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7/24/2019 uma liberdade chamada solido_tcc_arthur moura_uff
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Arthur Moura
Uma Liberdade Chamada Solido: a formao do rap independenteno Rio de Janeiro (1990 2013)
Tese de concluso de curso apresentado ao Programa deGraduao em Histria da Universidade FederalFluminense sob orientao da Professora Adriana
Facina e leitora crtica a professora Ana Lcia dodepartamento de Antropologia.
NITERI - 2013
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Sumrio
INTRODUO .........................................................................................4
MODERNIDADE E CAPITALISMO tempos de enfrentamento .... ...........11
A CONSTRUO DO RAP INDEPENDENTE ........................................ 18
UM S CAMINHO E A RUA E NOIZ: ideologias de poder e consumo ..... 36
A CONSTRUO DE UM MERCADO ALTERNATIVO ........................ 50
O USO DA MDIA E A QUESTO DAS RODAS DE RIMA ................... 65
FILIPE RET, PS-MODERNIDADE E O RAP INDEPENDENTE ............ 71
O ENCANTAMENTO DOS SENTIDOS .................................................. 85
CONCLUSO ......................................................................................... 99
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A todas as resistncias do hip hop.
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AGRADECIMENTOS
A tese que aqui apresentamos resultado de uma pesquisa e uma vivncia
intensa no rap independente. Foram muitas pessoas envolvidas para que enfim eu
apresentasse aqui uma parte simblica de reflexes sobre os rumos de um segmentocultural ao qual pessoalmente fao parte. No s integrantes do rap me auxiliaram na
pesquisa, mas amigos prximos, familiares e alguns professores. Agradeo a professora
Ana Lcia do departamento de Antropologia da UFF por se dispor a ser minha leitora
crtica. Agradeo minha me, Lilian Azevedo, por investir na minha educao e
mostrar que o caminho da reflexo imprescindvel para modificar as coisas que
acreditamos. Gostaria de agradecer tambm ao coletivo Comando Selva, Leonardo
Manarino (Gori Beatzz), Wallace Carvalho, Filipe Ret e De Leve tanto por me conceder
entrevistas importantes para as minhas concluses como por ampliarem meu campo deviso para analisar melhor as contradies que aqui tratamos. Agradeo tambm aos
leitores do blog umaliberdadechamadasolidao.wordpress.com por interferir diretamente
nas teses que apresento.
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Pensar o rap pensar a sociedade, as mentalidades. pensar o momento em que
vivemos, a arte e as inquietaes de um determinado grupo que ganha voz, de umamaioria apagada que faz dessa voz um instrumento de luta que entoa sentimentos,
saberes, conhecimentos, canes, relaes de fora e ideologias. Pensar o rap discutir
comportamentos, vivncias e valores. questionar o que uma parcela da populao
pensa e o que ela prope enquanto mudanas. pensar o porqu dessa parcela se
arriscar em linhas que fomentam uma luta, e que luta essa. pensar o giro do bboy, os
riscos do DJ e as expresses do grafiteiro. Pensar o rap no se limitar a um modelo
estritamente relacionado com as necessidades da indstria fonogrfica e de toda
estrutura da indstria cultural. O rap por princpio problematiza a sociedade, porm o
rap tambm pode ser problematizado perante seus posicionamentos e propostas de
mudanas da sociedade. Perante tudo isso, adentremos nossa discusso.
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INTRODUO
Seria errneo subestimar o valor combativo das teses que, aqui,apresentamos. Elas renunciam ao uso de um grande nmero de noestradicionais tais como o poder criativo e genialidade, valor de eternidade emistrio cuja aplicao incontrolada (e, no momento, dificilmentecontrolvel) na elaborao de dados concretos torna-se passvel de justificarinterpretaes fascistas. O que distingue as concepes que empregamos aqui eque so novidades na teoria da arte das noes em voga, que elas no podemservir a qualquer projeto fascista. So, em contrapartida, utilizveis no sentidode formular as exigncias revolucionrias dentro da poltica da arte.WalterBenjamin A Obra de Arte na poca de suas Tcnicas de Reproduo (1936)
No contexto cultural brasileiro, num primeiro momento o rap encontrou lugar
significativo principalmente entre a juventude. Num segundo momento ganhou novos
segmentos e trouxe em suas prticas o reconhecimento de uma nova linguagem
transformando-se com o tempo em forma econmica e poltica. No Brasil podemos
entender as suas diferentes inseres, assim como propostas polticas principalmente a
partir da dcada de 80. A dcada de noventa, por sua vez, trouxe diversas formas
musicais tona. Bandas como Nirvana, Rage Against the Machine, Faith no More,
Alice in Chains, Primus, Soundgarden, Pearl Jam, Green Day, Blink 192 (novo punk
pop), Planet Hemp, O Rappa, Mamonas Assassinas, Tits, Charlie Brown, Raimundos,
Sepultura, Marilin Maison, System of a Down, Slipknot, Tupac, Notorius Big, Body
Count, Brujeria e diversos outros ganharam visibilidade no s como banda, mas muitos
tambm como marcas que comporiam um mercado maior. Longe das gravadoras, o rap
no Brasil comea a surgir como segmento independente. a partir da dcada de 90 que
transformaes importantes ocorrem impulsionando novos estilos. Ainda assim, o
mercado industrial cultural direcionava seus investimentos em segmentos que muitas
vezes sequer dialogavam com o rap. A no ser bandas j consagradas como Rage
Against the Machine ou Limp Biskit traziam o rap em sua roupagem, mas ainda assim,
o que surgiria seria diferente. O rap ainda era um estilo marginal e evitado em mercados
convencionais. As classes dominantes ainda eram muito desconfiadas dos reclames que
vinham das favelas. A negao do estilo que nascia no se refletia nas regies
pauperizadas onde a cada dia o rap ganhava mais fora. Sua identidade se forjou frente
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s exigncias da vida cotidiana daqueles economicamente desfavorecidos. Dentro disso,
Valenzuela Arce em Vida de Barro Duro afirma:
Mimetizando-se com o cotidiano de muitos bairros afro-americanos e latinos
dos Estados Unidos, o rap apareceu com uma forte carga simblica de violncia.
Registro da vida jovem, o rap d conta de penrias econmicas, de problemas
sociais, de rivalidades de bairro e territrio, da prevalncia do racismo, da
adoo exaltada do discurso machista, das vicissitudes da vida urbana, das
diferentes faces da violncia: brigas, assassinatos, assaltos, narcotrfico, abuso
policial e morte. (MANUEL VALENZUELA ARCE, Jos. Vida de Barro
Duro: Cultura Popular e Grafite. Rio de Janeiro, UFRJ, 1999. Pg. 91)
A indstria cultural, e a inserimos os canais miditicos e a estrutura corporativa,
preferiu esperar antes de se aproximar do estilo que nascia. A insero de parte da classe
trabalhadora como consumidora de bens e servios, projeto do capital, tambm agiu de
forma importante, apesar de nesse momento o aumento crescente do desemprego, da
misria e concentrao de renda esvaziar cada vez mais o bote do crescimento
econmico estvel. Tais aspectos no era uma realidade apenas de pases
subdesenvolvidos. Na Europa ocidental o desemprego na dcada de 90 era de 11% e 3%
da populao de Nova York estavam desabrigados. Isso falando de centros importantes
para o capitalismo. A concentrao de renda, outro fator gritante nas duas dcadas de
crise, teve o Brasil como candidato a campeo mundial.
Nesse momento de injustia social, os 20% mais pobres da populao dividiam
entre si 2,5% da renda total da nao, enquanto os 20% mais ricos ficavam com
quase dois teros dessa renda. (COSTA, Edmilson. So Paulo, Expresso
Popular, 2008)
A seguridade e previdncia social influenciaram no controle das inquietaes
sociais, mesmo o governo tendo gastos suntuosos nesse momento com os pagamentos.
O rap estava apenas nascendo e dentro do seu contexto criticava a postura mesquinha do
mercado e as posies autoritrias dos governos.
preocupante, diz Valenzuela, que metade das famlias latino-americanas viva
na pobreza (10% a mais do que no incio da dcada de 80), que na Amrica
Latina morram diariamente 3 mil crianas em consequncia da pobreza ou que
entre os casos de pessoas mortas ou mutiladas durante as guerras da ltima
dcada o nmero de crianas seja maior do que o de soldados, pois nesse
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perodo morreram nas guerras cerca de 2 milhes de crianas, entre 4 e 5
milhes foram mutiladas fisicamente, 5 milhes fora levadas a campos de
refugiados e 12 milhes ficaram sem habitao. (MANUEL VALENZUELA
ARCE, Jos. Vida de Barro Duro: Cultura Popular e Grafite. Rio de Janeiro,
UFRJ, 1999. Pg. 61)
J John Holloway afirma que,
em 1998, os bens das 200 pessoas mais ricas do mundo somavam mais do que
a renda total de 41% da populao mundial (constituda por 2 bilhes e 500
milhes de pessoas) A distncia entre ricos e pobres aumenta, no apenas entre
pases, mas dentro dos pases. (HOLLOWAY, John. Mudar o Mundo sem
Tomar o Poder: o Significado da Revoluo Hoje. So Paulo, Viramundo, 2003.
Pg. 10)
Como consequncia, o aumento das diferenas entre pases pobres e ricos
aumentou a ponto de tambm aumentar a dependncia de pases pobres. Os pases ricos,
por sua vez, quando no estabeleciam relaes de dependncia com pases pobres em
crise, aproveitavam-se desses da forma que melhor lhes conviam. No podemos deixar
de observar tambm que as dcadas de crise fomentavam uma onda separatista
principalmente em pases do ocidente, como Gr-Bretanha, Espanha, Canad e Blgica.
J os pases do Leste Europeu se viram na mesma situao a partir de 1991, com o fim
da URSS. Esse movimento separatista era muito mais resultado de um egosmoeconmico do que a vontade de se estabelecer novos territrios independentes. Ou seja,
ningum queria de fato pagar os largos prejuzos das dcadas de crise.
Dentro desse quadro de contradies uma parcela da juventude se esfora por
denunciar, atravs de suas criaes artsticas, uma srie de questes que reforam,
inclusive, a prpria juventude pauperizada como inimiga do progresso moderno e da
ordem social. Para Valenzuela:
As perspectivas dominantes estabeleceram que nas zonas e bairros populareshavia delinquentes, desocupados ou trabalhadores, mas no movimentos
juvenis. Isso nos mostra outra das dimenses da anlise das representaes
dominantes sobre a juventude: a sua condio seletiva. A juventude uma
construo que seleciona atores e caractersticas, mas tambm esquecimentos,
por isso no uma definio ingnua ou assptica, mas destaca e proscreve,
pondera e minimiza condies que se referem a processos de hipostatizao nas
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representaes sociais. (MANUEL VALENZUELA ARCE, Jos. Vida de
Barro Duro: Cultura Popular e Grafite. Rio de Janeiro, UFRJ, 1999. Pg.75)
Para entender as problemticas e contradies internas da construo do rapindependente preciso tambm contextualizar um panorama de disputas polticas de
forma mais ampla num recorte temporal que envolve alguns sculos. A modernidade e
todo o processo de ocidentalizao, assim como a construo de um sistema econmico
que se afirma hoje com a fora da globalizao no deixa dvidas sobre o poder de
controle do neoliberalismo. Devemos ateno tambm construo do que se entende
ps-modernidade, da sua nova forma de lidar com o tempo e contradies sociais e o
que este paradigma representa para as relaes polticas e econmicas. Assim, teremos
mais possibilidades de compreender as transformaes do rap juntamente com o seucontexto histrico e poltico. A produo cultural do hip hop insere-se em posio de
destaque frente ao mercado mundial, poltico e cultural, qualitativa e quantitativamente.
Assim, todo esforo acadmico para a descrio, problematizao e compreenso do rap
em sua complexidade justificvel.
Os movimentos que compem a trama de disputas polticas da cena hip hop so
histricos e guardam nesse percurso suas complexidades. No seguem uma
determinao nica, causal, inteiramente mecnica, apesar dos resultados de arte que se
encontram como linguagens em disputa na conjuntura atual apontem muitas vezes para
resultados que nega em suas relaes o que se pretende estabelecer como arte engajada.
A presente anlise visa discutir no s a formao histrica do rap no Rio de Janeiro e
So Paulo, mas traar uma anlise crtica sobre a formao do seu discurso, assim como
a formao dos mercados, relaes e trocas simblicas. A mercantilizao da arte nos
serve como ponto central de debate, pois ao que se pretende, a arte deve livrar-se de
vnculos histricos que a subjugam como categoria de mercado propondo e pensando
alternativas possveis.
A sociedade capitalista trouxe transformaes que exigem ser observadas de
perto. So formas em disputa que precisam de um rduo trabalho at se chegar a
questes que nos ponham de frente com a crtica transformadora, no restando oferta s
relaes de servido que a sociedade moderna impe por trs de imagens espetaculosas
e sedutoras. A este respeito devemos entender a cultura hip hop dentro de um campo de
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disputa onde se formam concepes diferenciadas sobre o que vem a ser linguagem, arte
e todos os cdigos gerados por esse constructo social. Dessa forma, compreendemos
melhor sobre quais questes devemos nos debruar para trazer novas questes e
problemticas. Isso nos estimula a pensar onde residem formas alternativas de troca e
sustentabilidade a partir da criao de redes estruturadas no mais a partir dacompetio ou mercado, mas do apoio mtuo onde existam relaes horizontais.
preciso discutir, portanto, o papel das resistncias dentro de uma configurao que se
pretende hegemnica sob o axioma do paradigma moderno.
As impresses geradas pela economia burguesa acompanham as novas
categorizaes itinerantes que o capital necessita para gerar a euforia de estar exercendo
a cidadania e o progresso. Com isso, o que conta na economia burguesa atingir o
sucesso dentro dos parmetros de um mercado sustentvel, ativo e segmentado, regido
por relaes com o capital, ativo dentro da configurao de mercado e sustentvel a
partir da perspectiva neoliberal, onde a competio forma o carter selvagem de disputa.
So formas a servio no s da manuteno de grandes disparidades sociais, mas
constroem suas estruturas de poder imprimindo concepes do que vem a ser liberdade,
underground, arte, msica, poesia, sucesso, verdade, crtica, razo, seduo, desejo,
libertrio, conhecimento, talento, dom e vida dando uma aparente coerncia sobre suas
pretenses polticas a partir da apropriao de conceitos sustentados por uma razo
instrumentalizada. De toda forma, os conceitos em disputa se apresentam de maneira
diferente entre segmentos de uma aparente cena homognea. A classificao nem
sempre a melhor opo para se analisar um objeto ou um fato. Todavia, a
heterogeneidade da realidade por vezes nos obriga a fragment-la para uma melhor
observao, anlise e compreenso das complexidades. Visto isso, temos as mais
variadas formas de comportamento dos sujeitos que integram a cultura hip hop. O rap,
ento, como um dos componentes do hip hop, assume seus estilos, pegadas, mtricas,
rimas, texturas e flows. perspectiva de um olhar que analisa de cima no
conseguiramos distinguir o rap enquanto campo de disputa to intenso quanto possvel.Os quatro elementos por sua vez ganham suas prprias autonomias enquanto mercado,
discurso e expresso artstica. ento a uma das formas do que se entende por rap que
direcionamos a ateno: o rap independente.
O recorte temporal do presente trabalho encontra-se dentro do limite da dcada
de noventa at os dias atuais. claro que ainda assim o limite ganha nova dimenso
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quanto prpria cena que vamos tratar. Esta, por sua vez, restringe-se ao eixo Rio So
Paulo. Quando a troca entre esses segmentos comea a acontecer h uma profuso na
prpria linguagem que o rap comea a desenvolver no incio da sua formao como
cultura de resistncia. Obviamente, a produo nos demais lugares do pas e no resto do
mundo aconteciam em simultneo. O centro-oeste com Marcelo Martins, por exemplo,j experimentava sonoridades ousadas na mesma poca em que o Quinto Andar nascia
como grupo expressivo em Niteri. Isso sem citar o nordeste, sul e norte do pas e suas
mais variadas formas de expresso. A partir de uma relao de parcerias, contatos,
trocas musicais, festas e eventos, gerou-se tambm a chance desse segmento se inserir
de forma por vezes monopolizadora na cena underground. Nem por isso deixaram de
imprimir suas concepes lricas e expresses artsticas que ainda hoje nos desperta por
revelar as marcas de uma poca.
No cabe aqui traarmos a histria do hip hop do Rio de Janeiro, Niteri ou So
Paulo. As fontes tive acesso para embasar o presente debate faz parte, sobretudo, de
uma pesquisa de campo, mas ganha consistncia principalmente a partir de uma
vivncia e uma investigao contnua daquilo que aqui analisamos, alimentando,
portanto, o que se entende por campo. Para tal, coube-nos tambm participar ativamente
da produo de significados do que hoje se configura como movimento underground,
assim como a prpria linguagem em disputa. Por isso, o referencial mistura-se de forma
a produzir tanto uma reflexo crtica sobre o assunto como tambm uma insero ativa
do que aqui se pretende analisar criticamente.
As estruturas de poder que se refletem na linguagem partem de contradies
sociais que historicamente ainda no foram superadas. Pensar a mercantilizao do hip
hop s possvel a partir da anlise prvia das estruturas de poder capitalista. Sendo
assim, nos resta atentar para uma confluncia entre a construo histrica dos fatos
aliado ao aparato terico que nos revela as entrelinhas do campo social em disputa.
Pensamos aqui a construo do rap dentro de uma estrutura complexa que no se afasta
das contradies que compem a trama social, diferente da forma como o paradigma
ps-moderno busca estabelecer. Discutir o rap aprofundar em questes que no se
limitam s s aparncias. Ao introduzir o debate sobre a modernidade trazemos tona
toda uma estrutura de pensamento ocidentalizado que sustenta as principais bases
polticas do contemporneo. O globaritarismo que Milton Santos critica em seu livro
Por uma Outra Globalizao no deixa dvidas sobre os efeitos gerados quando o
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ocidente se torna o centro dos referenciais que normatizam os territrios, os espaos e as
estruturas de conhecimento. Para que possamos traar uma relao entre os
acontecimentos histricos e mundiais com o hip hop, sobretudo o rap nesse caso
especfico, devemos entender que os conflitos de natureza especfica de um determinado
segmento cultural dialoga com a conjuntura poltica e que sobretudo constri seusprprios significados, conceitos, organizaes e formas de se fazer poltica.
Desenvolvem linguagens, hierarquias, mercados, parcerias, eventos, estticas,
movimentos, concepes, corporeidades e expresses afim de estabelecer uma relao
de independncia com o meio que o cerca. Quais foram os fatores que, por exemplo,
trouxeram o rap independente brasileiro a grandes jornais, revistas, programas de TV e
principais sites da internet? O que o tira dos guetos e o faz revelar-se enquanto esttica
de mercado? O rap hoje o mesmo de ontem? Se no, quais foram as mudanas
ocorridas e por que ocorreu dessa forma? Se sim, porque ainda permanece o mesmo?
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MODERNIDADE E CAPITALISMO tempos de enfrentamento
Mundo moderno, amigo, no se admire
Mulheres independentes: mire e atireNo to difcil fazer com que as minas pirem
Principalmente as educadas por sexy in the city
Walli Indigesto
A produo capitalista unificou o espao, que j no limitado por
sociedades externas. Essa unificao ao mesmo tempo um processo
extensivo e intensivo de banalizao. A acumulao das mercadorias
produzidas em srie para o espao abstrato do mercado, assim como
devia romper as barreiras regionais e legais e todas as restries
corporativas da Idade Mdia que mantinham a qualidade da produo
artesanal, devia tambm dissolver a autonomia e a qualidade dos
lugares. Essa fora de homogeneizao a artilharia pesada que fez
cair todas as muralhas da China.Tese 165 Guy Debord
A modernidade celebra um novo paradigma na histria ocidental surgindo
atravs do processo de expanso das sociedades impulsionado pela crescente
mercantilizao da vida. O caminho da modernidade e a crescente industrializao, a
expanso dos mercados, a mudana nos rumos da economia e a proletarizao
acompanhado de uma crescente conscincia de classe ensejam conflitos que sero o
motor da histria. O homem marginal era aquele que possivelmente estava fora do
sistema; um homem no-moderno, no impregnado pelos valores da modernidade.
Mas este tambm importante ator que fomentou a prpria construo do ser moderno
atravs de suas lutas populares. Entender a construo histrica da modernidade nos
assegura sobre importantes questes que constantemente devem ser levantadas para
equacionarmos as resultantes que compem as contradies do contemporneo. Para tal,
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devemos entender a construo poltica e filosfica, assim como suas estruturas
econmicas e culturais que comeam a ganhar expressividade a partir do sculo XVII,
quando a revoluo em diversos aspectos da vida social comea a se inserir de forma
transformadora dentro de uma perspectiva histrica que no permitia ser o gnero
humano o dono do seu prprio caminho. Esse mundo moderno que Walli Indigesto serefere o mundo contemporneo, frgil pelo que ele mesmo oferece aos seus iguais.
Pessoas fteis enfeitadas com a esttica do sedutor, os brindes comemorando o vazio
que incendeia a fama de estrelas produzidas pelo sucesso do mercado de uma sociedade
de consumo. queles educados pela comunicao de massa corporativa resta a entrega
ao que mais oferece chances ao sucesso. Dessa forma produz-se um ser sem
expressividade dentro daquilo que se pode chamar vida.
A modernidade traz a necessidade de se expressar a conquista que s foi possvelde se concretizar devido a um novo desenvolvimento da razo. A razo moderna no
mais contemplativa, mas sim investigativa. Para Plato, o mundo funcionava como um
organismo com partes harmnicas. A metfora do organismo passa a dar lugar
metfora da mquina. Houve a substituio de uma viso qualitativa por uma viso
quantitativa da natureza. Este ser moderno estabeleceu uma nova relao com a
natureza e com deus. No negou deus em sua pura essncia, mas o realocou, dessa vez
numa posio de no mais subordinar o gnero humano aos caprichos de uma divindade
vingativa e controladora. Deus agora, como acredita Spinosa, aquele que compe eforma a natureza proporcionando os encontros. A natureza, por sua vez, encontra-se
numa posio de domnio pelo gnero humano, sobre o qual nascem novas categorias
de conhecimento que buscam ampliar o entendimento sobre as coisas. Essa
modernidade, racional, escravagista e por hora democrtico-liberal, trouxe ao mundo a
implantao de um modelo ocidental, etnocntrico, industrial e divido em classes.
Trouxe novas categorias de anlise cientfica onde novos campos de saber surgiram para
dar novos significados vida. Com isso nasce no s a razo, mas todo um complexo
leque epistemolgico que rege as estruturas tericas da modernidade.
O desenvolvimento da tcnica funciona como afastamento das relaes sociais
que antes regiam os constructos e as mentalidades. Para Ellen Wood,
o objetivo dos modernos a segurana nas fruies privadas. No
podemos mais usufruir da liberdade dos antigos, que era constituda
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direcionada para a conservao do status quo). A construo do indivduo pleno, para
Marx, s possvel atravs da implantao do sistema socialista sendo este o resultado
final da superao do esprito capitalista de gerir o mundo e suas riquezas. H tambm
a nesse novo modo no-capitalista de gesto do mundo, a construo de um novo
indivduo. O indivduo habilitado s mais variadas funes e mbitos possveis para queeste no se torne um escravo moderno de se encaixar apenas onde for possvel vender a
sua mo-de-obra barata e corriqueira.
A anlise marxista sobre a relao capitalista de produo ganha importncia
principalmente por trazer para o campo de debate as consequncias sociais das
mudanas econmicas que infiltravam-se de tal forma no contexto social que projetou
um novo mundo, distinto da Idade Mdia, que por sua vez no comportava mais os
anseios de poder de uma nova classe que surgia dentro da disputa por fatias de mercado,
mas que por sua vez no seriam to eficazes com a ausncia de uma nova configurao
das estruturas de poder. A luta e ascenso da burguesia tiveram suas histrias
comprovadas por suas revolues. A revoluo cientfica, assim como suas conquistas
atravs de guerras, s foi realidade graas tambm sua relao de explorao para com
a classe trabalhadora. Os interesses de uns em detrimento de outros configura a
construo de uma sociedade onde cabe a poucos as determinaes polticas, restando a
muitos se coadunar com a mo invisvel do capital. As lutas e os massacres, no entanto,
mostram que a mo invisvel porta armas mortais contra a classe tranalhadora. As
determinaes impostas pelo sistema capitalista de produo impe um regime
econmico concreto, do qual aqueles que sustentam o tal modo de produo pouco se
beneficia. Tais determinaes hoje operam de forma ainda mais complexa por
encontrar-se dentro do paradigma ps-moderno, neoliberal, globaritrio, onde h
permanncias de caractersticas da mecnica funcional do capital ao mesmo tempo em
que h uma dissoluo da compreenso das contradies a partir de uma certa
estabilidade social. Para entender o mundo moderno no basta sair de casa e constatar
que a arquitetura concebida dentro de um regime organizacional de normas e condutasque pouco tem haver com a livre circulao de todos. Isso nos parece bvio. Entender o
mundo moderno entender a que serve toda a estrutura organizacional tanto no campo
fsico como no campo das ideias. A luta de classes, portanto, o motor. Constri a
partir do que lhe determinado sob este axioma, relaes de tenses que funcionam
como contra-corrente da hegemonia a favor da padronizao dos corpos.
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Determinar a forma como as pessoas e as coisas circulam, assim como o seu
valor de fundamental importncia para o funcionamento da mquina. dessa forma
que pessoas e mercadorias se equiparam dentro da perspectiva da livre circulao. O
trabalho torna-se produtivo atravs da sua alienao facilitando a insero do
trabalhador dentro da categoria de mercado onde sua fora produtiva tambm umamercadoria. Para tal, empreende-se os segmentos contraditrios dentro da configurao
social do capital, tornando o trabalhador como ponto funcional da mecnica de
produo e no como potncia criativa livre. A liberdade encontra-se dentro do discurso
sobre a democracia burguesa onde o liberalismo a mo que regula tudo. Dentro dessa
conformao do estado de coisas entra o materialismo histrico apontando para as
contradies sociais concretas. Assim, podemos diferenciar melhor as categorias de
anlise tanto no campo marxista como em outras transformaes tericas
contemporneas que tambm nos ajudam a compreender a complexidade das coisas. Ascontribuies de Marx nos levam a analisar a materialidade dos fatos ampliando o
entendimento das contradies a partir do processo de luta na histria. Configurando-se
como mercadoria, a arte contribui para uma aparente perpetuao do sistema capitalista
de produo. Ou seja,
Na mercadoria, e principalmente na mercadoria como produto do
capital, j vai implcita, ademais, a materializao das determinaes
sociais da produo e a personificao de seus fundamentos materiais,
que caracterizam todo o regime de produo capitalista. (...) Em
essncia, o capitalismo um sistema de mercantilizao universal e de
produo de mais-valia. Ele mercantiliza as relaes, as pessoas e as
coisas. Ao mesmo tempo, pois, mercantiliza a fora de trabalho, a
energia humana que produz valor. Por isso mesmo, transforma as
prprias pessoas em mercadorias, tornando-as adjetivas de sua fora de
trabalho. (FERNANDES, Florestan, Marx. Rio de Janeiro. Pg. 8)
A transformao do trabalho em mercadoria faz com que este atenda s
funcionalidades da estrutura poltica capitalista que baseia-se fundamentalmente em seu
poder de domnio sobre o outro dentro da perspectiva de acmulo de riquezas. Dessa
forma, as emanaes e resultados provenientes do trabalho alienado no oferece nada
mais que valores investidos da estrutura mesma do capital. Dentro dessa configurao o
trabalho carece do empenho do gnero humano enquanto criador livre por pertencer s
demandas do mercado, onde este estabelece as prioridades afim de alimentar o consumo
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para manuteno da sua prpria sobrevivncia. Por isso, prev o trabalhador seno
como reprodutor de valores da lgica de trabalho alienado. Assim, inclui o trabalho e o
trabalhador apenas dentro do que diz respeito ao mercado. A mercadoria assume ento o
papel primrio ou propulsor de estabelecer as relaes firmadas a partir dos seus valores
e esto margem dos seus produtores. Isso ocorre devido ao carter fetichista damercadoria. Como afirma Marx,
o prprio operrio somente aparece como vendedor de mercadorias, ou
seja, como trabalhador livre assalariado, de tal maneira que o trabalho
aparece, em geral, como trabalho assalariado. (...) Os principais agentes
deste modo de produo, o capitalista e o operrio assalariado, no so,
como tais, seno encarnaes do capital e do trabalho assalariado,
determinados caractersticas sociais que o processo social de produo
imprime nas pessoas, procedentes destas relaes determinadas deproduo. (FERNANDES, Florestan, Marx. Rio de Janeiro. Pg. 9)
Marx no concebe a materialidade fora do processo cumulativo de produo,
sendo este resultante de descries essenciais prpria manuteno do processo
revolucionrio histrico. Tem-se assim, a compreenso de tal processo revolucionrio
dentro dos meandros da ditadura do proletariado. Divergimos nesse ponto ao
entendermos que parte da anlise marxista sustenta tambm a permanncia do estado
atual de coisas. Resta-nos pensar a liberdade fora da luta pela permanncia no s da
economia poltica, mas tambm uma busca, sobretudo, fora do Estado e estruturas de
poder burocrticas. Isso nos leva a crer que a manuteno da forma estado abandona em
seu prprio percurso revolucionrio as principais cises com o estado atual de coisas
trazendo, em sua ltima instncia, o capitalismo de estado, criando historicamente novas
classes burocrticas e a taxao forada da extrao de mais-produto por parte do
partido. Para Javier Amadeo, a Unio Sovitica realizou uma nova forma de
personificao do capital como modo de obter seu objetivo poltico de negao do
capitalismo. E continua:
A supresso do mercado tinha coincidido com a supresso da autonomia da
sociedade civil em favor do estado, e o plano de produo e distribuio,
considerado pela ortodoxia marxista-leninista como o fundamento econmico
do socialismo, era organicamente incompatvel com o pluralismo, a democracia
e as liberdades. A substituio da propriedade privada pela propriedade do
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estado s podia desembocar na ditadura sobre as necessidades, que a nova
antropologia das sociedades socialistas. Os produtores so assim submetidos
pelos mecanismos desta ditadura a uma nova classe, a burocracia do partido.
Esta crtica remota alguns dos elementos da crtica liberal, e uma concluso
natural leva defesa do mercado e da espontaneidade da sociedade civil.
(BORON, Atilio; AMADEO, Javier; GONZLES, Sabrina (organizadores). A
Teoria Marxista Hoje: Problemas e Perspectivas. Rio de Janeiro, Expresso
Popular, 2006. Pg.: 77)
No acreditamos que os regimes de democracia representativa sirvam para outra
coisa alm de um rodzio de exploradores movido pelo consentimento dos explorados.
No atravs da eleio de parlamentares ou de gestores pblicos que se conseguir
qualquer mudana social para alm do capitalismo. dentro desse processo queentendemos o que vem a ser moderno, modernidade, apesar de, segundo alguns autores,
haver claras diferenas entre modernismo e modernidade. Modernismo, segundo
Marshal Berman, abarca um carter principalmente cultural de manifestaes que se
esforaram por de alguma forma dialogar criticamente com os avanos de tal
paradigma. Trataremos da modernidade aqui, portanto, com o teor poltico dos avanos,
lutas e contradies que tal aspecto social imprimiu no ocidente e posteriormente em
todo o mundo.
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A CONSTRUO DO RAP INDEPENDENTE
O rap que aqui vamos tratar, como j falado na introduo, refere-se
basicamente a duas regies do Brasil: So Paulo e Rio de Janeiro. So Paulo, com sua
complexa expressividade, trata-se no s de um grande mercado, mas de vertentes que
se forjam trazendo construes de luta, assim como subjetividades diferentes das
demais regies do pas. em So Paulo que o gangstar, uma vertente to conhecida do
rap, congrega, denuncia e luta contra opresses de classe. Com o tempo, alguns grupos
e MCs de rap carioca deixariam claro sua distncia com tal vertente em prol de uma
construo prpria, livre. O contato do Rio de Janeiro com So Paulo, no entanto,
deixou marcas indelveis nas expresses cariocas. Analisaremos o Rio de Janeiro por
tratar-se de um caso que mesmo dentro de uma aparente desvantagem com o grande
centro urbano paulista, inseriu, e ainda infere sobre isso, uma bandeira na conquista por
independncia e que disputa atualmente nas ocupaes de praas e outros locais
pblicos a manuteno do hip hop como forma de resistncia cultural. A inteno que
estes dialoguem entre si, no sustentando a segregao de polos. O nvel de importncia
a que se d a cada um desses segmentos refere-se ao prprio empenho de investigao
local e aos limites da pesquisa.
Em 1991 Speed (Claudio Mrcio de Souza), DJ Rodrigues e Gustavo de
Almeida, quela poca conhecido como Bulletproof, se conhecem em Niteri. As pistas
de skate e praas reunia parte da juventude proporcionando trocas culturais. Naquela
poca, a pista virou um ponto de troca de conhecimentos musicais. As pessoas
chegavam com novidades de bandas de fora com fitas k-7 e ali passavam adiante as
novidades do momento. Foi nessa poca que comeou o SpeedFreaks com DJ
Rodrigues, Speed Gonzales e BulletProof. Speed, no documentrio Mr. Niteri: a lrica
bereta, explica que nessa poca s tinha rap old school, que era o pessoal de So Paulo
que fazia rap old school e o pessoal aqui no Rio tinha um pessoal que fazia com banda e
tudo e a gente comeou a fazer com dois MCs e um DJ. A banda SpeedFreak durou de
92 a 96 e trouxe ao cenrio musical do rap uma nova proposta de sonoridade, assim
como uma pegada poltica diferente da capital paulista. Em 96 Black Alien entra para o
Planet Hemp e mais tarde em 99 volta o projeto com Speed, mas agora como a dupla
Black Alien & Speed e vo para So Paulo novamente em busca de se apresentar e
produzir um disco com Carlinho Bartolini. Em 99, a gente se mudou pra So Paulo, diz
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Black Alien, tipo msico tentando a vida mesmo, aquela coisa. Tipo com uma mo na
frente e a outra atrs, fomos. E a nessa poca antes de ir pra So Paulo a gente decidiu
que ia ser Black Alien e Speed. O ritmo da dupla era frentico e segundo Speed
Fazia tudo assim. Escrevia, gravava, memorizava, cada um na sua casa ou na
rua andando, ou saindo pra balada e dentro do carro a gente j ia... Sabia que
ensaiando assim dentro do carro, coloca a base a, p, j bebendo, indo pras
boates e pras festas e ensaiando dentro do carro. Esse era o nosso ensaio. A
gente no chegava a ensaiar em estdio. Nossa vida era uma festa todo dia. Uma
festa que eu digo, sempre a gente saia e isso impregnava a msica assim. A
msica tinha um humor assim, que refletia com espontaneidade o nosso jeito de
viver a vida. (Mr. Niteri: a Lrica Bereta. Diretor: Ton Gadioli. Rio de
Janeiro, 2012)
Ao final da dcada de 90, a dupla j conquistara espao no eixo Rio So Paulo
despertando tambm o interesse de Carlo Bartolini, produtor musicalbrasileiro. O
produtor, junto com empresrios do ramo musical, se articularam para produzir um
trabalho com mais peso, assessorado e direcionado a um mercado mais amplo.
Carlinho Bartolini j trabalhou com diversos artistas brasileiros, como Os Paralamas do
Sucesso, Legio Urbana, Nando Reis, Sepultura, Charlie Brown Jr., Cssia
Eller, Ira!, Pavilho 9, Otto e Jorge Benjor. Alex Cecci, um dos empresrios da poca,
explica melhor como foi parte desse processo.
Todo esse tempo que eles moraram aqui em casa foi em consequncia do
interesse do Carlinho Bartolini em produzir o disco deles. Ento eles ficaram
morando em casa e produzindo o disco no Carlinho Bartolini na Granja Viana.
E muitas vezes eu que levava os caras pra l e trazia (...) no estgio de produo
desse disco que foi o disco que sucedeu essa demo. Que at ento era uma demo
esse disco que tava na nossa mo. Ento eles entraram em estdio com Carlinho
Bartolini que tinha um bom know how em conseguir extrair timbres fortes e
criar umas texturas diferenciadas e eu achava... ns achvamos, e eles tambm,
que o som deles requereria isso, n? Fugir dos padres do hip hop comum ou
cair nas mos dos produtores do hip hop comum na oportunidade. Era uma
coisa que tava meio engatinhando ainda. Era pobre, n? E a cena do Rio de
Janeiro sempre foi uma cena um pouco mais superior que a de So Paulo,
porque a msica da periferia do Rio de Janeiro o funk, no o hip hop. Ento
a msica l mais elitizada do que aqui. Porque aqui a msica da periferia.
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Ento sempre teve um nvel superior.(Alex Don KB Cecci empresrio do
ramo musical. Mr. Niteri: a Lrica Bereta. Diretor: Ton Gadioli. Rio de
Janeiro, 2012)
Para o empresrio, as produes da dupla at ento no passava de uma demo,
mesmo que esta tenha atingido nveis de popularidade internacional e influenciado toda
uma gerao. As msicas de Black Alien e Speed, assim como outros trabalhos
independentes que surgiam, fortaleceu a ideia de no reproduzir a alienao da
produo artstica. Era preciso, portanto, de algo mais refinado para que a dupla
passasse para um outro estgio. Para tal, no poderiam deixar a produo desse novo
trabalho nas mos de quem no entendia ainda do assunto ou que pertencia a um lugar
comum. Era preciso fugir de certos padres a que o rap se identificara durante tanto
tempo. Uma das questes centrais era falar de outros assuntos, ser mais livre enquanto
temtica potica. A ideia de que o Rio de Janeiro superior vem, portanto, sendo
construda desde essa poca. O MC paulista Max BO conta como So Paulo recebeu o
contedo da dupla carioca.
Hoje eu tava bolado do jeito que a minha vida ia, do jeito que a minha vida
estava, do jeito que a minha vida ia acabar, Krishna, Bud, Jesus ou Alah... Era
uns bagulhos que a gente aqui do rap, em SP, tava mais preocupado em
reclamar, que a favela tava isso, que a polcia tava aquilo. E a os caras me vm
com essa histria. Era um cotidiano totalmente diferente. A gente, porra, ser
que essa parada rap tambm? Mas era e era muito louco, t ligado? (Mr.
Niteri: a Lrica Bereta. Diretor: Ton Gadioli. Rio de Janeiro, 2012)
Era preciso reclamar menos tentando no abrir mo de certos questionamentos.
Estes questionamentos poderiam vir de uma nova forma, mais potica, livre e atraente
esteticamente. Num dado momento questionar poderia tambm no ser teor obrigatrio.
Com o tempo se construir uma espcie de campanha entre alguns rappers contra as
reclamaes.
Ns temos que parar de falar de favelas. Ningum nasceu pra morar na favela.
Deus no meteu ningum no mundo pra sofrer. Todos ns viemos ao mundo pra
andar com carros bonitos, comer bem, beber champagne, chandon, comer
caviar. A Barra nos pertence tambm. Vamos sair do gueto e ir pra Barra, levar
o pessoal do gueto pra Barra. Vamos parar de cantar sobre o gueto de vez em
quando. Vamos nos conscientizar e invadir a FM, invadir a TV, acabar com os
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programas de bunda e meter o nosso l. Vamos parar de fugir e enfrentar a
realidade, seno tamos fudidos. (KKcula, A Batalha do Real, 2003.)
Essa perspectiva se anuncia atravs de diferentes formas. Em entrevista com o
MC carioca Filipe Ret pergunto:
Arthur Moura Em que consiste o discurso do rap?
Ret Cara, eu acho assim, antes de tudo primeiramente eu acho que a arte no tem que ser do
bem pra ser boa, sabe qual ? Eu acho que o rap calha ainda nessa parada de querer fazer
uma paradinha boa, do bem, passar uma mensagem positiva e eu acho que no
necessariamente isso. Eu acho que ela pode passar uma mensagem sim de caos, de confuso,
de tragdia, de perturbao, de... aquela frase da Clarice Linspector, n, perder-se tambm
caminho. Isso cansa, sabe qual . Quem j no t acostumado a ouvir, comea a ouvir e v
que tudo tem um tom moralista, tudo tem um tom imperialista do tipo faa, veja, faa isso,entendeu, pare de no sei o que. Quem voc pra me dizer o que eu tenho que fazer?
Falar de outros assuntos tambm algo recorrente hoje e mesmo Black Alien
ainda reivindica algo do gnero.
uma questo de no acreditar mais naquilo (Planet Hemp), mas na boa,
somos amigos mesmo. Eu sou amigo do Marcelo, a gente s no anda de mo
dada. Gosto muito do filho dele, me chama de tio, conheci criancinha. Dessaidade, cara, depois de j ter sido preso por causa disso tu fica escaldado e as
coisas mudam, as crianas crescem e eu posso falar de tantos outros assuntos.
(Planto Mix Entrevista Black Alien / 2013)
A sociedade de consumo pensa o cidado enquanto aquele que se insere
ativamente no mercado afim de estabelecer uma relao de acesso aos bens e servios.
A nova classe mdia brasileira, ou seja, parte da classe trabalhadora que conseguiu seinserir nesse mercado criado especificamente para ela, passa a ter importncia devido
sua insero nesse mercado. No entanto, as estratificaes continuam, dessa vez de
forma ainda mais evidente. A desigualdade que havia antes supostamente deixara de
existir devido a essa nova classe ter acesso aos bens de consumo. O protesto que havia
passa a ser visto como reflexo de uma insatisfao dessa classe devido sua
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marginalizao na fatia do mercado que se expandia com fora na dcada de 90.
Acompanhando essa ideia, entende-se que o discurso da celebrao comemora no mais
a participao poltica na transformao da sociedade divida em classes, mas sua
incluso econmica, ainda que submisso ao capital financeiro. O protestar ganha cunho
de efemeridade estigmatizando-se como algo ruim, ao passo que pretende-se dar maisateno s coisas que realmente importam, nesse caso, os negcios. Essa expanso
econmica no acontece sem o crdito, dispositivo histrico de endividamento da classe
trabalhadora. O capital entende ento, que quando essas pessoas passam a ter direito a
consumir ela fica feliz. Para se ter acesso a essa felicidade, preciso manter-se na
condio de consumidor, ou seja, aquele que contenta-se em comprar algo para
satisfazer necessidades que o indivduo deixou de produzir por si prprio. Ele consome
no s o produto, mas todo um conjunto de valores, crenas e subjetividades. A
inevitabilidade do mercado, em sua ltima instncia a servio do sistema capitalista, reiterada como forma nica de vida, tornando a submisso forma natural de se viver.
Para Fernando Henrique
ns estamos vivendo no Brasil, sob o comando do PT, o auge do capitalismo
no Brasil. No isso? No digo isso como crtico no. Porque t l, vou fazer o
que? o auge. O que eu tenho dito e reiterado o seguinte: um pas no pode
ser mercado. No creio que o PT queira e nenhum partido queira. Mas naprtica hoje, o que orienta o que d... o mercado. Voc levanta, vai trabalhar,
faz no sei o que, quer subir na vida, no sei o que l, v televiso, a bolsa caiu,
subiu, ningum nem sabe o que isso. No ? Os euros e no sei o que. Todo
mundo obcecado por essa questo de mercado. Tanto assim que tem a famosa
frase do acessor do Clinton: idiota, o mercado que resolve! No ? Bom, em
geral isso mesmo. (Programa Roda Viva transmitido ao vivo no dia
05/12/2011)
No s o rap ascende no mercado no perodo que aqui analisamos, mas o funk
tambm. Num caso mais especfico, o funk ostentao. No documentrio Funk
Ostentao temos a apresentao de um segmento do funk que dialoga diretamente
com o consumo enquanto instrumento de poder, prestgio e insero social a partir de
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referenciais materiais suprfluos. No final do filme, uma fala nos chama ateno por
sintetizar os mecanismos de justificativa do capital enquanto normatizador das relaes:
Meu nome Renato Meirelles, sou scio-diretor do Data Popular (instituto depesquisas especializado nas classes C, D e E) que estuda a nova classe mdia
brasileira a onze anos. impossvel falar de cultura sem falar de consumo. O
consumo faz parte do dia a dia das pessoas. Quando voc vivia numa sociedade
em que era ruim ser das classes C e D, voc no arranjava emprego se voc
morava na favela, o grosso da manifestao cultural produzida nessas
comunidades tinha como interesse o protesto, a reivindicao, que na verdade
refletia a indignao pela sociedade desigual em que eles estavam vivendo.
Quando a vida das pessoas comeam a melhorar, o discurso da denncia perde
fora pro discurso da celebrao. No que ainda no tenham coisas que
precisam ser denunciadas, e muitas vezes so. Mas o sentimento de melhora de
qualidade de vida muito maior do que eram h dez anos atrs. Portanto, o
protestar por protestar perde fora nas expresses culturais dessa nova classe
mdia brasileira. Nos ltimos dez anos, o aumento real do salrio mnimo, a
expanso da classe C se tornou um fato irreversvel. Algo que veio pra ficar. De
2007 e 2008 pra c isso se estendeu muito fortemente impactado pela expanso
do crdito somado expanso da renda. Quando essas pessoas passam a ter
direito a consumir ela fica feliz. Ela fica feliz porque ela sente que todo aqueleesforo dela t valendo a pena. T valendo a pena pra se vestir melhor, t
valendo a pena pra se apresentar pra sociedade de uma forma mais bacana e isso
tem um impacto direto na sua autoestima e tambm tem um impacto direto no
prprio mercado de trabalho. Afinal de contas, quem foi que disse que quem
da classe C e D s tem que tomar pinga, no pode tomar usque? Quem acha
isso a elite, no a classe C. A classe C consegue ter acesso a esses produtos,
consegue ter acesso a esses servios e comea a cantar isso nas suas msicas,
comea a cantar isso no funk, comea a cantar isso em todas as suas
manifestaes culturais. E no tem nada de errado com isso. um momento de
fato de celebrao dessa melhora que o nosso pas teve nos ltimos anos. E o
brasileiro gosta de celebrar cantando, o brasileiro gosta de celebrar danando.
(Funk Ostentao. Diretor: Kondzilla. So Paulo, 2012.)
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Em contraposio, Debor afirma:
Sob as oposies espetaculares esconde-se a unidade da misria. Se formas
diversas da mesma alienao se combatem sob as mscaras da escolha total,
porque todas foram construdas sobre as contradies reais imprimidas.
Conforme as necessidades do estgio particular da misria que o espetculo
nega e mantm, ele existe sob forma concentrada ou sob forma difusa. Em
ambos os casos, ele no passa de uma imagem de unificao feliz cercada de
desolao e pavor; ocupa o centro tranquilo da desgraa. Guy Deborb, tese 63.
Esse breve parnteses dialoga com os resultados contemporneos no s do rap,
mas do funk e de muitos outros segmentos musicais que aos poucos se aproximaram das
configuraes de mercado. Traz tambm uma forma de pensar o que estava sendoconstrudo enquanto segmento independente j quela poca, dcada de 90 quando
Black Alien e Speed interagem, afim de construir suas prprias identidades. O acesso a
bens de consumo certamente foi fator crucial na construo dessa cena alternativa.
Mesmo estes bens sendo ainda de difcil acesso, pois quela altura assim como hoje no
estvamos em par de igualdade com nossos vizinhos norte-americanos. Ou seja, era
muito difcil ainda quela poca ter acesso a equipamentos e outros bens materiais para
produzir. No havia muitas alternativas se no a experimentao com os equipamentos
que se poderia adquirir. Este fator no foi o impedimento para maioria dos MCs quequeriam divulgar suas produes, arriscar e propor novas sonoridades. A produo
barata, na maioria das vezes feita em casa ou quando melhor em estdios precrios, fez
parte do discurso que se formava. Em pouco tempo, as msicas mais baixadas da
internet era de um grupo que surgira de forma espontnea chamado Quinto Andar. O
grupo soube inserir questes que despertaram interesse principalmente entre a
juventude. Com letras engraadas e crticas cantadas por De Leve, MC Marechal, Gato
Congelado, Shawlin, DJ Castro, Matria Prima, Lumbriga Tremosa, o Quinto Andar
ajudou a produzir uma das caractersticas do rap independente: o faa voc mesmo.
Msicas como Largado fala de um jovem que no se adapta muito bem aos moldes
que a sociedade impe como saudvel e tambm no se importa muito com o que est
acontecendo e mantm o seu estilo de vida independente. o terror da famlia quando
c cola com a filha s porque c largado, diz a letra. Ele usa chinelo havaianas, no
se entrosa muito com a famlia da namorada, anda de skate e mal visto nos lugares que
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entra. A letra rica em denncias sobre o estigma social de uma juventude que busca
outras entonaes s coisas e ao mundo. De Leve ironiza algumas das principais
situaes que muitos dos que ouviram o rap do largado j experimentaram em suas
vidas. Dessa forma, estabeleceu-se o dilogo com um novo pblico, proporcionado pelo
acesso a internet j ser mais facilitado ao final da dcada de 90 e incio dos anos 2000principalmente entre a classe mdia. Uma liberdade comeava a ser conquistada.
O mercado ao mesmo tempo em que aumenta a velocidade das mudanas
tecnolgicas tambm barateia o custo para quem deseja adquirir equipamentos que a
indstria e o comrcio consideram defasados. Na verdade, grande parte dos artistas
cariocas e paulistas gravaram suas primeiras experincias sonoras com equipamentos
caseiros, baratos e que, conhecendo as possveis limitaes tcnicas dos equipamentos,
articularam formas para driblar essa aparente desvantagem que estavam transformandoa escassez em forma de linguagem. A ressignificao do processo de produo baseado
em equipamentos precrios fora uma importante sada que permitiu que diversos artistas
obtivessem xito em suas primeiras experincias sonoras. No que hoje, dez, vinte anos
aps esse boom tecnolgico as coisas estejam caminhando para mudanas to radicais
no que se refere a esse acesso. Mas os equipamentos de outrora j caram em desuso
pela desnecessidade de se investir numa linguagem tosca. Assim como ocorreram
mudanas no uso dos equipamentos tambm houve a transformao na sonoridade dos
instrumentais, assim como nos timbres de voz dos MCs, j que novas freqncias eramcaptadas pelas tecnologias mais modernas. Esse processo inicial faz parte da memria
dos rappers que usaram da escassez para legitimar suas conquistas de hoje e se
vangloriar pelo patamar que se encontram. A escassez de ontem contribuiu para que
artistas hoje tenham conseguido conquistar espao. Ainda que o processo de insero
dos grupos de rap tenha caminhado pelo terreno da escassez, hoje estes mesmos grupos
no favorecem mais quem arrisca comear da mesma forma. Como veremos adiante,
aqueles que outrora afirmavam em suas produes um valor de resistncia no s
esttico mas poltico devido ao acesso precrio aos equipamentos, ao se fazer valer dealguma forma no mercado readaptam o seu discurso (agora com acesso aos meios de
produo menos modestos) para evitar o choque com os interesses dos que hoje
pretendem angariar pblico, poder e prestgio na cena do rap e at mesmo entre aqueles
que reivindicam espao fora dessa mecnica competitiva. Dessa forma o discurso do
capital vem ajudar no processo de excluso das possibilidades. O estranho no mais
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bem vindo. A experimentao tampouco. As linguagens tornam-se rgidas e a
tecnologia, por no contemplar todos, torna-se uma aliada dos que tendem a fechar as
possibilidades de novos grupos que desejam se inserir na cena. Esse mecanismo no
algo pronto, finalizado. No processo de afirmao ele sacralizado em confluncia com
o espetculo.
No s o acesso a bens e uma nova linguagem foram os formadores da cena
independente. A construo de ideologias foi indispensvel. A concepo do largado
nasceu, assim como o grupo, fruto de espontaneidade no momento de criao entre os
membros do grupo. Devemos salientar que quela poca no se tinha ainda o
enviesamento direto em investir de forma estratgica e sistemtica em concepes
ideolgicas. O fato que nessa poca nasce o que anos depois se conhecer por
ideologias propriamente dito. Com o trmino do Quinto Andar em 2005, os membrosno encerraram as suas atividades, mas para se garantir na cena necessrio ter
produo. A nova produo j vem carregada de dispositivos que vo assegurar, de uma
forma ou de outra, a sua permanncia na cena independente e o seu fortalecimento.
Dentro dessa conquista, h um fator importante: a disputa.
No tem como analisar o rap nesse perodo sem fazer meno a So Paulo. Para
inserir mais um fator indispensvel a essa conturbada formao do rap independente
carioca devemos analisar o porqu desse eixo se destacar. J no incio dos anos 90,
Black Alien e Speed tiveram que sair de Niteri para se inserir em algo que j estivesse
num ponto mais avanado. quela poca, So Paulo j era a capital do rap. Mesmo que
a proposta de msica da dupla niteroiense no convergisse na maioria dos aspectos com
o rap paulista, a troca entre as culturas era indispensvel. So Paulo j havia
desenvolvido um mercado. J havia rappers de destaque como Sabotagem e Racionais
MCs a e nova escola crescia cada vez mais (podemos citar a MCs como Kamau,
Parteum e outros). O Quinto Andar mais tarde perceberia isso e seus integrantes se
comporiam tambm entre paulistas e cariocas. A entrada do rapper paulista Kamau parao Quinto Andar um reflexo da importncia de se dialogar com So Paulo. essa
altura, MC Marechal props a incluso de Kamau no grupo e ningum se ops. No
entanto, a participao de Kamau de forma slida no grupo praticamente no existiu. O
MC j era envolvido com diversos projetos em So Paulo. As conexes so heterodoxas
e servem para diversos fins. Por fim, o mercado torna-se o fio condutor dessas redes,
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mas ele por si s no define muito bem o elemento estruturador para que os negcios
sejam bem sucedidos.
O discurso comea a tomar forma quando a ideologia caminha junto com a
formatao do estilo de vida do rapper. No s a roupa, o modo de gesticular e os
locais freqentados que vo incluir um aspirante a rapper no bojo da cena independente,mas sim, e principalmente, a sua forma de pensar, que h de se encaixar nos parmetros
j definidos pela cena, qualquer disfuno torna-se a uma ameaa. Desde meados da
dcada de 90 o rap independente vem ganhando caractersticas prprias, tanto em seu
discurso, conduta, postura, posicionamento social e poltico. O rap independente
esfora-se para no se confundir com o gnero rap comercialmente vinculado a grandes
empresas. Este novo segmento, por ter encontrado em seu trajeto histrico formas
viveis de triunfar e ascender de maneira desprendida ao comrcio das grandes
gravadoras e empresas multinacionais, visa manter-se como coisa distinta deste grandemercado, mesmo nas entrelinhas dialogando com ele. Mesmo que alguns estejam
ligados lgica de mercado capitalista ou queiram fazer parte dele, estes no o utilizam
para os mesmos fins do rap mainstream. importante destacar que o capital
necessrio ao rap como um todo, mas utilizado de formas diferenciadas e as cenas do
rap tratadas no presente trabalho no se misturam mais ideologicamente, mesmo que as
duas dependam muitas vezes da mesma fonte financiadora. Porm, mesmo tendo uma
ascenso eminente, o rap independente aos poucos mergulhou em ideologias estreis e
pouco relevantes para dar continuidade s discusses e prticas de mudanas efetivas
social e politicamente, que so parte da prpria concepo e nascedouro do rap muito
antes at dos limites que aqui analisamos. importante ressaltar tambm que a cena
independente e mainstream mesmo que tenha se fragmentado ao longo do tempo,
mostram-se, sempre que podem, solcitas uma com a outra, j que o jogo poltico se faz
ao mesmo tempo em uma aparente separao mas na no estagnao abrupta dos
movimentos de rap no Brasil.
Assim, se por um lado falamos das possiblidade de consumo e divulgao dasmsicas com o desenvolvimento das tecnologias, por outro temos de atentar para uma
hierarquia das propostas ou mesmo dos gostos. Para que no passe batido a leitura que
fizemos do gegrafo brasileiro Milton Santos, devemos pensar esta nova expresso
musical brasileira, ou esse novo mercado musical, como resultado de um grupo prprio
de indivduos que se ligam por uma vivncia territorial, e so bastante comprometidos
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com ela. So resultados do que Santos descreveria como fluxos. Estas pessoas que em
suas msicas tentam descrever a dinmica da cidade, no o fazem por outro motivo se
no por terem de atravessa-la em suas diversas formas, dialogam com outras culturas,
do rock a MPB, tem de passar pela periferia e descer ao centro, gerando suas antteses
de uma dialtica da contradio social. Seus textos so resultados dessa dinmica queganham com a cidade, transposies de sua realidade material, mas tambm de sua
experincia sensorial com o mundo. Eles criam e recriam as letras de seus
companheiros, dialogam a ponto de conflitos, unem-se e dividem-se, fazendo o mesmo
com o mercado.
Em sua formao, o grupo Quinto Andar tinha como integrantes Mc Marechal,
De Leve, e DJ Castro. A partir de 2002, aproximadamente, entraram novos integrantes:
Shawlin, Gato Congelado, Lumbriga Tremosa, Kamau, DJ King, Xar, Tapechu e DJPrimo, entre outros. A partir da segunda metade da dcada de 90 comeou o que seria o
Quinto Andar, quando De Leve e Marechal se conheceram numa quadra de basquete.
De Leve - Eu e Marechal escrevamos umas paradas na casa dele, mas tudo brincadeira, a
gente nem gravava nada.
Arthur Moura Isso era em que ano mais ou menos?
De Leve Cara, eu posso arriscar que isso era em 1996. Tem tempo, cara. Tem tempo. Existe
uma lacuna, tipo assim, hoje em dia voc ouve rap, gosta de rap e rapidinho tu grava qualquer
coisa. Naquela poca no era to fcil gravar. Eu lembro at que cheguei numa poca e tipo
assim nego p, vamos num estdio um dia! A eu lembro que, p, a eu j fazia de brincadeira,
mas no tinha nada gravado, a depois eu lembro que eu tava pra terminar meu segundo grau.
A eu larguei um pouco o rap. Larguei porque no era profisso, era s amador. Queria me
dedicar ao estudo n, sei l amanh, n? Rap era uma parada que nem existia naquela poca.
No existia nem cena rap, no existia como ganhar grana com rap. Eu adorava fazer rap, mas
p, e a? Tem que viver n? Risos
Em 1999, 2000 o grupo comeou a gravar. As gravaes eram feitas em um
pequeno quarto com um computador velho utilizando um microfone de PC daqueles
fininhos que se conversa pela internet. Porm, nem por isso o grupo deixou de ser
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conhecido. Lembro-me muito bem de um dia que fui casa de um amigo viciado em
Metallica, Nightwish e Pantera e pedi a ele que copiasse umas mp3s para o meu
computador (isso aconteceu aproximadamente em 2002) e para minha surpresa aquele
roqueiro, que at ento eu achava ser um ortodoxo, copiou algumas mp3s do grupo
Quinto Andar para o meu hd. Nessa poca o grupo j tinha um nvel de divulgaorazovel no s eixo Rio So Paulo, mas comeava a ganhar espao em outros lugares
do Brasil.
Arthur Moura Como vocs fizeram pra divulgar o som?
De Leve Ento cara, a gente veio do nada, cara! Eu lembro at que eu que fazia essa parada.
Eu ficava na internet, eu ficava no Napster com as msicas nossas assim, quatro msicas, a
gente tinha quatro ou cinco msicas e eu fazia a busca: Racionais. Quem tinha Racionais?
Ah, usurio tal. Eu ia no cara e conversava com o cara. P fulano, voc conhece rap do Rio,
cara? Rap do Rio?! Existe? Existe! Ouve a! Quinto Andar! A nego ouvia, mas m galera
no gostava. Nego t ouvindo Racionais, cara! Olha s, o cara t ouvindo Racionais, vai ouvir
a gente? Nego ouvia e falava que merda!. Foi o maior marketing boca a boca que eu j vi.
O fato do Quinto Andar ter comeado em 2000 com apenas trs integrantes e
com o passar do tempo ter se tornado um grupo que mesclava MCs do Rio, Niteri,
So Paulo e Belo Horizonte fez parte de um processo de estruturao dentro de uma
cena que ainda no tinha bases slidas. Tal artifcio, segundo relato do prprio De Leve,
foi uma atitude do Marechal que, inspirado no Wu Tan Clan, precisou expandir o grupo
para ter bases mais slidas. Em relao a isso De Leve diz:
De Leve Eu no tinha nada contra isso. maneiro? Neguinho sangue bom? Demor, vamo
l ento, u. Eu no tenho nada contra sabe qual . Nem Tinha.
Arthur Moura Mas voc no participou de forma efetiva nisso?
De Leve No, cara. Isso no foi tipo, ah todo mundo se conheceu junto no. Isso foi uma
coisa dele (Marechal). Ele saiu botando pra dentro e porra... e depois ele picou a mula, cara! E
ficou todo mundo dentro de uma parada que ningum se conhecia direito, cara. (...) Foi uma
parada que eu no tive escolha e tambm nem me oporia na poca. Eu nunca tive vontade de
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me opor e dizer no, isso a eu no quero. Sempre tive vontade tipo assim, vamos fazer uma
crew? P, vamos, cara. Sempre me amarrei em ter m galera sabe qual ?
Essa pequena histria serve para ilustrar como era o rap feito pelo grupo a ponto
de fazer um roqueiro ouvir a coisa mais mal feita, como diz De Leve se referindo sua prpria msica. Eles souberam usar o pouco aparato tcnico que tinham e
transformaram aquilo numa vantagem que funcionou at mesmo na divulgao. Deu
certo. O grupo marcou uma poca importante no rap nacional. Mesmo no possuindo
gravadora, empresrios e todo o aparato que um grupo necessita para se inserir num
mercado economicamente bem sucedido, isso no impediu que eles criassem o seu
prprio segmento e futuramente alguns conseguiriam se inserir num mercado mais
slido. claro que antes tambm houve grupos que j estavam atravessando o Cabo das
Tormentas, onde mais tarde seria o Cabo da Boa Esperana. Black Alien & Speed, porexemplo, j na primeira metade da dcada de 90 ganharam o mundo vinculando uma de
suas msicas a empresa de automveis Nissan. A msica serviu de trilha sonora para
anunciar um carro da poca na Europa. Isso ocorreu antes de Black Alien entrar para o
Planet Hemp. importante tambm ressaltar que j nessa poca rappers de diversas
partes do Brasil pensavam em alternativas para o velho e batido rap gangster com todas
as suas lamentaes e atitudes rudes. Black Alien, Speed, Aori e DJ Babo dos
Inumanos, Dom Negrone e os Trs Pretos, De Leve, Shawlin, Mc Marechal, DJ Castro,
Kamau, Mahal so apenas alguns exemplos de grupos, produtores e Mcs que noestavam mais satisfeitos com o discurso do rap gangster e decidiram inovar.
Voltando ao Quinto Andar, nessa poca de formao artstica, de discurso e
estruturao de carreira que podemos observar com mais clareza os resultados que hoje
analisamos. Que tipo de mercado estava se formando? possvel falar em mercado
quela poca? O que ocorreu para haver um alargamento do discurso que antes era
predominantemente direto, crtico incisivo sociedade e s mazelas que compem a
trama social e que passou a formar o rap que hoje chamamos de alternativo? Mesmo
quela altura, sem lucrar financeiramente com a msica (coisa que passou a acontecer
somente algum tempo depois, e mesmo assim o resultado financeiro vinha muito mais
dos poucos shows que faziam do que da venda de CDs), seria uma negligncia no
enxergar a formao de um mercado alternativo onde coube internet papel
fundamental. O que fez do Quinto Andar um grupo que mais tarde viria a influenciar
diversos jovens que passariam a fazer rap no Brasil? possvel apontar algum tipo de
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ideologia j nessa poca de formao mesmo o grupo estando em perodo inicial e de
descobertas e onde segundo os prprios integrantes pouca coisa ainda estava definida?
Vejamos agora alguns trechos de letras do Quinto Andar.
QUINTO ANDAR - EU RIMO NA ESQUERDA (cantado por De Leve)
Eu sou pequeno no causo medo nem espanto
no tenho segredo embaixo do manto, mas sou esculachado desde cedo voc no sabe o quanto
(quanto?!)
Vivo minha vida aos prantos, apesar de odiar os santos
Slvio Santos eu respeito, mas odeio viado
N, Lulu Santos?
Porque voc no me convida pra fazer parceria de vez em quando?
(voc no do ramo!)
OOOpps.. no era esse tipo de parceria que tava falando (...)
eu? quero que geral baixe minha msica de graa paca
assim nego j no quer imagine se cobrasse uma nica pataca
t to iludido que algum vai gostar dessas merdas de rima como os mc's fudidosem rima mandam geral botar o brao pra cima
(bota o brao pra cima!)
Eu j disse que sou playboy, no nego
Afinal minha me manicure, meu pai taxista e moro em Niteri
QUINTO ANDAR LARGADO (cantado por De Leve)
Essa pros que andam de havaianas
Contra toda pessoa que abana pra longe a cultura sul americana
E so mal vistos nos lugares que entram
Nos restaurantes que vo
Quando no bar tem que entrar de social a soluo entrar pelo vo
Aos que deixam de ir em festa por que no tem uma cala limpa
No brech nem um tnis cala quanto mais voc garimpa
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Seu macaco mente que a nova moda a ala mpar
No restaurante finge dieta e come salsa com azeite
Pra no gastar dinheiro com nibus anda de skate
Seu sogro acha que voc atleta, que no sente frio e no toma leite
Essa dedicada a cada maluco que j foi confundido com ladro
E ficou preso na porta giratria de to mal vestido
Pra todos aqueles que s mudam de camisa
Mas ningum percebe porque o pacote so trs iguais GG e lisa
QUINTO ANDAR J (cantado por Mc Marechal)
Se voc maluco e fica ouvindo meu som
certo que voc j percebeu e comentou com os amigos que eu s escrevo
uma parte e largo um refrozinho na moral
Voc pode at achar que preguia, mas a minha arte assim pra no encher o saco!Eu confesso que no gosto muito desses raps enormes
Conforme eu vou ouvindo no t nem no meio ainda j enjoa
O cara gastou trs canetas, quinze folhas frente e verso
A maioria dos versos cai na mesmice
Nem todas as rimas saem assim boa
Como os recursos materiais quela altura ainda era escasso, a nica arma que
eles tinham eram suas letras, onde retratavam basicamente o cotidiano, de como eram
enquanto pessoa e como enxergavam o mundo, suas dificuldades e tambm seus
preconceitos. As crticas tambm se direcionavam ao prprio rap em que aos poucos
estavam se inserindo. Essa crtica interna tambm passou a ganhar um novo teor que se
traduziu bem nas disputas. Em J , fcil observar uma crtica aos raps longos e
enfadonhos que, mesmo sendo influncia de muitos, no seria seguido como parmetro.
O que se queria era apresentar uma nova proposta lrica, de mtrica e rima, assim como
novos contedos e abordagens. Em Rimo na Esquerda, De Leve fala de si mesmo oudaquele rap que estava comeando a disputar espao numa cena at ento dominada
pelo rap americano? Ainda em Rimo na Esquerda o letrista faz uma espcie de apelo
para que seu som seja baixado, pois se fosse vender certamente no iria ter xito
naquele momento. Largado uma das faixas mais conhecidas do grupo e realmente
caracterizou o estilo de vida que levavam quela poca. No havendo recursos
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financeiros, a nica forma de se virar era por meio da improvisao. Mais uma vez
podemos observar o aproveitamento de uma situao aparentemente ruim para algo que
funcionasse. As posies em relao a isso so diversas. Vejamos.
De Leve A idia era fazer... no era ser non sense, mas era fazer uma parada tipo assim,porra eu posso fazer a msica pra nego curtir, sabe qual ? Pra neguinho zuar, pra rir, pra se
divertir... e pode ser rap, pode ser manero e no precisa ser disso e daquilo. Posso falar sobre
qualquer coisa, posso falar da vizinha. A idia era essa mesmo, eu tinha essa idia. Eu acho at
que a partir do que a gente fez o jogo mudou, cara. Hoje em dia no mais assim. O prprio
Racionais tem Mulher Eltrica, outras paradas que neguinho aborda. Eu vim falando tema
de mulher a vera! A minha primeira msica um tema de mulher. Depois eu vim com Vai
Vendo, tem Menstruao, tem vrias paradas e eu fao o mais escroto possvel! Eu quero
gatinhas raspadinhas sem calcinhas. Tema feminino no rolava no rap brasileiro. Eram temas
tipo exaltao da mulher negra brasileira. Eu no, brother, eu fao zoao.
Ao ser questionado se o Quinto Andar possua algum tipo de ideologia no incio,
em outraentrevista que fiz no dia 18 de outubro de 2009 com o produtor de eventos e
beatmaker M (no quis ser identificado), este diz:
M A parada do Quinto Andar era ser largado, ser vagabundo, tu levar vantagem em cima
das pessoas no trambique, t ligado. Essa era a ideologia do Quinto Andar. E todo mundo
levava essa coisa como religio: voc ser largado. E isso a influenciou gente pra caralho, tligado? Voc v neguinho da nossa idade que j ouve rap h algum tempo leva essa porra ao
p da letra: ser largado!
Como este depoimento do M foi feito antes da entrevista que De Leve me
concedeu, apresentei-lhe este mesmo trecho citado anteriormente a ele perguntando o
que achava desse posicionamento.
De Leve Cara, eu acho que a msica Largado... cara, eu sou amarrado de ter feito essamsica, porque essa msica ultrapassou umas barreiras doidas por que... a msica virou
ideologia, como se fosse ideologia. Mas aquilo no era uma ideologia e nem nunca foi.
Arthur Moura Voc fez pensando nisso?
De Leve Em ideologia?!
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Arthur Moura .
De Leve Que nada, cara! A msica toda feita em exemplos de coisas que j aconteceram
comigo. Ela toda assim! Tanto que em nenhum momento da msica eu falo em primeira
pessoa que eu sou largado. Eu falo assim o terror da famlia quando voc cola com a filha
s porque tu largado. No eu, eu no falo em mim. So situaes, sabe qual ? No uma
ideologia. uma parada que voc t sem grana, como que voc sobrevive, sabe qual ?
Como que a gente vive aqui em Niteri, como que as paradas. Essa msica ficou to
conhecida que parece que um hino da parada. Eu fico feliz pra caralho, porra! uma msica
que eu fiz! Muita gente pergunta o que voc quis dizer?, eu falo, meu irmo interpreta do seu
jeito. Largado no ideologia, tanto que eu s fiz uma msica falando largado, eu no fico
falando nas minhas msicas largado, largado... eu tenho mais de cem msicas e tu vai ouvir e
no tem isso.
Mesmo no tendo a intenso o Quinto Andar no hesitou em explorar o tema do
largado de uma forma mais natural sem afirmar este posicionamento em suas oratrias
em shows ou em todas as letras. A forma como o pblico reagiu a esta proposta tambm
revelou-se proveitosa para que a msica tivesse um alcance maior. Com isso, j
podemos observar alguns mecanismos que aos poucos iam se mostrando eficazes na
elaborao de um novo ethos musical.
Vimos em alguns exemplos que houve, mesmo de forma despretensiosa,mecanismos que permitiram a insero do grupo Quinto Andar a uma cena at ento
pequena e pouco consolidada, mas que aos poucos fora se expandindo at ganhar o
status e a autonomia que a maioria dos seus membros hoje possui. O grupo em si no
possui autonomia e sim seus integrantes, ou ex-integrantes, j que seu ltimo disco
Pirato de 2005 fora a ltima reunio do Quinto Andar. Mesmo acabando, os
integrantes continuaram suas carreiras de forma solo. Marechal, De Leve, Shawlin,
Tapechu (que entrou para o grupo em 2005 para gravar o disco), DJ Castro, DJ Primo,
DJ King, Kamau, Lumbriga Tremosa, Gato Congelado, Xar, so nomes conhecidos na
cena do rap independente. Marechal ainda no gravou nenhum disco, mesmo havendo
uma promessa histrica de lanamento. Isso ocorre pelo fato do MC ter transformado o
futuro disco numa espcie de mito entre aqueles que o aguardam ansiosamente. Sua
carreira marcada por uma srie de singles, produo de eventos como a batalha do
conhecimento e principalmente pela construo de aparatos ideolgicos, seu ponto forte.
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No incio houve a Dichinelo, prottipo do que viria a ser mais tarde o conhecido Um
s Caminho. De Leve gravou cinco discos e segue sua carreira fazendo parcerias com
diversos artistas. DJ Castro toca com Black Alien. Kamau (SP) segue carreira solo e
tambm faz parte dA Rua Noiz. Shawlin j lanou seu segundo disco e guarda em
seu acervo diversos singles e participaes com outros artistas. Xar, Lumbriga, GatoCongelado e Matria Prima seguem tambm em carreira solo. O caso importante de
ressaltar e que justifica boa parte da anlise da carreira do Quinto Andar de que forma
se estabelece a carreira de um dos Mcs fundadores do grupo, MC Marechal.
quela poca, conforme citamos anteriormente, sua preocupao no se
centrava unicamente na msica, mas sim em abranger cada vez mais as influncias e
parcerias e formar um verdadeiro movimento. Esta era uma das propostas do grupo.
Aps sua sada, no mais se envolveu em grupos, mas preocupou-se em formar um
movimento ao seu redor atravs de seguidores. Sua ideologia reflete, de uma formamuito mais ambiciosa, as necessidades que tivera anteriormente. Hoje, mesmo no
possuindo um grupo, comanda e dita o gosto do que passa em seu selo. Um s
Caminho hoje um movimento (ou como afirma o Mc, uma filosofia de vida que se
aprende nas ruas) que preza por segmentar parte da cena do rap sob as necessidades
muito mais pessoais e polticas do seu fundador do que a dedicao funo artstica
revolucionria. Para fazer parte do movimento, necessrio estar de acordo com as
premissas ditadas formalmente por aquele que possui a maior patente.
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UM S CAMINHO E A RUA NOIZ: ideologias de poder e consumo
dcil um corpo que pode ser submetido, que pode ser utilizado, que
pode ser transformado e aperfeioado. Michel Foucautl Vigiar e
Punir
A construo de ideologias no hip hop mais especificamente no rap
independente parte de um processo onde as prticas de poder so canalizadas para o
domnio de uns sobre outros a partir de formulaes polticas hierrquicas bem
arquitetadas. Quando um se torna predominante em seu segmento a pureza e o controle
das produes tornam-se via de regra num cenrio escasso onde, por prticas rgidas de
sobrevivncia, passa a no haver mais lugar para subverso contra a ordem estabelecida,
mas sim um dilogo constante com suas instncias prezando pela manuteno do estado
de coisas. A partir disso, podemos nos debruar sobre diversos exemplos. Todavia, pelo
limite aqui imposto nos cabe analisar apenas um segmento e seus possveis
desdobramentos. claro que quando nos referimos ao crtico processo de insero do
artista regido por essa complexa trama de poder no queremos universalizar, esgotar a
dinmica e funcionalidade de toda cultura.
Quando ocorre o trmino do Quinto Andar, MC Marechal aos poucos se torna oprincipal nome da cena independente do Rio de Janeiro. A criao da ideologia Um S
Caminho tornou-se com o tempo a base de sua conduta. A concepo de movimento
tambm inserida dentro dessa perspectiva como um termo em disputa.
Um s caminho um estado de esprito, o sentimento pode estar em mais de
um lugar ao mesmo tempo, se representado por mais de uma pessoa. Imprime a
sensao de o todo ser um e de um ser o todo.
Para essa onipresena ser possvel, preciso confiana, compreenso,continuidade, respeito e, acima de tudo, que um acredite e enxergue a si no
outro. A idia que funcione como um organismo, onde cada parte exerce a sua
funo e o todo depende e precisa, indispensavelmente, de cada uma delas.
(...)
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Um s caminho define, pelo respeito lealdade e disciplina, sem discpulos e sem
hierarquia, a unio desses caminhos em prol de um objetivo nico. (Trecho da
Filosofia Um S Caminho)
Para Marechal, construir um aparato ideolgico de relaes de poder foi muito
mais importante do que gravar um disco ou ter suas msicas constantemente tocando
em rdios. Este pode concentra-se muito mais na ordem do poder-sobre em detrimento
do poder-fazer, livre da ordem opressiva. O Mc conquistou acesso em muitas regies do
pas sem grandes apoios, no restringindo-se apenas ao eixo Rio So Paulo.
importante ressaltar que toda a sua dinmica poltica fora concebida nas ruas, em
contato com diversos segmentos onde de fato pode construir sua carreira e seus ideais.
Marechal um dos poucos que ainda defende a ideia de que o hip hop msica demensagem. Em seus shows, durante as performances, a aluso ao valor poltico da
cultura sempre lembrado. Em suas msicas, faz aluso a batalha no campo das ideias,
meu bonde t obstinado a formar os linhas de frente / foda-se os campo minado porque
ns caminha com a mente; critica o verdadeiro valor do dinheiro e defende que o rap
o eco dos bueiros onde os verdadeiros conhecem os verdadeiros. Apesar de trazer
em suas letras um contedo de crtica e resistncia contra os mecanismos do capital o
Mc traz em sua concepo de movimento configuraes muito prximas de uma
sociedade de controle. Para pensar tudo isso, problematizamos tanto o contedo potico
e lrico como aes polticas concretas tendo na prtica o critrio das verdades. Para
desenvolver este aparato de poder criou-se o que se entende por ideologia da
competncia, onde o Mc serve no s como porta-voz de uma cultura de resistncia,
mas como parmetro do gosto. Um s caminho passa a se organizar como uma micro-
empresa, onde o Mc estipula quais trabalhos devem ser lanados, quando e como. Para
tal, partimos de experincia prpria e anlise emprica de campo. Ou seja, observamos
de perto parte de suas prticas. Para Marilena Chaui
A ideologia da competncia pode ser resumida da seguinte maneira: no
qualquer um que pode em qualquer lugar e em qualquer ocasio dizer qualquer
coisa a qualquer outro. O discurso competente determina de antemo quem tem
o direito de falar e quem deve ouvir, assim como pr-determina os lugares e as
circunstncias em que permitido falar e ouvir, e define previamente a forma e
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o contedo do que deve ser dito e precisa ser ouvido. Essas distines tm como
fundamento uma distino principal, aquela que divide socialmente os
detentores de um saber ou de um conhecimento (cientfico, tcnico, religioso,
poltico, artstico), que podem falar e tm o direito de mandar e comandar, e os
desprovidos de saber, que devem ouvir e obedecer. Numa palavra, a ideologia
da competncia institui a diviso social entre os competentes, que sabem e por
isso mandam, e os incompetentes, que no sabem e por isso obedecem.
(Marilena Chaui - Marilena Chau rouba cena em debate: classe mdia
paulistana sinistra Postado em: 4 set 2012 s 7:51)
Para Filipe Ret a questo baseia-se por um moralismo.
Arthur Que tipo de moralismo voc v no rap?
Ret Voc quer um exemplo real?
Arthur Aham.
Ret Um s caminho, do Marechal, por exemplo. Um s caminho do Marechal acho que um
exemplo claro de pelo menos a ideia que tem pra passar ela ainda um pouco moralista. um
som foda. Eu no t criticando aqui ele no. Mas o tom que d a parada um tom moralista.
No sei se pro bem ou pro mal, mas moralista. O lance de sou verdadeiro e os outros noso. Isso ainda rola. Essa autoafirmao dentro da cena, n? Acho que se tu ouvir sons que j
esto vingados, os caras ficar dizendo eu sou roqueiro, vocs no so roqueiros. Eu sou
sambista, voc no sambista. (...) Talvez isso l no fundo, agora analisando aqui a...
Sinceramente eu acho que Racionais tinha capacidade de fazer alguma coisa mais original,
mas s sentiu orgulho, vontade e s acreditou quando fez meio que essa copiazinha. O que,
mano, de um lado lamentvel e por outro lado legal porque, porra, deu certo. Eu acho que
Um s caminho se foi meio que copiado, no sei, no sei se tem um s caminho l, no sei se
tem a mesma viagem do A Rua Noiz l fora. Mas se a gente copia, cara, a gente copia porque
a gente meio quer interpretar uma viagem de fora pra acreditar mais na parada. O que, porra,
no legal. Infelizmente no legal. Faltou uma unidade, faltou um raciocnio prprio. Na
verdade isso alm rap, n? Falta a gente l as coisas pela gente. O que eu vejo, bom tocar
nesse assunto, porque eu gosto de falar disso, eu vejo muito as pessoas fazendo comentrios
que j foram feitos, sabe qual ? As pessoas no tm comentrios prprios. Os comentrios so
meio que reproduzidos j. As pessoas ouvem os comentrios e falam, poxa, esse comentrio
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interessante. Pega aquele comentrio e reproduzem o comentrio, no criam o comentrio. E
nessa reproduo a gente morre.
Para manter-se como funo reguladora as ideologias se construram como
suporte de segmentos do rap que se pretendiam influentes em diversos aspectos. Em
So Paulo, Emicida, Projota e Rashid formam outro segmento, identificado como A
Rua Noiz. Tal ideologia se forjou sobre parmetros muito prximos a um s
caminho. Em a rua noiz, no entanto, o teor protestante ganha importncia fundamental
em conceitos como trabalho trazendo neste conceito no mais a organicidade da
unio, da complementaridade e horizontalidade, mas da distino daqueles que
trabalham e dos que no trabalham, sendo estes categorizados como indignos,
preguiosos e incapazes, alm, claro, de atrapalhar o proceder dos que trabalham. Paraconstatar tal afirmao, basta acompanhar postagens sobre o que vem a ser o valor do
trabalho. Emicida foi um dos rappers que mais ganhou destaque. Recentemente
apareceu na novela Sangue Bom e por receber algumas crticas expos sua viso sobre
o fato.
E quem critica, fez o qu? Vai contar o qu? Construiu o qu? Porque eu vi e fiz o rap
brasileiro chegar l na Califrnia e dividir o festival com Nas, Damien Marley,