Uma Nota Só

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Setembro 2013 Cristovam Buarque Uma Nota Só EDUCAÇÃO

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Setembro 2013

Cristovam BuarqueUma Nota Só

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UMA NOTA SÓCristovam Buarque

Artigos EducacionistasSelecionados de Jornais e Revistas

(2007 a 2011)

Brasília, julho de 2013

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Para quem defende a importância da educação. E para os que ainda duvidam disto.

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Índice

Uma nota só

Foram avisados .......................................................... 9A Bicicleta e o Voto..................................................... 10Nós, escravocratas..................................................... 12Dois Insultos.............................................................. 14Educação é progresso................................................. 15O Profeta Iglesias....................................................... 16A mancha continua..................................................... 18Angustiado, despertei!................................................. 20Solução definitiva....................................................... 22Crematório de Cérebros.............................................. 24A Grande Fraude....................................................... 26Pactos de Excelência................................................... 28Acordem, Meninos...................................................... 30Acesso e Sucesso........................................................ 32Decoro republicano..................................................... 34A SUDENE................................................................. 35Pobre dicionário................................................. ........ 37O Milagre do Deserto................................................. 39Pobre Constituição..................................................... 40Copa do futuro.......................................................... 42Chuvas, chamas e luz................................................. 44Ministério da Educação de Base.................................... 46Outro PNE ou revolução.............................................. 47O espírito da bandeira................................................ 49“Não sou Brasil”......................................................... 51

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Quatro aniversários.................................................... 52Futuro Bonito............................................................. 54Royalties para o Futuro................................................ 56Aborto Invisível........................................................... 57A fábrica da violência.................................................. 59Decálogo do Educacionismo......................................... 60Não basta!................................................................. 62O terceiro muro.......................................................... 64País de cotas.............................................................. 66Precisa Sete Anos........................................................ 68Aceitação da mediocridade.......................................... 70Ainda?...................................................................... 72Duas fotos................................................................. 74Pedofobia.................................................................. 75A outra Aids............................................................... 77O Grito de Belém........................................................ 79Universidade do Magistério.......................................... 81Uma Escola Republicana.............................................. 83WISE, uma esperança................................................. 85A revolução do lápis................................................... 87Desmoralização do Bem.............................................. 89O sentido da pergunta................................................ 91Redefinindo Profissões................................................. 92Falta Querer.............................................................. 94Dia da Construção...................................................... 96

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Nota

Entre 2007 e 2011 publiquei cerca de mil e quinhentos artigos em jornais, dentre eles O Globo, Jornal do Commercio, O Tempo, Folha de S. Paulo e nas revistas Profissão Mestre e Superinteressante. Destes, selecionei alguns relacionados diretamente com o tema Educação. Na verdade, sobre educacionismo, política e administração de sistemas educacionais e não sobre pedagogia. São artigos sobre o fora-da-sa-la-de-aula, não sobre o dentro-da-sala-de-aula.

Estes artigos selecionados compõem este livro. Dei-lhe o título de “Uma nota só” pelo fato de que tratam de um só tema e lembrando que esta expressão foi usada como crítica à insistência com que defendi a edu-cação durante a campanha presidencial de 2006.

Como aquela campanha, espero que esta publicação ajude ao debate sobre a importância e a possibilidade de uma revolução educacional como caminho para a construção do futuro desejado para o Brasil e o mundo.

Cristovam BuarqueBrasília, 31 de julho de 2012

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UMA NOTA SÓ

Foram avisadosIstoé – 26 de setembro de 2007

Quando o presidente Lula decidiu transformar a Bolsa-Escola em Bol-sa-Família, seus auxiliares foram alertados de que os efeitos seriam negativos, por três razões.

Primeiro, trocando a palavra escola, tirava-se a educação da mente dos beneficiários. Quando recebiam a Bolsa-Escola, eles pensavam: “recebo a bolsa porque meus filhos estão na escola, se deixarem de estudar, não recebo”. Agora, com a Bolsa-Família, pensam: “recebo a bolsa porque sou pobre, se sair da pobreza, não recebo”.

Segundo, com a gestão transferida do MEC para o MDS, o programa passou a ser instrumento de apoio social, e não de mudança pela edu-cação. Não se pode cobrar de um ministério, cujo papel é assistir aos pobres, a responsabilidade de vincular assistência com a freqüência às aulas.

Terceiro, misturou-se um programa educacional com programas as-sistenciais, como vale-gás e bolsa-alimentação. Ficou difícil separar as famílias que têm das que não têm filhos na escola e por isso não teriam o direito de receber a Bolsa-Escola. A solução foi transformar a Bolsa-Escola em um apêndice de programas de assistência social, pago por criança e com valor insignificante.

A Bolsa-Família pode até diminuir a miséria entre os beneficiários, mas não elimina a pobreza do Brasil. É um programa generoso, mas não transformador; mata a fome, mas não permite o salto de patamar social. Diminui a pobreza momentânea, mas não constrói um país rico, pois não reduz a dependência. Isso, só com uma revolução na educa-ção. A Bolsa-Escola era parte dessa revolução, a Bolsa-Família não é.

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A Bicicleta e o VotoO Globo – 20 de dezembro de 2008

Quase seis décadas atrás, escrevi uma carta ao Papai Noel pedindo uma bicicleta. E ganhei. Miro, que morava num casebre ao lado da minha casa, não recebeu. Escrevi outra carta ao Papai Noel, pedindo uma bicicleta para ele. Hoje, não pediria uma bicicleta, pediria uma escola. Seria um presente para ele, para seus filhos e o Brasil inteiro.

Tantos anos depois, este é o pedido que faria ao Papai Noel dos adul-tos, caso ele existisse: que, no dia 25 de dezembro, nossa população acordasse educada, com um imenso conhecimento coletivo de geogra-fia, matemática, filosofia, história; sabendo usar computadores, lendo e escrevendo bom português, falando idiomas estrangeiros, conver-sando sobre literatura, conhecendo arte, tendo dezenas de milhares de doutores e cientistas. Acordasse com tanto conhecimento coletivo quanto temos de habilidade para o futebol.

Com a soma desse conhecimento, a população educada faria uma economia potente e moderna, graças ao alto conteúdo de inteligência em cada produto da ciência e da tecnologia. A riqueza seria mais bem distribuída entre as pessoas e regiões, as cidades seriam pacíficas; o meio ambiente, equilibrado.

Mas esse conhecimento não chega de repente, em um dia de Natal. Nem é transportável na sacola vermelha de um velhinho que carrega presentes.

Por isso, desejo 200 mil escolas bonitas, com espaço suficiente para todos os alunos. Todas com os equipamentos necessários, laboratórios, computadores, televisões, DVDs, antenas parabólicas, quadras espor-tivas, bibliotecas, teatros e cinemas. Sem isso, os prédios não seriam considerados escolas, e o conhecimento não seria criado ou espalha-do. Desejo que nenhuma criança saia da escola antes de completar o ensino médio. E que sejam alfabetizados os 13 milhões de adultos que ainda não sabem ler.

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O Brasil seria um celeiro de cientistas, escritores, filósofos, intelectuais, doutores, engenheiros, professores, como somos o celeiro dos melho-res futebolistas do mundo.

Sobretudo, se tivesse a quem pedir, escreveria solicitando que o Brasil recebesse, de presente, dois milhões de professores, todos eles muito bem preparados, com muitos anos de estudos, dedicação, vontade de trabalhar, amor à profissão e aos alunos. Porque são eles que cons-troem o conhecimento. Mas para isso, é preciso que esses professores – bem preparados e dedicados – sejam também muito, muito bem remunerados, queridos e respeitados pela população.

Pode parecer que a idade me deixou ambicioso: em vez de uma bici-cleta para o amigo vizinho, peço um presente complicado para o Brasil todo. Mas Papai Noel vem da Finlândia. Naquele país foi possível fazer a revolução educacional, garantir a qualidade de suas escolas, tratar bem os professores, aprimorar o cuidado com as crianças. Se na terra do Papai Noel, a educação construiu um país rico em cultura, ciência, tecnologia e economia, sinto-me no direito de desejar o mesmo para o meu país.

Mas sei que não é possível receber conhecimento coletivo – escolas, equipamentos e professores – do exterior. A revolução educacional só pode ser feita pelo próprio povo e seus líderes. Por isso, neste Natal, gostaria de pedir uma nova geração de líderes, como o melhor pre-sente para o Brasil. Líderes que tenham o compromisso de transformar o País, educando nosso povo. Mas isso tampouco vai nos chegar sob a forma de presente. Os líderes são eleitos pelo povo. Não há presentes na política e na condução dos países. A cada povo cabe encontrar seu próprio caminho, definir que futuro deseja, decidir como usar seus recursos.

Portanto, desejo que cada brasileiro seja o Papai Noel do Brasil, ele-gendo os líderes de que o País precisa para fazer a revolução educa-cional que mudará o Brasil. Que, graças ao voto, não seja mais preciso que uma criança peça uma bicicleta para o vizinho pobre.

O presente que peço é que a lucidez e o patriotismo tomem conta do eleitorado.

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Nós, escravocratasO Globo – 30 de janeiro de 2010

Em 2010 saía da vida para a história um dos maiores brasileiros de to-dos os tempos: o pernambucano Joaquim Nabuco. Político que ousou pensar; intelectual que não se omitiu; pensador e ativista com causa; principal artífice da abolição do regime escravocrata no Brasil. Apesar da vitória conquistada, Joaquim Nabuco reconhecia: “Acabar com a escravidão não basta. É preciso acabar com a obra da escravidão”, como lembrou na semana passada Marcos Vinicios Vilaça, em soleni-dade na Academia Brasileira de Letras.

Mas a obra da escravidão continua viva, sob a forma da exclusão social: pobres, especialmente negros, sem terra, sem emprego, sem casa, sem água, sem esgoto, muitos ainda sem comida; sobretudo sem acesso à educação de qualidade.

Ainda que não aceitemos aprisionar e vender seres humanos para o trabalho forçado, condenamos milhões ao desemprego ou trabalho humilhante por falta de qualificação profissional. Em 1888, libertamos 800 mil escravos, jogando-os na miséria. Em 2010, negamos alfabe-tização a 14 milhões de adultos, negamos Ensino Médio a 2/3 dos jo-vens. De 1888 até nossos dias, dezenas de milhões morreram adultos sem saber ler.

Cem anos depois da morte de Joaquim Nabuco, as consequências da escravidão se mantêm e continuamos escravocratas.

Somos escravocratas ao deixarmos que a escola seja tão diferenciada, conforme a renda da família de uma criança, quanto eram diferen-ciadas as vidas na Casa Grande ou na Senzala. Somos escravocratas porque, até hoje, não fizemos a distribuição do conhecimento: instru-mento decisivo para a liberdade nos dias atuais. Somos escravocra-tas porque todos nós, que estudamos, escrevemos, lemos e obtemos empregos graças aos diplomas, beneficiamo-nos da exclusão dos que não estudaram. Como antes, os brasileiros livres se beneficiavam do trabalho dos escravos.

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Somos escravocratas ao jogarmos, sobre os analfabetos, a culpa por não saberem ler, em vez de assumirmos nossa própria culpa pelas decisões tomadas ao longo de décadas. Privilegiamos investimentos econômicos no lugar de escolas e professores. Somos escravocratas, porque construímos universidades para nossos filhos, mas negamos a mesma chance aos jovens que foram deserdados do Ensino Médio completo com qualidade. Somos escravocratas de um novo tipo: a ne-gação da educação é parte da obra deixada pelos séculos de escravi-dão.

A exclusão da educação substituiu o sequestro na África, o transporte até o Brasil, a prisão e o trabalho forçado. Somos escravocratas que não pagamos para ter escravos: nossa escravidão ficou mais barata e o dinheiro para comprar os escravos pode ser usado em benefício dos novos escravocratas. Como na escravidão, o trabalho braçal fica reser-vado para os novos escravos: os sem educação.

Negamo-nos a eliminar a obra da escravidão.

Somos escravocratas porque ainda achamos natural as novas formas de escravidão; e nossos intelectuais e economistas comemoram minús-cula distribuição de renda, como antes os senhores se vangloriavam da suspensão dos castigos mais brutais. Continuamos escravocratas, co-memorando gestos parciais. Antes, com a proibição do tráfico, a lei do ventre livre, a alforria dos sexagenários, agora, com o bolsa família, o voto do analfabeto ou a aposentadoria rural. Medidas generosas, mas sem a ousadia da abolição plena.

Somos escravocratas porque, como no século XIX, não percebemos a estupidez de não abolirmos a escravidão. Ficamos na mesquinhez dos nossos interesses imediatos negando fazer a revolução educacional que poderia completar a quase-abolição de 1888. Não ousamos rom-per as amarras que envergonham e impedem nosso salto para uma sociedade civilizada, como, por 350 anos, a escravidão nos envergo-nhava e amarrava nosso avanço.

Cem anos depois da morte de Joaquim Nabuco, a obra criada pela escravidão continua, porque continuamos escravocratas por não abrir-mos as portas das escolas de qualidade para os filhos dos pobres.

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Dois InsultosCorreio Braziliense – 16 de novembro de 2010

Foram necessários quatro séculos para a sociedade começar a sentir que a escravidão é um insulto da humanidade ao humanismo. Mais de um século depois, ainda não consideramos que, igualmente insul-tuoso, é a desigualdade na educação e na saúde que são oferecidas à população. Um século atrás, educação era um privilégio de raras pessoas. Os filhos dos ricos estudavam tão pouco quanto os filhos dos pobres. Alguns raros se encaminhavam naturalmente para a via in-telectual, quase sempre motivados por atração religiosa. Quanto aos serviços de saúde, eles eram igualmente deficientes.

A modernidade provocou a desigualdade: os serviços de saúde avan-çaram ao ponto de quase impedir a morte antes de idade avançada. Mas distribuiu o poder do avanço técnico apenas para a minoria capaz de comprar os seus serviços. Criamos uma situação insultuosa do pon-to de vista ético: aceitamos naturalmente como fato normal, uma pes-soa morrer ou viver em função da sua renda. Quanto maior a renda, mais anos de vida. Assim como a escravidão, este insulto é tolerado, aceito. Com a educação não é diferente: a modernidade colocou os filhos das classes médias e altas em escolas de qualidade, deixando os filhos das classes pobres excluídos.

O Brasil foi o último País a descobrir o insulto e abolir a escravidão, agora caminha para ser um dos últimos a descobrir o outro insulto e abolir a desigualdade como os serviços de saúde, educação e justiça são distribuídos ao nosso povo.

Quando Plínio de Arruda Sampaio candidato a presidente, em 2010, criticava os demais candidatos, por todos terem propostas iguais, ele se diferenciava com o discurso conservador ao propor estatização, sem fazer o avanço necessário na busca de igualdade de oportunidades, na educação e na saúde. Ainda falta o sentimento de insulto que repre-senta a desigualdade no direito à vida e ao saber.

Este sentimento não levará a uma lei de igualdade de oportunida-des, mas poderá levar a um conjunto de compromissos que realizarão

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ações por anos adiante, como políticas de Estado, acima dos partidos, para execução no longo prazo.

Educação é progressoJornal do Commercio – 25 de novembro de 2011

O Brasil comemora na mesma semana os dias da Alfabetização (14/11), da República (15/11), da Bandeira (19/11) e Consciência Ne-gra (20/11). Deve ter sido por acaso que essas quatro datas tenham se juntado, apertadas, no calendário. Mas, estão correlacionadas pela realidade brasileira.

O Dia da Bandeira e o Dia da Alfabetização têm tudo a ver. Em no-vembro de 1889, os líderes da República debateram por horas a posi-ção das estrelas no desenho da Bandeira Republicana, para que elas representassem o céu do Brasil, no dia 15 daquele mês naquele ano. E, durante horas, debateram qual o lema a escrever: “Ordem e Pro-gresso” ou “Ordem, Progresso e Amor”, mas esqueceram de perguntar quantos adultos ficariam impedidos de conhecer a própria bandeira, por não saberem ler. Se as letras do lema forem misturadas, os brasi-leiros que não sabem ler não perceberão que ela deixou de ser a nossa bandeira, apesar do verde, amarelo e azul, do losango e da circun-ferência. Raros países do mundo têm lemas escritos em suas bandei-ras. Por isso, o Brasil mais do que os outros países tem obrigação de alfabetizar todos os seus adultos, ou não temos o direito de ter lema escrito na bandeira, ou não podemos dizer que somos República.

Naquela época, tínhamos 6,5 milhões de adultos analfabetos, 65% da população, hoje temos 13 milhões. Dobramos o número de analfabe-tos, mesmo que reduzindo a percentagem. Mas o número é crescente a cada ano, quando analisamos os 6,4% de crianças na 4ª série, sem saber ler. Entre os idosos o analfabetismo diminui, mais pela biologia do que pela pedagogia: morrem antes de aprender a ler e a escrever.

Mas esse não foi o único exemplo da falta de republicanismo de nos-sos republicanos. Depois de proclamada a República, os presidentes pouco fizeram para incluir socialmente os negros brasileiros recém-

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-libertados da escravidão um ano antes. Daí que entre os 13 milhões, 71,6% de nossos analfabetos são brasileiros negros. Não é por acaso que está entre os negros a menor renda per capita, o maior número de vítimas de violência urbana, e os piores indicadores sociais. Des-de a monarquia já se sabia que a Abolição não estaria completa se não déssemos terra aos adultos e escola aos ex-escravos e seus filhos. Joaquim Nabuco, que era monarquista, já defendia isso, mas depois de 36 presidentes, o Brasil continua um País que exclui os negros. O Dia da Consciência Negra, comemorado nessa mesma semana, é um avanço na descoberta do problema que foi ao longo de séculos coloca-do debaixo do tapete, mas ainda é prova de que o problema persiste. A República está incompleta.

Essas quatro datas mostram que temos uma República não republi-cana, porque o País continua de poucos, sua população ainda está dividida entre incluídos e excluídos, povo e povão.

A República foi proclamada, mas seus presidentes continuaram go-vernando para a aristocracia. Temos presidencialismo, não República. Porque para a proclamação basta o gesto de um Marechal, já para a construção da República é preciso um exército de bons professores. O Quartel proclamou, mas só a Escola construirá a República. Se em 1889 os republicanos tivessem escolhido o lema “Educação é Progres-so”, talvez as datas dessa semana fossem casadas e não apenas coin-cidentes no abismo social que elas mostram, negando a República.

O Profeta IglesiasO Globo – 17 de março de 2007

Publicado com o título “Aula de Iglesias

Ainda que mais jovem do que Raúl Prebish, Celso Furtado e Aníbal Pinto, Enrique Iglesias é, seguramente, o economista do século XX mais identificado com a economia da América Latina. Graças ao longo período como Presidente do BID – cerca de 17 anos –, após ter sido dirigente da CEPAL e professor em reconhecidos institutos econômicos latino-americanos ele consolidou seu nome como o principal estrate-gista da economia do nosso continente.

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Hoje, depois de ocupar esses cargos, ele é o Secretário-Geral Ibero--Americano, e cuida das relações entre Espanha, Portugal e os países latino-americanos. Foi por causa desse cargo, e por todo o seu passa-do, que ele esteve nesta semana em Rabat, participando do seminário “Marrocos 2030”. Ao lado de Mario Soares, Felipe González, Porfírio Muñoz Ledo e outros, ele brindou a todos com uma aula sobre o futuro do desenvolvimento. E defendeu uma nova visão, segundo a qual a construção do futuro depende, acima de tudo, da educação em todos os níveis, da pré-escola à pós-graduação.

Além da preocupação permanente com a vulnerabilidade financeira e fiscal, com a competitividade, com a estabilidade política, jurídica e monetária, o grande problema da atualidade, segundo Iglesias, está na vulnerabilidade social, na pobreza, na desigualdade. Ele reconhe-ceu todos os enormes avanços das últimas décadas, em termos de crescimento, e dos últimos anos, relativos à estabilidade monetária. Mas daqui para frente, segundo ele, o avanço só será possível se hou-ver um salto educacional.

O capital do futuro é o conhecimento, e o mecanismo para quebrar a desigualdade é o acesso igual à educação.

A aula de Iglesias representa uma mudança significativa nas estra-tégias tradicionais que baseiam o desenvolvimento na economia e no capital. Tanto que, durante sua aula, teve a gentileza de chamar de profeta, citando nominalmente um participante presente, que, na América Latina, vem defendendo a educação como o principal vetor de desenvolvimento.

Com a aula de Iglesias, a profecia se transforma em estratégia, e ga-nha uma dimensão de legitimidade, aceitação e viabilidade. Agora, de acordo com ele, a nova agenda mundial deverá ser composta por políticas públicas para romper a vulnerabilidade que resulta da de-sigualdade e da exclusão. A nova agenda é uma revolução na edu-cação. E se não a fizermos, nas palavras de Iglesias, continuaremos contemporâneos do passado.

A geração anterior de economistas criou a expressão “take off” da economia, para definir o avanço da civilização graças ao desenvol-

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vimento. O que se percebe hoje é que, em vez de uma decolagem, precisamos de um “jump” educacional. No lugar da decolagem, um salto. Em vez de crescimento econômico, uma revolução na educação.

Daqui para frente, nenhum país caminhará em direção ao desenvolvi-mento, ele terá de saltar para o lado desenvolvido. Vivemos um tempo de saltos, não de decolagens. Iglesias fez parte daquele grupo de eco-nomistas que defendiam o “take off”. Durante décadas, ensinou o que os países precisavam fazer para poderem decolar, sempre pregando investimentos na economia. Hoje, ele mostra que continua atuante e capaz de se reciclar, brindando-nos com uma belíssima aula, agora so-bre como dar o salto – com uma revolução educacional. A única forma de sermos contemporâneos do futuro.

No encontro “Marrocos 2030”, foi lembrado que no passado, o lado sul do Mediterrâneo, no tempo dos egípcios, era muito mais desenvol-vido do que o lado norte, a Europa, que naquele tempo era uma re-gião primitiva. Isso porque os egípcios dispunham de tecnologia, algo que os europeus ainda não conheciam. O que provoca hoje em dia uma diferença tão grande entre o lado norte do Mediterrâneo (a Eu-ropa) e o lado sul (a África) não é o numero de carros, o tamanho das casas, ou o valor das contas bancarias. Mas sim aquilo que provoca essa desigualdade – o fato da Europa ter realizado, ao longo de 200 anos, a sua revolução científica, tecnológica e educacional.

Com sua aula, Enrique Iglesias se fez um profeta como aquele a quem se referiu. E que agradece.

A mancha continuaJornal do Commercio – 06 de abril de 2007

No dia 25 de março de 1884, o Ceará começou a Abolição da Escrava-tura, quatro anos e meio antes do resto do Brasil: A cidade de Reden-ção, no mesmo estado, a aboliu ainda antes: no dia 1º de janeiro de 1883, quando todos os donos de engenho daquela região alforriaram seus escravos e selaram um pacto de que nunca mais voltariam a usar mão servil. Algo como “Abolição já”, “Escravidão nunca mais”.

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Na ocasião, um deles, o Coronel Benvindo, declarou que “a mancha da minha vida foi ter sido senhor de escravo”.

Aquele pacto começou meses antes, quando outro senhor de enge-nho, Gil Ferreira Gomes, decidiu alforriar seus escravos e convenceu os demais senhores a fazerem o mesmo. Poucos aceitaram seus argu-mentos; os demais disseram que, se quisessem a alforria, compras-sem seus escravos e os libertassem. Gil Gomes foi atrás do dinheiro, conseguiu o apoio da sociedade abolicionista em Fortaleza e comprou todos os escravos, sob a condição de que a partir de então eles fossem substituídos por mão de obra assalariada.

Perto de um século e meio depois, ainda não completamos a obra de Gil Gomes e dos demais senhores de Redenção – que antes da abo-lição, se chamava Vila Acarapé –, nem completamos a Lei Áurea, de cinco anos mais tarde. Porque a abolição só será completa quando os filhos da Casa Grande forem às mesmas escolas que os filhos da sen-zala; quando os filhos do condomínio freqüentarem a mesma escola dos filhos da favela.

O Brasil sabe como fazê-lo. Temos os recursos, não fazemos porque perdemos a capacidade de indignação de Gil Gomes e seus colegas em 1884. Não dizemos, como eles, que a mancha da nossa vida é vi-ver em um tempo em que convivemos com meninos abandonados nas esquinas, meninas prostituindo-se nas praias, apenas 18% dos jovens terminando o ensino médio com qualidade. Assistimos com naturali-dade à brutalidade da desigualdade. Não nos revoltamos. Em vez de senhores de engenho escravocratas do século XIX, somos senhores da educação e conhecimento concentrados do século XXI.

Nós nos consideramos tão sem culpa hoje, diante da pobreza, quanto os brasileiros do século XIX diante da escravidão. Vemos a desigualda-de como algo natural e permanente. Perdemos também a capacidade de sentir o interesse maior do País, da Nação, do Povo e do Futuro. Ficamos individualistas e corporativistas.

Esquecemos-nos de buscar a igualdade da qualidade das escolas, de ricos e pobres, nem queremos abrir mão de recursos de outras fontes para fazer a revolução educacional. Quando se fala que esta aboli-ção adicional vai custar alguns bilhões de reais por ano, todos param,

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desistem, não fazem como Gil Gomes, ninguém vai atrás do dinheiro necessário para a alforria moderna – a escola.

Perdemos a sensibilidade que tinham os senhores de escravos de Aca-rapé / Redenção. Naquela época, era até possível dizer que havia usi-neiros heróis. Hoje, só os pobres excluídos, analfabetos, bóias-fria são heróis, mas, no lugar de alforriá-los com escolas, pensamos em cons-truir mais cadeias.

Se não fossem aqueles, e Nabuco, e Patrocínio, e uma Princesa, se eles não tivessem deixado esse legado para nós, dificilmente a abo-lição seria possível agora. A prova é que continuamos deixando de completá-la.

Não somos capazes, como o Coronel Benvindo, de reconhecer a man-cha de ter sido escravocata, e reconhecermos a mancha de não edu-carmos nossas crianças.

Angustiado, despertei!O Globo – 13 de Outubro de 2007

Estive cansado, junto com tantos outros, com a dificuldade de mudar a trágica realidade que caracteriza o Brasil. Mas despertei.

Despertei para o risco de que esses problemas pareçam pequenos diante do risco avassalador à frente: o de uma sociedade tão dividida que suas partes não percebam a semelhança entre si. Despertei para o fato de que o Brasil ainda não conseguiu se tornar Nação. A Inde-pendência, a Abolição, a República, a Democracia foram insuficientes para unir nosso povo, compacto e solidário na convivência de suas desigualdades.

Despertei para a percepção de que a solução não está na simples ma-nutenção da democracia e do crescimento econômico, nem em uma revolução social e econômica que desfaça tantas coisas boas que o Brasil conquistou nas últimas décadas: liberdade democrática, infra--estrutura econômica, estabilidade monetária.

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Despertei para o sentimento de que só a escola transforma a popu-lação em povo, e de que o amanhã de um país tem a cara da sua escola de hoje. O caminho para a construção do futuro da Nação está na educação das suas crianças nos dias de hoje. E garantir o acesso de todos à educação com a mesma qualidade, estamos condenando milhões de brasileiros à marginalidade, e desperdiçando o potencial de cada um deles.

Despertei para o fato de que os dois muros que emperram o Brasil - o do atraso civilizatório e o da desigualdade social – só serão derruba-dos por uma revolução educacional. E essa revolução só ocorrerá se for tratada como questão nacional. Não teremos futuro se o futuro de nossas crianças depender da sorte da família em que nascerem e da cidade em que viverem.

Despertei para o fato de que, se no futebol a bola é redonda para to-dos, e os filhos das classes pobres alcançam o topo da carreira, uma escola igual para todos pode derrubar o muro de desigualdade que há séculos se perpetua no Brasil. E se os milhões de brasileiros que jogam futebol nos tornaram campeões mundiais, escolas com máxima qualidade para todos nos tornarão também campeões na ciência e tecnologia e na economia do futuro.

Despertei para o fato de que o mundo começa a substituir os operários por operadores, diferentes na qualificação educacional e profissional de que dispõem para entender o novo mundo global que surge, para usar os novos instrumentos técnicos da revolução científica e tecnoló-gica, para se indignar com as injustiças sociais e os riscos ecológicos, para se deslumbrar com a beleza que os cerca.

Despertei para a perspectiva de que o capital do futuro está no conhe-cimento, criado em centros de pesquisas que surgem nas universida-des, mas nascem na educação de base com qualidade para todas as crianças. E de que não haverá futuro para a economia se o Brasil não se tornar um grande produtor de conhecimento.

Tristemente despertei para a tragédia da pequena consciência da po-pulação brasileira em relação à educação. Os ricos consideram que basta educar seus filhos, os pobres imaginam que uma boa educação não é um direito para seus filhos, nem sequer uma necessidade; os

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líderes políticos, empresariais e sindicais não percebem a importância da educação de base. Despertei para o fato de que o Brasil não terá futuro se não revertermos essa consciência equivocada, e despertar-mos nos ricos a necessidade de educar a todos, nos pobres o senti-mento do direito e da necessidade de educar seus filhos, e nos líderes a consciência da educação como vetor da riqueza.

Despertei para o fato de que nosso papel é despertar o povo brasilei-ro, todas as suas classes, não só para o cansaço com a realidade, mas para a esperança e a necessidade de uma revolução educacional.

Despertei também para a necessidade da paciência, porque essa re-volução levará algumas décadas para ser realizada. Mas, angustiado, despertei para a urgência de iniciar imediatamente essa doce revolu-ção.

Solução definitivaO Globo – 06 de dezembro de 2008

Não faz muito, o Brasil era um país divido pelo debate entre ideias: economia aberta ou fechada; privatização ou estatização; democracia ou autoritarismo; socialismo ou capitalismo. Hoje, o debate ideológico se limita a cotas e bolsas. De um lado, os que negam aos pobres e negros o apoio de bolsas e cotas; de outro, aqueles que consideram bolsas e cotas suficientes para resolver o problema da pobreza e do preconceito. Parte da população é contra a distribuição de bolsas para pobres; parte considera que a distribuição de bolsas é suficiente para credenciar um governo. O mesmo acontece com as cotas. Parte é con-tra usá-las como instrumento para formar uma elite universitária ne-gra; outra parte comemora a existência das cotas como se fosse a so-lução para todos os problemas que pesam sobre os negros brasileiros.

Há uma razão que unifica os dois lados do nosso pobre debate: o desprezo aos pobres e excluídos, que caracteriza os formadores de opinião no Brasil. Tanto os que defendem quanto os que criticam bol-sas e cotas.

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Aqueles que hoje são contra as bolsas, há séculos são insensíveis à tra-gédia de um País que condena dezenas de milhões à fome e à miséria. Não defenderam no passado a revolução que era então necessária para que as bolsas fossem hoje desnecessárias. E os que comemoram as bolsas como o grande mérito de um governo, são insensíveis à tra-gédia de um País que condena parte considerável de suas famílias à necessidade de ajuda. Contentam-se com as bolsas, sem defender a revolução que permitirá abolir a necessidade delas.

No caso das cotas é ainda mais grave. Os que são contra nunca se sensibilizaram com a exclusão de negros em nossa elite, e temem que vagas da universidade sejam ocupadas por jovens negros com alguns décimos a menos nas notas do vestibular. Os que são a favor de cotas lutam pela reserva de vagas, mas não lutam para que todos terminem o ensino médio em escolas de qualidade; reservam lugares na univer-sidade para jovens negros, mas mantêm a falta de concorrência pelos filhos do povo de qualquer raça por causa das multidões excluídas pelo analfabetismo e pela evasão escolar.

Lutamos para manter privilégios ou aumentar o número de privilegia-dos, não para eliminar os privilégios.

Só uma escola “redonda” para todos permitiria abolir a necessidade de cotas e de bolsas. Isso exige uma revolução na educação de base. Mas os defensores e opositores de bolsas e cotas desprezam o radicalismo da solução definitiva: a igualdade de oportunidades para abolir todos os privilégios. Que acabaria com a disputa atual de quem tenta restrin-gir os privilégios ou fazer ter acesso a eles, sem eliminá-los.

Em um País com ânsia de justiça, bolsas e cotas são necessárias como paliativos, distribuindo pequenas ajudas aos pobres e pingando negros na universidade. Não devemos recusar esses instrumentos de discrimi-nação afirmativa, mas tampouco comemorar a necessidade deles.

O Brasil é um País dividido, com uma sociedade partida. Bolsas e co-tas são migalhas necessárias, jogadas de um lado para o outro, mas não levam a uma revolução que abra a porta por onde os excluídos atravessem para a modernidade, vivam plenamente sem necessidade de bolsas ou cotas. Essa porta é a escola igual para todos, capaz de quebrar privilégios e levar o Brasil a um salto civilizatório.

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Diante da pobreza de idéias, divididas na superficialidade e no simplis-mo, essa opção exige um debate hoje impossível. A prova é que um artigo como este será certamente recusado, tanto pelos que defendem quanto pelos que se opõem às cotas e às bolsas. Acostumados a defen-der ou condenar migalhas e pingos, lutam para manter os privilégios, sem buscar soluções que permitam dispensar as bolsas e as cotas. Mas isso seria querer demais da elite brasileira: porque não há bolsas nem cotas de lucidez e radicalismo, nem gosto por soluções definitivas.

Crematório de CérebrosO Globo – 27 de outubro de 2007

É comum o horror diante da brutalidade de dirigentes que queimam livros e prendem ou matam intelectuais como o imperador chinês Shih Huang Ti, que, 210 anos antes de Cristo, decidiu queimar todos os li-vros e matar todos os estudiosos do seu império. Até hoje, a Inquisição horroriza o imaginário da humanidade pelo crime de destruir livros e matar intelectuais durante a Idade Média. Em Berlim, no campus da universidade Humboldt, há um local de reverência indignada no lugar onde Hitler queimou milhares de livros.

Mas não nos horrorizamos quando os livros são impedidos de ser es-critos e os jovens de se transformarem em escritores. Indignamo-nos com a queima de livros e a prisão de escritores, mas não com a inci-neração de cérebros como se faz no Brasil, ao negarmos educação ao povo. Pior do que queimadores de livros: somos incineradores de cére-bros que escreveriam livros, se tivessem a chance de estudar. A história do Brasil é a história do impedimento de que livros sejam escritos e de que cientistas e intelectuais floresçam.

Quando os livros são queimados, alguns se salvam. Mas se eles não são escritos, não há o que salvar. Quando os escritores se salvam, eles escrevem outros livros, mas quando não aprendem a ler, queimam-se todos os livros que poderia escrever.

O Brasil é um crematório de cérebros.

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Ao nascer, cada ser humano traz o imenso potencial de um cérebro vivo e virgem. Como um poço de energia a ser ainda construído: pela educação. No Brasil, treze porcento dos adultos são analfabetos, ape-nas trinta e seis porcento concluem o ensino médio; destes, só a meta-de tem uma educação básica com qualidade acima da média. Portan-to, oitenta e dois porcento ficam impedidos de escrever, todos os livros que escreveriam são queimados antes de escritos. Como se o Brasil fosse um imenso crematório de inteligência.

As conseqüências são perfeitamente perceptíveis: porque basta olhar a cara da escola pública no presente para ver a cara do País no futu-ro. Apesar de nossos quase 200 milhões de cérebros, o quinto maior potencial intelectual do mundo, o Brasil continuará a ser um país peri-férico na produção de conhecimento. Da mesma forma como a China regrediu intelectualmente depois de Shih Huang Ti; a Península Ibéri-ca, com a Inquisição; a Alemanha, com Hitler; o Brasil está perdendo o potencial de seus cérebros interrompidos. O resultado já é visível: ineficiência, atraso, violência, desemprego, desigualdade, tolerância com a corrupção e a contravenção. Um país dividido por um muro da desigualdade que separa pobres e ricos; e outro que nos separa das nações desenvolvidas.

Durante anos, falou-se no “decolar” da economia. Achava-se que para um País ter futuro bastava educar uma elite, um pequeno conjunto de profissionais a serviço da economia. Formamos uma minoria no ensino superior, escolhida depois de rejeitar a imensa maioria na educação de base, e perdermos o potencial das dezenas de milhões deixados para trás.

Ou o Brasil se educa ou fracassa; ou educamos todos ou não teremos futuro e a desigualdade continuará; ou desenvolvemos um potencial científico-tecnológico, ou ficamos para trás. Se a universidade é a fá-brica do futuro, o ensino fundamental é a fábrica da universidade. Sem uma professora primária que lhe tivesse ensinado as primeiras letras e as quatro operações, Albert Einstein não teria se tornado cientista. Nossos prêmios Nobel morreram antes de aprender as quatro opera-ções. Não podemos formar inteligências enquanto formos queimado-res de cérebros. Não podemos melhorar a educação superior sem uma educação realmente universal e de qualidade para todos.

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Só o pleno desenvolvimento do imenso potencial da energia intelec-tual dos brasileiros permitirá derrubar o muro do atraso e o muro da desigualdade. Mas isso exige que o horror que sentimos com os es-trangeiros que queimavam livros e sábios, seja transferido para nós próprios, incineradores de livros que não foram escritos, de doutores que morreram analfabetos. Incineradores de cérebros.

A Grande FraudeO Globo – 21 de novembro de 2009

Há décadas, indicadores denunciam o trágico quadro da educação de base. Mas foi preciso o Exame Nacional do Ensino Médio ser usado no lugar vestibular e ser vítima de uma fraude para que a situação do Ensino Médio aparecesse. Enquanto o ENEM apenas analisava o Ensi-no Médio sem estar ligado à universidade, ainda que já indicasse uma tragédia, seus resultados recebiam pouco destaque.

Isso se explica pela preferência brasileira pelo topo da pirâmide so-cial quando se pergunta como explicar a vergonha educacional em uma das grandes potências econômicas do mundo. A resposta está no desprezo brasileiro pela base da pirâmide social. Cuidamos mais das universidades do que da educação de base e fracassamos também no topo.

Um exemplo é que a quase totalidade dos que defendem cotas raciais para ingresso na universidade não luta pela abolição do analfabetis-mo, nem pelo aumento no número dos jovens negros que terminam o Ensino Médio. Outro exemplo é o Brasil se preocupar com o fato de termos apenas 13% dos jovens de 18 a 24 anos - chamada idade universitária - cursando a universidade, sem considerar que apenas um terço dos alunos que se matriculam no Ensino Médio consegue concluí-lo. Hoje, o número de vagas para ingresso na universidade é de 2,8 milhões, maior do que o número dos que terminam o Ensino Médio, 1,8 milhão. Mas as mobilizações são pelo aumento de vagas na universidade, e não pela conclusão do Ensino Médio.

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O resultado é uma universidade sem base: os alunos entram sem con-dições de seguir plenamente o curso que escolheram e sem base com-plementar ao conhecimento específico de seu curso. As universidades sofrem um dilema: ficar com vagas ociosas ou ter vergonha dos alunos.

Mesmo os que terminam o Ensino Médio recebem uma formação defi-ciente. De acordo com o PISA - que avalia o resultado da educação de base no mundo -, em 2006, 55,5% dos alunos brasileiros foram repro-vados com nota abaixo de 2, na escala até 5. E 27,8% deles ficaram abaixo de 1. A educação de base do Brasil está em 39º posição entre 56 participantes. Atrás de países como Jordânia e Indonésia, cujas ren-das per capita são R$8.160 e R$5.950, respectivamente, bem menores do que a brasileira, que é de R$16.490.

A grande fraude não está no vazamento de informações nas provas para o ENEM - usado como vestibular para ingresso na universidade - mas nos resultados do ENEM – usado para avaliar a qualidade do Ensi-no Básico no Brasil. Termos notas tão baixas no PISA e no ENEM é uma fraude maior do que o crime de se apossar dos resultados das provas do ENEM. E essas notas medem apenas o desempenho dos alunos que concluem o Ensino Médio, sem considerar os que ficaram para trás. A fraude das fraudes é apenas um terço dos nossos jovens concluírem o Ensino Médio, e de pouca qualidade. Quase universalizamos as matrí-culas nas primeiras séries do Ensino Fundamental, mas desprezamos a frequência, a assistência, a permanência e o aprendizado.

A verdadeira e grande fraude do ENEM está escondida: é a exclusão e o baixo desempenho dos alunos do Ensino Médio. A fraude é o ensino, e não o ENEM.

Mas a grande fraude - a exclusão dos jovens e as baixas notas do ENEM - não importava para a opinião pública, até que ela ameaçou a lisura da seleção para entrar na universidade. A grande fraude era invisível. A maior fraude não está na ilegalidade de quebrar o sigilo das provas, mas no péssimo e imoral desempenho dos que nelas pas-saram.

Se a solução para a fraude menor está em melhorar o sistema de pre-paração das provas, incluindo o sigilo, a fraude maior só será supe-rada por uma revolução na Educação de Base. Entre as ações estão a

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criação de uma Carreira Nacional do Magistério e um Programa Fede-ral que assegure a todas as escolas horário integral, com professores bem formados, bem dedicados, bem remunerados e com acesso aos mais modernos equipamentos.

Felizmente, a sociedade começa a despertar: o movimento “Todos pela Educação” reúne empresários; o “Pacto pela Educação”, promovido pela Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC) reúne cientistas; o “Movimento Nacional pela Educação” reúne os maçons; o “Movimento Educacionista” reúne sobretudo os jovens.

Pactos de ExcelênciaO Globo – 03 de fevereiro de 2007

Publicado com o título “Luta de Pactos”

O Brasil tem um pacto de excelência no futebol, mas nos acostumamos a pactos de mediocridade em outros setores.

O melhor exemplo está na educação.

Como muitos dizem há anos, a educação brasileira é administrada por um pacto de mediocridade. Os alunos fazem de conta que estudam, os governos que pagam, os professores que ensinam, as famílias que os filhos aprendem, os políticos da oposição ignoram o problema e os da situação comemoram avanços insignificantes.

A mediocridade fica visível quando se considera um grande avanço ter 95% das crianças matriculadas, mesmo que 5% estejam fora da escola e no máximo 18% terminem o ensino médio com o mínimo da quali-dade que o mundo moderno exige. O pacto da mediocridade faz com que se considere a matrícula mais importante do que a freqüência, a assistência, a permanência, a conclusão e a qualidade.

Fica claro também quando se observa as greves que duram meses; as faltas constantes dos professores; as ausências dos próprios alu-nos; a aprovação automática dos que só assinam presença; a falta de

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acompanhamento das atividades escolares. Não se percebe, devido ao pacto da mediocridade, que o País está ficando para trás em relação aos demais países, mesmo em relação àqueles que são mais pobres do que o Brasil.

A maior prova do pacto de mediocridade está na falta de vontade de substituí-lo por um pacto de excelência. No lugar de cada um fechar os olhos às falhas dos outros, devemos fazer um pacto onde, por exem-plo:

a) o eleitores votarem e a sociedade exigir que os governos invis-tam na educação.

b) os políticos darem atenção à educação, investindo muito nos salários e cobrando excelência dos professores e servidores, cui-dando da qualidade nos prédios escolares e seus equipamentos.

c) os professores aceitarem ser avaliados na formação e na de-dicação;

d) os pais participarem da educação de seus filhos, na escola e fora dela, exigirem dos professores o cumprimento de suas tarefas e os professores exigirem dos pais o acompanhamento das tarefas dos filhos;

e) os alunos receberem tarefas e serem incentivados e cobrados para realizarem tudo que é necessário para o aprendizado; f) a universidade ser apoiada nos recursos que precisa e ser co-brada nos resultados que deve trazer para o conhecimento.

Com as mudanças ocorridas a partir do fim do século passado, a dis-puta de classes entre capital e trabalho foi se apaziguando graças a acordos pactuados entre as empresas e os sindicatos. A globalização e a modernização permitiram que os trabalhadores qualificados conse-guissem elevar a participação deles nas rendas das empresas. Mesmo continuando a desigualdade no patrimônio, reduziu-se a desigualda-de na renda e na qualidade de vida entre os patrões e os trabalhado-res com qualificação profissional elevada.

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O mundo entrou em um grande pacto entre classes que participam do processo de globalização, sejam trabalhadores ou capitalistas.

Ao mesmo tempo, aumentou a desigualdade dentro de cada país e no mundo inteiro, entre os que estão dentro da modernidade e as mas-sas excluídas. Surgiu um muro separando os incluídos dos excluídos. A derrubada deste muro só poderá ser feita pela distribuição radical do acesso ao conhecimento pela educação, a todos. A solução não está mais na velha idéia de estatizar os meios de produção, mas na distribuição igualitária do acesso à educação, a lógica política não está mais na luta de classes, mas em um pacto de excelência substituindo o pacto de mediocridade. No primeiro momento na educação e, a partir daí, em todos os setores da sociedade.

Acordem, MeninosJornal do Commercio – 20 de abril de 2007

Pela primeira vez na história do Brasil, a próxima geração terá menos oportunidades do que seus pais. Para começar, a crise ecológica vai dificultar a vida das gerações futuras. O aquecimento global fará a vida menos confortável, a desarticulação do clima levará à escassez de alimentos, faltará água, os recursos ficarão mais caros e, em conse-qüência, o conforto, mais difícil.

Será cada vez mais difícil conseguir emprego e bons salários. Seus pais vieram do campo, com pouca instrução ou fizeram cursos simples que permitiram emprego. Agora os empregos são raros e exigem formação elevada. O avanço técnico trará vantagens, mas vai desempregar e exigir alta formação para os que terão emprego. A crise fiscal do go-verno dificultará a continuação de benefícios sociais públicos.

Diante dessas dificuldades, os jovens de hoje têm algumas alternati-vas.

Alguns, como já acontece com os pobres de algumas cidades, vão cair na marginalidade e usar o crime como forma de compensar sua dificuldade.

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Outros, especialmente de classe média alta ou média média, vão pro-curar emigrar para o exterior, como seus pais fizeram migrando do campo para a cidade, no passado. Raros dentre esses serão bem su-cedidos. A maior parte vai sobreviver em melhores condições do que no Brasil, mas de forma marginal, com subempregos, mesmo que re-munerados em dólar. Outros ficarão no Brasil, com bons empregos, mas sem o bem estar dos pais, casas menores, menos férias; mais bugigangas eletrônicas, mas menor padrão de vida e muita incerteza.

Finalmente, alguns poucos que tenham tido a oportunidade de bons estudos poderão ficar aqui e terão uma vida de alto padrão de consu-mo, participarão da economia global, viverão protegidos por sistemas de segurança e mandarão seus filhos, desde pequenos, estudarem no exterior ou em escolas particulares superprotegidas.

Esses não são futuros desejados para nenhum dos grupos e ainda me-nos para o Brasil, como um todo. Por isso, é preciso escolher outra alternativa. Lutar politicamente para mudar essa tendência. Apenas votar naqueles mesmos e viciados políticos e partidos não mudará o rumo do Brasil, não melhorará a vida dos jovens de hoje. Ainda não há um modelo social desenhado para depois de uma revolução que subverta toda a economia e a sociedade, nem ainda força capaz de desmantelar o perverso sistema montado; nem os jovens vão querer a aventura do impossível, sem uma bandeira clara que lhes empolgue.

Mas há uma bandeira: exigir a mesma chance que seus pais tiveram. E uma maneira de conseguir isso: uma revolução educacional capaz de fazer com que todas as escolas do Brasil tenham a mesma qualidade. A escola de um condomínio na cidade equivalente a uma escola da favela ou do campo. Todos os professores bem remunerados, desde que dedicados, competentes e ensinando, numa escola bonita e bem equipada.

Essa é a revolução possível – educação de qualidade para todos – para construir a utopia possível nesse momento – a garantia da mesma chance para todos.

Para isso, os jovens precisam se mobilizar dentro de suas escolas, na rua, no e-mail, no telefone, mobilizados como seus pais fizeram pela democracia, por salários, pelo socialismo. Nós temos uma chance.

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Agora, pela Educação Já.

Estou ciente de que os meninos não querem acordar. Nem vão ler este artigo. Estão nas ruas, nos shoppings ou manipulados por par-tidos acomodados. Por isso, o título deste artigo deve ser: “Acordem os meninos, vocês que leram”. Antes que eles sejam soterrados nos escombros do futuro.

Acesso e SucessoJornal do Commercio – 01 de Junho de 2007

Há anos, fala-se que o Brasil deu um grande passo educacional quan-do colocou 95% de suas crianças na escola. Mas ninguém diz que au-mentamos pouco a percentagem dos que terminam o Ensino Médio, nem que não estamos melhorando a qualidade da formação dos pou-cos alunos que chegam até o final da educação de base. Concentra-se o discurso no acesso, esquecendo-se o sucesso.

Comemoramos o aumento do acesso, mas não assumimos o fracasso do sucesso.

A escola aumentou o acesso graças à Bolsa-Escola, à merenda, ao transporte, mas não aumentou a frequência, a assistência, a perma-nência e a aprendizagem. Ainda menos, a aprendizagem do novo. Acesso não é sucesso. Três letras mudam completamente o significado das duas palavras.

Para o acesso, basta existir uma escola, colocar alguns professores para olhar as crianças, pagar uma bolsa e garantir merenda. Mas as crianças com acesso não terão sucesso se a escola não tiver qualidade, se o aluno não aprender. Além do acesso, é preciso garantir freqüên-cia, assistência, permanência e aprendizado. Só assim teremos a pos-sibilidade de um dia festejarmos o sucesso.

A concentração apenas no acesso faz com que seja adotado o sistema de promoção automática, sem qualquer cuidado com o aprendizado. Alguns alunos ficam na escola somente até a hora da merenda; outros

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ficam até o final da jornada, com não mais do que três horas de aula, depois vão para casa, sem dever, sem carga de leitura, sem cobrança para o dia seguinte.

A freqüência é irregular ao longo do mês e a evasão ocorre depois de poucos anos. O fracasso é absoluto, mas mesmo assim, o acesso é assegurado. Acesso é ter uma vaga em alguma escola, sucesso é freqüentar, assistir, estudar, ser aprovado, permanecer até o final do Ensino Médio, e acima de tudo, aprender.

Para o sucesso, o prédio tem de ser agradável e bem equipado, com um horário rígido a ser cumprido em sala de aula ao longo de todo o ano, com dever de casa e carga de leitura, com professores na quanti-dade necessária, que tenham recebido formação de qualidade e mos-trem dedicação – o que exige muito boa remuneração. Além disso, diante do quadro de pobreza, é preciso complementar a Bolsa-Escola até o final do Ensino Médio com a Poupança-Escola (um depósito, em caderneta de poupança, se a criança for aprovada no final do ano, para ser retirado apenas quando ela concluir o Ensino Médio – como funcionou no Governo do Distrito Federal entre 1995 e 1998, e há anos está em debate para ser aprovado no Congresso Nacional, por iniciativa do Senado).

A Poupança-Escola complementa a Bolsa-Escola, evitando a evasão até o final do Ensino Médio, estimula o aluno a estudar para ser pro-movido e a ficar na escola até concluir seu curso básico. Aliando isso ao Programa de Avaliação Seriada (PAS), que seleciona o aluno por meio de provas durante o próprio Ensino Médio, dá-se ao aluno a ex-pectativa da universidade desde a educação de base, com é feito no Distrito Federal, na UnB, desde 1996.

A condição preliminar para tudo isso é parar com o engano, as men-tiras, a vergonhosa falácia publicitária de que acesso é sucesso. Aca-bar com o analfabetismo político e com a insensibilidade social que escondem a diferença que fazem três letras distintas. A maior causa do fracasso, apesar do acesso, é que mesmo os letrados ignoram a diferença entre acesso e sucesso. Ou percebem, mas preferem mani-pular as letras, desconhecendo que acesso é diferente de sucesso, e com isso, deixando que milhões de jovens brasileiros atravessem seus estudos sem aprender a ler como deveriam.

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Decoro republicanoFolha de S. Paulo – 24 de novembro de 2007

Publicado com o título “Sete anos”

Recentemente na Inglaterra, uma monarquia, um de seus parlamen-tares foi duramente criticado pela mídia e pares, porque seus filhos estudavam em uma escola privada. Mas na república brasileira parece absurda a proposta de que seria falta de decoro os encarregados de zelar pelos serviços públicos protegerem-se usando serviços privados.

Apesar do seu regime republicano, o Brasil ainda não é uma república no modelo social. E o principal indicador é a separação educacional, berço da desigualdade e do abismo social.

Durante todo esse período, a casta dirigente prometeu que o cresci-mento econômico distribuiria a renda, e que o desenvolvimento, unifi-caria a Nação, fazendo dela uma república. Foi uma mentira, porque a elite que substituiu a nobreza conservou todos os privilégios e conti-nuou distante do povo, e o principal privilégio resguardado e causa de todos os demais é a educação de qualidade.

Essa realidade teria sido completamente diferente se o primeiro decre-to republicano, assinado pelo Marechal Deodoro da Fonseca em 15 de novembro de 1889, determinasse que a educação fosse igual para todos, ricos e pobres, brancos e negros, moradores de cidades grandes ou pequenas. E que, para dar exemplo, determinasse que os filhos dos dirigentes republicanos, eleitos pelo povo, estudassem nas escolas dos filhos do povo.

Em vez disso, ao longo da gestão de 38 presidentes, a escola brasileira mantém-se dividida: a dos ricos e a dos pobres. E os parlamentares e governantes republicanos mantiveram seus filhos nas exclusivas esco-las dos ricos, e ainda recebem dinheiro público para pagar parte da mensalidade.

É uma pena que os primeiros republicanos não tenham tomado essa decisão, mas ainda é tempo. República significa escola igual para to-

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dos. Sem desculpas para que os governantes fujam da escola pública do país que eles governam.

Seria moralmente correto implantar imediatamente essa decisão repu-blicana, mas politicamente isso é impossível, por causa do vício histó-rico dos privilégios. Reação idêntica aconteceu cada vez que se defen-deu a abolição da escravidão. A escravidão deixou o Brasil viciado, e obrigou a abolição a vir aos poucos, sempre com prazos para que seus donos se acostumassem ao que então parecia absurdo: acabar com a divisão entre escravos e livres.

Certamente, os líderes republicanos usarão todos os argumentos para não “condenar” os representantes do povo a colocar seus filhos na escola pública. Dirão que tira a liberdade do cidadão, mas ninguém é obrigado a ser candidato e a ter vida pública. Dirão que é inconstitu-cional, mas este é o melhor argumento para justificar a proposta: não é republicana a Constituição que impede que a escola do povo seja boa a ponto de receber os filhos dos eleitos pelo povo.

Além de fazerem um gesto republicano, do ponto de vista simbólico, os governantes certamente cuidarão melhor das escolas do povo, se forem obrigados à sua utilização.

A SUDENEJornal do Commercio – 14 de dezembro de 2007 – Publicado com o

título “O nome do Desenvolvimento”

A partir dos anos 1950 o Brasil começou a despertar para a vergonha da tragédia nacional devido à desigualdade entre regiões. E foi criada a Sudene e seus diversos instrumentos legais para promover inves-timentos no setor econômico. Buscava-se aumentar o PIB per capita da região nordestina com mais velocidade do que da região sudeste. Esqueceu-se da desigualdade educacional.

Nada caracteriza melhor a vergonha social brasileira do que a natura-lidade com que aceitamos haver “escola de rico” e “escola de pobre”.

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Em um País republicano decente, as pessoas podem ter roupa fina ou roupa simples, andar de carro ou de ônibus, morar em casa grande ou pequena, ter renda alta ou baixa, ser um rico proprietário ou pequeno proprietário. Mas não pode existir “saúde de rico” e “saúde de pobre”, nem “escola de rico” e “escola de pobre”, nem “justiça para o rico” e “justiça para o pobre”.

O centro da transformação do Brasil em uma república decente está na escola igual e de qualidade para todos. Essa deve ser a meta da-queles que, ao longo de anos, lutam como militantes de esquerda por um Brasil livre, justo, eficiente. Antes, lutavam pela estatização do capital, a desapropriação de propriedade, a igualdade de renda. Isso não é possível hoje, nem é eticamente necessário. A utopia da esquer-da, socialista ou não, é uma escola igual para todos. O que faz uma sociedade ética é o acesso igual à educação, independentemente da renda dos pais, do tamanho da cidade e da região onde mora cada criança. Para o Nordeste, essa visão é fundamental para a luta pela derrubada do muro que nos separa das regiões desenvolvidas.

Durante décadas, acreditamos que o papel da SUDENE era ajudar o setor privado a implantar indústrias, criar empregos, aumentar a ren-da. A educação de base nunca foi um objetivo da SUDENE e nem do desenvolvimentismo.

Quarenta anos depois, o resultado é a tragédia retratada na enorme diferença dos resultados educacionais entre as escolas do Nordeste e aquelas do Sudeste e do Sul. Mesmo com todos os resultados positivos que viessem de siderúrgicas, refinarias, estradas e portos, a Região continuaria atrasada se não houvesse uma revolução na educação das crianças nordestinas, que lhes assegurasse escolas tão boas quanto as escolas das demais regiões do Brasil. E hoje, sem essa revolução, fica cada vez mais difícil trazer esses empreendimentos econômicos mo-dernos, por falta de recursos humanos qualificados.

Se, cinquenta anos atrás, no lugar da Sudene, tivesse sido criada a SU-DENE – Superintendência para a Educação do Nordeste - e feito uma revolução educacional, com apenas uma parte dos recursos investidos em projetos industriais e agrícolas, certamente a distribuição de renda entre os estados brasileiros seria bem diferente. Ainda melhor seria a distribuição da renda entre pessoas dentro da região.

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Daqui para frente, essa opção será ainda mais determinante. O capital do futuro é o conhecimento. Não haverá desenvolvimento somente com capital financeiro para comprar máquinas e contratar os operá-rios desempregados que estejam na porta das fábricas. O capital in-vestido agora vai exigir mão-de-obra qualificada; não mais operários, e sim operadores, o que exige uma formação mais qualificada.

Enquanto convivermos com o trágico quadro educacional do Nordeste, a região não mudará sua situação de atraso. Por isso, o esforço desen-volvimentista deve dar prioridade absoluta à revolução educacional. Os estados e municípios nordestinos precisam definir como meta a verdadeira universalização da educação de base: não só na matrícula, mas também na frequência, na assistência, na permanência, na pro-moção e na aprendizagem até o final do ensino médio, em escolas iguais, com a máxima qualidade.

Pobre dicionárioO Globo – 19 de janeiro de 2008

As reformas propostas pelas esquerdas brasileiras sempre fizeram mais referência à economia e à política do que às transformações sociais diretas: saúde, moradia, água e saneamento, transporte público, edu-cação. A falha é da visão importada pela esquerda brasileira, segundo a qual o progresso seria consequência da economia, e a emancipação do povo e o atendimento das necessidades dos pobres seriam conse-quência do crescimento econômico.

Até o governo Lula, as reformas defendidas pelas esquerdas eram as mesmas: controlar o sistema financeiro, opor-se a todo tipo de privati-zação e ampliar a intervenção do Estado na economia, combater o FMI e o Plano Real, distribuir terra, mesmo que produtiva, e defender o fim de programas como a Bolsa-Escola, chamados de política compensa-tória. Mas quando assumiu o governo, a esquerda deu uma guinada: adotou integralmente a política econômica do governo Fernando Hen-rique e desvirtuou a Bolsa-Escola, transformado-a em Bolsa-Família; o discurso tornou-se conservador, e passou a defender o que chamamos

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de “políticas compensatórias” como carro-chefe e símbolo do discurso progressista. Trocou revolução por generosidade.

Abandonou as bandeiras anteriores e não adotou novas. Continuou sem perceber que a verdadeira revolução possível e necessária está na garantia de acesso de todos às escolas com igual qualidade. Vale a pena repetir: a revolução não está mais em garantir ao operário a propriedade do capital do patrão, mas sim em assegurar que o filho do operário estude na mesma escola que o filho do patrão.

Além de estar presa ao discurso economicista, nossa esquerda consi-dera esse sonho utópico, impossível. Prefere pequenos gestos políticos e econômicos a decisões fortes, com impacto direto na realidade so-cial. Nos anos 60, as forças progressistas defendiam mais o voto do analfabeto do que a erradicação do analfabetismo. Garantir voto ao analfabeto era um ato politicamente progressista; mas a erradicação do analfabetismo seria um gesto socialmente emancipador. Hoje, em vez de escola com qualidade para todos, uma política transformadora e emancipadora, prefere-se a política da generosidade, enquanto o crescimento econômico não chega a todos.

A esquerda já foi abolicionista, desenvolvimentista, socialista, comu-nista, reformista, nacionalista e internacionalista, mas nunca se assu-miu educacionista. Jamais viu a educação como vetor da transforma-ção social. Palavras como educacionismo e educacionista nem sequer constam dos dicionários.

A realidade socioeconômica de hoje exige a adoção destes termos: educacionismo, para definir o progresso e a transformação social com base em uma revolução na educação que assegure a máxima qualida-de, para todos; e educacionista, para definir aqueles que defendem a necessidade de uma revolução social pelo educacionismo. Educador é o especialista em educação que usa seu conhecimento para formar e transmitir conhecimento; educacionista é o militante político que luta para que todos os habitantes do País tenham educadores competentes em escolas com a máxima qualidade.

O desenvolvimentismo e o socialismo de hoje consistem no educa-cionismo: assegurar a mesma chance para todos, por meio de uma revolução educacional no País. Esse é o caminho possível.

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Mas faltam os educacionistas. Faltam os cidadãos, como foram os abo-licionistas, capazes de se unir, independentes de sigla partidária, para defender que a revolução é necessária, possível, e que o caminho é a escola igual para todos. Mas como criar uma consciência educacionis-ta, quando o educacionismo nem está nos dicionários?

Talvez a culpa seja de incompetentes lexicógrafos e seus pobres di-cionários, e não dos líderes sem imaginação que, há 50 anos, até defendem o voto dos analfabetos, mas pouco fazem pela erradicação do analfabetismo.

O Milagre do DesertoO tempo – 18 de abril de 2008

Vi o milagre saindo das areias do deserto da península arábica. O milagre está na decisão do Estado do Catar de criar uma base de sus-tentabilidade para a economia do País, quando o petróleo e o gás se esgotarem. O governo percebeu que, sem combustível fóssil, o deserto não terá outro recurso natural para dinamizar a economia. A indus-trialização chegaria tarde, não conseguiria concorrer com o resto do mundo, nem disporia dos recursos humanos necessários. Além disso, não é mais a montagem de produtos industriais que gera renda. Até os anos 50, para cada dez reais de renda, seis eram produzidos manual-mente. Hoje, apenas um em cada dez reais vem da produção manual. Nove vêm do trabalho chamado imaterial.

O Catar compreendeu que o aumento substancial do preço do petró-leo é ilusório. Primeiro, porque se baseia em um dólar que se desva-loriza até mais depressa do que a valorização do preço do barril de petróleo. Segundo, o governo do Catar assumiu que o petróleo é uma riqueza efêmera, e que o povo terá vida além das reservas. Enfim, decidiu preparar sua economia para o pós-petróleo e escolheu o prin-cipal e permanente recurso do futuro: o conhecimento.

Foi com essa visão estratégica de longo prazo que o governo deci-diu fazer o “milagre do deserto”. Criou, para isso, a Fundação Catar. Iniciada em 1995 pelo chefe de Estado, xeque Hamad Bin Khalifa Al

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Thani, dirigida desde então por sua esposa, Mozah Bint Nasser Al Mis-nad para promover uma rede de centros dedicados à educação, às pesquisas em ciências e tecnologias e ao bem-estar da comunidade.

A Fundação Catar já conseguiu implantar, em pleno deserto, onde está Doha, uma “cidade da educação”. Um conjunto de edificações mo-dernas, desenhadas por grandes arquitetos do mundo. Entre outras, já funcionam: a Escola de Arte e Design Industrial, da Universidade de Virgínia; a Faculdade de Medicina da Universidade de Cornell; a Escola de Engenharia Agrícola e Mecânica pela universidade do Texas; o Curso de Relações Internacionais e Ciências Políticas pela Universi-dade de Georgetown.

Para esses cursos, são selecionados alunos de qualquer parte do mun-do, desde que 40% sejam do Catar. Todos os cursos são pagos, mas a Fundação Catar garante bolsas integrais para todo aluno que neces-site.

Esse é o milagre do deserto do Catar, que pode ser reproduzido em outros países que queiram usar seus recursos com a mesma eficiência e a mesma visão.

Pobre ConstituiçãoO Globo – 8 de novembro de 2008,

publicado sob o título “Decência constitucional” Em 6 de abril de 2011, o STF decidiu que a Lei do Piso é constitucional,

mesmo assim muitos governadores e prefeitos continuam sem cumprir a lei, pagando salários abaixo do piso determinado.

No ano em que a Constituição Brasileira completou 20 anos, cinco governadores solicitaram ao Supremo Tribunal Federal declarar a in-constitucionalidade da Lei 11.738/2008, que define o Piso Nacional para os salários dos professores e determina que o professor reserve um terço de sua carga de trabalho para atividades de preparação de aulas, estudos, acompanhamento de alunos.

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A reação dos governadores é como se o Presidente de uma Província (como era chamado o governador da época) solicitasse, em 1888, a inconstitucionalidade da Lei Áurea, em nome da autonomia dos Esta-dos. Com uma diferença: naquela época, o “governador” teria razão de se preocupar com a desarticulação da economia e das finanças de sua província, em função da justa libertação dos escravos de um dia para o outro. Era correto o temor de que a economia, basicamente agrícola, ficaria sem mão-de-obra. A Lei Áurea foi uma decisão ética com um custo econômico, no primeiro momento. A Lei do Piso é uma decisão ética, mas, sobretudo, fundamental ao desenvolvimento social e econômico do Brasil.

Os governadores reclamam porque precisavam, na época, aumentar o Piso para apenas R$ 950 por mês, para a carga de trabalho de 40 horas semanais, e limitar o número de horas de aula a não mais de seis por dia. Salário ainda pequeno e carga horária de aulas ainda elevada.

Diferentemente de 1888, o custo da aplicação da Lei do Piso será es-calonado, e tanto menor quanto mais altos forem os salários atuais. Se, como no Rio Grande do Sul, a implantação da lei do Piso exigisse gastos educacionais elevados, os governadores deveriam buscar a re-organização dos orçamentos de seus estados para atender ao piso de R$ 950 e à carga de seis horas diárias. Se não fosse possível esta reor-ganização, por limitações de recursos orçamentários, deveriam liderar o povo, especialmente os professores e os pais de alunos, para exigir do Governo Federal os recursos adicionais necessários, como está pre-visto na própria Lei 11.738. E se não recebessem resposta satisfatória, deveriam entregar as escolas do Rio Grande do Sul à administração da União, federalizando-as, como se faz com universidades e escolas técnicas.

Isto aconteceu com os bancos: para salvá-los, os governos estatizaram--nos, diretamente ou de forma disfarçada. Mas para salvar as escolas, pede-se a inconstitucionalidade da lei. As crianças destes estados me-recem, no mínimo, o mesmo tratamento que os bancos.

Se um estado brasileiro não tivesse recursos, a solução não estaria em considerar inconstitucional uma determinação que já deveria estar em vigor há décadas. A inconstitucionalidade é um recurso inadmissível:

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todos os estados e municípios aceitam o salário mínimo decidido pelo governo federal, aceitam pisos para diversas categorias, pagam aos seus deputados e juízes salários definidos por leis federais; mas quan-do se trata do professor, para não cumprir a lei, recorre-se à autono-mia de cada unidade da federação.

No 20º aniversário da Constituição, os governadores desmoralizam a Carta Magna usando-a como barreira para não atender às necessida-des da educação de seus estados. Em nome da autonomia estadual, tenta-se tirar a obrigação do Brasil de cuidar de suas crianças.

É triste ver que o século XXI não chegou para muitos dos líderes na-cionais, que não entendem o papel da educação no mundo atual, no qual o principal capital é o conhecimento. Isso se explica pelo fato de – parlamentares, governadores e prefeitos – termos escolas privadas para nossos filhos. Por isso, seria tão importante aprovar o Projeto de Lei que está em tramitação no Senado e considera que, sete anos de-pois de sancionado, será considerado falta de decoro os políticos elei-tos não colocarem seus filhos na escola dos eleitores: a escola pública. Mas esse projeto certamente será considerado inconstitucional, ainda durante a tramitação.

Pobre Constituição, na qual a decência é considerada inconstitucional.

Copa do futuro Jornal do Commercio – 19 fevereiro de 2010

Quando a ECO-92 foi realizada no Rio de Janeiro, não tínhamos cons-ciência da dimensão da crise ecológica: havia um clima de euforia econômica no mundo capitalista, com o fim do império soviético e o crescimento propiciado pelo neoliberalismo. A reunião estava contra a corrente. Hoje, o mundo se encontra empobrecido pelos efeitos da crise econômica de 2008, indignado com a irresponsável ganância do sistema financeiro, com a convicção de que o liberalismo não é capaz de administrar a economia e, acima de tudo, assustado diante do risco da destruição ecológica.

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Nesse cenário, o Rio voltará a sediar o maior evento político deste iní-cio de século: a RIO+20, vinte anos depois da grande cúpula de 1992. Os chefes de Estado e de Governo do mundo inteiro deverão debater o futuro da humanidade. A RIO+20 será um momento especial, e a cidade pode ser o ponto de partida para um novo rumo civilizatório.

Por isso, como País sede da reunião, deveríamos incentivar propos-tas para orientar o debate, apresentar rumos, conduzir negociações, formular um projeto alternativo para desenvolvimento no mundo. En-quanto brasileiros estão presos na euforia de sediar a Copa em 2014 e os Jogos Olímpicos em 2016, muitas pessoas no mundo já estão pensando na Rio+20, em 2014. Infelizmente, ainda não vemos no Brasil um movimento nesse sentido - os intelectuais não se mostram ligados, os políticos da oposição e da situação não falam no assunto, os candidatos à Presidência talvez nem tenham tomado conhecimento da Cúpula.

Os presidentes e primeiros-ministros podem definir como o mundo trocará a civilização do alto consumo energético, movido a combustí-vel fóssil, por uma civilização de menor uso de energia, com base em combustíveis não fósseis. O caminho para essa troca seria uma política fiscal que penalizasse o consumo de petróleo e gás e incentivasse as novas fontes alternativas de energia.

Com os recursos originários desta política fiscal mundial, seria possível criar um Fundo para gerar empregos e abolir a pobreza. Ainda mais empregos podem ser criados para gerar combustível e energias alter-nativas do que aqueles criados pela indústria petrolífera.

As soluções deverão ser locais, mas orientadas por regras ético-jurídi-cas internacionais, definidas a partir da RIO+20, para que o desenvol-vimento siga novo rumo. Além disso, os governantes podem refazer, para o século XXI, o que foi feito por seus antecessores depois da II Guerra. Aquele foi o momento de reconstruir a economia destroçada; agora é o momento de enfrentar a destruição ambiental, a desigual-dade social crescente e a ineficiência do sistema econômico e social. No lugar do Plano Marshall, o mundo precisa de uma revolução de mentalidade, para orientar os propósitos civilizatórios, os padrões de consumo e de energia, e assegurar igualdade de oportunidades a to-dos os habitantes do Planeta. A garantia de uma escola de qualidade

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para toda criança – não importando a nacionalidade, a renda dos pais, o PIB do País, com conteúdo libertário, que respeite de todas as cultu-ras, dê conhecimento eficiente para produzir e obter emprego – levará a uma reorientação que permitirá enfrentar os problemas da moder-nidade: desemprego, baixa renda, pobreza, terrorismo internacional, desequilíbrio ecológico.

Isso demandará um esforço muito mais amplo e menos custoso do que aquele de hospedar a Copa e as Olimpíadas, e será também um even-to de consequências muito maiores do que a Copa e as Olimpíadas. Estas duas oferecem taça e medalhas. A Rio+20 pode nos oferecer um novo futuro.

Chuvas, chamas e luz O Globo – 12 de fevereiro de 2011

Dores não têm escala de medição. Mas algumas são mais profundas, outras mais extensas.

Nada se compara em profundidade, à dor de encontrar soterrado o corpo sem vida de um filho. A extensão dessa dor se amplia, como vi-mos nas últimas semanas na região serrana do Rio de Janeiro, quando o número de mortos chega a centenas numa mesma cidade. Ainda que em menor escala, é impossível esquecer a dor dos que viram seus pertences levados morro abaixo pela força enraivecida das chuvas.

Muito diferente é a dor, sem choro, mas socialmente extensa, daqueles que percebem a tragédia, também nestes dias, da volta às aulas no Brasil. As crianças vão até com alegria, por causa do reencontro com amigos, pela algazarra da convivência. Mas olhando com mais cuida-do, percebemos que nesse imenso movimento - quase 53 milhões de alunos, outros 50 milhões de pais, 2 milhões de professores de quase 200 mil escolas - há um processo de soterramento e incineração do futuro.

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Historicamente, nossas crianças têm sido matriculadas em escolas des-preparadas para fazer face às exigências da modernidade. Apesar dos esforços recentes, 3%, quase 2 milhões, de nossas crianças não ingres-sarão na escola este ano. Dos que se matricularam e voltaram às aulas esta semana, a maior parte não frequentará a escola diariamente, ou não assistirá todas as aulas, ou não permanecerá na escola por toda a sua infância e adolescência. E dos que superarem todas essas falhas, poucos acumularão o conhecimento necessário para enfrentar os de-safios do futuro. Não se deslumbrarão com a beleza das artes; não ficarão capazes de continuar aprendendo ao longo da vida; não rece-berão o conhecimento técnico-científico necessário para construir uma sociedade mais eficiente, sintonizada com a modernidade do mundo; não terão capacidade de se indignar com injustiças, o compromisso de lutar por um Brasil melhor; a sensibilidade cidadã para uma convivên-cia social respeitosa e democrática;

Há ainda o agravante de que o conhecimento se distribuirá de forma desigual, transformando a escola no berço da desigualdade, e não na escada para a igualdade.

Hoje não sentimos a dor dessa perda porque nos acostumamos a essa tragédia indolor, sem chuvas, sem chamas, sem choros. Mas amanhã, se mantido o mesmo ritmo, estaremos condenados a viver com as con-sequências do nosso descaso para com a educação: desigualdade, violência, pobreza, economia atrasada – ainda que potente – e até insegurança nas encostas de morros e barracões de escolas de samba.

Com sua repetição secular, a tragédia da deseducação deixa de ser percebida. Mas quem mergulha no futuro com um sentimento patri-ótico, atento ao que está por vir no resto do mundo, sabe que para construirmos o amanhã será preciso fazer hoje revolução na educa-ção. Para quem tem essa consciência, a dor histórica não tem a pro-fundidade da perda de entes queridos, mas é grande pela extensão de suas consequências: o risco do futuro comprometido.

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Ministério da Educação de BaseJornal do Commercio – 14 outubro de 2011

Durante os meses em que fui ministro da Educação do presidente Lula recebi mais de 350 parlamentares em audiências. Apenas um fez pedi-do relacionado à educação fundamental. Na verdade, o MEC é um Mi-nistério do Ensino Superior e o ministro é forçado a limitar sua ação e a comemorar seus feitos nesta área. A execução das ações educacionais para os 50 milhões de alunos recai sobre os prefeitos e governadores.

Os governos FHC e Lula têm o que comemorar sobre o ensino supe-rior. O primeiro, o aumento no número de alunos no sistema privado; o segundo, o apoio às universidades estatais federais, o financiamento das mensalidades dos alunos nas particulares, e novas escolas técnicas.

Graças ao programa Bolsa Escola foi possível avançar na universaliza-ção da matrícula, mas não na frequência, nem na assistência, nem na permanência, ainda menos no aprendizado. Lula sancionou a lei do Senado para o Piso Salarial do Professor, mas o valor é mínimo e até hoje não é cumprido. Houve várias greves nos últimos meses, mas o MEC não tomou conhecimento delas. A 6ª economia do mundo conti-nua em 88º lugar em educação.

O Brasil precisa de um Ministério que se dedique à educação de base, como fez com a Saúde nos anos 30 e, mais recente com a Cultura e o Esporte que eram do MEC, e tantos outros ministérios especializados criados recentemente. Em diversos países, além do Ministério da Edu-cação de Base, há outro dedicado apenas ao ensino superior. No caso do Brasil, seria difícil justificar mais um. Por isso, o caminho pode ser concentrar o MEC na educação de base e migrar a Secretaria de Ensi-no Superior do MEC para o atual MCTI, que passaria a ser o Ministério da Ciência, Tecnologia, Ensino Superior e Inovação.

A principal justificativa para isso é político-administrativa. O ministro dedicado apenas à educação de base terá de concentrar sua atenção nesse setor, tanto nos erros quanto nos acertos. Hoje o ministro apenas avalia, com o IDEB e o ENEM, e coloca toda a culpa do fracasso edu-

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cacional nos prefeitos e governadores. Por exemplo, ninguém assume a responsabilidade do analfabetismo e do atraso educacional.

As crianças brasileiras merecem um ministério próprio para sua educa-ção. Além da razão político-administrativa há também justificativa do ponto de vista da lógica pedagógica. Colocando as universidades no MCTI será possível levar adiante o esforço para criar o Serviço Nacio-nal do Conhecimento.

Para compatibilizar o papel das universidades na formação de profes-sores será importante criar Conselhos Interministeriais no Ministério da Ciência, Tecnologia, Ensino Superior e Inovação, com o MEC da Educação de Base e os Ministérios da Saúde, Trabalho e outros.

Nenhum presidente sozinho muda radicalmente a educação de um país, mas pode e deve dar passos decisivos nessa direção. A responsa-bilidade da Educação de Base em um ministério próprio é um desses passos. Importante para transformar o setor que mais emperra o avan-ço civilizatório do Brasil, tanto na transformação do nosso país em uma economia baseada no conhecimento, quanto na busca da igualdade social por meio da igualdade no acesso à educação.

Outro PNE ou revoluçãoJornal do Commercio – 09 de dezembro de 2011

Em 9 de janeiro de 2001, o então presidente Fernando Henrique Car-doso sancionou o I Plano Nacional de Educação (PNE), vetando o ar-tigo que determinava investimento de 7% do PIB em educação. Lula e todo o PT protestaram fortemente e uma grande campanha foi feita para que este veto fosse derrubado. Mas, ao chegar ao poder, Lula se negou a derrubar o veto, e o PT se calou por nove anos.

Agora, na discussão do II PNE, o assunto volta à tona, elevando os 7% para 10%. É possível imaginar que, desta vez, a presidente não vetará o artigo. Porém, é igualmente possível imaginar que nada mudará na educação de base se este artigo for aprovado, elevando os gastos com

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educação, sem uma reestruturação de todo o sistema educacional. De nada adianta elevar gastos sem prever como o dinheiro será gasto. E as discussões sobre o PNE pouco falam em “como”, apenas em “quan-to”. Gastar 8% ou 10% do PIB no atual sistema educacional será jogar dinheiro fora. Pior ainda, inviabilizará correções no futuro.

Primeiro, porque a força do ensino superior fará com que as universi-dades se apropriem de parte substancial desses recursos. E sabemos que o ensino superior não será de qualidade sem boa educação de base. Hoje, o governo já é obrigado a fechar faculdades porque não conseguem qualidade mínima que a justifique.

Segundo, porque sem uma mudança na estrutura educacional, au-mentar os gastos na educação de base não gerará muitos efeitos posi-tivos. Sem salários dignos para os professores, não há como melhorar a educação de base, mas dobrar ou triplicar o salário dos professores, sem mudar o plano de cargos e salários, sem uma seleção mais rigoro-sa e uma estabilidade responsável, sem escolas bem equipadas e sem horário integral, não trará efeitos na qualidade.

Foi em parte pensando nisso que preparei o livro “A Revolução Repu-blicana na Educação”, livremente acessado pelo endereço digital www.cristovam.org.br. Ao invés de um plano tímido, o livro propõe uma re-volução. Na base dessa revolução está a federalização da educação de base, com os professores sendo selecionados nacionalmente, com um salário de R$ 9 mil por mês, com dedicação exclusiva e estabilidade responsável, sujeita a avaliações periódicas. Estes professores seriam lotados nas mesmas escolas. Todas as escolas seriam federais, com prédios bonitos, bem equipados e com jornadas em horário integral. A revolução seria feita por cidade. Em 20 anos, em todo o Brasil.

Esta seria uma Revolução, não apenas um novo PNE, como o anterior, que não deixou marcas.

O custo desta revolução na Educação de Base, ao final dos 20 anos, seria de 6,4% do PIB.

Ao invés de concentrar a luta no mais fácil, “quanto gastar”, quem re-almente deseja mudar a educação deve se concentrar no “que e como fazer”.

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O pior é que se forem autorizados os gastos elevados sem mudar a estrutura ficará impossível, no futuro, propor as mudanças estruturais, porque, viciados nos recursos fartos sem reforma, haverá resistência a mudanças.

O Brasil precisa de uma revolução educacional, e não apenas de mais um Plano Nacional de Educação.

O espírito da bandeiraO Globo – 04 de agosto de 2007

Raros países têm texto escrito em suas bandeiras. Fazemos parte des-tes raros porque, em 1889, os republicanos desenharam a nova ban-deira do Brasil e nela escreveram “Ordem e Progresso”. Discutiram longamente a posição correta onde colocar cada estrela, sem perceber a insensibilidade do ato de escrever um texto na bandeira de um país com 65% da população analfabeta. Apesar de republicanos, escolhe-ram uma bandeira para ser reconhecida por apenas 35% dos adultos, 6,3 milhões de brasileiros deixaram de ser considerados cidadãos, fi-caram sem bandeira.

No começo do século XXI, a taxa de analfabetismo caiu para 13,6%, mas o número absoluto quase triplicou: 16 milhões de brasileiros são incapazes de reconhecer a bandeira brasileira. Para eles, é o mesmo se as letras forem misturadas aleatoriamente ou trouxerem outra men-sagem.

Se, desde então, as letras dissessem “Educação é Progresso”, certa-mente hoje os brasileiros já seriam capazes de ler e escrever, e de re-conhecer a bandeira nacional. Todos teriam concluído o Ensino Médio com qualidade, milhões estariam em boas universidades e o Brasil estaria na vanguarda científica e tecnológica. Já teríamos derrubado o muro da desigualdade, que nos divide socialmente; e o muro do atra-so, que nos separa dos países modernos.

O lema “Educação é Progresso” teria criado uma consciência nacional pela educação e derrubado a indiferença com que a educação é tra-

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tada na nossa república: os pobres pensando que escola de qualidade é direito exclusivo dos filhos dos ricos, e os ricos achando que não é preciso dar boa escola aos filhos dos pobres. Ficam para trás os filhos dos pobres, sem escola de qualidade, e fica para trás o País, em eterno atraso civilizatório, por falta de educação de qualidade para todos.

Mas os republicanos brasileiros eram parte de uma elite que não res-peitava o povo pobre, recém-liberto da escravidão. Para eles, o “pro-gresso” era para poucos, a “ordem” era para deixar as massas exclu-ídas, dos benefícios. A saída encontrada para garantir progresso com exclusão social sem uso da violência foi excluir os pobres do acesso à educação. E assim se faz há mais de um século, sem que se aponte o único caminho para a emancipação do povo e do País: a escola igual para todas as crianças.

Isso não interessa aos que desejam manter seus privilégios. A elite que escreveu “ordem e progresso” não vai escrever “educação é progres-so”. Só a mobilização da população vai direcionar os recursos nacio-nais para a construção de uma Nação com educação de qualidade para todos. Escrever “Educação é Progresso” no lugar do velho lema da bandeira é uma provocação, para despertar a consciência nacional, especialmente das massas excluídas pela falta de acesso à educação de qualidade. Não se trata de mudar a bandeira, mas de revigorar seu espírito, para que ela mobilize a Nação pelo progresso para todos.

Se você quiser ajudar essa luta pela igualdade da educação, divulgue a bandeira com seu novo espírito. Tente convencer os pobres de que isso é possível, e os ricos de que isso é preciso. Porque educação é progresso, e só educação é progresso. Convença os outros de que a consciência e a mobilização do povo são as armas para fazer uma revolução que assegure educação com a mesma qualidade tanto para os filhos de ricos quanto para os filhos de pobres. Essa revolução pela educação igual para todos levará à justiça e à eficiência, assegurando a toda criança brasileira, desde o seu nascimento, a mesma chance de construir o seu futuro e o futuro do Brasil.

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“Não sou Brasil” O Globo – 29 de setembro de 2007

A Universidade Zumbi dos Palmares, em São Paulo, fundada e dirigida pelo Reitor José Vicente, tem a maioria dos alunos negros, como se houvesse uma cota para brancos. Tem boas instalações, oferece cursos de qualidade. A primeira impressão quando entramos, e vemos deze-nas de jovens negros, é de que não estamos no Brasil, mas na África. No entanto, aquela é a cara do Brasil. Deveríamos estranhar encontrar o contrário com o que nos acostumamos: apenas brancos nos bancos universitários. Mas não estranhamos o fato de que as boas universi-dades brasileiras são território de brancos, como eram as da África do Sul. Estranhamos quando entramos em uma universidade com maioria negra, como estranharíamos se entrássemos em uma prisão e a maio-ria fosse branca.

Esse estranho estranhamento explica por que um estudante da Uni-versidade Zumbi dos Palmares desabafou ao declarar: “Eu não sou Brasil”. “Vocês são um Brasil, eu sou outro. Não sou o Brasil dos ricos, dos brancos, do Senado, da Câmara, do Governo, da Justiça. Não sou esse Brasil que me ignora. Fiz muito esforço para chegar à universida-de. Vou conseguir um diploma, mas de que ele vai adiantar, se eu não tiver emprego? E eu não terei um. Porque eu não sou Brasil.”

Quando um jovem afirma que não é Brasil quer dizer: “Vocês são Bra-sil; eu não. Não sou esse Brasil que está no Congresso alienado, nas campanhas publicitárias do Poder Executivo ou na impunidade alimen-tada pela Justiça.”

Mas se ele não assumir sua nacionalidade, não terá futuro. Mesmo que fique rico e tranquilo, será ameaçado, assaltado, sequestrado. Mesmo que conquiste e consiga seu diploma e um emprego, o Brasil não será seu, se ele viver cercado de pessoas que não aprenderam a ler, que vivem na miséria, excluídos da modernidade. Ou o Brasil é bom para todos, ou não será bom para ninguém.

Aquele jovem precisa entender que ele é Brasil, mesmo que não quei-ra. Ainda que decida partir, emigrar; aonde for, será Brasil. Por isso,

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não deve desistir da luta para mudar o Brasil. Porque se ele não o fizer, não terá futuro sozinho.

Mas seu desabafo deve servir de alerta. Aquele jovem pode não retra-tar o País em sua totalidade, mas representa uma parcela significativa da população, que não se sente parte do Brasil oficial - o País do Go-verno, do Congresso, do Judiciário. Que não vê relação entre o que se diz e se faz no Brasil oficial e no Brasil de cada um, nem vê no Brasil oficial a solução para os problemas do Brasil real. Como se, dividido pelo individualismo, corporativismo, oficialismo, Povo e Estado, o Brasil transmitisse aos jovens a idéia de que eles não são brasileiros. Essa divisão destruirá o País.

O grito daquele jovem deve despertar o Brasil para a necessidade de mudar a maneira como os governantes pensam, falam, agem. Ou des-pertam, ou não haverá futuro. É preciso ouvir as pessoas que estão fora do Brasil oficial, indignadas, descontentes, frustradas e, acima de tudo, perdidas. Não confiam no País, não conhecem seus líderes, ou pior, não têm líderes.

O Brasil está empacado. Pode crescer na economia, no número de universitários, mas não será uma Nação civilizada, se não acabar com o fosso que nos divide. Aquele jovem não estaria na universidade se não fosse a evolução por que o Brasil passou nos últimos anos. Mas para ter futuro não basta estar na universidade, se ela está rodeada pela exclusão educacional de milhões.

Não haverá futuro para nenhum brasileiro, enquanto um jovem olhar nos olhos de quem lhe escuta e disser que ele não é Brasil.

Quatro aniversáriosCorreio Braziliense – 25 de julho de 2009

Comemoramos dois aniversários no mesmo dia: 16 de julho. Nos Esta-dos Unidos, os 40 anos da partida dos primeiros humanos em direção à Lua; no Brasil, o primeiro aniversário da sanção da Lei do Piso Sala-rial Nacional para os professores. Ao pisar o solo lunar, o primeiro as-

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tronauta disse que dava um pequeno passo para ele, mas um grande salto para a humanidade. De fato, para aquele passo ser dado, foram necessários séculos de educação e pesquisas científicas e tecnológicas.

Foram a ciência e a tecnologia norte-americanas que levaram os pri-meiros homens à Lua, em consequência de séculos de investimentos em educação. Enquanto os EUA investiam em educação desde os pri-meiros colonizadores, o Brasil seguiu na direção contrária. Quaren-ta anos depois da conquista da Lua e das viagens espaciais além do sistema solar, o Brasil ainda não tem suas crianças em escolas com a qualidade necessária. Em consequência, não tem um nível científico e tecnológico capaz de concorrer internacionalmente.

Só em 2008, décadas depois da conquista da Lua, o governo brasileiro criou um piso salarial para os professores e, mesmo assim, esse piso ainda não é cumprido, porque cinco governadores entraram na Justiça para que fosse declarado inconstitucional.

Pouco se fez pela educação no País desde a colonização. Aumentou--se o número de matrículas - mas não de frequência, conclusão, as-sistência, aprendizado e permanência. Foram criados fundos como o FUNDEF e o FUNDEB, mas o investimento anual na escola pública con-tinua de R$ 1,5 mil por aluno. Criou-se, há um ano, o piso, mas com o valor de R$ 950, quando deveria ser entre R$ 3 mil a R$ 4 mil, por mês. Foram construídas escolas, mas elas não foram equipadas — 20 mil delas nem luz e água têm. Nesses 40 anos, a economia brasilei-ra saltou de um País pobre a uma potência com R$ 2,889 trilhões de renda nacional, mas o Brasil continuou como um dos últimos países do mundo em educação.

Nesse ritmo, vamos comemorar os 100 anos da chegada do homem à Lua antes de termos todas as nossas crianças em escolas bonitas, bem equipadas, que funcionem em horário integral e os professores entre as mais bem remuneradas e respeitadas categorias profissionais.

Sem o piso satisfatório, o bom salário e a boa formação para os pro-fessores, não será possível a escola com qualidade. E, sem isso, não vamos ter um bom sistema universitário e, consequentemente, não teremos a ciência e a tecnologia de que o País precisa para alcançar o desenvolvimento.

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Trinta anos atrás, a Índia e a China estavam em posição inferior ao Brasil no que se refere ao potencial econômico e às possibilidades de desenvolvimento científico e tecnológico. Hoje, a China já colocou homens no espaço e a Índia já enviou uma nave não tripulada até a órbita da Lua.

Ficamos para trás porque até hoje não manifestamos com vigor a von-tade de fazer uma revolução na educação de base e fazer os investi-mentos necessários em ciência e tecnologia. Nesse ritmo, vamos conti-nuar apenas assistindo, de longe, às comemorações dos outros países que, por terem investido em educação, conquistaram a Lua, no sentido literal e no sentido metafórico.

Futuro BonitoO Globo – 13 de março de 2010

Foram os poetas Caetano e Gil que disseram “o Haiti é aqui” para chamar atenção para a pobreza que existe em nosso País. Mas aqui também há cenários de riqueza que nos permitem dizer “a Finlândia é aqui”. Na educação, temos escolas parecidas com as dos mais pobres países, e experiências que nos lembram os mais ricos.

É possível dizer que “a Finlândia é aqui”, e está no bairro de Jacare-paguá, no Rio de Janeiro, mais exatamente na Escola SESC de Ensi-no Médio. Cada vez que a visito, sinto-me como se estivesse fora do Brasil. Mais do que horário integral, o regime é residencial. Os alunos moram no campus da escola. As aulas são das 8h às 12h, depois de um rico café da manhã, com intervalo às 10h para um lanche; o al-moço - de ótima qualidade -, entre 12h às 13h; e entre 13h e 13h45, os estudantes se reúnem com seu orientador. Têm aulas das 13h45 às 17h, com intervalo de 20 minutos para um lanche. Das 17h às 20h30, fazem oficinas de idiomas, artes, esportes, debates sobre atualidade e jantar. Entre 20h30 e 22h, é tempo obrigatório de estudos: dever de casa, leitura livre, assistir ao noticiário com orientação de professor e outras atividades; das 22h às 22h30, mais um lanche e às 22h30 as luzes são apagadas.

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Os professores têm salário ao redor de R$ 9 mil e apartamento dentro do campus, para viver com a família. Mas exige-se deles dedicação exclusiva, integral e permanente aos alunos. A seleção é rigorosa, com base no currículo, na experiência e principalmente na manifestação de entusiasmo e envolvimento. São 80 professores para turmas de, no máximo, 15 alunos. Não é surpresa que alunos e professores constitu-am uma espécie de grande família envolvida com alegria, competên-cia e rigor na educação de todos.

As avaliações são constantes e rigorosas por disciplina, por temas mul-tidisciplinares, por apresentações orais e “pelo olho” - o sentimento do empenho e do potencial do aluno, avaliado por equipes de professo-res. E os professores avaliados entre eles e pela direção pedagógica.

Dificilmente se encontram instalações melhores em qualquer escola de qualquer parte do mundo, sejam públicas ou particulares. Em breve, a biblioteca terá 40 mil exemplares. Piscina, quadras, teatro, cinemateca compõem um conjunto arquitetônico bonito e confortável - com todos os equipamentos necessários para uma boa educação. O alojamento para cada três alunos é aconchegante, moderno e confortável.

Os alunos são escolhidos no Brasil inteiro, com vagas garantidas para todos os Estados e o DF, sendo 80% necessariamente de famílias com renda abaixo de cinco salários mínimos. Na escola, não há diferença entre esses e os outros 20% que possuem renda maior. Roupas, alo-jamentos, comida e aulas são iguais - tudo sem custo para o aluno e sua família. A escola elimina a desigualdade dentro de si e oferece as mesmas oportunidades, quebrando a desigualdade social de seus alu-nos. Podem vir de classes sociais diferentes, mas recebem as mesmas oportunidades para a construção do futuro de cada um.

Ao longo de suas vidas, esses 500 meninos e meninas darão ao Brasil um retorno centenas de vezes maior do que o custo desses três anos de formação: todos bem formados, com um ofício e certamente cami-nhando para a aprovação no vestibular de uma boa universidade. Ou seja, o custo da formação é muito menor do que o de não fazê-la.Além do mais, ninguém pergunta quanto custam Olimpíadas, Copa, hidroelétricas, portos, estradas. Mas o SESC manifesta-se muito feliz com esse investimento, sabendo que mudará radical e definitivamente a vida desses jovens, e mudará um pouco o Brasil inteiro.

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A Escola SESC mostra o que é uma revolução na educação brasileira e como é possível fazê-la, se pararmos de perguntar quanto ela vai cus-tar e começarmos a perguntar quanto vem custando não fazer escolas como ela em todo o País.

Corcovado, Pão de Açúcar, Maracanã são pontos visíveis da beleza fí-sica do Rio de Janeiro. Mas Jacarepaguá, ao lado da Cidade de Deus, marca a paisagem do futuro que desejamos para todo o Brasil. Porque, se quisermos ver a cara do futuro de um País, basta olhar sua escola pública no presente. A Escola SESC mostra que, ao menos para 170 alunos cada ano, o futuro é bonito.

Royalties para o FuturoJornal do Commercio – 02 de abril de 2010

Houve um tempo em que os portugueses eram os donos do Brasil. Com o desenvolvimento e a democracia, os brasileiros começaram a se sentir os donos do País. Pura ilusão. O conjunto dos brasileiros não são os donos do Brasil, porque o País está dividido entre os grupos que o compõem. Um exemplo é a ânsia dos consumidores atuais para queimarmos o mais rapidamente possível todo o petróleo disponível sob o solo brasileiro; e a disputa entre Petrobrás, Estados e Municípios para se apropriarem dos lucros decorrentes dessa exploração.

É como se a República Brasileira fosse dividida entre cada segmento da sociedade atual, e entre os brasileiros de hoje e os de amanhã. Como se o Brasil fosse cheio de donos. Talvez a maior deformação na apro-priação do Brasil seja a maneira pela qual a atual geração se apropria dos nossos recursos, depredando-os sem nenhuma consideração pelas gerações futuras. O que foi feito com o ouro, nos séculos XVII e XVIII, estamos fazendo agora com a água – poluindo os rios –, com a renda nacional – consumindo-a no presente, em vez de poupá-la –, com o petróleo e seus royalties – queimados e gastos em atividades que não deixarão resultados permanentes.

O Brasil chegou ao século XXI repartido em grupos, sem um sentimen-to geral, sem visão de longo prazo nem patriotismo.

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Isso dificulta o enfrentamento de todos nossos problemas. Cada Uni-dade da Federação defende seu interesse específico e cada governo quer gastar todo dinheiro no imediatismo do seu mandato: na tomada de decisões, as futuras gerações brasileiras não existem.

Quando, há 50 anos, defendíamos que “Petróleo é Nosso”, a ideia era reparti-lo entre os brasileiros daquele tempo, cada um se apropriando da maior parcela possível. O certo teria sido dizer “O petróleo é do futuro, das crianças do Brasil”. Se pensássemos assim, não estaríamos discutindo qual Estado ou Município deve receber mais royalties, e sim como investi-los para construir um Brasil melhor. Fosse essa a postura adotada, e todos os recursos iriam para cada criança, vinculados ao investimento na educação, cada Município e Estado recebendo propor-cionalmente ao número de crianças na escola.

Aborto InvisívelJornal do Commercio - 02 de Novembro de 2007

O Brasil gasta bilhões de dólares para descobrir poços de petróleo e explorá-los, mesmo sabendo que cada um deles provoca a maior das violências já cometidas contra a humanidade: o aquecimento global e a destruição da vida no Planeta. Nem por isso, alguém propõe abortar um novo poço de petróleo: tapá-lo para reduzir a violência ecológica. Mas o aborto de crianças é proposto como forma de reduzir a violência urbana. Não como um direito de escolha da mulher.

Aceitar a idéia de que o aborto em mulheres pobres reduziria a crimi-nalidade abre margem a discussões muito graves. Por exemplo, se um aborto pode ajudar a reduzir a criminalidade; assassinar legalmente, por meio da pena de morte, aqueles que já cometeram crimes poderia ser também um instrumento justificado. A possibilidade de aborto nos bairros onde a violência é resultado do tráfico pode justificar o aborto nos bairros onde estão os consumidores das drogas. Afinal, a crimina-lidade do tráfico tem duas pontas: os que nasceriam para traficar e os que nasceriam para consumir.

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O aborto como mecanismo de redução da criminalidade aborta o enfrentamento correto dos problemas brasileiros. Não permite ver o aborto legal invisível, permanente e sistemático que existe neste País: o aborto da inteligência. Provocado pela omissão pública que impede os cérebros de nascerem. O corpo nasce na maternidade, o cérebro nasce na escola. Dos 185 milhões de brasileiros, pelo menos 155 mi-lhões de cérebros já foram ou serão abortados, impedidos de receber uma boa educação. Aborto que já existe há cinco séculos no Brasil e ameaça o futuro do nosso País, porque essa é a grande energia que teríamos disponível, se não for abortada.

Mas tentando reduzir a violência, alguns falam em abrir clínicas legais de aborto para que não nasçam crianças, sem falar em abrir escolas de qualidade para evitar o aborto de cérebros.

Isso está paralisando a economia. A economia crescerá cada vez me-nos por falta de cérebros que façam funcionar a nova economia ba-seada no conhecimento. Além disso, impede os jovens sem educação de terem oportunidade de emprego e leva-os à tentação da crimina-lidade como forma de sobrevivência. O jornal O Globo do dia 27/10 mostrou que, de um milhão e meio de postos de trabalho, apenas 720 mil foram preenchidos; 780 mil continuam vagos por falta de pessoal qualificado para exercer as atividades.

É a falta de oportunidade, o aborto cerebral dos nossos jovens, que faz com que muitos deles terminem na criminalidade, por falta de al-ternativa.

Daqui a poucos anos, não haverá mais poço com petróleo. Precisa-remos de capacidade intelectual para inventar fontes alternativas de energia que substituam o petróleo. Mas, de uma maneira estúpida, exploramos todos os poços de petróleo na maior velocidade possível, apesar da violência que a queima desses poços provoca, e propomos tapar o nascimento de nossas crianças, apesar de nosso futuro estar nesse maravilhoso poço de energia que é a massa cinzenta dos cére-bros de nossos habitantes.

Talvez, essas lógicas absurdas que orientam a política brasileira sejam a maior prova do sistemático aborto da inteligência chegando aos que fazem política no Brasil.

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A fábrica da violênciaJornal do Commercio – 10 de dezembro de 2010

O Brasil inventou o jeitinho e deslumbrou-se com ele. A cada proble-ma mostramos nossa incrível capacidade de ajustarmos ao que funcio-na mal, com pequenas mudanças. Mesmo quando se tenta soluções radicais, elas são adaptadas e se tornam jeitinhos. Foi assim com a idéia da Bolsa Escola pela qual se pagaria às mães de famílias pobres para que seus filhos estudassem em escolas com a máxima qualidade. Ao mesmo tempo em que se pagaria às mães, se faria uma revolução nas escolas. Esta concepção transformadora foi ajustada para ape-nas pagar a Bolsa Família, independente da qualidade da escola e da freqüência as aulas. No lugar da solução, preferimos um jeitinho para que a família pudesse comer, mesmo pobre sem uma saída para sua pobreza. As campanhas políticas mostram esta preferência pelo jeitinho. No lugar da solução para a pobreza, os candidatos discutem o valor da Bolsa, a possibilidade de pagar um 13º valor por ano. Ne-nhum candidato se comprometeu com um prazo para fazer a Bolsa Família ficar desnecessária, por meio da superação da pobreza. Na luta entre solução e jeitinho, o segundo sempre é preferido.

O mesmo está acontecendo com o problema da violência. Enfrenta-mos com o jeitinho das balas, das cadeias, dos helicópteros e tanques, porque se olha para a violência como um fato que surge naturalmente, sem identificar a sua causa primeira e sem enfrentá-la para resolver o problema.

Se analisarmos a origem da violência, vamos ver que a nossa socieda-de nasceu da violência, dos que matavam índios, como se isso fosse civilização; dos que derrubavam árvores, como se isso fosse progresso; dos que escravizavam, como se isso fosse humano, introjetando um sentimento violento no sistema social.

Nas últimas décadas, a demografia foi violentada com a migração em massa do campo às cidades, forçada pela propriedade de latifúndios improdutivos e a ilusão de emprego industrial. Nas cidades, os adultos foram violentados pelo desemprego, os jovens pelas drogas, as crian-ças pela falta de escola, as mulheres pelo abandono, todos pela falta

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de atendimento médico e pela desigualdade entre os que vivem do lixo e dos que vivem no luxo.

A tomada dos morros das mãos de bandidos é uma condição imedia-ta e necessária para dar segurança à sociedade, especialmente aos pobres que vivem ao lado do tráfico, roubando seus filhos. Mas não vai bastar, pois não passa de um jeitinho, sem se aproximar do enfren-tamento das causas. Por isso, novas violências continuarão surgindo como reação à violência social generalizada, massacrante, embora camuflada.

A saída para a violência não é ocupar os morros com soldados, mas pacificar toda a sociedade. O caminho é uma revolução na educação.

Enquanto bandidos são presos, crianças nascem. Os primeiros serão “adotados”, ao custo de dezenas de milhares de reais por ano, a fim de mantê-los longe da sociedade. Os outros, que acabam de nascer, quase nada receberão no começo da vida; depois, receberão menos que dois mil reais por ano para sua educação.

Com isto podemos até dar um jeitinho na violência imediata, mas sem destruir a fábrica da violência que há 500 anos caracteriza o Brasil.

Decálogo do Educacionismo

Jornal do Commercio – 05 de outubro de 2007

1) A civilização industrial do crescimento econômico se esgotou na de-predação ecológica e na divisão social. Se nada mudar, em poucas dé-cadas, o aquecimento global desarticulará a economia e banirá a vida de muitas regiões do planeta. A desigualdade social se transformará em apartação social e quebrará o sentimento de semelhança entre os seres humanos.

2) A alternativa socialista se esgotou na ineficiência econômica, na fal-ta de liberdade individual, na depredação ecológica e na constatação da falsa igualdade entre cidadãos.

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3) O vazio de alternativas criou um sentimento de “fim da história”, de “morte das ideologias” e “ausência de lideres”, e deixou a política aco-modada, impotente frente à marcha para a catástrofe do aquecimento global e da apartação global.

4) O Educacionismo defende a recuperação dos sonhos utópicos para a construção de um projeto civilizatório. Propõe como utopia a ga-rantia da mesma chance para cada ser humano desenvolver seu po-tencial, conforme seu talento e sua persistência. A definição de um piso-social, abaixo do qual ninguém cairá; um teto ecológico acima do qual ninguém consumirá, e uma escada de ascensão social: a escola. Entre piso e teto uma desigualdade legítima ocorrerá graças ao talen-to, à persistência, à vocação, não à renda da família.

5) A mesma chance entre classes será obtida: (i) por uma revolução educacional, que garanta a cada criança o acesso a uma escola com a mesma qualidade, qualquer que seja sua classe social ou a cidade onde viva, e (ii) pela adoção das medidas necessárias para a constru-ção de um modelo de desenvolvimento sustentável que assegure os benefícios do desenvolvimento para as próximas gerações.

6) A escola de qualidade para todos exige padrões nacionais de equi-pamento e conteúdo, e um alto padrão nacional de salário e de for-mação do professor, que passa a ser visto como o principal agente da construção do programa e da utopia.

7) O educacionismo considera que o trabalhador do futuro deixará de ser operário e se transformará em operador, e que o capital-máquina será substituído pelo capital-conhecimento. Para tanto, a revolução educacional deverá ensinar um ofício moderno a cada jovem, ainda no Ensino Médio. Deverá ainda ir além da educação de base, fazendo uma refundação da universidade brasileira e criando os necessários centros de geração de ciência e tecnologia, em todas as áreas do co-nhecimento, garantindo a cooperação entre os setores públicos e pri-vados.

8) Esses instrumentos revolucionários, necessários para a construção da utopia, exigem uma base eficiente nos sistemas político, social e econômico: (i) político: a definição de regras duráveis, que possam reger o processo democrático, garantir as liberdades individuais, asse-

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gurar justiça sem privilégios, dar poder ao eleitor e incentivar a parti-cipação popular e o respeito aos Três Poderes; (ii) social: assegurar a todos o acesso a saúde, moradia, água, esgoto, coleta de lixo, trans-porte público, serviços culturais; (iii) econômico: equilibrar as contas públicas, construir a necessária infra-estrutura de energia, transporte e serviços de logística, e dar um choque de eficiência na gestão dos negócios públicos e privados.

9) Consciente de que essa base eficiente e os instrumentos transforma-dores demorarão a apresentar resultados, o educacionismo considera necessário lançar um programa emergencial para enfrentar três pro-blemas: o desemprego, a violência e a corrupção.

10) Na visão educacionista, o processo político se faz não apenas pelos filiados aos partidos organizados em siglas, mas sobretudo por mili-tantes organizados em torno da causa educacionista, seja no processo eleitoral, seja nos movimentos sociais ou nas manifestações organiza-das na rede virtual.

Não basta!O Globo – 02 de maio de 2007

Em 25/04/1957, o Editorial do jornal O Globo dizia: “De ano para ano, mais se compromete o quadro do ensino no Brasil. Não é apenas a falta de escolas; é também a qualidade da educação ministrada. Se tivéssemos de fazer uma síntese do assunto, poderíamos dizer que hoje, entre nós, ensina-se pouco e mal. Não se fazem necessárias maiores especulações para avaliar o que isso representa para o país nesta fase de inegável progresso material, a reclamar em todos os setores homens capacitados, científica e tecnicamente, a fim de asse-gurar a aplicação das conquistas mais recentes da ciência e da técnica no processo de desenvolvimento”.

O texto espanta pela atualidade. Principalmente agora, quando 50 anos mais tarde, o Presidente Lula lança um Plano de Desenvolvimen-to da Educação sem grandes novidades e com pouca ambição, sem o radicalismo de um salto educacional. Trará avanços – como outros pro-

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jetos já trouxeram – e assim ninguém se posicionará contra ele. Mas mesmo implantando em sua totalidade, pouco contribuirá para que, daqui a 20 anos, o quadro educacional seja diferente.

Quando o governo imperial, por proposta do ministro liberal José An-tonio Saraiva , aprovou em 1885 a Lei dos Sexagenários, os abolicio-nistas não puderam se declarar contrários a ela. Mas afirmaram: “Não basta! É preciso abolir o maldito sistema escravocrata”. Agora, com o lançamento do PDE, nós, educacionistas que defendemos uma Revo-lução Educacional para garantir a mesma chance a todos, repetimos: “Não basta!”.

As medidas apresentadas se dividem em três grupos. As primeiras são medidas de apoio: transporte, luz nas escolas, cuidados de saúde. São positivas, mas não trarão um salto na qualidade da educação.

Outras são como termômetro: indicam o tamanho da febre, mas não podem curá-la. O IDEB - que copia o IDES, criado em 2003 e extinto em 2004 -, a Provinha Brasil e o Censo são altamente louváveis, mas não mudarão a realidade. Seria como comemorar um serviço de es-tatística sobre a escravidão. Mostraria o problema, mas não bastaria.

Há medidas realmente vinculadas à qualidade: Piso Salarial, Inclusão Digital, Dinheiro na Escola, Formação de Professores pela Universida-de Aberta. Terão impacto direto, mas ainda assim não bastarão. Além do piso salarial, é preciso implantar um plano de elevação do salário médio, e vincular essa elevação à formação e à dedicação do profes-sor. Só o aumento não basta. Professor ganhando bem sem dedicação não melhora a qualidade. A inclusão digital não se faz só com com-putadores, mas com o professor preparado para ensinar aos alunos a usá-los, em prédios prontos para recebê-los.

Se dinheiro na escola resolvesse, bastariam o Fundef e o Fundeb. E vincular o dinheiro aos índices já apresentados pela escola prejudica as crianças das cidades ineficientes. Além disso, o dinheiro adicional é ridiculamente pouco para atender às exigências de melhoria de qua-lidade.

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O Brasil Alfabetizado é um excelente programa, mas já tinha sido cria-do em 2003, com a meta de eliminar o analfabetismo até 2008. Ele agora retorna com um grande risco: o de utilizar professores de rede pública do ensino fundamental. Os professores diminuirão a atenção dada às crianças, e o analfabetismo pode diminuir entre os adultos agora, mas crescer na próxima geração. E a complementação do sa-lário será certamente incluída no cálculo, na hora de comprovar que o piso salarial foi elevado.

Há dois programas muito bons para o Ensino Técnico e o Ensino Supe-rior. Esses sim, ajudarão a dar um salto. Mas a idéia continua sendo de apoiar universidades, longe da Reforma Universitária da qual o Brasil precisa. Além disso, mais uma vez, o Ensino Superior e o Ensino Técni-co prevalecem sobre o Ensino Básico, até pegam carona com ele. Essa é outra razão pela qual o PDE não basta.

É preciso alertar o Presidente Lula para aquilo que as pessoas que estão ao seu lado não dizem: “Não basta, Presidente!”. É um avanço, mas está longe do salto de que o Brasil precisa, e que poderia ser o seu legado.

O terceiro muroO Globo – 23 de junho de 2007

O Brasil começou a ser construído pela força dos braços dos escravos, desenvolveu-se pela habilidade mãos dos operários, mas só avançará com o toque competente dos dedos dos operadores no mundo digital. Essa migração dos braços dos escravos para os dedos dos operadores aconteceu exigindo uma crescente qualificação.

Ao escravo bastava a força; ao operário, força e algum treinamento. Mas os operadores atuais precisam de formação, qualificação e edu-cação. A produção de açúcar, ouro e café consumia mão-de-obra e terra; a indústria exigia, além de mão-de-obra e recursos naturais, o capital-máquina. A produção do futuro vai exigir poucos recursos naturais, quase nenhuma mão-de-obra e muita ciência e tecnologia - elementos que compõem o capital-conhecimento. A passagem da

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escravidão para a liberdade exigiu a abolição; para a economia indus-trial com o trabalho livre do operário, foram necessários investimentos e treinamento; para a economia do conhecimento, vai ser preciso uma revolução educacional.

Não é possível formar o capital conhecimento sem boas universida-des, e estas não surgirão em todo o seu potencial enquanto, no Brasil, apenas um terço da população jovem concluir o Ensino Médio, e com má qualidade.

Mas a elite brasileira ainda não entendeu a mudança em curso. Os conservadores, contentes com o atual estado das coisas, acham que basta o tempo para a economia crescer, nos mesmos padrões do ca-pitalismo do século XX. Os chamados progressistas, descontentes com a realidade, acreditam que basta copiar os modelos e métodos do so-cialismo do século XIX. Os primeiros acham que não é preciso mudar, apenas seguir o rumo do passado. Os outros, que a mudança deve ser feita sem mudar o projeto e os conceitos herdados do passado. No tempo dos operadores digitais, ainda continuam acreditando que a vanguarda do progresso social está no proletariado da mão-de-obra dos operários, que estão se transformando em operadores ou em tra-balhadores terceirizados e sem qualificação.

A libertação não está mais na economia nem na estatização, mas na educação e na distribuição do conhecimento. A utopia não é mais uma economia controlada pelo estado que distribui renda, mas um proces-so social que garanta a mesma chance a todos, e isso só se consegue com uma escola igual para todos: a escola do filho do pobre com a mesma qualidade da escola do filho do rico. Esse é o gesto revolu-cionário do século XXI. O único capaz de transformar operários em operadores, libertá-los das necessidades e derrubar o muro da desi-gualdade. Essa é a luta que substitui o objetivo da abolição, do século XIX, e do socialismo, no século XX.

Só a escola igual para todos, e com qualidade máxima, vai permitir que o Brasil derrube o muro da desigualdade, assegurando a mesma chance a cada brasileiro, e também o muro do atraso, avançando para uma economia do conhecimento.

Mas para derrubar esses dois muros, é preciso derrubar outro: o muro

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do atraso mental, da consciência atrasada, parada nos séculos XIX ou XX. A chamada esquerda tradicional se recusa a entender essa mu-dança na realidade e a defender esse novo conceito de revolução. Há uma razão classista, talvez subjetiva: a revolução na educação terá um efeito distributivo sobre a propriedade do conhecimento e, portanto, sobre o acesso aos privilégios que o saber assegura. Se a escola fosse boa para todos, muitos dos que já entraram na universidade teriam ficado de fora, superados pela educação da maioria, hoje excluída.

Tudo mudou, menos a luta de classes entre os que têm e os que não têm - não mais terra, como no tempo dos escravos; ou capital, como no tempo dos operários; mas conhecimento, nestes tempos de opera-dores. A revolução consiste em fazer uma educação capaz de transfor-mar operários em operadores.

Mas a esquerda, representante da classe média, tornou-se política, social e ideologicamente conservadora, não derrubou o terceiro muro, e ainda se beneficia dele para proteger seus privilégios de classe dona do conhecimento.

País de cotasRevista afirmativa plural – 07 de julho de 2007

Recentemente, um jovem negro me perguntou se eu via relação entre raça e competência. Se o ingresso na universidade deveria ser por ves-tibular, testando a competência de todos, ou por cotas, privilegiando os negros. Respondi que não há correlação entre raça e competência, mas sim entre renda para pagar uma boa escola e competência, e entre renda e raça, porque no Brasil a pobreza é sobretudo composta por negros. Logo, há uma forte desigualdade entre brancos e negros no acesso à universidade.

Para tentar corrigir essa desigualdade estrutural, justifica-se o uso de cotas para ingresso de candidatos negros na universidade, como for-ma de mudar a cara de um país com a cor da África, cuja elite tem a cor da Europa. Mas reconhecendo que esse é mais um jeitinho, tão ao

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gosto do Brasil. E que beneficia apenas os jovens negros que conse-guem terminar o ensino médio, e muito provavelmente fazem parte da classe média. É uma cota dentro da cota: beneficia alguns jovens negros, depois de ter excluído dois terços de jovens pobres.

É a repetição monótona de um hábito histórico brasileiro: garantir pe-quenos ganhos aos desfavorecidos, em vez de promover sua emanci-pação. O Brasil teme a emancipação, por isso há séculos usa cotas. Elas trazem avanços inegáveis, porém tímidos, sem mudanças estrutu-rais. Avanços pequenos que evitam saltos.

A abolição só veio após décadas de protelações - a proibição do trá-fico negreiro era a cota para proibir a entrada de novos escravos; a Lei do Ventre Livre era a cota para libertar os filhos de escravos que completassem a maioridade; a Lei dos Sexagenários era a cota para libertar os velhos sem forças para trabalhar. Só quando quase todos eram livres, veio a Lei Áurea.

Mas as cotas não acabaram. Os baixos salários pagos trouxeram a cota do vale-transporte, vale-alimentação e vale-gás, para garantir comida e transporte. O desemprego e os baixos salários que impediam a contribuição previdenciária de milhões de trabalhadores rurais cria-ram a aposentadoria de um salário mínimo, uma cota de ingresso que trouxe o imenso déficit da previdência.

Mais de um século após sua tardia abolição, o Brasil ainda que tenta corrigir suas injustiças sociais com cotas que dão um jeitinho, mas não trazem soluções. É impossível ser contra os jeitinhos, pois eles trazem certa forma de avanço; mas é preciso entender que eles protelam a emancipação.

Por isso, é surpreendente que tantos se contentem com as cotas para negros nas universidades, deixando de lado a emancipação da edu-cação básica de qualidade para todos. Quando ela existir, não mais serão necessárias cotas, da mesma forma que a Lei Áurea dispensou todas as cotas anteriores. Cotas são parte de uma luta, mas a verda-deira luta é torná-las desnecessárias. Isso exige transformar a educa-ção básica em obrigação nacional, assegurando a todas as crianças a permanência na escola até o final do ensino médio, e a todas as escolas brasileiras um padrão mínimo de qualidade.

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Como os abolicionistas, é preciso que os defensores das cotas não se contentem com os pequenos jeitinhos, e lutem pelo salto definitivo da emancipação.

Precisa Sete AnosFolha de S. Paulo – 24 de novembro de 2007

Recentemente, na Inglaterra, um país com Monarquia, um de seus parlamentares foi duramente criticado pela mídia e pelos pares por-que confessou que seus filhos estudavam em uma escola privada. Em 2014, a República Brasileira comemora 125 anos. Ainda incompleta.

Porque não conseguiu construir a república – a causa comum de uma nação – unificar o seu povo que continua dividido em duas partes que convivem apartadas. Apesar de um regime político republicano, o Brasil ainda não é uma república no seu modelo social. E o principal indicador é a separação educacional, o berço da desigualdade e do abismo social.

Durante todo esse período, a casta dirigente prometeu que o cresci-mento econômico distribuiria a renda e, por meio do desenvolvimento, unificaria a nação fazendo dela uma república. Foi uma mentira, por-que a elite que substituiu a nobreza, conservou todos os privilégios e continuou distante do povo.

Essa divisão social estava presente desde o início. Para representar uma república onde 65% da população era de analfabetos, os primei-ros republicanos desenharam uma bandeira com um texto escrito. A bandeira de uma república de poucos: os que sabiam ler. De lá para cá, o percentual foi reduzido a 13%, mas o total de analfabetos mais que dobrou; passando de 6 para 16 milhões, incapazes de reconhecer a própria bandeira.

Essa realidade teria sido completamente diferente, se o Primeiro De-creto Republicano, em 1889, determinasse que a educação seria igual

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para todos, ricos e pobres, brancos e negros, moradores de cidades grandes ou pequenas, e, como exemplo, determinasse também que os filhos dos dirigentes republicanos, eleitos pelo povo, estudariam nas mesmas escolas dos filhos do povo.

No lugar disso, ao longo de 39 presidentes, a escola brasileira man-teve-se dividida: as de ricos e as de pobres. E os parlamentares e go-vernantes republicanos mantiveram seus filhos nas exclusivas escolas dos ricos, e ainda recebem dinheiro público para pagar parte da men-salidade.

É uma pena que os primeiros republicanos não tenham tomado essa decisão, mas ainda é tempo. República significa escola igual para to-dos. Sem desculpas para que os governantes fujam da escola que eles governam. Talvez sendo obrigados a ter seus filhos nela, eles cuidem melhor da escola do povo.

Seria moralmente correto implantar imediatamente esta decisão re-publicana, mas politicamente isso é impossível, por causa do vício his-tórico nos privilégios. Os dirigentes certamente ficarão contra. Reação idêntica sempre houve cada vez que se defendia a abolição da escra-vidão. A escravidão viciou o Brasil e obrigou a abolição vir aos poucos, sempre com prazos para que seus donos se acostumassem com o que então parecia absurdo: acabar com a divisão entre escravos e livres. Da mesma forma, hoje, não é possível adotar de imediato uma escola republicana: equivalente para todos, parlamentares e seus eleitores. Diante dos vícios arraigados, é preciso dar um prazo de 7 anos para essa decisão ser executada: no 125º aniversário da República, a partir de 2014.

Mas, os líderes republicanos vão usar todos os argumentos possíveis para não “condenar” os representantes do povo a colocar seus filhos na escola pública. Vão dizer que tira a liberdade do cidadão, mas ninguém é obrigado a ser candidato e ter vida pública. Que isso im-pede a educação religiosa, mas nada impede a educação religiosa em aulas especiais nas igrejas. Que é anticonstitucional. Este é o melhor argumento para justificar a proposta: não é republicana a Constituição que impede a escola do povo ser tão boa a ponto de poder receber os filhos dos eleitos pelo povo.

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Além do gesto republicano, do ponto de vista simbólico, ao obrigar os governantes a usarem as escolas do povo, os governantes certamente cuidarão melhor das escolas do povo.

Sete anos é um prazo necessário para atender aos vícios dos nossos republicanos e para evitar o desastre como foi a longa espera pela Abolição.

Aceitação da mediocridadeCorreio Braziliense – 30 de agosto de 2008

Uma das conseqüências do Brasil ser uma das potências mundiais do futebol é não nos contentarmos em ser vice-campeões. Isso já vale até para o futebol feminino. Basta vermos o sofrimento de nossas jogado-ras em Pequim. Apesar de um honroso segundo lugar, uma medalha de prata conquistada em disputa com o mundo inteiro, elas mostra-ram a tristeza típica de quem ocupa o último lugar. Uma reação muito parecida foi vista na Copa do Mundo de 1998, no futebol masculino, quando chegamos à frente de todos, exceto da França. No futebol, não aceitamos a mediocridade, nem mesmo o segundo lugar.

O mesmo comportamento e sentimento não são vistos em outros seto-res da vida nacional. Ano após ano, estamos entre os últimos coloca-dos, mas o assunto não desperta indignação, passa despercebido. Por décadas, fomos os últimos em inflação, somos os piores em destruição de florestas e em concentração de renda, em número de analfabetos adultos, em incidência de malária e dengue. Todas as avaliações in-ternacionais colocam o Brasil entre os piores na capacidade de ler e nas habilidades matemáticas. Somos também os piores do mundo em criminalidade juvenil. Mas essas classificações vergonhosas não nos fazem sofrer tanto quanto sermos segundos em futebol. É por isto que somos bons em futebol e péssimos em outras práticas: porque acei-tamos a mediocridade em tudo, mas exigimos excelência no futebol.

Daqui a quatro anos, nossa seleção feminina de futebol poderá jogar outra vez, e dessa vez vencer. Até lá, as regras serão as mesmas, a bola continuará redonda. Mas a perda educacional não permite recu-

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peração tão fácil. Daqui a quatro anos, o mundo inteiro terá evoluído no conhecimento, em equipamentos, na formação de professores. No futebol, teremos perdido ou ganhado; mas na educação, se tivermos perdido, ficaremos para trás.

Perder uma Copa do Mundo de futebol nos deixa mais tristes. Mas per-der a Copa da Educação nos deixa mais pobres, mais desiguais, mais atrasados, mais deseducados. Porque a deseducação gera um círculo vicioso: quanto pior, pior fica.

Por que, então, choramos com a derrota no futebol e ignoramos o fra-casso na educação? Primeiro, porque nossa cultura está mais para o consumo, para o futebol, para o imediato, para a alegria, do que para o esforço, para o futuro e para o sacrifício que implica a educação. Mas nossa população pobre tem de sobreviver, dia após dia. Não pode esperar a educação do filho (a grande criatividade da Bolsa-Escola foi unir a necessidade de sobrevivência imediata com a educação para o futuro). É triste reconhecer, mas a elite brasileira passou a idéia – acei-ta pelo povo – de que educação de qualidade é uma coisa reservada aos ricos, como se fosse natural que os filhos dos pobres não tivessem direito a escola igual a dos ricos. A prova disso está na pesquisa apre-sentada pela revista Veja, mostrando que quase todos os pais acham muito boa a escola pública de seus filhos,embora os filhos não estejam de fato em escola adequada. Consideram a escola um lugar onde dei-xar seus filhos, com direito à merenda; se não tiver aula, nem dever de casa, não importa. Para 89% dos pais com filhos em escolas particula-res, o dinheiro é bem gasto e tem bom retorno, mesmo quando os in-dicadores mostram que seus filhos têm péssimo desempenho, quando comparados com outros países. Noventa por cento dos professores se consideram bem preparados para a tarefa de ensinar, mesmo que seus alunos sejam os últimos no campeonato mundial da educação.

Sindicatos fazem greve por salário, moradores de ruas invadem pré-dios e terrenos, camponeses invadem terras. Mas não vemos invasão das boas escolas, para nelas serem colocados os filhos dos pobres. Professores universitário fazem greve por seus salários, alunos univer-sitários protestam pela saída de um reitor, mas não dizem uma única palavra de protesto quando perdemos o campeonato da educação de base.

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O Brasil dispõe dos recursos para, em Londres, em 2012, conquistar algumas medalhas a mais. E para, ao longo dos próximos anos, ce-lebrar muitas medalhas conquistadas nas Olimpíadas seguintes, prin-cipalmente se conseguirmos que os jogos de 2016 sejam realizados no Rio de Janeiro. Mas se fizermos a revolução na educação, faremos também o berço de nossos atletas. Temos os recursos, mas a aceitação da mediocridade na educação nos condena a aceitar sermos os perde-dores de sua Olimpíada.

Ainda?Jornal do Commercio – 16 de maio de 2008

As perguntas erradas nunca recebem respostas certas. Uma delas é feita todos os dias: “Você é a favor ou contra as cotas?”. Mas ela não pode ser respondida sem que outras perguntas anteriores sejam feitas.

A primeira: “Há ou não relação entre elite social e ensino superior?” Obviamente sim. Sem diploma, não se acessa determinadas carreiras reservadas para níveis superiores.

A segunda: “A proporção de alunos negros na universidade correspon-de à proporção de negros na sociedade?” A resposta é não. Apesar de sermos um povo basicamente mulato, as universidades são ocupadas sobretudo por brancos ou quase brancos. Apenas 2% dos alunos são negros, enquanto, na população, os auto-declarados pardos e negros são 49,5%. Por isso, outra pergunta: “É preciso aumentar o número de negros na universidade?” A resposta é obviamente afirmativa. Se quisermos ser uma democracia racial, precisamos aproximar a cor--da-cara-da-elite da cor-da-cara-do-povo, e para isso, precisamos ter mais negros no ensino superior.

Daí, outra pergunta: “Como fazer para que a universidade deixe de ser apenas de brancos e mulatos claros?” Essa pergunta exige outra: “A universidade brasileira é de brancos por causa do racismo?” A respos-ta é não. Não há negros na universidade porque no Brasil os negros são pobres. A escola de qualidade é privilégio dos ricos e das classes médias que conseguem acesso às boas escolas e aos cursinhos.

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Então, outra pergunta: “O caminho para quebrar a exclusão de negros na universidade não está na quebra da exclusão de pobres com uma escola de qualidade para todos, dos quatro aos 18 anos?” A resposta é sim. Esta é a saída: os filhos dos pobres na mesma escola dos filhos dos ricos, sejam negros, brancos, mulatos, índios. Com escolas iguais, disputarão igualmente, sem cotas, o direito de ingressar na universida-de, dependendo somente de talento e persistência.

“Então, o fim da segregação de pobres e ricos na escola de base re-solveria o problema da segregação racial no ensino superior?” Claro. “Mas isso pode ser feito de imediato?” Se começarmos essa revolução agora – e não parece haver vontade nacional para isso – seriam ne-cessários 20 anos para atender igualmente as 48 milhões de crianças do Brasil.

“E até lá?” Até lá, só as cotas conseguirão aumentar ligeiramente a proporção de negros na universidade.

“E as cotas vão beneficiar os pobres?” Não. Vão beneficiar o Brasil, dando um minúsculo passo para completar a abolição da escravidão. E vão beneficiar alguns jovens negros que conseguirem concluir uma boa escola de base, fazer cursinho, passar no vestibular. O que rara-mente uma criança pobre consegue, seja negra ou branca.

“E isso não vai reduzir a segregação ao preço de excluir brancos apro-vados na frente de negros?” Não, se as vagas previstas forem preen-chidas pelos primeiros colocados, independente da raça, aumentando o número de vagas para atender os candidatos negros que passarem no vestibular em uma classificação inferior.

“Mas isso não fará cair a qualidade?” A qualificação de um profissio-nal não decorre da sua classificação no vestibular. Decorre de ter feito boa escola de base, ter passado no vestibular, ter concluído um bom curso superior e seguir estudando ao longo de sua vida profissional.

Fica uma pergunta que os historiadores farão no futuro: “Como era possível, 120 anos depois da Abolição, o Supremo Tribunal Federal ainda ser acionado para considerar se era legal ou ilegal o uso de cotas para negros?”

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Duas fotosRevista Afirmativa Plural – outubro de 2008

Cento e vinte anos depois da abolição da escravatura, duas fotos, uma ao lado da outra, mostram como pouco mudou a realidade brasileira. Se olharmos a foto de uma sala de aula em uma universidade federal, veremos somente rostos brancos; uma foto tirada dentro da Febem, mostraria apenas rostos negros.

Essas duas fotos bastam para envergonhar e indignar o Brasil pelo pouco que já foi feito ao longo de um século para corrigir o que ocor-reu durante os quatro séculos anteriores. Mas nada indica que o Brasil esteja decidido a tomar as medidas para corrigir isso.

A primeira e definitiva ação seria fazer a revolução educacional que permitisse assegurar oportunidades iguais a todas as crianças brasilei-ras, desde o dia do nascimento até o final do ensino médio, indepen-dentemente da cidade em que tenham nascido, da cor de sua pele, da renda de sua família. Está na desigualdade da oportunidade a causa das cores nas duas fotos. A discriminação racial no Brasil não vem de leis discriminadoras. O preconceito racial, embora existente no Brasil, não é suficiente para brecar o ingresso de estudantes negros na uni-versidade, e de jovens brancos na Febem.

Mas essa ação, mesmo que tomada agora, com uma nacionalização da educação básica, levaria 15 anos para surtir o efeito da igualdade de oportunidades racionais no ingresso nas universidades e febens. Até lá, a discriminação social continua e induz à discriminação racial.

Por isso, as cotas para negros são um paliativo para mudar a realidade crônica das duas fotos. Mesmo assim muitos, talvez a maioria da popu-lação brasileira são contra a cota, com dois argumentos falsos.

Primeiro, de que levaria à queda na qualidade do ensino. Um argu-mento de quem deseja manipular a opinião ou de quem não conhece o assunto. As cotas só beneficiam aqueles que terminarem o ensino médio e passarem no vestibular; apenas promove quem tenha sido aprovado, mas em uma classificação posterior ao limite das vagas.

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Nada indica que depois de quatro ou cinco anos de curso, um jovem que tenha passado em 25º lugar no vestibular vá ser um profissional melhor do que aquele aprovado em 26º lugar. Ninguém pergunta a um médico a sua classificação no vestibular. A qualidade pode até se elevar graças às cotas, por duas razões: uma, porque aumenta a con-corrência no vestibular, ao atrair mais jovens que não pensariam em entrar na universidade; outra, porque os “cotistas” terão de se esforçar para quebrar o preconceito contra eles.

O segundo argumento é de que discrimina jovens brancos que teriam de ceder vaga para negros. Na verdade, a discriminação seria contra os jovens que estudaram em escolas de qualidade, com garantia de acesso à universidade, quase todos brancos, mas que passaram por virem de famílias com renda acima da linha de pobreza.

Isso não piora a universidade, mas tampouco traz qualquer benefício social, porque o jovem negro que termina o ensino médio e passa no vestibular certamente não vem de uma família pobre. Isso somente corrige a vergonha das duas fotos, que mostram a demora em com-pletar a abolição dos escravos, com uma escola pública que assegu-re igualdade de oportunidades a todas as crianças: descendentes de brancos livres ou de escravos negros.

PedofobiaO Globo – 13 de setembro de 2008

A CPI da pedofilia horrorizou o Brasil com as denúncias que fez sobre a maldita prática de criminosos contra nossas crianças. Descobrimos que ela é mais comum do que se imaginava, e é muitas vezes cometida por insuspeitos senhores. Mas continuamos chamando este crime por seu lado sexual, quem gosta de crianças, e não por seu lado moral, quem odeia crianças. Nem foram demandadas as outras formas disfarçadas da pedofilia. O nome dessa bestialidade deveria ser pedofobia, que segundo o dicionário significa sentir aversão a crianças. No caso do Brasil, a pedofobia é uma prática muito mais generalizada, deveria incluir o desamor às crianças.

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A prostituição infantil é uma forma extrema de pedofobia. Mas há dé-cadas, é tratada como um mal tolerável, como se fosse menos grave prostituir uma criança ou uma adolescente do que utilizá-las nas prá-ticas da pedofilia.

Abandonar crianças nas ruas também é uma forma de pedofobia. E no Brasil, essa prática é aceita com normalidade. Como se fosse uma coi-sa comum deixar milhões de meninos e meninas sujeitos à brutalidade do abandono. Os pais abandonam suas crianças por impossibilidade de mantê-las, mas os governos, que não criam mecanismos de prote-ção às crianças, são pedófobos. Amam a economia e as obras, não as crianças. E nós, que assistimos ao abandono, sem um pingo de revolta, somos pedófobos também.

Deixar crianças sem brinquedos, condenadas ao trabalho quando de-veriam brincar, assassinadas, espancadas, esquecidas, abandonadas são formas de pedofobia com as quais a sociedade convive, tolera sem se dar conta, sem se horrorizar, salvo em alguns casos em que a violência chega a brutalidades de violência sexual.

Condenar crianças a um futuro excluído das vantagens da sociedade, cortar pela raiz seus talentos, por falta de escolas ou de escolaridade completa e de qualidade, também é pedofobia. Não pagar bem aos professores e em troca tolerar que eles não se preparem bem, não se dediquem, que façam greves deixando para as crianças a perda de um tempo irrecuperável, é uma forma de pedofobia que a sociedade brasileira comete, por ação de alguns e omissão de muitos. Nós todos praticamos essa pedofobia quando sabemos que a cada minuto 60 crianças abandonam a escola, e que as que ficam até o final do ensino médio recebem uma formação pobre. Perguntar quanto custa mudar essa realidade, aceitando que haja dinheiro para todo o resto, menos para as crianças e suas escolas, é uma forma de pedofobia bastante disseminada na sociedade brasileira. A mesma sociedade que se hor-roriza com a maldade da pedofilia.

Cercar as escolas boas para uns poucos, deixando milhões do lado de fora; cercar os hospitais de qualidade, deixando crianças doentes no lado de fora; cercar os supermercados, deixando de fora crianças com fome, são práticas pedófobas, que muitos de nós nem sequer perce-bemos.

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O pedófilo rouba o futuro de crianças marcando-as para sempre com a violência sexual. Mas os pedófobos também roubam esse futuro, quando deixam as crianças condenadas ao analfabetismo, marcando--as definitivamente.A violência da omissão e da tolerância contra os crimes cometidos contra as crianças é um comportamento pedófobo. E ficamos aliviados quando alguns pedófilos são presos. A culpa nos monstros da pedo-filia não deve esconder a responsabilidade de todos os praticantes de outras formas de pedofobia.

Por isso, a resposta é sempre a mesma: não é minha culpa, não há dinheiro, não é possível. Mentiras de pedófobo. Sim, há recursos e a culpa é de cada um de nós que escolhemos dirigentes sem sensibilida-de, com espírito pedófobo, que encontram dinheiro para tudo, menos para fazer o que propunha a senadora Heloisa Helena: “adotemos uma geração de pequenos brasileiros, só uma, dando-lhe tudo de que eles precisam”. Pois se o fizermos, o resto eles farão quando adultos, sem os traumas deixados por pedófilos ou pedófobos que, por meios diferentes, provocam os mesmo resultados: crianças dilaceradas, adul-tos angustiados. Um presente vergonhoso, o futuro comprometido.

A pedofilia é uma perversão brutal que ocorre em muitos países do mundo. Mas tristemente temos de reconhecer que raros países apre-sentam o grau de pedofobia que se percebe no Brasil.

A outra AidsNão consta veículo – 24 de outubro de 2009

Alguns setores da luta contra a AIDS têm sugerido que o governo da África do Sul cometeu genocídio por sua omissão na luta contra a do-ença, em seu país, ao longo de seus dois mandatos.

Por oito anos, o governo sulafricano recusou a ideia de que a AIDS era transmitida pelo vírus HIV, fechou os olhos à epidemia, recusou a dis-tribuição dos antiretrovirais e incentivou o uso de curandeirismo como forma de tratamento. O resultado é que, em pouco mais de uma dé-cada, a África do Sul, com 40 milhões de habitantes, viu surgir 2,9 mi-

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lhões de casos, que já deixaram um rastro de 360 mil mortos por causa da AIDS. Uma tragédia para praticamente todas as famílias do país: redução na esperança de vida, queda na produtividade, elevação dos custos privados e dos gastos públicos, uma geração de crianças órfãs, maior do que durante as guerras – porque nelas as mães sobreviviam.

A demora em dar atenção ao assunto – tratar a AIDS com seriedade por parte do governo sulafricano – forçou o setor privado a atender seus trabalhadores até mesmo contra a vontade do governo. A empre-sa Anglo Gold South Africa começou, em 2002, a distribuir antiretro-virais entre seus trabalhadores, porque percebeu o elevado custo por absenteísmo ou para repor os trabalhadores doentes ou mortos.

O governo Mkebi insistia que os novos medicamentos eram instrumen-tos do colonialismo. Afirmava que o problema da África do Sul era a pobreza e não a doença. E preferiu negar, esconder, fazer vista grossa à tragédia, além de afirmar que a estratégia correta era o crescimento econômico, suficiente para resolver o problema da epidemia.

Do ponto de vista do sofrimento físico e sentimental, nada se compara à tragédia da epidemia de AIDS na África, salvo talvez o holocausto durante o período nazista.

Mas, o que dizer dos governos que fecham os olhos à disseminação de uma doença igualmente grave, embora menos mortal: a deseducação dos povos?

Embora o impacto sobre a vida seja muito maior e mais visível no caso da AIDS, negar educação traz desgaste e sofrimento de outro tipo. A AIDS traz um sofrimento físico e até a morte, mas a deseducação dos povos traz baixa renda, ineficiência, desigualdade, pobreza, humilha-ção.

Por sua etimologia, a palavra genocídio significa o assassinato físi-co de grandes massas de pessoas, não se aplica ao descaso com a educação. Mas, do ponto de vista conceitual, esse descaso significa a condenação de dezenas de milhões de brasileiros à tortura do anal-fabetismo, à fome e penúria da pobreza, à falta de informações e de oportunidades. Do ponto de vista de nação, é uma traição à Pátria, sua condenação ao atraso e ao subdesenvolvimento.

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Independentemente do nome do crime, sua dimensão é de genocídio e suas conseqüências são de uma “outra AIDS” invisível no corpo, mas perceptível no espírito e no conjunto da nação. Uma “AIDS cinza”, a cor do cérebro, provocada pelo que o presidente Lula antes chamava de “custo do não fazer”, a partir do conceito chamado antes dele de “custo da omissão”. Negar educação é uma forma de cremar cérebros. O crime pode ser chamado de “neurocídio” – assassinato em massa de neurônios –, não pela ação de quem opera a câmara de gás, mas de quem faz de conta que não vê a fumaça subindo do crematório de cérebros. Durante a escravidão, “queimamos” africanos, jogando-os ao mar, condenando-os ao trabalho forçado, tanto quanto os nazistas condenaram e cremaram sobretudo judeus. Agora, cremamos cére-bros ao expulsar 60 crianças por minuto do ano letivo e não dar edu-cação de qualidade aos que nela ficam.

Como a África do Sul com a AIDS, no Brasil muitos consideram “geno-cidas” os que ameaçam o futuro ao queimar florestas, mas ignoram os que ameaçam o futuro de milhões de crianças e de todo o País ao queimar-lhes o cérebro, negando-lhes uma escola de qualidade.

Se negar o atendimento correto aos portadores de HIV pode ser con-siderado uma forma de genocídio por omissão, negar educação não deve ser considerado diferentemente.

O Grito de BelémO Globo – 05 de dezembro de 2009

Nesta semana, das margens do Amazonas, no moderno centro de convenções de Belém, o mundo recebeu um grito de alerta entoado por representantes de 156 Estados-membros da UNESCO, entre eles, 93 ministros da educação. O cenário da floresta – cujo desmatamento simboliza uma das causas da grave crise ecológica – emoldurou o Gri-to de Belém, que trata do problema da educação e da alfabetização de adultos.

O Grito de Belém é o resultado da VI Confintea – Conferência Inter-nacional de Educação de Adultos, convocada pela UNESCO a cada

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12 anos. Desde 2003, o Brasil foi escolhido como sede da reunião, depois daquelas realizadas em Elsinore, Dinamarca, 1949; Montreal, Canadá, 1960; Tóquio, Japão, 1972; Paris, França, 1985 e o último em Hamburgo, Alemanha, 1997. É em Hamburgo que está a sede do Instituto da UNESCO para Educação ao Longo da Vida, que organiza essas conferências. Como membro do Conselho desse Instituto há 5 anos, fiquei muito satisfeito com o início dos trabalhos da VI Confintea. Também senti a força dos discursos de abertura que mostram o com-promisso de tantas pessoas com a educação no mundo.

A nova Diretora-Geral da UNESCO, Irina Bokova, lembrou que a De-claração Universal dos Direitos Humanos incluiu o direito de cada um a educação, e que – 60 anos depois – ainda necessitemos reafirmar esse direito. Disse que “nenhum país subiu a ladeira do desenvolvimento humano sem fortes investimentos em educação”. Concluiu o discurso citando Paulo Freire e dizendo: “educação é condição para liberdade”.

A princesa Laurentien, da Holanda, representante especial da UNES-CO para Alfabetização, falou sobre a necessidade de esforço mundial pela educação de todos os adultos – especialmente na alfabetização. E disse: “se quisermos educar uma vila, eduquemos suas mulheres”.

O ex-presidente do Mali, Alpha Konare, concentrou sua fala na de-fesa do continente africano, onde o problema da falta de acesso à educação se mostra da forma mais drástica. Referiu-se ao Presidente Lula como “nosso patrimônio comum” e defendeu a ideia, nascida em 1998, em Brasília, de se fazer a troca da dívida por investimentos em educação.

O Diretor do Instituto da UNESCO para Educação ao Longo da Vida, Adama Ouane, propôs uma estratégia para que o mundo enfrente o problema do analfabetismo de adultos e ofereça educação continuada para todos.

No conjunto, os representantes de todos os países presentes defende-ram a necessidade de um esforço mundial pela alfabetização e edu-cação de adultos.

Esse Grito de Belém não receberá a divulgação do grito que espera-mos que seja dado em Copenhague, na próxima semana, por uma

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redução nas emissões de CO2. Mas é a manifestação de pessoas com-prometidas com a busca de um futuro a ser construído sobre dois pi-lares: educação de qualidade para todos e o equilíbrio ecológico para próximas gerações.

Ainda mais quando se sabe que a solução para o problema do meio ambiente está em uma revolução educacional para mudar a mentali-dade viciada da civilização industrial, que mede o progresso pela pro-dução industrial a qualquer custo – social ou ecológico.

A VI Confintea escolheu Belém por respeitar a importância da questão ambiental. Esperemos que a reunião de Copenhague abra um debate mundial sobre a educação de adultos e faça todos perceberem que ela só será solucionada quando as crianças forem educadas na idade certa.

Tenho defendido, e levarei a Copenhague, no encontro da União In-ternacional de Parlamentares, a ideia de que o mundo exige que cada político seja uma voz em defesa do mundo e não só dos interesses locais de onde exerce sua atividade política. É isso que me fez, nos últimos dias, falar sobre a imoralidade política no DF, mas sem deixar de usar esse espaço neste jornal para falar dos gritos de Belém e de Copenhague.

Esperamos que o Grito de Belém e o Grito de Copenhague se juntem em um Canto de Esperança para todo o mundo e todas as gerações do futuro, graças à educação de qualidade para todos e a um desenvolvi-mento sustentável para a civilização.

Universidade do MagistérioO Globo – 14 de fevereiro de 2009

Os dados do último censo escolar mostram a tragédia de uma hemor-ragia no organismo do Brasil: a redução no número de jovens que buscam a carreira do magistério nas nossas universidades. A continuar nesse rumo, o Brasil terá o agravamento da anemia intelectual que nos caracteriza. Em um mundo competitivo, isso significa a anemia

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na economia, na cultura, na vida social. Sem uma boa educação de base, não teremos uma boa universidade, porque desperdiçaremos os cérebros excluídos por falta de boa qualidade nos primeiros anos de educação. Mas sem uma boa universidade, não teremos boa educa-ção de base, por falta de bons professores; esse é o círculo vicioso da hemorragia intelectual do Brasil.

A culpa está na falta de prestígio da carreira do magistério, por causa dos baixos salários, das vergonhosas condições de trabalho, da violên-cia a que são submetidos os professores e da falta de adaptação da escola atual às necessidades e gostos das novas gerações. Mas a culpa está também na estrutura universitária, que não produz os profissio-nais de que o País precisa, nem com a qualificação necessária.

A universidade deve formar uma elite intelectual que se ponha a servi-ço do país, da população e da humanidade. A formação de professores é uma prioridade fundamental. Mas não é só isso. Nossa elite é pobre intelectualmente, minúscula numericamente e alienada socialmente. Formamos uma elite muito aquém do potencial de nossa população; e sem profissionais nas especialidades de que precisamos, em quantida-de e qualidade, especialmente professores.

Entretanto, a criação de mais universidades não aumentará o número de professores, nem melhorará a qualidade na formação deles. Os alunos dessas universidades continuarão preferindo outras carreiras e as universidades continuarão mantendo uma estrutura sem vínculos com a educação de base.

Em vez de mais universidades similares às atuais, o círculo vicioso da hemorragia intelectual pode ser quebrado pela criação de uma “uni-versidade” diferente das atuais. Uma Universidade do Magistério que consistiria simplesmente de uma estrutura administrativa, com as fun-ções de definir o número de estudantes necessários para preencher a anemia de professores; selecionar os estudantes especificamente para as carreiras de magistério, no número necessário a cada especialida-de para os próximos anos; selecionar universidades e faculdades com qualidade, sejam estatais ou particulares; e financiar os estudos desses jovens, incluindo salários durante a formação.

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A Universidade para o Magistério definiria o número de alunos con-forme a necessidade do sistema educacional, teria uma pequena es-trutura para selecionar os alunos e as faculdades com qualidade onde eles estudariam; financiaria os cursos; e pagaria um salário para os alunos. O diploma de cada formando seria assinado pela universidade onde estudou e pela Universidade do Magistério, ambas controlariam a qualificação.

Com uma pequena estrutura basicamente administrativa, a Universi-dade do Magistério começaria de imediato, ajustada às necessidades de profissionais deste momento, aproveitando o imenso potencial já existente na universidade brasileira, ajustando-a às exigências atuais.

Uma proposta parecida foi oferecida pelo Ministério da Educação, em 2003, à Presidência da República, para formar professores e outros profissionais. Essa foi a sugestão dada também para a nova universi-dade orientada a estudantes vindos de países pobres. Os alunos se-riam selecionados e distribuídos nas universidades já existentes, e com estruturas consolidadas.

A Universidade do Magistério teria a flexibilidade de aumentar ou re-duzir o número de alunos de cada especialidade, conforme a deman-da; aproveitar o potencial universitário de qualidade já disponível; evi-tar o custo de novas estruturas; permitir a dinâmica estrutural que o mundo moderno exige e, sobretudo, começar imediatamente, com a urgência de tratamento que as hemorragias exigem.

Uma Escola RepublicanaRevista Superinteressante – março de 2010

Alguns acham que a diferença entre Monarquia e República está no governo de um Imperador ou de um Presidente. Mas, a verdadeira diferença está na divisão da sociedade: entre aristocracia e plebe – na Monarquia –; e na consolidação de um povo unido, embora com clas-ses – na República.

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Apesar de ter presidentes desde a Proclamação da República em 1889, o Brasil ainda não pode ser considerado um país republicano, porque sua população é dividida, em quase todos os aspectos. Isso pode ser observado nos serviços de saúde, segurança, participação política e, especialmente, educação. Uma pessoa dos 20% mais ricos gasta, em média, com recursos privados da família e públicos do governo, cerca de R$ 250 mil ao longo de sua formação. O equivalente a R$ 1 mil por mês nos 20 anos de estudos em uma boa escola ou faculdade – dos 4 aos 25 anos. Enquanto uma pessoa dos outros 80% gasta, em média, com recursos públicos, R$7 mil (R$1,4 mil por ano, não por mês) nos cinco anos em que freqüentam uma escola pública, geralmente entre os 7 e os 11 anos de idade.

Dessa forma, 120 anos depois do processo iniciado em 15 de novem-bro de 1889, os filhos dos eleitos, que se encontram entre os 20% mais ricos, estudam ao longo de anos em escolas com qualidade, en-quanto os filhos dos eleitores estudam por pouco tempo em escolas sem qualidade. Não pode ser considerada República um país com essa desigualdade no acesso à educação. Até porque, essa desigualdade é a principal causa da divisão do País como se ainda estivéssemos na Monarquia – com nobres e plebeus –, impedindo que o Brasil se torne uma República.

No passado, aqui no Brasil, só os filhos das classes com influência po-lítica conseguiam vagas nas escolas públicas que eram muito boas; os filhos dos pobres não estudavam ou o faziam em escolas particulares mantidas pela Igreja Católica, como os seminários. Em muitos países, os políticos nem pensam em colocar seus filhos em escolas particula-res, porque as públicas são de qualidade, além de que os eleitores não aceitariam que eles fizessem essa escolha. Quando algum é identifi-cado sai nos jornais como verdadeiros constrangimentos. Isso obriga o parlamentar desses paísesa pedir desculpas publicamente, além de retirar seu filho e matricular em uma instituição pública.

O Brasil não será uma República enquanto os filhos dos eleitos não estudarem em escola com a mesma qualidade daquela dos filhos dos seus eleitores. Esta é, em si, uma razão de ética política para justificar a obrigatoriedade dos filhos dos parlamentares estudarem em escolas públicas.

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Além disso, há uma razão político-administrativa. À medida que essa obrigatoriedade ocorrer, as escolas públicas receberão mais atenção dos governantes. O resultado será uma escola de qualidade para to-dos.

Argumenta-se que esta obrigação feriria a liberdade do parlamentar, mas todo cidadão é livre para não ser candidato. Se ele opta pela vida pública, assume obrigações: esta seria apenas mais uma, como parte de seus compromissos com seus eleitores, com a Nação e, sobretudo, com a República.

WISE, uma esperançaJornal do Commercio – 11 de novembro de 2011

Durante três dias, a Fundação Catar reuniu centenas de pessoas de diversos países para discutirem a situação da educação mundial e como melhorá-la. Foi a terceira WISE - World Innovation Summit for Education, a Cúpula Mundial da Inovação para a Educação. Ao longo de dezenas de debates, em diferentes salas e auditórios e em vários idiomas, foi possível perceber inquietações, sugestões, propostas e co-nhecer boas experiências. Sobretudo, perceber um consenso que está surgindo de que a educação é o caminho para o progresso econômico, para a diminuição da desigualdade social e a construção de um novo modelo de desenvolvimento para a humanidade.

Não importava o país de origem do orador, nem o idioma em que falava, o sentimento era de que as desigualdades sociais e os atrasos nacionais decorrem da má educação a que estão submetidos bilhões de seres humanos, sobretudo crianças.

O mais importante da reunião no Catar é a comparação entre o que discutimos dentro do imenso centro de convenções e o que se observa no lado de fora. Bem em frente, há uma cidade surgindo voltada para a educação. São dezenas de prédios que abrigam novas universida-des, muitas importadas, trazendo professores e equipamentos de ou-tros países. Ao observar aquelas edificações voltadas para a educação tem-se o sentimento de ver a transformação de petróleo em conheci-mento.

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O pequeno rico país usa a riqueza vinda do petróleo para transfor-má-la em riqueza de saber científico e tecnológico, dentro da escola. Não foi de uma hora para outra que o Catar passou a fazer esses investimentos. Durante algumas décadas o país gastou em diversos outros objetivos, até que, sob a liderança do Sheik Hamad bin Khalifa Al Thani e sob a influência da Sheikha Mozah bint Nasser, decidiu-se transformar o recurso esgotável do petróleo em recurso permanen-te de educação, ciência, tecnologia e inovação. Com esse gesto, se transformou em um exemplo para que o Mundo Global possa fazer o mesmo: transformar riqueza passageira em educação.

Esta lição do Catar é um dos principais resultados da WISE. Além dis-so, ao debater dentro dos auditórios, olhar no deserto ao redor, onde surgem novas universidades, e olhar para o resto do mundo, leva-nos a lembrar do imenso potencial dos cérebros enterrados na ignorância, em tantos países do mundo.

WISE, no Catar, mostra a realidade ao redor do Centro de Conven-ções, lembra o mundo inteiro, promoveu a educação em escola global e de longo prazo, divulga e dá prêmio a experiências simples, locais e imediatos.

Provavelmente, em função disso, foi debatida a idéia da criação de um Fundo Mundial para a Educação. Depois da II Guerra Mundial o mun-do se recuperou com o Plano Marshall para financiar a retomada da indústria na Europa, destruída pelo conflito bélico. A crise atual exige um Plano para a educação mundial: a mobilização de parte da riqueza do mundo para financiar a Educação de Base e a Inovação no mun-do inteiro. Um imposto de 19% sobre o comércio de armas, ou 0,5% sobre a renda mundial, ou 0,0005% sobre as transações financeiras cambiais, seria suficiente para revolucionar a educação no mundo. Esses recursos constituiriam um Fundo, administrado por instituições como Banco Mundial, UNESCO ou outras. Os recursos seriam usados para equipar escolas, financiar a formação de professores e progra-mas como a Bolsa Escola que foi bem recebida durante o evento. Seria um Plano WISE.

Mas isso tem uma condição preliminar, a consciência dos governos. De acordo com as palavras do Presidente da WISE, Abdulla Bin Ali-Thani:

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“Os dirigentes do mundo precisam descobrir o valor da educação, e não apenas o seu custo.”

Além dos debates, durante o evento foi entregue, pela primeira vez, o Prêmio Wise: um Nobel da Educação. O vencedor foi o Sr. Fazle Hasan Abed, de Bangladesh, pelo trabalho de vários anos montando escolas “públicas” com recursos privados.

Com discussões globais e locais, a WISE é hoje o maior evento mundial sobre educação e certamente seu impacto será crescentemente impor-tante no mundo.

A revolução do lápisRevista Profissão Mestre - outubro de 2007

O Brasil precisa de uma revolução. Não pode continuar fazendo ajus-tes, como fizemos na segunda metade do século XIX, reduzindo o sofri-mento dos escravos, mas sem fazer a Abolição. No século XX, fizemos um desenvolvimento econômico com base no protecionismo, financei-ra e tecnologicamente dependente. Avançamos sem mudar. Como se o Brasil tivesse horror às mudanças de rumo, às revoluções.

Chegamos ao século XXI presos entre em dois muros: da desigualdade e do atraso. Por mais que a economia cresça, que portos e estradas se-jam construídos, o Brasil não vai saltar este dois muros: continuaremos em uma sociedade brutalmente desigual, violenta; e um país atrasado em relação aos países desenvolvidos do mundo.

A história econômica mostra que a economia, por si, não constrói uma sociedade igualitária e desenvolvida. E a história mostra que já não é tempo de uma revolução que subverta a estrutura da economia. Serão necessários muitos anos para que seja formulada uma alternativa ra-dical de mudança social. Entretanto, é possível derrubar os dois muros que nos prendem com uma revolução na educação. Não com peque-nos ajustes, como o Fundeb, mas com uma revolução que exige dez ações do governo federal:

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1. Concentrar o trabalho do MEC na educação básica – pré--escola, fundamental e média – transferindo o Ensino Superior para o Ministério da Ciência e Tecnologia; e criar uma Agência Federal de Proteção da Criança. Assim, a União se compromete com a educação básica desde a primeira infância.

2. Garantir vaga na escola mais próxima de sua casa, para cada criança, no dia em que completar 4 anos; e determinar a obri-gatoriedade do ensino médio.

3. Definir três pisos nacionais para a educação: um piso de sa-lários, vinculado à formação e dedicação do professor, com a aprovação de um plano de cargos e salários dos professores; um padrão mínimo de equipamentos e instalações, com um “habite--se educacional” para autorizar o funcionamento das escolas; um conteúdo mínimo de aprendizado de cada criança, em cada disciplina, em cada série.

4. Aprovar uma Lei de Diretrizes Educacionais, nos moldes da LDO, com metas a serem cumpridas em cada cidade e estado, tais como implantação do horário integral em todas as escolas, erradicação do analfabetismo.

5. Aprovar uma Lei de Responsabilidade Educacional, nos moldes da Lei de Responsabilidade Fiscal, para punir com inelegibilidade o dirigente executivo que descumpra as metas estabelecidas.

6. Retomar os programas da Secretaria para a Erradicação do Analfabetismo do MEC, definindo o prazo de 4 anos para erradi-car o analfabetismo de adultos.

7. Reformar a Bolsa-Família, devolvendo-lhe o conceito de Bolsa--Escola, com vinculação educacional e administrativa ao MEC.

8. Refundar o ensino superior, definindo metas de curto e médio prazo, combinando a criação de conhecimento com as necessi-dades do País.

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9. Criar um ambiente que desperte a prioridade à educação em todas as camadas da população, sob a liderança do presidente.

10. Assegurar recursos no orçamento para complementar os in-vestimentos municipais e estaduais, para salário e formação de professores, reforma e equipamento de escolas.

Com essas ações, o Brasil dará início a uma revolução. Usando lápis no lugar do fuzil e escolas no lugar de trincheiras. A revolução do lápis é possível, é urgente. A educação é o único caminho para derrubar o muro da desigualdade, dando oportunidades iguais a todos, e para derrubar o muro do atraso, construindo o capital do conhecimento.

Desmoralização do BemRevista Profissão Mestre – novembro de 2007

Pior do que o mal é a desmoralização do bem. Este deve ser o maior desafio do demônio: fazer o mal parecer o bem. Criar condições para justificar a maldade com argumentos morais. O Brasil tem sido um campo favorável ao desenvolvimento desses sonhos diabólicos: como um campo de treinamento para a metamorfose do caráter do bem em mal sem que se perca sua aparência de bondade.

Essa metamorfose diabólica se observa em diversas faces das políticas brasileiras. Afinal, mais do que em qualquer outro país, fomos nós que justificamos a escravidão como um instrumento racional do pro-gresso. Foi aqui que travestimos a monarquia em república sem nada mudar além do fim da sucessão dinástica, conservando a escolha dos presidentes-príncipes apenas entre os filhos da nobreza. A nobreza disfarçada de cidadania, apenas para servir aos desígnios diabólicos que transformam as aparências do mal em aparências do bem.

Conseguimos inclusive escolher um presidente vindo do povo, mas o vestimos com os trajes nobiliárquicos em suas ações, mesmo com a aparência de povo.

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Ao longo de todo o século da República, sob a aparência bondosa do progresso e do desenvolvimento, foram cometidas as maldades da concentração da renda, da inflação e da correção monetária – para criar mercado para produtos de luxo, construir palacetes de ricos, com a promessa de geração de emprego e de que um dia todos teriam tudo. Foram criadas pequenas e grandes mordomias, proteções, privi-légios para poucos, travestidos de benefícios para todos e para o País.

Mais grave são as maldades apresentadas como bondades na educa-ção.

Um exemplo, é a idéia de que, em nome da qualidade, deve-se impe-dir o aumento de vagas nas universidades, seja em cursos presenciais ou a distância. Ou a idéia de que é preciso aumentar o número de vagas nas universidades, em vez de aumentar o número de jovens concluindo o ensino médio. Ou a maldade do abandono da educação disfarçado de promoção automática, apresentando como progresso o que é desprezo.

Ao lado disso, adquire dimensão extraordinária, nesse teatro diabóli-co, a transformação de um programa educacional que deveria casar renda e escola, com o nome de Bolsa-Escola, com um programa que casa renda e assistência, com o nome de Bolsa-Família. A bondade da emancipação que a bolsa e a escola promoveriam é apresentada como maldade, por exigir freqüência às aulas dos filhos dos pobres, e em seu lugar aparece como bondade a garantia de uma renda que os condena à servidão, travestida de bondade.

Mesmo entre os professores, há indicações desse travesti diabólico, quando os sindicatos fazem longas greves em nome da bondosa me-lhoria de condições de trabalho, quando na verdade o resultado é a maldade da contínua desmoralização da escola, anunciada há anos e agora comprovada, especialmente no caso das universidades públicas.

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O sentido da perguntaRevista Profissão Mestre - agosto de 2007

Em Joaçaba (SC), uma jornalista pôs um gravador na minha frente e perguntou: “O que você diria ao pai de um jovem de 16 anos que diz ter decidido ser professor?” A pergunta se justifica plenamente. Hoje, raros pais ficam felizes com a opção de um filho pelo magistério. Res-pondi: “Sinto como se o rapaz estivesse se alistando no Exército em tempos de guerra. O pai tem todo o direito de se assustar com o futuro do filho, mas tem motivos para se orgulhar do seu patriotismo”.

Há um mês, em Brasília uma professora da rede pública me disse que o pai deixou de falar com ela, quando ouviu sua opção pelo magisté-rio. No Brasil, escolher o magistério é um gesto extremo, como alistar--se para ir à guerra.

É triste, mas a carreira de professor não oferece um futuro promissor. O jovem que escolhe essa carreira provavelmente terá um salário bai-xo, trabalhará em escolas fisicamente degradadas, não contará com modernos equipamentos, enfrentará turmas desmotivadas e estará sujeito a atos de violência. Entretanto, são esses os profissionais que enfrentarão a guerra da construção do futuro do Brasil. São soldados do futuro, são patriotas.

A razão mais óbvia está nas péssimas condições de trabalho, inclusive salariais. Por trás, há outras mais profundas. Quando um jovem decide ser médico ou engenheiro, o pai vê três vantagens: um futuro promis-sor, uma boa remuneração e o orgulho de filho que ajuda a construir o País. É um soldado do futuro e bem pago. Na opção pelo magistério, o pai não tem o sentimento de construção do futuro, do respeito social pelo filho, e sabe dos baixos salários que ele provavelmente terá.

Mais do que o salário, o que causa frustração nos pais é a falta de re-conhecimento, como se esta fosse uma profissão menor. Mas a falta de reconhecimento decorre principalmente do baixo salário. É um círculo vicioso: não é uma carreira de sucesso porque os salários são baixos, e não há reconhecimento. O professor se sente diminuído e mais di-minuído fica.

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Os servidores do Banco Central fizeram uma greve, no mesmo perío-do que os professores em vários estados. O aumento pleiteado pelos funcionários do Banco equivalia a quase duas vezes o salário mensal dos professores. A greve do Banco Central durou horas, mas nas esco-las dura semanas e meses. Isso acontece porque não se percebe que o futuro econômico nacional está no capital-conhecimento, e que a quebra da desigualdade social só virá com o acesso de todos a uma escola de qualidade.

Quando a falha de infraestrutura aérea ficou evidente, o governo deci-diu construir novas pistas, novos aeroportos, trens para levar os passa-geiros. Bilhões foram rapidamente prometidos. Isso porque os aviões precisam decolar. Mas não há recursos para fazer o País decolar com a construção dos aeroportos do futuro: as escolas.

A maior dificuldade para tirar o Brasil do impasse em que vivemos é convencer a opinião pública de que a escola é importante e os profes-sores são os construtores do futuro.

Quando isso acontecer, no momento em que nascer uma criança, seu pai vai colocá-la nos braços e dirá: “Quando crescer, vai ser profes-sor”. E pensará: “vai ter uma bela carreira, um bom futuro e ajudará o Brasil a vencer a guerra contra a pobreza, o atraso, a desigualdade”. Nesse dia, a pergunta feita na semana passada perderá o sentido.

Redefinindo ProfissõesRevista Profissão Mestre – abril de 2011

Faz pouco, em um restaurante na cidade de Maragoji, dois jovens se-nhores europeus me disseram que tinham pensado em investir em Alagoas, mas haviam desistido. Não tinham encontrado mão de obra qualificada.

Eram criadores de cavalos, queriam montar um haras, com cavalos no valor de dois a três milhões de reais. Por isso, os tratadores teriam de ler e entender a bula dos remédios, de referência em inglês, porque são importados. Além disso, o haras seria administrado de Lisboa, com

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acompanhamento em tempo real, via internet, e os trabalhadores de-veriam estar habilitados para usar os programas. Eles precisariam de poucos trabalhadores braçais, os demais teriam de ser qualificados. Quando a profissão de cuidar de cavalos exige tanta qualificação, é forçoso perceber que as profissões precisam ser redefinidas.

Quando vou ao cardiologista, sinto-me como um carro em uma oficina moderna. O doutor me faz passar por equipamentos físicos e exames químicos, depois dá o diagnóstico e prescreve os remédios. É difícil imaginar que aquele senhor, que não toca e faz poucas perguntas seja um médico no sentido antigo.

Um dos desafios brasileiros para a Copa do Mundo será a falta de motoristas que falem idiomas estrangeiros. Mas além do momento pré-Copa ou pré-Olimpíadas, a globalização vai exigir motoristas que saibam vários idiomas, e usem GPS. Está em extinção o motorista de táxi cuja principal qualificação é conhecer todas as ruas de sua cidade.

Até recentemente, o professor era alguém que tinha um conhecimento, que transmitia usando quadro e giz. Mas com a evolução tecnológica que estamos vivendo, o professor precisa mudar, e ser um profissional que possa traduzir seu conhecimento para uma linguagem virtual de computação. Além disso, precisa colocar sua aula na rede, para que o aluno volte a assisti-la quantas vezes desejar e onde estiver. Pode che-gar ao ponto de dar aula sem um aluno à frente e milhares assistindo. É provável até que o professor do futuro seja um profissional composto de três, o que tem o conhecimento da disciplina, o que aproveita todos os recursos do computador e o que depois coloca a aula na rede.

Ser professor é uma profissão em redefinição. Cada vez mais, ele pre-cisará obter conhecimento na hora, usar as lousas inteligentes. O pro-fessor será uma antena que capta conhecimentos além daqueles de que já dispõe, e os coloca no ar para que todos tenham acesso. O pe-dagogo também é um profissional em mutação. Desde os primórdios da educação, o pedagogo era o especialista na técnica de transmitir o conhecimento. Muitas filosofias, ideologias, técnicas foram surgindo, sem substituir o básico: como transmitir conhecimento. Mesmo aque-les que usam as chamadas Novas Escolas, que integram o aluno como parte do processo, fazem parte da mesma família da profissão. O que está surgindo agora na pedagogia é a necessidade de usar os novos

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conhecimentos da neurobiologia, do funcionamento do cérebro. Até aqui, pedagogo era um profissional social, agora ele vai ter de avançar para levar em conta as chamadas “hard sciences” do processo cogniti-vo. Isso vai trazer grandes desafios éticos.

As profissões estão em processo rápido de redefinição. Quem não en-tender isso, ficará com o conhecimento obsoleto, muito antes de se aposentar. Por isso, a educação precisa ser contínua. Não deve mais existir ex-aluno. Cada profissional será aluno até o final de sua vida. Ex-aluno só pode ser título na lápide do túmulo.

Falta QuererProfissão Mestre – setembro de 2007

A Câmara dos Deputados realizou um oportuno debate intitulado: “Por que a educação deu certo em outros países e não deu certo no Bra-sil?”. A resposta exige apenas três palavras: “Porque eles quiseram”. A pergunta então é: “Por que não quisemos?”.

Pelas seguintes razões: a primeira é cultural. Não somos um povo com visão e sentimento de que educação é um valor fundamental. Para nós, educação é, no máximo, um serviço público, como água, esgoto; com valor inferior aos investimentos na infra-estrutura como energia, transporte, estrada, portos, aeroportos, bancos, e ao consumo de bens de consumo. Nenhuma família brasileira compraria uma televisão em uma loja parecida com a escola de seus filhos. Faz parte da cultura brasileira ver a educação como um capítulo secundário ao propósito de renda, patrimônio, bem estar, soberania, justiça, democracia.

No Brasil, o padrão de riqueza de uma pessoa é sua renda, o ano e a marca de seu carro, o tamanho de sua casa, não o seu nível educacio-nal, sua formação intelectual. O padrão de beleza é visto pelo físico; um jovem não é tido como atraente por seus conhecimentos, por suas notas na escola. Mesmo aqueles que se preocupam com a educação dos filhos olham menos o conhecimento que terão do que as vanta-gens salariais que conseguirão com seus conhecimentos. Por isso, no Brasil, o interesse maior é o diploma, e não o conhecimento.

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A segunda razão é política. Somos um povo dividido entre elite e po-vão. E historicamente a vontade política é orientada para atender aos desejos da minoria privilegiada, não às necessidades das massas ex-cluídas. A exclusão gera a aceitação da exclusão, como se em vez de classes sociais, tivéssemos castas sociais. No Brasil, os pobres vêem as boas escolas como um direito apenas dos filhos dos ricos, e os ricos acham que basta educar seus filhos. Os primeiros acham que não é possível uma boa escola para todos, os outros acham que não é preciso. Depois de séculos, a população deseducada não dá valor à educação e a má escola de hoje é vista como boa, porque os pais nada tiveram, agora seus filhos têm onde ficar e comer com a impres-são que estudam. Isso vale tanto para os produtos da economia, que atendem ao mercado formado pela renda dos ricos; como para os serviços sociais: moradia, água, esgoto, transporte, cultura e também educação. Por isso, os aeroportos, por exemplo, são federais, mas as rodoviárias, municipais ou estaduais; as universidades, as escolas téc-nicas são federais, mas as escolas básicas, municipais ou estaduais. Quando os aeroportos entram em crise, o ministro é substituído, surge dinheiro para novas pistas, trens para levar os passageiros da cidade a novos aeroportos. Mas a tragédia educacional das greves se arrasta por meses sem qualquer ação da parte dos governos, especialmente o federal.

Terceira, abandono. Na educação, décadas de abandono fizeram com que o abandono gerasse um descaso ainda maior. O abandono pro-vocou greves, as greves provocam mais abandono; o mesmo se passa com os baixos salários, e a perda de interesse dos professores, com as más condições dos prédios, com o roubo de equipamentos; com a violência.

Por isso é tão difícil fazer a revolução educacional no Brasil. Não é porque não sabemos como fazer, é porque não nos convencemos de que é preciso fazer.

A saída é tornar a educação uma questão nacional, fazer da escola uma responsabilidade federal. Decidir que as escolas tenham a mes-ma qualidade, independentemente da família em que a criança nas-ceu e da cidade onde vive. O desafio é convencer o povo de que isso é possível e preciso.

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Só mudando a cabeça do Brasil vamos educar as cabeças de nossas crianças, com a qualidade e a igualdade de que o Brasil precisa.

Dia da ConstruçãoRevista Profissão Mestre – outubro de 2009

O Brasil só será o país que queremos no dia em que, ao nascer uma criança, seu pai a tome nos braços e diga: “quando crescer, será pro-fessor”. E não será o país que queremos enquanto as pessoas acha-rem graça dessa frase, como se ela fosse piada, ou pior, como se essa profissão não merecesse ser sonhada por um pai para seu filho. Mas se a frase é uma piada, não é piada o fato de o Brasil não ter futuro enquanto assim pensarmos.Deveríamos mudar o título de professor para pedreiro do Brasil, en-genheiro do futuro. Ao limitarmos a profissão à educação, desvalori-zamos a real dimensão do seu papel. Vinculamos os professores ao mundo das letras, dos números, das ideias, sem percebermos que por trás dessa subjetividade está a objetividade de um país sendo constru-ído. Ou não.Os engenheiros e operários constroem coisas em pedra, mas os pro-fessores fazem os operários, os engenheiros e todos aqueles que cons-troem o Brasil, pelo ofício de cada um e pela cidadania que vem da educação. Mesmo assim as pessoas riem da ideia do pai que sonha em ter um filho professor. O Brasil não trata os professores como os construtores do seu futuro. Nenhum profissional com a mesma formação recebe salários tão bai-xos, nem é tão pouco valorizado e respeitado. O dia da homenagem a 2,5 milhões de professores do ensino básico é tratado como um feria-do a que eles têm direito, nada mais.Primeiro, porque o Brasil tem uma preferência pelo produto material sobre o produto cultural. O nome “brasileiro” quer dizer “aquele que faz pau-brasil”, diferente dos sufixos usados para as demais naciona-lidades, que terminam em “ês” ou “ino”. E o nome é professor, não “ensineiro”, como pedreiro, engenheiro. Segundo, por causa do des-prezo histórico da elite por seu povo: quando a educação pública era para poucos, os filhos das elites, o professor era valorizado; quando a matrícula se espalhou para o povo, o professor foi abandonado. Ter-

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ceiro, após terem se endividado tanto para construir indústria, energia, transporte, os governos se dizerem impossibilitados de valorizarem seus professores, pagando-lhe salários dignos. Por último, depois de décadas de menosprezo, os professores parecem ter desistido, perdido o entusiasmo, de certa forma abandonado a dedicação, justificando em contrapartida os baixos salários e a pouca valorização.Tudo isso poderia mudar, como se tentou no começo do governo Lula, com um programa de Certificação Federal do professor. O professor deixaria de ser preocupação apenas municipal e estadual, e se tor-naria preocupação federal. Seria instituído um piso salarial nacional, pago com recursos federais, e um piso de conhecimento nacional, ava-liado por concurso federal. Mas o Brasil tem tão pouca sensibilidade para o assunto que a primeira pergunta que se faz é quanto custaria e de onde viria o dinheiro, algo que não se pergunta quando os fins são outros. O mais surpreendente é que o custo seria pequeno, e muitas vezes menor do que o custo de não fazê-lo.Porém, para conseguirmos essas mudanças, seria preciso que os go-vernantes do futuro - as crianças que acabam de nascer - já nascessem no futuro que desejamos. Para construir o futuro de uma população educada seria preciso que a população do presente já fosse educada. Um nó que o Brasil não consegue resolver. Talvez a saída seja substituir o dia do professor, no país que não lhe dá valor, pelo dia da construção do Brasil futuro, revelando que é o professor quem faz a nação.

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