa, Mamonas Assassinas, Tits, Charlie Brown, Raimundos,

    Sepultura, Marilin Maison, System of a Down, Slipknot, Tupac, Notorius Big, Body

    Count, Brujeria e diversos outros ganharam visibilidade no s como banda, mas muitos

    tambm como marcas que comporiam um mercado maior. Longe das gravadoras, o rap

    no Brasil comea a surgir como segmento independente. a partir da dcada de 90 que

    transformaes importantes ocorrem impulsionando novos estilos. Ainda assim, o

    mercado industrial cultural direcionava seus investimentos em segmentos que muitas

    vezes sequer dialogavam com o rap. A no ser bandas j consagradas como Rage

    Against the Machine ou Limp Biskit traziam o rap em sua roupagem, mas ainda assim,

    o que surgiria seria diferente. O rap ainda era um estilo marginal e evitado em mercados

    convencionais. As classes dominantes ainda eram muito desconfiadas dos reclames que

    vinham das favelas. A negao do estilo que nascia no se refletia nas regies

    pauperizadas onde a cada dia o rap ganhava mais fora. Sua identidade se forjou frente

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    s exigncias da vida cotidiana daqueles economicamente desfavorecidos. Dentro disso,

    Valenzuela Arce em Vida de Barro Duro afirma:

    Mimetizando-se com o cotidiano de muitos bairros afro-americanos e latinos

    dos Estados Unidos, o rap apareceu com uma forte carga simblica de violncia.

    Registro da vida jovem, o rap d conta de penrias econmicas, de problemas

    sociais, de rivalidades de bairro e territrio, da prevalncia do racismo, da

    adoo exaltada do discurso machista, das vicissitudes da vida urbana, das

    diferentes faces da violncia: brigas, assassinatos, assaltos, narcotrfico, abuso

    policial e morte. (MANUEL VALENZUELA ARCE, Jos. Vida de Barro

    Duro: Cultura Popular e Grafite. Rio de Janeiro, UFRJ, 1999. Pg. 91)

    A indstria cultural, e a inserimos os canais miditicos e a estrutura corporativa,

    preferiu esperar antes de se aproximar do estilo que nascia. A insero de parte da classe

    trabalhadora como consumidora de bens e servios, projeto do capital, tambm agiu de

    forma importante, apesar de nesse momento o aumento crescente do desemprego, da

    misria e concentrao de renda esvaziar cada vez mais o bote do crescimento

    econmico estvel. Tais aspectos no era uma realidade apenas de pases

    subdesenvolvidos. Na Europa ocidental o desemprego na dcada de 90 era de 11% e 3%

    da populao de Nova York estavam desabrigados. Isso falando de centros importantes

    para o capitalismo. A concentrao de renda, outro fator gritante nas duas dcadas de

    crise, teve o Brasil como candidato a campeo mundial.

    Nesse momento de injustia social, os 20% mais pobres da populao dividiam

    entre si 2,5% da renda total da nao, enquanto os 20% mais ricos ficavam com

    quase dois teros dessa renda. (COSTA, Edmilson. So Paulo, Expresso

    Popular, 2008)

    A seguridade e previdncia social influenciaram no controle das inquietaes

    sociais, mesmo o governo tendo gastos suntuosos nesse momento com os pagamentos.

    O rap estava apenas nascendo e dentro do seu contexto criticava a postura mesquinha do

    mercado e as posies autoritrias dos governos.

    preocupante, diz Valenzuela, que metade das famlias latino-americanas viva

    na pobreza (10% a mais do que no incio da dcada de 80), que na Amrica

    Latina morram diariamente 3 mil crianas em consequncia da pobreza ou que

    entre os casos de pessoas mortas ou mutiladas durante as guerras da ltima

    dcada o nmero de crianas seja maior do que o de soldados, pois nesse

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    perodo morreram nas guerras cerca de 2 milhes de crianas, entre 4 e 5

    milhes foram mutiladas fisicamente, 5 milhes fora levadas a campos de

    refugiados e 12 milhes ficaram sem habitao. (MANUEL VALENZUELA

    ARCE, Jos. Vida de Barro Duro: Cultura Popular e Grafite. Rio de Janeiro,

    UFRJ, 1999. Pg. 61)

    J John Holloway afirma que,

    em 1998, os bens das 200 pessoas mais ricas do mundo somavam mais do que

    a renda total de 41% da populao mundial (constituda por 2 bilhes e 500

    milhes de pessoas) A distncia entre ricos e pobres aumenta, no apenas entre

    pases, mas dentro dos pases. (HOLLOWAY, John. Mudar o Mundo sem

    Tomar o Poder: o Significado da Revoluo Hoje. So Paulo, Viramundo, 2003.

    Pg. 10)

    Como consequncia, o aumento das diferenas entre pases pobres e ricos

    aumentou a ponto de tambm aumentar a dependncia de pases pobres. Os pases ricos,

    por sua vez, quando no estabeleciam relaes de dependncia com pases pobres em

    crise, aproveitavam-se desses da forma que melhor lhes conviam. No podemos deixar

    de observar tambm que as dcadas de crise fomentavam uma onda separatista

    principalmente em pases do ocidente, como Gr-Bretanha, Espanha, Canad e Blgica.

    J os pases do Leste Europeu se viram na mesma situao a partir de 1991, com o fim

    da URSS. Esse movimento separatista era muito mais resultado de um egosmoeconmico do que a vontade de se estabelecer novos territrios independentes. Ou seja,

    ningum queria de fato pagar os largos prejuzos das dcadas de crise.

    Dentro desse quadro de contradies uma parcela da juventude se esfora por

    denunciar, atravs de suas criaes artsticas, uma srie de questes que reforam,

    inclusive, a prpria juventude pauperizada como inimiga do progresso moderno e da

    ordem social. Para Valenzuela:

    As perspectivas dominantes estabeleceram que nas zonas e bairros populareshavia delinquentes, desocupados ou trabalhadores, mas no movimentos

    juvenis. Isso nos mostra outra das dimenses da anlise das representaes

    dominantes sobre a juventude: a sua condio seletiva. A juventude uma

    construo que seleciona atores e caractersticas, mas tambm esquecimentos,

    por isso no uma definio ingnua ou assptica, mas destaca e proscreve,

    pondera e minimiza condies que se referem a processos de hipostatizao nas

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    representaes sociais. (MANUEL VALENZUELA ARCE, Jos. Vida de

    Barro Duro: Cultura Popular e Grafite. Rio de Janeiro, UFRJ, 1999. Pg.75)

    Para entender as problemticas e contradies internas da construo do rapindependente preciso tambm contextualizar um panorama de disputas polticas de

    forma mais ampla num recorte temporal que envolve alguns sculos. A modernidade e

    todo o processo de ocidentalizao, assim como a construo de um sistema econmico

    que se afirma hoje com a fora da globalizao no deixa dvidas sobre o poder de

    controle do neoliberalismo. Devemos ateno tambm construo do que se entende

    ps-modernidade, da sua nova forma de lidar com o tempo e contradies sociais e o

    que este paradigma representa para as relaes polticas e econmicas. Assim, teremos

    mais possibilidades de compreender as transformaes do rap juntamente com o seucontexto histrico e poltico. A produo cultural do hip hop insere-se em posio de

    destaque frente ao mercado mundial, poltico e cultural, qualitativa e quantitativamente.

    Assim, todo esforo acadmico para a descrio, problematizao e compreenso do rap

    em sua complexidade justificvel.

    Os movimentos que compem a trama de disputas polticas da cena hip hop so

    histricos e guardam nesse percurso suas complexidades. No seguem uma

    determinao nica, causal, inteiramente mecnica, apesar dos resultados de arte que se

    encontram como linguagens em disputa na conjuntura atual apontem muitas vezes para

    resultados que nega em suas relaes o que se pretende estabelecer como arte engajada.

    A presente anlise visa discutir no s a formao histrica do rap no Rio de Janeiro e

    So Paulo, mas traar uma anlise crtica sobre a formao do seu discurso, assim como

    a formao dos mercados, relaes e trocas simblicas. A mercantilizao da arte nos

    serve como ponto central de debate, pois ao que se pretende, a arte deve livrar-se de

    vnculos histricos que a subjugam como categoria de mercado propondo e pensando

    alternativas possveis.

    A sociedade capitalista trouxe transformaes que exigem ser observadas de

    perto. So formas em disputa que precisam de um rduo trabalho at se chegar a

    questes que nos ponham de frente com a crtica transformadora, no restando oferta s

    relaes de servido que a sociedade moderna impe por trs de imagens espetaculosas

    e sedutoras. A este respeito devemos entender a cultura hip hop dentro de um campo de

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    disputa onde se formam concepes diferenciadas sobre o que vem a ser linguagem, arte

    e todos os cdigos gerados por esse constructo social. Dessa forma, compreendemos

    melhor sobre quais questes devemos nos debruar para trazer novas questes e

    problemticas. Isso nos estimula a pensar onde residem formas alternativas de troca e

    sustentabilidade a partir da criao de redes estruturadas no mais a partir dacompetio ou mercado, mas do apoio mtuo onde existam relaes horizontais.

    preciso discutir, portanto, o papel das resistncias dentro de uma configurao que se

    pretende hegemnica sob o axioma do paradigma moderno.

    As impresses geradas pela economia burguesa acompanham as novas

    categorizaes itinerantes que o capital necessita para gerar a euforia de estar exercendo

    a cidadania e o progresso. Com isso, o que conta na economia burguesa atingir o

    sucesso dentro dos parmetros de um mercado sustentvel, ativo e segmentado, regido

    por relaes com o capital, ativo dentro da configurao de mercado e sustentvel a

    partir da perspectiva neoliberal, onde a competio forma o carter selvagem de disputa.

    So formas a servio no s da manuteno de grandes disparidades sociais, mas

    constroem suas estruturas de poder imprimindo concepes do que vem a ser liberdade,

    underground, arte, msica, poesia, sucesso, verdade, crtica, razo, seduo, desejo,

    libertrio, conhecimento, talento, dom e vida dando uma aparente coerncia sobre suas

    pretenses polticas a partir da apropriao de conceitos sustentados por uma razo

    instrumentalizada. De toda forma, os conceitos em disputa se apresentam de maneira

    diferente entre segmentos de uma aparente cena homognea. A classificao nem

    sempre a melhor opo para se analisar um objeto ou um fato. Todavia, a

    heterogeneidade da realidade por vezes nos obriga a fragment-la para uma melhor

    observao, anlise e compreenso das complexidades. Visto isso, temos as mais

    variadas formas de comportamento dos sujeitos que integram a cultura hip hop. O rap,

    ento, como um dos componentes do hip hop, assume seus estilos, pegadas, mtricas,

    rimas, texturas e flows. perspectiva de um olhar que analisa de cima no

    conseguiramos distinguir o rap enquanto campo de disputa to intenso quanto possvel.Os quatro elementos por sua vez ganham suas prprias autonomias enquanto mercado,

    discurso e expresso artstica. ento a uma das formas do que se entende por rap que

    direcionamos a ateno: o rap independente.

    O recorte temporal do presente trabalho encontra-se dentro do limite da dcada

    de noventa at os dias atuais. claro que ainda assim o limite ganha nova dimenso

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    quanto prpria cena que vamos tratar. Esta, por sua vez, restringe-se ao eixo Rio So

    Paulo. Quando a troca entre esses segmentos comea a acontecer h uma profuso na

    prpria linguagem que o rap comea a desenvolver no incio da sua formao como

    cultura de resistncia. Obviamente, a produo nos demais lugares do pas e no resto do

    mundo aconteciam em simultneo. O centro-oeste com Marcelo Martins, por exemplo,j experimentava sonoridades ousadas na mesma poca em que o Quinto Andar nascia

    como grupo expressivo em Niteri. Isso sem citar o nordeste, sul e norte do pas e suas

    mais variadas formas de expresso. A partir de uma relao de parcerias, contatos,

    trocas musicais, festas e eventos, gerou-se tambm a chance desse segmento se inserir

    de forma por vezes monopolizadora na cena underground. Nem por isso deixaram de

    imprimir suas concepes lricas e expresses artsticas que ainda hoje nos desperta por

    revelar as marcas de uma poca.

    No cabe aqui traarmos a histria do hip hop do Rio de Janeiro, Niteri ou So

    Paulo. As fontes tive acesso para embasar o presente debate faz parte, sobretudo, de

    uma pesquisa de campo, mas ganha consistncia principalmente a partir de uma

    vivncia e uma investigao contnua daquilo que aqui analisamos, alimentando,

    portanto, o que se entende por campo. Para tal, coube-nos tambm participar ativamente

    da produo de significados do que hoje se configura como movimento underground,

    assim como a prpria linguagem em disputa. Por isso, o referencial mistura-se de forma

    a produzir tanto uma reflexo crtica sobre o assunto como tambm uma insero ativa

    do que aqui se pretende analisar criticamente.

    As estruturas de poder que se refletem na linguagem partem de contradies

    sociais que historicamente ainda no foram superadas. Pensar a mercantilizao do hip

    hop s possvel a partir da anlise prvia das estruturas de poder capitalista. Sendo

    assim, nos resta atentar para uma confluncia entre a construo histrica dos fatos

    aliado ao aparato terico que nos revela as entrelinhas do campo social em disputa.

    Pensamos aqui a construo do rap dentro de uma estrutura complexa que no se afasta

    das contradies que compem a trama social, diferente da forma como o paradigma

    ps-moderno busca estabelecer. Discutir o rap aprofundar em questes que no se

    limitam s s aparncias. Ao introduzir o debate sobre a modernidade trazemos tona

    toda uma estrutura de pensamento ocidentalizado que sustenta as principais bases

    polticas do contemporneo. O globaritarismo que Milton Santos critica em seu livro

    Por uma Outra Globalizao no deixa dvidas sobre os efeitos gerados quando o

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    ocidente se torna o centro dos referenciais que normatizam os territrios, os espaos e as

    estruturas de conhecimento. Para que possamos traar uma relao entre os

    acontecimentos histricos e mundiais com o hip hop, sobretudo o rap nesse caso

    especfico, devemos entender que os conflitos de natureza especfica de um determinado

    segmento cultural dialoga com a conjuntura poltica e que sobretudo constri seusprprios significados, conceitos, organizaes e formas de se fazer poltica.

    Desenvolvem linguagens, hierarquias, mercados, parcerias, eventos, estticas,

    movimentos, concepes, corporeidades e expresses afim de estabelecer uma relao

    de independncia com o meio que o cerca. Quais foram os fatores que, por exemplo,

    trouxeram o rap independente brasileiro a grandes jornais, revistas, programas de TV e

    principais sites da internet? O que o tira dos guetos e o faz revelar-se enquanto esttica

    de mercado? O rap hoje o mesmo de ontem? Se no, quais foram as mudanas

    ocorridas e por que ocorreu dessa forma? Se sim, porque ainda permanece o mesmo?

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    MODERNIDADE E CAPITALISMO tempos de enfrentamento

    Mundo moderno, amigo, no se admire

    Mulheres independentes: mire e atireNo to difcil fazer com que as minas pirem

    Principalmente as educadas por sexy in the city

    Walli Indigesto

    A produo capitalista unificou o espao, que j no limitado por

    sociedades externas. Essa unificao ao mesmo tempo um processo

    extensivo e intensivo de banalizao. A acumulao das mercadorias

    produzidas em srie para o espao abstrato do mercado, assim como

    devia romper as barreiras regionais e legais e todas as restries

    corporativas da Idade Mdia que mantinham a qualidade da produo

    artesanal, devia tambm dissolver a autonomia e a qualidade dos

    lugares. Essa fora de homogeneizao a artilharia pesada que fez

    cair todas as muralhas da China.Tese 165 Guy Debord

    A modernidade celebra um novo paradigma na histria ocidental surgindo

    atravs do processo de expanso das sociedades impulsionado pela crescente

    mercantilizao da vida. O caminho da modernidade e a crescente industrializao, a

    expanso dos mercados, a mudana nos rumos da economia e a proletarizao

    acompanhado de uma crescente conscincia de classe ensejam conflitos que sero o

    motor da histria. O homem marginal era aquele que possivelmente estava fora do

    sistema; um homem no-moderno, no impregnado pelos valores da modernidade.

    Mas este tambm importante ator que fomentou a prpria construo do ser moderno

    atravs de suas lutas populares. Entender a construo histrica da modernidade nos

    assegura sobre importantes questes que constantemente devem ser levantadas para

    equacionarmos as resultantes que compem as contradies do contemporneo. Para tal,

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    devemos entender a construo poltica e filosfica, assim como suas estruturas

    econmicas e culturais que comeam a ganhar expressividade a partir do sculo XVII,

    quando a revoluo em diversos aspectos da vida social comea a se inserir de forma

    transformadora dentro de uma perspectiva histrica que no permitia ser o gnero

    humano o dono do seu prprio caminho. Esse mundo moderno que Walli Indigesto serefere o mundo contemporneo, frgil pelo que ele mesmo oferece aos seus iguais.

    Pessoas fteis enfeitadas com a esttica do sedutor, os brindes comemorando o vazio

    que incendeia a fama de estrelas produzidas pelo sucesso do mercado de uma sociedade

    de consumo. queles educados pela comunicao de massa corporativa resta a entrega

    ao que mais oferece chances ao sucesso. Dessa forma produz-se um ser sem

    expressividade dentro daquilo que se pode chamar vida.

    A modernidade traz a necessidade de se expressar a conquista que s foi possvelde se concretizar devido a um novo desenvolvimento da razo. A razo moderna no

    mais contemplativa, mas sim investigativa. Para Plato, o mundo funcionava como um

    organismo com partes harmnicas. A metfora do organismo passa a dar lugar

    metfora da mquina. Houve a substituio de uma viso qualitativa por uma viso

    quantitativa da natureza. Este ser moderno estabeleceu uma nova relao com a

    natureza e com deus. No negou deus em sua pura essncia, mas o realocou, dessa vez

    numa posio de no mais subordinar o gnero humano aos caprichos de uma divindade

    vingativa e controladora. Deus agora, como acredita Spinosa, aquele que compe eforma a natureza proporcionando os encontros. A natureza, por sua vez, encontra-se

    numa posio de domnio pelo gnero humano, sobre o qual nascem novas categorias

    de conhecimento que buscam ampliar o entendimento sobre as coisas. Essa

    modernidade, racional, escravagista e por hora democrtico-liberal, trouxe ao mundo a

    implantao de um modelo ocidental, etnocntrico, industrial e divido em classes.

    Trouxe novas categorias de anlise cientfica onde novos campos de saber surgiram para

    dar novos significados vida. Com isso nasce no s a razo, mas todo um complexo

    leque epistemolgico que rege as estruturas tericas da modernidade.

    O desenvolvimento da tcnica funciona como afastamento das relaes sociais

    que antes regiam os constructos e as mentalidades. Para Ellen Wood,

    o objetivo dos modernos a segurana nas fruies privadas. No

    podemos mais usufruir da liberdade dos antigos, que era constituda

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    direcionada para a conservao do status quo). A construo do indivduo pleno, para

    Marx, s possvel atravs da implantao do sistema socialista sendo este o resultado

    final da superao do esprito capitalista de gerir o mundo e suas riquezas. H tambm

    a nesse novo modo no-capitalista de gesto do mundo, a construo de um novo

    indivduo. O indivduo habilitado s mais variadas funes e mbitos possveis para queeste no se torne um escravo moderno de se encaixar apenas onde for possvel vender a

    sua mo-de-obra barata e corriqueira.

    A anlise marxista sobre a relao capitalista de produo ganha importncia

    principalmente por trazer para o campo de debate as consequncias sociais das

    mudanas econmicas que infiltravam-se de tal forma no contexto social que projetou

    um novo mundo, distinto da Idade Mdia, que por sua vez no comportava mais os

    anseios de poder de uma nova classe que surgia dentro da disputa por fatias de mercado,

    mas que por sua vez no seriam to eficazes com a ausncia de uma nova configurao

    das estruturas de poder. A luta e ascenso da burguesia tiveram suas histrias

    comprovadas por suas revolues. A revoluo cientfica, assim como suas conquistas

    atravs de guerras, s foi realidade graas tambm sua relao de explorao para com

    a classe trabalhadora. Os interesses de uns em detrimento de outros configura a

    construo de uma sociedade onde cabe a poucos as determinaes polticas, restando a

    muitos se coadunar com a mo invisvel do capital. As lutas e os massacres, no entanto,

    mostram que a mo invisvel porta armas mortais contra a classe tranalhadora. As

    determinaes impostas pelo sistema capitalista de produo impe um regime

    econmico concreto, do qual aqueles que sustentam o tal modo de produo pouco se

    beneficia. Tais determinaes hoje operam de forma ainda mais complexa por

    encontrar-se dentro do paradigma ps-moderno, neoliberal, globaritrio, onde h

    permanncias de caractersticas da mecnica funcional do capital ao mesmo tempo em

    que h uma dissoluo da compreenso das contradies a partir de uma certa

    estabilidade social. Para entender o mundo moderno no basta sair de casa e constatar

    que a arquitetura concebida dentro de um regime organizacional de normas e condutasque pouco tem haver com a livre circulao de todos. Isso nos parece bvio. Entender o

    mundo moderno entender a que serve toda a estrutura organizacional tanto no campo

    fsico como no campo das ideias. A luta de classes, portanto, o motor. Constri a

    partir do que lhe determinado sob este axioma, relaes de tenses que funcionam

    como contra-corrente da hegemonia a favor da padronizao dos corpos.

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    Determinar a forma como as pessoas e as coisas circulam, assim como o seu

    valor de fundamental importncia para o funcionamento da mquina. dessa forma

    que pessoas e mercadorias se equiparam dentro da perspectiva da livre circulao. O

    trabalho torna-se produtivo atravs da sua alienao facilitando a insero do

    trabalhador dentro da categoria de mercado onde sua fora produtiva tambm umamercadoria. Para tal, empreende-se os segmentos contraditrios dentro da configurao

    social do capital, tornando o trabalhador como ponto funcional da mecnica de

    produo e no como potncia criativa livre. A liberdade encontra-se dentro do discurso

    sobre a democracia burguesa onde o liberalismo a mo que regula tudo. Dentro dessa

    conformao do estado de coisas entra o materialismo histrico apontando para as

    contradies sociais concretas. Assim, podemos diferenciar melhor as categorias de

    anlise tanto no campo marxista como em outras transformaes tericas

    contemporneas que tambm nos ajudam a compreender a complexidade das coisas. Ascontribuies de Marx nos levam a analisar a materialidade dos fatos ampliando o

    entendimento das contradies a partir do processo de luta na histria. Configurando-se

    como mercadoria, a arte contribui para uma aparente perpetuao do sistema capitalista

    de produo. Ou seja,

    Na mercadoria, e principalmente na mercadoria como produto do

    capital, j vai implcita, ademais, a materializao das determinaes

    sociais da produo e a personificao de seus fundamentos materiais,

    que caracterizam todo o regime de produo capitalista. (...) Em

    essncia, o capitalismo um sistema de mercantilizao universal e de

    produo de mais-valia. Ele mercantiliza as relaes, as pessoas e as

    coisas. Ao mesmo tempo, pois, mercantiliza a fora de trabalho, a

    energia humana que produz valor. Por isso mesmo, transforma as

    prprias pessoas em mercadorias, tornando-as adjetivas de sua fora de

    trabalho. (FERNANDES, Florestan, Marx. Rio de Janeiro. Pg. 8)

    A transformao do trabalho em mercadoria faz com que este atenda s

    funcionalidades da estrutura poltica capitalista que baseia-se fundamentalmente em seu

    poder de domnio sobre o outro dentro da perspectiva de acmulo de riquezas. Dessa

    forma, as emanaes e resultados provenientes do trabalho alienado no oferece nada

    mais que valores investidos da estrutura mesma do capital. Dentro dessa configurao o

    trabalho carece do empenho do gnero humano enquanto criador livre por pertencer s

    demandas do mercado, onde este estabelece as prioridades afim de alimentar o consumo

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    para manuteno da sua prpria sobrevivncia. Por isso, prev o trabalhador seno

    como reprodutor de valores da lgica de trabalho alienado. Assim, inclui o trabalho e o

    trabalhador apenas dentro do que diz respeito ao mercado. A mercadoria assume ento o

    papel primrio ou propulsor de estabelecer as relaes firmadas a partir dos seus valores

    e esto margem dos seus produtores. Isso ocorre devido ao carter fetichista damercadoria. Como afirma Marx,

    o prprio operrio somente aparece como vendedor de mercadorias, ou

    seja, como trabalhador livre assalariado, de tal maneira que o trabalho

    aparece, em geral, como trabalho assalariado. (...) Os principais agentes

    deste modo de produo, o capitalista e o operrio assalariado, no so,

    como tais, seno encarnaes do capital e do trabalho assalariado,

    determinados caractersticas sociais que o processo social de produo

    imprime nas pessoas, procedentes destas relaes determinadas deproduo. (FERNANDES, Florestan, Marx. Rio de Janeiro. Pg. 9)

    Marx no concebe a materialidade fora do processo cumulativo de produo,

    sendo este resultante de descries essenciais prpria manuteno do processo

    revolucionrio histrico. Tem-se assim, a compreenso de tal processo revolucionrio

    dentro dos meandros da ditadura do proletariado. Divergimos nesse ponto ao

    entendermos que parte da anlise marxista sustenta tambm a permanncia do estado

    atual de coisas. Resta-nos pensar a liberdade fora da luta pela permanncia no s da

    economia poltica, mas tambm uma busca, sobretudo, fora do Estado e estruturas de

    poder burocrticas. Isso nos leva a crer que a manuteno da forma estado abandona em

    seu prprio percurso revolucionrio as principais cises com o estado atual de coisas

    trazendo, em sua ltima instncia, o capitalismo de estado, criando historicamente novas

    classes burocrticas e a taxao forada da extrao de mais-produto por parte do

    partido. Para Javier Amadeo, a Unio Sovitica realizou uma nova forma de

    personificao do capital como modo de obter seu objetivo poltico de negao do

    capitalismo. E continua:

    A supresso do mercado tinha coincidido com a supresso da autonomia da

    sociedade civil em favor do estado, e o plano de produo e distribuio,

    considerado pela ortodoxia marxista-leninista como o fundamento econmico

    do socialismo, era organicamente incompatvel com o pluralismo, a democracia

    e as liberdades. A substituio da propriedade privada pela propriedade do

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    estado s podia desembocar na ditadura sobre as necessidades, que a nova

    antropologia das sociedades socialistas. Os produtores so assim submetidos

    pelos mecanismos desta ditadura a uma nova classe, a burocracia do partido.

    Esta crtica remota alguns dos elementos da crtica liberal, e uma concluso

    natural leva defesa do mercado e da espontaneidade da sociedade civil.

    (BORON, Atilio; AMADEO, Javier; GONZLES, Sabrina (organizadores). A

    Teoria Marxista Hoje: Problemas e Perspectivas. Rio de Janeiro, Expresso

    Popular, 2006. Pg.: 77)

    No acreditamos que os regimes de democracia representativa sirvam para outra

    coisa alm de um rodzio de exploradores movido pelo consentimento dos explorados.

    No atravs da eleio de parlamentares ou de gestores pblicos que se conseguir

    qualquer mudana social para alm do capitalismo. dentro desse processo queentendemos o que vem a ser moderno, modernidade, apesar de, segundo alguns autores,

    haver claras diferenas entre modernismo e modernidade. Modernismo, segundo

    Marshal Berman, abarca um carter principalmente cultural de manifestaes que se

    esforaram por de alguma forma dialogar criticamente com os avanos de tal

    paradigma. Trataremos da modernidade aqui, portanto, com o teor poltico dos avanos,

    lutas e contradies que tal aspecto social imprimiu no ocidente e posteriormente em

    todo o mundo.

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    A CONSTRUO DO RAP INDEPENDENTE

    O rap que aqui vamos tratar, como j falado na introduo, refere-se

    basicamente a duas regies do Brasil: So Paulo e Rio de Janeiro. So Paulo, com sua

    complexa expressividade, trata-se no s de um grande mercado, mas de vertentes que

    se forjam trazendo construes de luta, assim como subjetividades diferentes das

    demais regies do pas. em So Paulo que o gangstar, uma vertente to conhecida do

    rap, congrega, denuncia e luta contra opresses de classe. Com o tempo, alguns grupos

    e MCs de rap carioca deixariam claro sua distncia com tal vertente em prol de uma

    construo prpria, livre. O contato do Rio de Janeiro com So Paulo, no entanto,

    deixou marcas indelveis nas expresses cariocas. Analisaremos o Rio de Janeiro por

    tratar-se de um caso que mesmo dentro de uma aparente desvantagem com o grande

    centro urbano paulista, inseriu, e ainda infere sobre isso, uma bandeira na conquista por

    independncia e que disputa atualmente nas ocupaes de praas e outros locais

    pblicos a manuteno do hip hop como forma de resistncia cultural. A inteno que

    estes dialoguem entre si, no sustentando a segregao de polos. O nvel de importncia

    a que se d a cada um desses segmentos refere-se ao prprio empenho de investigao

    local e aos limites da pesquisa.

    Em 1991 Speed (Claudio Mrcio de Souza), DJ Rodrigues e Gustavo de

    Almeida, quela poca conhecido como Bulletproof, se conhecem em Niteri. As pistas

    de skate e praas reunia parte da juventude proporcionando trocas culturais. Naquela

    poca, a pista virou um ponto de troca de conhecimentos musicais. As pessoas

    chegavam com novidades de bandas de fora com fitas k-7 e ali passavam adiante as

    novidades do momento. Foi nessa poca que comeou o SpeedFreaks com DJ

    Rodrigues, Speed Gonzales e BulletProof. Speed, no documentrio Mr. Niteri: a lrica

    bereta, explica que nessa poca s tinha rap old school, que era o pessoal de So Paulo

    que fazia rap old school e o pessoal aqui no Rio tinha um pessoal que fazia com banda e

    tudo e a gente comeou a fazer com dois MCs e um DJ. A banda SpeedFreak durou de

    92 a 96 e trouxe ao cenrio musical do rap uma nova proposta de sonoridade, assim

    como uma pegada poltica diferente da capital paulista. Em 96 Black Alien entra para o

    Planet Hemp e mais tarde em 99 volta o projeto com Speed, mas agora como a dupla

    Black Alien & Speed e vo para So Paulo novamente em busca de se apresentar e

    produzir um disco com Carlinho Bartolini. Em 99, a gente se mudou pra So Paulo, diz

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    Black Alien, tipo msico tentando a vida mesmo, aquela coisa. Tipo com uma mo na

    frente e a outra atrs, fomos. E a nessa poca antes de ir pra So Paulo a gente decidiu

    que ia ser Black Alien e Speed. O ritmo da dupla era frentico e segundo Speed

    Fazia tudo assim. Escrevia, gravava, memorizava, cada um na sua casa ou na

    rua andando, ou saindo pra balada e dentro do carro a gente j ia... Sabia que

    ensaiando assim dentro do carro, coloca a base a, p, j bebendo, indo pras

    boates e pras festas e ensaiando dentro do carro. Esse era o nosso ensaio. A

    gente no chegava a ensaiar em estdio. Nossa vida era uma festa todo dia. Uma

    festa que eu digo, sempre a gente saia e isso impregnava a msica assim. A

    msica tinha um humor assim, que refletia com espontaneidade o nosso jeito de

    viver a vida. (Mr. Niteri: a Lrica Bereta. Diretor: Ton Gadioli. Rio de

    Janeiro, 2012)

    Ao final da dcada de 90, a dupla j conquistara espao no eixo Rio So Paulo

    despertando tambm o interesse de Carlo Bartolini, produtor musicalbrasileiro. O

    produtor, junto com empresrios do ramo musical, se articularam para produzir um

    trabalho com mais peso, assessorado e direcionado a um mercado mais amplo.

    Carlinho Bartolini j trabalhou com diversos artistas brasileiros, como Os Paralamas do

    Sucesso, Legio Urbana, Nando Reis, Sepultura, Charlie Brown Jr., Cssia

    Eller, Ira!, Pavilho 9, Otto e Jorge Benjor. Alex Cecci, um dos empresrios da poca,

    explica melhor como foi parte desse processo.

    Todo esse tempo que eles moraram aqui em casa foi em consequncia do

    interesse do Carlinho Bartolini em produzir o disco deles. Ento eles ficaram

    morando em casa e produzindo o disco no Carlinho Bartolini na Granja Viana.

    E muitas vezes eu que levava os caras pra l e trazia (...) no estgio de produo

    desse disco que foi o disco que sucedeu essa demo. Que at ento era uma demo

    esse disco que tava na nossa mo. Ento eles entraram em estdio com Carlinho

    Bartolini que tinha um bom know how em conseguir extrair timbres fortes e

    criar umas texturas diferenciadas e eu achava... ns achvamos, e eles tambm,

    que o som deles requereria isso, n? Fugir dos padres do hip hop comum ou

    cair nas mos dos produtores do hip hop comum na oportunidade. Era uma

    coisa que tava meio engatinhando ainda. Era pobre, n? E a cena do Rio de

    Janeiro sempre foi uma cena um pouco mais superior que a de So Paulo,

    porque a msica da periferia do Rio de Janeiro o funk, no o hip hop. Ento

    a msica l mais elitizada do que aqui. Porque aqui a msica da periferia.

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    Ento sempre teve um nvel superior.(Alex Don KB Cecci empresrio do

    ramo musical. Mr. Niteri: a Lrica Bereta. Diretor: Ton Gadioli. Rio de

    Janeiro, 2012)

    Para o empresrio, as produes da dupla at ento no passava de uma demo,

    mesmo que esta tenha atingido nveis de popularidade internacional e influenciado toda

    uma gerao. As msicas de Black Alien e Speed, assim como outros trabalhos

    independentes que surgiam, fortaleceu a ideia de no reproduzir a alienao da

    produo artstica. Era preciso, portanto, de algo mais refinado para que a dupla

    passasse para um outro estgio. Para tal, no poderiam deixar a produo desse novo

    trabalho nas mos de quem no entendia ainda do assunto ou que pertencia a um lugar

    comum. Era preciso fugir de certos padres a que o rap se identificara durante tanto

    tempo. Uma das questes centrais era falar de outros assuntos, ser mais livre enquanto

    temtica potica. A ideia de que o Rio de Janeiro superior vem, portanto, sendo

    construda desde essa poca. O MC paulista Max BO conta como So Paulo recebeu o

    contedo da dupla carioca.

    Hoje eu tava bolado do jeito que a minha vida ia, do jeito que a minha vida

    estava, do jeito que a minha vida ia acabar, Krishna, Bud, Jesus ou Alah... Era

    uns bagulhos que a gente aqui do rap, em SP, tava mais preocupado em

    reclamar, que a favela tava isso, que a polcia tava aquilo. E a os caras me vm

    com essa histria. Era um cotidiano totalmente diferente. A gente, porra, ser

    que essa parada rap tambm? Mas era e era muito louco, t ligado? (Mr.

    Niteri: a Lrica Bereta. Diretor: Ton Gadioli. Rio de Janeiro, 2012)

    Era preciso reclamar menos tentando no abrir mo de certos questionamentos.

    Estes questionamentos poderiam vir de uma nova forma, mais potica, livre e atraente

    esteticamente. Num dado momento questionar poderia tambm no ser teor obrigatrio.

    Com o tempo se construir uma espcie de campanha entre alguns rappers contra as

    reclamaes.

    Ns temos que parar de falar de favelas. Ningum nasceu pra morar na favela.

    Deus no meteu ningum no mundo pra sofrer. Todos ns viemos ao mundo pra

    andar com carros bonitos, comer bem, beber champagne, chandon, comer

    caviar. A Barra nos pertence tambm. Vamos sair do gueto e ir pra Barra, levar

    o pessoal do gueto pra Barra. Vamos parar de cantar sobre o gueto de vez em

    quando. Vamos nos conscientizar e invadir a FM, invadir a TV, acabar com os

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    programas de bunda e meter o nosso l. Vamos parar de fugir e enfrentar a

    realidade, seno tamos fudidos. (KKcula, A Batalha do Real, 2003.)

    Essa perspectiva se anuncia atravs de diferentes formas. Em entrevista com o

    MC carioca Filipe Ret pergunto:

    Arthur Moura Em que consiste o discurso do rap?

    Ret Cara, eu acho assim, antes de tudo primeiramente eu acho que a arte no tem que ser do

    bem pra ser boa, sabe qual ? Eu acho que o rap calha ainda nessa parada de querer fazer

    uma paradinha boa, do bem, passar uma mensagem positiva e eu acho que no

    necessariamente isso. Eu acho que ela pode passar uma mensagem sim de caos, de confuso,

    de tragdia, de perturbao, de... aquela frase da Clarice Linspector, n, perder-se tambm

    caminho. Isso cansa, sabe qual . Quem j no t acostumado a ouvir, comea a ouvir e v

    que tudo tem um tom moralista, tudo tem um tom imperialista do tipo faa, veja, faa isso,entendeu, pare de no sei o que. Quem voc pra me dizer o que eu tenho que fazer?

    Falar de outros assuntos tambm algo recorrente hoje e mesmo Black Alien

    ainda reivindica algo do gnero.

    uma questo de no acreditar mais naquilo (Planet Hemp), mas na boa,

    somos amigos mesmo. Eu sou amigo do Marcelo, a gente s no anda de mo

    dada. Gosto muito do filho dele, me chama de tio, conheci criancinha. Dessaidade, cara, depois de j ter sido preso por causa disso tu fica escaldado e as

    coisas mudam, as crianas crescem e eu posso falar de tantos outros assuntos.

    (Planto Mix Entrevista Black Alien / 2013)

    A sociedade de consumo pensa o cidado enquanto aquele que se insere

    ativamente no mercado afim de estabelecer uma relao de acesso aos bens e servios.

    A nova classe mdia brasileira, ou seja, parte da classe trabalhadora que conseguiu seinserir nesse mercado criado especificamente para ela, passa a ter importncia devido

    sua insero nesse mercado. No entanto, as estratificaes continuam, dessa vez de

    forma ainda mais evidente. A desigualdade que havia antes supostamente deixara de

    existir devido a essa nova classe ter acesso aos bens de consumo. O protesto que havia

    passa a ser visto como reflexo de uma insatisfao dessa classe devido sua

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    marginalizao na fatia do mercado que se expandia com fora na dcada de 90.

    Acompanhando essa ideia, entende-se que o discurso da celebrao comemora no mais

    a participao poltica na transformao da sociedade divida em classes, mas sua

    incluso econmica, ainda que submisso ao capital financeiro. O protestar ganha cunho

    de efemeridade estigmatizando-se como algo ruim, ao passo que pretende-se dar maisateno s coisas que realmente importam, nesse caso, os negcios. Essa expanso

    econmica no acontece sem o crdito, dispositivo histrico de endividamento da classe

    trabalhadora. O capital entende ento, que quando essas pessoas passam a ter direito a

    consumir ela fica feliz. Para se ter acesso a essa felicidade, preciso manter-se na

    condio de consumidor, ou seja, aquele que contenta-se em comprar algo para

    satisfazer necessidades que o indivduo deixou de produzir por si prprio. Ele consome

    no s o produto, mas todo um conjunto de valores, crenas e subjetividades. A

    inevitabilidade do mercado, em sua ltima instncia a servio do sistema capitalista, reiterada como forma nica de vida, tornando a submisso forma natural de se viver.

    Para Fernando Henrique

    ns estamos vivendo no Brasil, sob o comando do PT, o auge do capitalismo

    no Brasil. No isso? No digo isso como crtico no. Porque t l, vou fazer o

    que? o auge. O que eu tenho dito e reiterado o seguinte: um pas no pode

    ser mercado. No creio que o PT queira e nenhum partido queira. Mas naprtica hoje, o que orienta o que d... o mercado. Voc levanta, vai trabalhar,

    faz no sei o que, quer subir na vida, no sei o que l, v televiso, a bolsa caiu,

    subiu, ningum nem sabe o que isso. No ? Os euros e no sei o que. Todo

    mundo obcecado por essa questo de mercado. Tanto assim que tem a famosa

    frase do acessor do Clinton: idiota, o mercado que resolve! No ? Bom, em

    geral isso mesmo. (Programa Roda Viva transmitido ao vivo no dia

    05/12/2011)

    No s o rap ascende no mercado no perodo que aqui analisamos, mas o funk

    tambm. Num caso mais especfico, o funk ostentao. No documentrio Funk

    Ostentao temos a apresentao de um segmento do funk que dialoga diretamente

    com o consumo enquanto instrumento de poder, prestgio e insero social a partir de

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    referenciais materiais suprfluos. No final do filme, uma fala nos chama ateno por

    sintetizar os mecanismos de justificativa do capital enquanto normatizador das relaes:

    Meu nome Renato Meirelles, sou scio-diretor do Data Popular (instituto depesquisas especializado nas classes C, D e E) que estuda a nova classe mdia

    brasileira a onze anos. impossvel falar de cultura sem falar de consumo. O

    consumo faz parte do dia a dia das pessoas. Quando voc vivia numa sociedade

    em que era ruim ser das classes C e D, voc no arranjava emprego se voc

    morava na favela, o grosso da manifestao cultural produzida nessas

    comunidades tinha como interesse o protesto, a reivindicao, que na verdade

    refletia a indignao pela sociedade desigual em que eles estavam vivendo.

    Quando a vida das pessoas comeam a melhorar, o discurso da denncia perde

    fora pro discurso da celebrao. No que ainda no tenham coisas que

    precisam ser denunciadas, e muitas vezes so. Mas o sentimento de melhora de

    qualidade de vida muito maior do que eram h dez anos atrs. Portanto, o

    protestar por protestar perde fora nas expresses culturais dessa nova classe

    mdia brasileira. Nos ltimos dez anos, o aumento real do salrio mnimo, a

    expanso da classe C se tornou um fato irreversvel. Algo que veio pra ficar. De

    2007 e 2008 pra c isso se estendeu muito fortemente impactado pela expanso

    do crdito somado expanso da renda. Quando essas pessoas passam a ter

    direito a consumir ela fica feliz. Ela fica feliz porque ela sente que todo aqueleesforo dela t valendo a pena. T valendo a pena pra se vestir melhor, t

    valendo a pena pra se apresentar pra sociedade de uma forma mais bacana e isso

    tem um impacto direto na sua autoestima e tambm tem um impacto direto no

    prprio mercado de trabalho. Afinal de contas, quem foi que disse que quem

    da classe C e D s tem que tomar pinga, no pode tomar usque? Quem acha

    isso a elite, no a classe C. A classe C consegue ter acesso a esses produtos,

    consegue ter acesso a esses servios e comea a cantar isso nas suas msicas,

    comea a cantar isso no funk, comea a cantar isso em todas as suas

    manifestaes culturais. E no tem nada de errado com isso. um momento de

    fato de celebrao dessa melhora que o nosso pas teve nos ltimos anos. E o

    brasileiro gosta de celebrar cantando, o brasileiro gosta de celebrar danando.

    (Funk Ostentao. Diretor: Kondzilla. So Paulo, 2012.)

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    Em contraposio, Debor afirma:

    Sob as oposies espetaculares esconde-se a unidade da misria. Se formas

    diversas da mesma alienao se combatem sob as mscaras da escolha total,

    porque todas foram construdas sobre as contradies reais imprimidas.

    Conforme as necessidades do estgio particular da misria que o espetculo

    nega e mantm, ele existe sob forma concentrada ou sob forma difusa. Em

    ambos os casos, ele no passa de uma imagem de unificao feliz cercada de

    desolao e pavor; ocupa o centro tranquilo da desgraa. Guy Deborb, tese 63.

    Esse breve parnteses dialoga com os resultados contemporneos no s do rap,

    mas do funk e de muitos outros segmentos musicais que aos poucos se aproximaram das

    configuraes de mercado. Traz tambm uma forma de pensar o que estava sendoconstrudo enquanto segmento independente j quela poca, dcada de 90 quando

    Black Alien e Speed interagem, afim de construir suas prprias identidades. O acesso a

    bens de consumo certamente foi fator crucial na construo dessa cena alternativa.

    Mesmo estes bens sendo ainda de difcil acesso, pois quela altura assim como hoje no

    estvamos em par de igualdade com nossos vizinhos norte-americanos. Ou seja, era

    muito difcil ainda quela poca ter acesso a equipamentos e outros bens materiais para

    produzir. No havia muitas alternativas se no a experimentao com os equipamentos

    que se poderia adquirir. Este fator no foi o impedimento para maioria dos MCs quequeriam divulgar suas produes, arriscar e propor novas sonoridades. A produo

    barata, na maioria das vezes feita em casa ou quando melhor em estdios precrios, fez

    parte do discurso que se formava. Em pouco tempo, as msicas mais baixadas da

    internet era de um grupo que surgira de forma espontnea chamado Quinto Andar. O

    grupo soube inserir questes que despertaram interesse principalmente entre a

    juventude. Com letras engraadas e crticas cantadas por De Leve, MC Marechal, Gato

    Congelado, Shawlin, DJ Castro, Matria Prima, Lumbriga Tremosa, o Quinto Andar

    ajudou a produzir uma das caractersticas do rap independente: o faa voc mesmo.

    Msicas como Largado fala de um jovem que no se adapta muito bem aos moldes

    que a sociedade impe como saudvel e tambm no se importa muito com o que est

    acontecendo e mantm o seu estilo de vida independente. o terror da famlia quando

    c cola com a filha s porque c largado, diz a letra. Ele usa chinelo havaianas, no

    se entrosa muito com a famlia da namorada, anda de skate e mal visto nos lugares que

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    entra. A letra rica em denncias sobre o estigma social de uma juventude que busca

    outras entonaes s coisas e ao mundo. De Leve ironiza algumas das principais

    situaes que muitos dos que ouviram o rap do largado j experimentaram em suas

    vidas. Dessa forma, estabeleceu-se o dilogo com um novo pblico, proporcionado pelo

    acesso a internet j ser mais facilitado ao final da dcada de 90 e incio dos anos 2000principalmente entre a classe mdia. Uma liberdade comeava a ser conquistada.

    O mercado ao mesmo tempo em que aumenta a velocidade das mudanas

    tecnolgicas tambm barateia o custo para quem deseja adquirir equipamentos que a

    indstria e o comrcio consideram defasados. Na verdade, grande parte dos artistas

    cariocas e paulistas gravaram suas primeiras experincias sonoras com equipamentos

    caseiros, baratos e que, conhecendo as possveis limitaes tcnicas dos equipamentos,

    articularam formas para driblar essa aparente desvantagem que estavam transformandoa escassez em forma de linguagem. A ressignificao do processo de produo baseado

    em equipamentos precrios fora uma importante sada que permitiu que diversos artistas

    obtivessem xito em suas primeiras experincias sonoras. No que hoje, dez, vinte anos

    aps esse boom tecnolgico as coisas estejam caminhando para mudanas to radicais

    no que se refere a esse acesso. Mas os equipamentos de outrora j caram em desuso

    pela desnecessidade de se investir numa linguagem tosca. Assim como ocorreram

    mudanas no uso dos equipamentos tambm houve a transformao na sonoridade dos

    instrumentais, assim como nos timbres de voz dos MCs, j que novas freqncias eramcaptadas pelas tecnologias mais modernas. Esse processo inicial faz parte da memria

    dos rappers que usaram da escassez para legitimar suas conquistas de hoje e se

    vangloriar pelo patamar que se encontram. A escassez de ontem contribuiu para que

    artistas hoje tenham conseguido conquistar espao. Ainda que o processo de insero

    dos grupos de rap tenha caminhado pelo terreno da escassez, hoje estes mesmos grupos

    no favorecem mais quem arrisca comear da mesma forma. Como veremos adiante,

    aqueles que outrora afirmavam em suas produes um valor de resistncia no s

    esttico mas poltico devido ao acesso precrio aos equipamentos, ao se fazer valer dealguma forma no mercado readaptam o seu discurso (agora com acesso aos meios de

    produo menos modestos) para evitar o choque com os interesses dos que hoje

    pretendem angariar pblico, poder e prestgio na cena do rap e at mesmo entre aqueles

    que reivindicam espao fora dessa mecnica competitiva. Dessa forma o discurso do

    capital vem ajudar no processo de excluso das possibilidades. O estranho no mais

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    bem vindo. A experimentao tampouco. As linguagens tornam-se rgidas e a

    tecnologia, por no contemplar todos, torna-se uma aliada dos que tendem a fechar as

    possibilidades de novos grupos que desejam se inserir na cena. Esse mecanismo no

    algo pronto, finalizado. No processo de afirmao ele sacralizado em confluncia com

    o espetculo.

    No s o acesso a bens e uma nova linguagem foram os formadores da cena

    independente. A construo de ideologias foi indispensvel. A concepo do largado

    nasceu, assim como o grupo, fruto de espontaneidade no momento de criao entre os

    membros do grupo. Devemos salientar que quela poca no se tinha ainda o

    enviesamento direto em investir de forma estratgica e sistemtica em concepes

    ideolgicas. O fato que nessa poca nasce o que anos depois se conhecer por

    ideologias propriamente dito. Com o trmino do Quinto Andar em 2005, os membrosno encerraram as suas atividades, mas para se garantir na cena necessrio ter

    produo. A nova produo j vem carregada de dispositivos que vo assegurar, de uma

    forma ou de outra, a sua permanncia na cena independente e o seu fortalecimento.

    Dentro dessa conquista, h um fator importante: a disputa.

    No tem como analisar o rap nesse perodo sem fazer meno a So Paulo. Para

    inserir mais um fator indispensvel a essa conturbada formao do rap independente

    carioca devemos analisar o porqu desse eixo se destacar. J no incio dos anos 90,

    Black Alien e Speed tiveram que sair de Niteri para se inserir em algo que j estivesse

    num ponto mais avanado. quela poca, So Paulo j era a capital do rap. Mesmo que

    a proposta de msica da dupla niteroiense no convergisse na maioria dos aspectos com

    o rap paulista, a troca entre as culturas era indispensvel. So Paulo j havia

    desenvolvido um mercado. J havia rappers de destaque como Sabotagem e Racionais

    MCs a e nova escola crescia cada vez mais (podemos citar a MCs como Kamau,

    Parteum e outros). O Quinto Andar mais tarde perceberia isso e seus integrantes se

    comporiam tambm entre paulistas e cariocas. A entrada do rapper paulista Kamau parao Quinto Andar um reflexo da importncia de se dialogar com So Paulo. essa

    altura, MC Marechal props a incluso de Kamau no grupo e ningum se ops. No

    entanto, a participao de Kamau de forma slida no grupo praticamente no existiu. O

    MC j era envolvido com diversos projetos em So Paulo. As conexes so heterodoxas

    e servem para diversos fins. Por fim, o mercado torna-se o fio condutor dessas redes,

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    mas ele por si s no define muito bem o elemento estruturador para que os negcios

    sejam bem sucedidos.

    O discurso comea a tomar forma quando a ideologia caminha junto com a

    formatao do estilo de vida do rapper. No s a roupa, o modo de gesticular e os

    locais freqentados que vo incluir um aspirante a rapper no bojo da cena independente,mas sim, e principalmente, a sua forma de pensar, que h de se encaixar nos parmetros

    j definidos pela cena, qualquer disfuno torna-se a uma ameaa. Desde meados da

    dcada de 90 o rap independente vem ganhando caractersticas prprias, tanto em seu

    discurso, conduta, postura, posicionamento social e poltico. O rap independente

    esfora-se para no se confundir com o gnero rap comercialmente vinculado a grandes

    empresas. Este novo segmento, por ter encontrado em seu trajeto histrico formas

    viveis de triunfar e ascender de maneira desprendida ao comrcio das grandes

    gravadoras e empresas multinacionais, visa manter-se como coisa distinta deste grandemercado, mesmo nas entrelinhas dialogando com ele. Mesmo que alguns estejam

    ligados lgica de mercado capitalista ou queiram fazer parte dele, estes no o utilizam

    para os mesmos fins do rap mainstream. importante destacar que o capital

    necessrio ao rap como um todo, mas utilizado de formas diferenciadas e as cenas do

    rap tratadas no presente trabalho no se misturam mais ideologicamente, mesmo que as

    duas dependam muitas vezes da mesma fonte financiadora. Porm, mesmo tendo uma

    ascenso eminente, o rap independente aos poucos mergulhou em ideologias estreis e

    pouco relevantes para dar continuidade s discusses e prticas de mudanas efetivas

    social e politicamente, que so parte da prpria concepo e nascedouro do rap muito

    antes at dos limites que aqui analisamos. importante ressaltar tambm que a cena

    independente e mainstream mesmo que tenha se fragmentado ao longo do tempo,

    mostram-se, sempre que podem, solcitas uma com a outra, j que o jogo poltico se faz

    ao mesmo tempo em uma aparente separao mas na no estagnao abrupta dos

    movimentos de rap no Brasil.

    Assim, se por um lado falamos das possiblidade de consumo e divulgao dasmsicas com o desenvolvimento das tecnologias, por outro temos de atentar para uma

    hierarquia das propostas ou mesmo dos gostos. Para que no passe batido a leitura que

    fizemos do gegrafo brasileiro Milton Santos, devemos pensar esta nova expresso

    musical brasileira, ou esse novo mercado musical, como resultado de um grupo prprio

    de indivduos que se ligam por uma vivncia territorial, e so bastante comprometidos

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    com ela. So resultados do que Santos descreveria como fluxos. Estas pessoas que em

    suas msicas tentam descrever a dinmica da cidade, no o fazem por outro motivo se

    no por terem de atravessa-la em suas diversas formas, dialogam com outras culturas,

    do rock a MPB, tem de passar pela periferia e descer ao centro, gerando suas antteses

    de uma dialtica da contradio social. Seus textos so resultados dessa dinmica queganham com a cidade, transposies de sua realidade material, mas tambm de sua

    experincia sensorial com o mundo. Eles criam e recriam as letras de seus

    companheiros, dialogam a ponto de conflitos, unem-se e dividem-se, fazendo o mesmo

    com o mercado.

    Em sua formao, o grupo Quinto Andar tinha como integrantes Mc Marechal,

    De Leve, e DJ Castro. A partir de 2002, aproximadamente, entraram novos integrantes:

    Shawlin, Gato Congelado, Lumbriga Tremosa, Kamau, DJ King, Xar, Tapechu e DJPrimo, entre outros. A partir da segunda metade da dcada de 90 comeou o que seria o

    Quinto Andar, quando De Leve e Marechal se conheceram numa quadra de basquete.

    De Leve - Eu e Marechal escrevamos umas paradas na casa dele, mas tudo brincadeira, a

    gente nem gravava nada.

    Arthur Moura Isso era em que ano mais ou menos?

    De Leve Cara, eu posso arriscar que isso era em 1996. Tem tempo, cara. Tem tempo. Existe

    uma lacuna, tipo assim, hoje em dia voc ouve rap, gosta de rap e rapidinho tu grava qualquer

    coisa. Naquela poca no era to fcil gravar. Eu lembro at que cheguei numa poca e tipo

    assim nego p, vamos num estdio um dia! A eu lembro que, p, a eu j fazia de brincadeira,

    mas no tinha nada gravado, a depois eu lembro que eu tava pra terminar meu segundo grau.

    A eu larguei um pouco o rap. Larguei porque no era profisso, era s amador. Queria me

    dedicar ao estudo n, sei l amanh, n? Rap era uma parada que nem existia naquela poca.

    No existia nem cena rap, no existia como ganhar grana com rap. Eu adorava fazer rap, mas

    p, e a? Tem que viver n? Risos

    Em 1999, 2000 o grupo comeou a gravar. As gravaes eram feitas em um

    pequeno quarto com um computador velho utilizando um microfone de PC daqueles

    fininhos que se conversa pela internet. Porm, nem por isso o grupo deixou de ser

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    conhecido. Lembro-me muito bem de um dia que fui casa de um amigo viciado em

    Metallica, Nightwish e Pantera e pedi a ele que copiasse umas mp3s para o meu

    computador (isso aconteceu aproximadamente em 2002) e para minha surpresa aquele

    roqueiro, que at ento eu achava ser um ortodoxo, copiou algumas mp3s do grupo

    Quinto Andar para o meu hd. Nessa poca o grupo j tinha um nvel de divulgaorazovel no s eixo Rio So Paulo, mas comeava a ganhar espao em outros lugares

    do Brasil.

    Arthur Moura Como vocs fizeram pra divulgar o som?

    De Leve Ento cara, a gente veio do nada, cara! Eu lembro at que eu que fazia essa parada.

    Eu ficava na internet, eu ficava no Napster com as msicas nossas assim, quatro msicas, a

    gente tinha quatro ou cinco msicas e eu fazia a busca: Racionais. Quem tinha Racionais?

    Ah, usurio tal. Eu ia no cara e conversava com o cara. P fulano, voc conhece rap do Rio,

    cara? Rap do Rio?! Existe? Existe! Ouve a! Quinto Andar! A nego ouvia, mas m galera

    no gostava. Nego t ouvindo Racionais, cara! Olha s, o cara t ouvindo Racionais, vai ouvir

    a gente? Nego ouvia e falava que merda!. Foi o maior marketing boca a boca que eu j vi.

    O fato do Quinto Andar ter comeado em 2000 com apenas trs integrantes e

    com o passar do tempo ter se tornado um grupo que mesclava MCs do Rio, Niteri,

    So Paulo e Belo Horizonte fez parte de um processo de estruturao dentro de uma

    cena que ainda no tinha bases slidas. Tal artifcio, segundo relato do prprio De Leve,

    foi uma atitude do Marechal que, inspirado no Wu Tan Clan, precisou expandir o grupo

    para ter bases mais slidas. Em relao a isso De Leve diz:

    De Leve Eu no tinha nada contra isso. maneiro? Neguinho sangue bom? Demor, vamo

    l ento, u. Eu no tenho nada contra sabe qual . Nem Tinha.

    Arthur Moura Mas voc no participou de forma efetiva nisso?

    De Leve No, cara. Isso no foi tipo, ah todo mundo se conheceu junto no. Isso foi uma

    coisa dele (Marechal). Ele saiu botando pra dentro e porra... e depois ele picou a mula, cara! E

    ficou todo mundo dentro de uma parada que ningum se conhecia direito, cara. (...) Foi uma

    parada que eu no tive escolha e tambm nem me oporia na poca. Eu nunca tive vontade de

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    me opor e dizer no, isso a eu no quero. Sempre tive vontade tipo assim, vamos fazer uma

    crew? P, vamos, cara. Sempre me amarrei em ter m galera sabe qual ?

    Essa pequena histria serve para ilustrar como era o rap feito pelo grupo a ponto

    de fazer um roqueiro ouvir a coisa mais mal feita, como diz De Leve se referindo sua prpria msica. Eles souberam usar o pouco aparato tcnico que tinham e

    transformaram aquilo numa vantagem que funcionou at mesmo na divulgao. Deu

    certo. O grupo marcou uma poca importante no rap nacional. Mesmo no possuindo

    gravadora, empresrios e todo o aparato que um grupo necessita para se inserir num

    mercado economicamente bem sucedido, isso no impediu que eles criassem o seu

    prprio segmento e futuramente alguns conseguiriam se inserir num mercado mais

    slido. claro que antes tambm houve grupos que j estavam atravessando o Cabo das

    Tormentas, onde mais tarde seria o Cabo da Boa Esperana. Black Alien & Speed, porexemplo, j na primeira metade da dcada de 90 ganharam o mundo vinculando uma de

    suas msicas a empresa de automveis Nissan. A msica serviu de trilha sonora para

    anunciar um carro da poca na Europa. Isso ocorreu antes de Black Alien entrar para o

    Planet Hemp. importante tambm ressaltar que j nessa poca rappers de diversas

    partes do Brasil pensavam em alternativas para o velho e batido rap gangster com todas

    as suas lamentaes e atitudes rudes. Black Alien, Speed, Aori e DJ Babo dos

    Inumanos, Dom Negrone e os Trs Pretos, De Leve, Shawlin, Mc Marechal, DJ Castro,

    Kamau, Mahal so apenas alguns exemplos de grupos, produtores e Mcs que noestavam mais satisfeitos com o discurso do rap gangster e decidiram inovar.

    Voltando ao Quinto Andar, nessa poca de formao artstica, de discurso e

    estruturao de carreira que podemos observar com mais clareza os resultados que hoje

    analisamos. Que tipo de mercado estava se formando? possvel falar em mercado

    quela poca? O que ocorreu para haver um alargamento do discurso que antes era

    predominantemente direto, crtico incisivo sociedade e s mazelas que compem a

    trama social e que passou a formar o rap que hoje chamamos de alternativo? Mesmo

    quela altura, sem lucrar financeiramente com a msica (coisa que passou a acontecer

    somente algum tempo depois, e mesmo assim o resultado financeiro vinha muito mais

    dos poucos shows que faziam do que da venda de CDs), seria uma negligncia no

    enxergar a formao de um mercado alternativo onde coube internet papel

    fundamental. O que fez do Quinto Andar um grupo que mais tarde viria a influenciar

    diversos jovens que passariam a fazer rap no Brasil? possvel apontar algum tipo de

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    ideologia j nessa poca de formao mesmo o grupo estando em perodo inicial e de

    descobertas e onde segundo os prprios integrantes pouca coisa ainda estava definida?

    Vejamos agora alguns trechos de letras do Quinto Andar.

    QUINTO ANDAR - EU RIMO NA ESQUERDA (cantado por De Leve)

    Eu sou pequeno no causo medo nem espanto

    no tenho segredo embaixo do manto, mas sou esculachado desde cedo voc no sabe o quanto

    (quanto?!)

    Vivo minha vida aos prantos, apesar de odiar os santos

    Slvio Santos eu respeito, mas odeio viado

    N, Lulu Santos?

    Porque voc no me convida pra fazer parceria de vez em quando?

    (voc no do ramo!)

    OOOpps.. no era esse tipo de parceria que tava falando (...)

    eu? quero que geral baixe minha msica de graa paca

    assim nego j no quer imagine se cobrasse uma nica pataca

    t to iludido que algum vai gostar dessas merdas de rima como os mc's fudidosem rima mandam geral botar o brao pra cima

    (bota o brao pra cima!)

    Eu j disse que sou playboy, no nego

    Afinal minha me manicure, meu pai taxista e moro em Niteri

    QUINTO ANDAR LARGADO (cantado por De Leve)

    Essa pros que andam de havaianas

    Contra toda pessoa que abana pra longe a cultura sul americana

    E so mal vistos nos lugares que entram

    Nos restaurantes que vo

    Quando no bar tem que entrar de social a soluo entrar pelo vo

    Aos que deixam de ir em festa por que no tem uma cala limpa

    No brech nem um tnis cala quanto mais voc garimpa

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    Seu macaco mente que a nova moda a ala mpar

    No restaurante finge dieta e come salsa com azeite

    Pra no gastar dinheiro com nibus anda de skate

    Seu sogro acha que voc atleta, que no sente frio e no toma leite

    Essa dedicada a cada maluco que j foi confundido com ladro

    E ficou preso na porta giratria de to mal vestido

    Pra todos aqueles que s mudam de camisa

    Mas ningum percebe porque o pacote so trs iguais GG e lisa

    QUINTO ANDAR J (cantado por Mc Marechal)

    Se voc maluco e fica ouvindo meu som

    certo que voc j percebeu e comentou com os amigos que eu s escrevo

    uma parte e largo um refrozinho na moral

    Voc pode at achar que preguia, mas a minha arte assim pra no encher o saco!Eu confesso que no gosto muito desses raps enormes

    Conforme eu vou ouvindo no t nem no meio ainda j enjoa

    O cara gastou trs canetas, quinze folhas frente e verso

    A maioria dos versos cai na mesmice

    Nem todas as rimas saem assim boa

    Como os recursos materiais quela altura ainda era escasso, a nica arma que

    eles tinham eram suas letras, onde retratavam basicamente o cotidiano, de como eram

    enquanto pessoa e como enxergavam o mundo, suas dificuldades e tambm seus

    preconceitos. As crticas tambm se direcionavam ao prprio rap em que aos poucos

    estavam se inserindo. Essa crtica interna tambm passou a ganhar um novo teor que se

    traduziu bem nas disputas. Em J , fcil observar uma crtica aos raps longos e

    enfadonhos que, mesmo sendo influncia de muitos, no seria seguido como parmetro.

    O que se queria era apresentar uma nova proposta lrica, de mtrica e rima, assim como

    novos contedos e abordagens. Em Rimo na Esquerda, De Leve fala de si mesmo oudaquele rap que estava comeando a disputar espao numa cena at ento dominada

    pelo rap americano? Ainda em Rimo na Esquerda o letrista faz uma espcie de apelo

    para que seu som seja baixado, pois se fosse vender certamente no iria ter xito

    naquele momento. Largado uma das faixas mais conhecidas do grupo e realmente

    caracterizou o estilo de vida que levavam quela poca. No havendo recursos

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    financeiros, a nica forma de se virar era por meio da improvisao. Mais uma vez

    podemos observar o aproveitamento de uma situao aparentemente ruim para algo que

    funcionasse. As posies em relao a isso so diversas. Vejamos.

    De Leve A idia era fazer... no era ser non sense, mas era fazer uma parada tipo assim,porra eu posso fazer a msica pra nego curtir, sabe qual ? Pra neguinho zuar, pra rir, pra se

    divertir... e pode ser rap, pode ser manero e no precisa ser disso e daquilo. Posso falar sobre

    qualquer coisa, posso falar da vizinha. A idia era essa mesmo, eu tinha essa idia. Eu acho at

    que a partir do que a gente fez o jogo mudou, cara. Hoje em dia no mais assim. O prprio

    Racionais tem Mulher Eltrica, outras paradas que neguinho aborda. Eu vim falando tema

    de mulher a vera! A minha primeira msica um tema de mulher. Depois eu vim com Vai

    Vendo, tem Menstruao, tem vrias paradas e eu fao o mais escroto possvel! Eu quero

    gatinhas raspadinhas sem calcinhas. Tema feminino no rolava no rap brasileiro. Eram temas

    tipo exaltao da mulher negra brasileira. Eu no, brother, eu fao zoao.

    Ao ser questionado se o Quinto Andar possua algum tipo de ideologia no incio,

    em outraentrevista que fiz no dia 18 de outubro de 2009 com o produtor de eventos e

    beatmaker M (no quis ser identificado), este diz:

    M A parada do Quinto Andar era ser largado, ser vagabundo, tu levar vantagem em cima

    das pessoas no trambique, t ligado. Essa era a ideologia do Quinto Andar. E todo mundo

    levava essa coisa como religio: voc ser largado. E isso a influenciou gente pra caralho, tligado? Voc v neguinho da nossa idade que j ouve rap h algum tempo leva essa porra ao

    p da letra: ser largado!

    Como este depoimento do M foi feito antes da entrevista que De Leve me

    concedeu, apresentei-lhe este mesmo trecho citado anteriormente a ele perguntando o

    que achava desse posicionamento.

    De Leve Cara, eu acho que a msica Largado... cara, eu sou amarrado de ter feito essamsica, porque essa msica ultrapassou umas barreiras doidas por que... a msica virou

    ideologia, como se fosse ideologia. Mas aquilo no era uma ideologia e nem nunca foi.

    Arthur Moura Voc fez pensando nisso?

    De Leve Em ideologia?!

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    Arthur Moura .

    De Leve Que nada, cara! A msica toda feita em exemplos de coisas que j aconteceram

    comigo. Ela toda assim! Tanto que em nenhum momento da msica eu falo em primeira

    pessoa que eu sou largado. Eu falo assim o terror da famlia quando voc cola com a filha

    s porque tu largado. No eu, eu no falo em mim. So situaes, sabe qual ? No uma

    ideologia. uma parada que voc t sem grana, como que voc sobrevive, sabe qual ?

    Como que a gente vive aqui em Niteri, como que as paradas. Essa msica ficou to

    conhecida que parece que um hino da parada. Eu fico feliz pra caralho, porra! uma msica

    que eu fiz! Muita gente pergunta o que voc quis dizer?, eu falo, meu irmo interpreta do seu

    jeito. Largado no ideologia, tanto que eu s fiz uma msica falando largado, eu no fico

    falando nas minhas msicas largado, largado... eu tenho mais de cem msicas e tu vai ouvir e

    no tem isso.

    Mesmo no tendo a intenso o Quinto Andar no hesitou em explorar o tema do

    largado de uma forma mais natural sem afirmar este posicionamento em suas oratrias

    em shows ou em todas as letras. A forma como o pblico reagiu a esta proposta tambm

    revelou-se proveitosa para que a msica tivesse um alcance maior. Com isso, j

    podemos observar alguns mecanismos que aos poucos iam se mostrando eficazes na

    elaborao de um novo ethos musical.

    Vimos em alguns exemplos que houve, mesmo de forma despretensiosa,mecanismos que permitiram a insero do grupo Quinto Andar a uma cena at ento

    pequena e pouco consolidada, mas que aos poucos fora se expandindo at ganhar o

    status e a autonomia que a maioria dos seus membros hoje possui. O grupo em si no

    possui autonomia e sim seus integrantes, ou ex-integrantes, j que seu ltimo disco

    Pirato de 2005 fora a ltima reunio do Quinto Andar. Mesmo acabando, os

    integrantes continuaram suas carreiras de forma solo. Marechal, De Leve, Shawlin,

    Tapechu (que entrou para o grupo em 2005 para gravar o disco), DJ Castro, DJ Primo,

    DJ King, Kamau, Lumbriga Tremosa, Gato Congelado, Xar, so nomes conhecidos na

    cena do rap independente. Marechal ainda no gravou nenhum disco, mesmo havendo

    uma promessa histrica de lanamento. Isso ocorre pelo fato do MC ter transformado o

    futuro disco numa espcie de mito entre aqueles que o aguardam ansiosamente. Sua

    carreira marcada por uma srie de singles, produo de eventos como a batalha do

    conhecimento e principalmente pela construo de aparatos ideolgicos, seu ponto forte.

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    No incio houve a Dichinelo, prottipo do que viria a ser mais tarde o conhecido Um

    s Caminho. De Leve gravou cinco discos e segue sua carreira fazendo parcerias com

    diversos artistas. DJ Castro toca com Black Alien. Kamau (SP) segue carreira solo e

    tambm faz parte dA Rua Noiz. Shawlin j lanou seu segundo disco e guarda em

    seu acervo diversos singles e participaes com outros artistas. Xar, Lumbriga, GatoCongelado e Matria Prima seguem tambm em carreira solo. O caso importante de

    ressaltar e que justifica boa parte da anlise da carreira do Quinto Andar de que forma

    se estabelece a carreira de um dos Mcs fundadores do grupo, MC Marechal.

    quela poca, conforme citamos anteriormente, sua preocupao no se

    centrava unicamente na msica, mas sim em abranger cada vez mais as influncias e

    parcerias e formar um verdadeiro movimento. Esta era uma das propostas do grupo.

    Aps sua sada, no mais se envolveu em grupos, mas preocupou-se em formar um

    movimento ao seu redor atravs de seguidores. Sua ideologia reflete, de uma formamuito mais ambiciosa, as necessidades que tivera anteriormente. Hoje, mesmo no

    possuindo um grupo, comanda e dita o gosto do que passa em seu selo. Um s

    Caminho hoje um movimento (ou como afirma o Mc, uma filosofia de vida que se

    aprende nas ruas) que preza por segmentar parte da cena do rap sob as necessidades

    muito mais pessoais e polticas do seu fundador do que a dedicao funo artstica

    revolucionria. Para fazer parte do movimento, necessrio estar de acordo com as

    premissas ditadas formalmente por aquele que possui a maior patente.

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    UM S CAMINHO E A RUA NOIZ: ideologias de poder e consumo

    dcil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que

    pode ser transformado e aperfeioado. Michel Foucautl Vigiar e

    Punir

    A construo de ideologias no hip hop mais especificamente no rap

    independente parte de um processo onde as prticas de poder so canalizadas para o

    domnio de uns sobre outros a partir de formulaes polticas hierrquicas bem

    arquitetadas. Quando um se torna predominante em seu segmento a pureza e o controle

    das produes tornam-se via de regra num cenrio escasso onde, por prticas rgidas de

    sobrevivncia, passa a no haver mais lugar para subverso contra a ordem estabelecida,

    mas sim um dilogo constante com suas instncias prezando pela manuteno do estado

    de coisas. A partir disso, podemos nos debruar sobre diversos exemplos. Todavia, pelo

    limite aqui imposto nos cabe analisar apenas um segmento e seus possveis

    desdobramentos. claro que quando nos referimos ao crtico processo de insero do

    artista regido por essa complexa trama de poder no queremos universalizar, esgotar a

    dinmica e funcionalidade de toda cultura.

    Quando ocorre o trmino do Quinto Andar, MC Marechal aos poucos se torna oprincipal nome da cena independente do Rio de Janeiro. A criao da ideologia Um S

    Caminho tornou-se com o tempo a base de sua conduta. A concepo de movimento

    tambm inserida dentro dessa perspectiva como um termo em disputa.

    Um s caminho um estado de esprito, o sentimento pode estar em mais de

    um lugar ao mesmo tempo, se representado por mais de uma pessoa. Imprime a

    sensao de o todo ser um e de um ser o todo.

    Para essa onipresena ser possvel, preciso confiana, compreenso,continuidade, respeito e, acima de tudo, que um acredite e enxergue a si no

    outro. A idia que funcione como um organismo, onde cada parte exerce a sua

    funo e o todo depende e precisa, indispensavelmente, de cada uma delas.

    (...)

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    Um s caminho define, pelo respeito lealdade e disciplina, sem discpulos e sem

    hierarquia, a unio desses caminhos em prol de um objetivo nico. (Trecho da

    Filosofia Um S Caminho)

    Para Marechal, construir um aparato ideolgico de relaes de poder foi muito

    mais importante do que gravar um disco ou ter suas msicas constantemente tocando

    em rdios. Este pode concentra-se muito mais na ordem do poder-sobre em detrimento

    do poder-fazer, livre da ordem opressiva. O Mc conquistou acesso em muitas regies do

    pas sem grandes apoios, no restringindo-se apenas ao eixo Rio So Paulo.

    importante ressaltar que toda a sua dinmica poltica fora concebida nas ruas, em

    contato com diversos segmentos onde de fato pode construir sua carreira e seus ideais.

    Marechal um dos poucos que ainda defende a ideia de que o hip hop msica demensagem. Em seus shows, durante as performances, a aluso ao valor poltico da

    cultura sempre lembrado. Em suas msicas, faz aluso a batalha no campo das ideias,

    meu bonde t obstinado a formar os linhas de frente / foda-se os campo minado porque

    ns caminha com a mente; critica o verdadeiro valor do dinheiro e defende que o rap

    o eco dos bueiros onde os verdadeiros conhecem os verdadeiros. Apesar de trazer

    em suas letras um contedo de crtica e resistncia contra os mecanismos do capital o

    Mc traz em sua concepo de movimento configuraes muito prximas de uma

    sociedade de controle. Para pensar tudo isso, problematizamos tanto o contedo potico

    e lrico como aes polticas concretas tendo na prtica o critrio das verdades. Para

    desenvolver este aparato de poder criou-se o que se entende por ideologia da

    competncia, onde o Mc serve no s como porta-voz de uma cultura de resistncia,

    mas como parmetro do gosto. Um s caminho passa a se organizar como uma micro-

    empresa, onde o Mc estipula quais trabalhos devem ser lanados, quando e como. Para

    tal, partimos de experincia prpria e anlise emprica de campo. Ou seja, observamos

    de perto parte de suas prticas. Para Marilena Chaui

    A ideologia da competncia pode ser resumida da seguinte maneira: no

    qualquer um que pode em qualquer lugar e em qualquer ocasio dizer qualquer

    coisa a qualquer outro. O discurso competente determina de antemo quem tem

    o direito de falar e quem deve ouvir, assim como pr-determina os lugares e as

    circunstncias em que permitido falar e ouvir, e define previamente a forma e

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    o contedo do que deve ser dito e precisa ser ouvido. Essas distines tm como

    fundamento uma distino principal, aquela que divide socialmente os

    detentores de um saber ou de um conhecimento (cientfico, tcnico, religioso,

    poltico, artstico), que podem falar e tm o direito de mandar e comandar, e os

    desprovidos de saber, que devem ouvir e obedecer. Numa palavra, a ideologia

    da competncia institui a diviso social entre os competentes, que sabem e por

    isso mandam, e os incompetentes, que no sabem e por isso obedecem.

    (Marilena Chaui - Marilena Chau rouba cena em debate: classe mdia

    paulistana sinistra Postado em: 4 set 2012 s 7:51)

    Para Filipe Ret a questo baseia-se por um moralismo.

    Arthur Que tipo de moralismo voc v no rap?

    Ret Voc quer um exemplo real?

    Arthur Aham.

    Ret Um s caminho, do Marechal, por exemplo. Um s caminho do Marechal acho que um

    exemplo claro de pelo menos a ideia que tem pra passar ela ainda um pouco moralista. um

    som foda. Eu no t criticando aqui ele no. Mas o tom que d a parada um tom moralista.

    No sei se pro bem ou pro mal, mas moralista. O lance de sou verdadeiro e os outros noso. Isso ainda rola. Essa autoafirmao dentro da cena, n? Acho que se tu ouvir sons que j

    esto vingados, os caras ficar dizendo eu sou roqueiro, vocs no so roqueiros. Eu sou

    sambista, voc no sambista. (...) Talvez isso l no fundo, agora analisando aqui a...

    Sinceramente eu acho que Racionais tinha capacidade de fazer alguma coisa mais original,

    mas s sentiu orgulho, vontade e s acreditou quando fez meio que essa copiazinha. O que,

    mano, de um lado lamentvel e por outro lado legal porque, porra, deu certo. Eu acho que

    Um s caminho se foi meio que copiado, no sei, no sei se tem um s caminho l, no sei se

    tem a mesma viagem do A Rua Noiz l fora. Mas se a gente copia, cara, a gente copia porque

    a gente meio quer interpretar uma viagem de fora pra acreditar mais na parada. O que, porra,

    no legal. Infelizmente no legal. Faltou uma unidade, faltou um raciocnio prprio. Na

    verdade isso alm rap, n? Falta a gente l as coisas pela gente. O que eu vejo, bom tocar

    nesse assunto, porque eu gosto de falar disso, eu vejo muito as pessoas fazendo comentrios

    que j foram feitos, sabe qual ? As pessoas no tm comentrios prprios. Os comentrios so

    meio que reproduzidos j. As pessoas ouvem os comentrios e falam, poxa, esse comentrio

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    interessante. Pega aquele comentrio e reproduzem o comentrio, no criam o comentrio. E

    nessa reproduo a gente morre.

    Para manter-se como funo reguladora as ideologias se construram como

    suporte de segmentos do rap que se pretendiam influentes em diversos aspectos. Em

    So Paulo, Emicida, Projota e Rashid formam outro segmento, identificado como A

    Rua Noiz. Tal ideologia se forjou sobre parmetros muito prximos a um s

    caminho. Em a rua noiz, no entanto, o teor protestante ganha importncia fundamental

    em conceitos como trabalho trazendo neste conceito no mais a organicidade da

    unio, da complementaridade e horizontalidade, mas da distino daqueles que

    trabalham e dos que no trabalham, sendo estes categorizados como indignos,

    preguiosos e incapazes, alm, claro, de atrapalhar o proceder dos que trabalham. Paraconstatar tal afirmao, basta acompanhar postagens sobre o que vem a ser o valor do

    trabalho. Emicida foi um dos rappers que mais ganhou destaque. Recentemente

    apareceu na novela Sangue Bom e por receber algumas crticas expos sua viso sobre

    o fato.

    E quem critica, fez o qu? Vai contar o qu? Construiu o qu? Porque eu vi e fiz o rap

    brasileiro chegar l na Califrnia e dividir o festival com Nas, Damien Marley,