uma nova história políticas de habitação · à audiência sobre a importância de recor- dar o...
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Por uma nova históriadas políticas de habitaçãoComo encetar uma nova geração de políticas de habitação? Envolver todos os actores é imprescindível, mas também o
é ter memória e assumir que as escolhas a fazer não serão consensuais, a começar pelo papel do Estado e do mercado.
ANA CATARINA FERREIRA *
A história das políticas de habi-
tação em Portugal tem privile-
giado a contextualização socio-
política da acção governamental sobre o
sector. Esta abordagem histórica tem-se
revelado de enorme importância para a
compreensão da emergência e desenvol-
vimento destas políticas, contudo, por si
só, insuficiente. Altamente focada na ac-
tuação do governo, a narrativa histórica
comum das políticas habitacionais por-
tuguesas faz, por vezes, supor o consenso
entre os vários actores que promovem, fi-
nanciam, constróem e gerem a habitação,
a passividade das populações e a lineari-
dade dos seus impactos territoriais. São
raras as histórias preocupadas em evi-
denciar as relações (muitas vezes tensas)entre as políticas e seus instrumentos e
a agência dos seus destinatários 11 ', rela-
ções que importa conhecer se queremosmelhorar a forma como fazemos políti-cas públicas. No primeiro debate do Fó-
rum da Habitação: Ausências Passadas,
Presenças Futuras, organizado no âmbito
do projecto de investigação exPERts' 2 ' e
destinado a analisar o passado e o futuro
das políticas de habitação em Portugal,cruzaram-se várias histórias que iremos
recordar.
No passado dia 8 de Janeiro, no Auditó-
rio Sedas Nunes do Instituto de Ciências
Sociais da Universidade de Lisboa, reu-niu-se um grupo de oradores composto
por investigadores com reconhecido tra-
balho no campo da habitação - Isabel
Guerra (DINAMIACET - lUL), Nuno Serra
(CES - Universidade de Coimbra), Isa-
bel Raposo (FA - UL), Maria João Freitas
(LNEC), Jorge Malheiros (IGOT - UL) e An-
tónio Brito Guterres (DINAMIACET - lUL)
-, uma activista - Rita Silva (Colectivo Ha-
bita) - e actuais e ex-decisores políticos
e administrativos - Ana Pinho (secretá-ria de Estado da Habitação), Paula Mar-
ques (vereadora da Habitação e Desenvol-
vimento Local de Lisboa), Helena Roseta
(deputada da Assembleia da República),Alexandra Gesta (presidente do IHRU) e
João Ferrão (ex-secretário de Estado do
Ordenamento do Território e das Cida-
des/investigador do ICS - UL). Outros po-líticos e técnicos do poder local, académi-
cos, activistas e agentes ligados à questãohabitacional foram também convidados a
participar nas discussões moderadas pormembros do projecto exPERts. Várias de-
zenas de pessoas marcaram presença no
evento que surge na sequência de um
conjunto de acontecimentos reveladores
da reemergência da habitação na agenda
política nacional - o anúncio da prepara-
ção de uma Lei de Bases da Habitação, em
Dezembro de 2016; a criação da Secreta-
ria de Estado da Habitação, em Julho de
2017; e a apresentação da Nova Geraçãode Políticas de Habitação' 3 ', em Outubro
do mesmo ano, e suas sucessivas discus-
sões públicas.A estrutura do Fórum reflectia a ne-
cessidade de, num primeiro momento,
aprendermos com o passado (O que foi?
Para quem foi?), para seguidamente de-
batermos o futuro (0 que será? Para e
com quem será?). Manhã e tarde divi-
diam os dois espaços temporais e, em
cada um deles, dois painéis separavam as
estratégias e instrumentos dos seus des-
tinatários. No entanto, as fronteiras reve-
laram-se ténues. Recordemos então as
principais ideias que resultaram de olhar
o passado e o futuro de diferentes pontosde vista, com a devida referência aos seus
autores' 4 '.
Histórias vistas de cima
Na análise do passado centrada nos ac-
tos do governo, Nuno Serra e Rita Silva
realçaram a ideia de que a habitação foi,
desde sempre, um sector marginalizadono processo de desenvolvimento do Es-
tado Social em Portugal - fraca provisãodirecta -, contudo, um sector-chave na
consolidação do sistema financeiro - forte
provisão indirecta através da beneficiação
do crédito para aquisição de casa própria.Neste contexto, a emergência de um ins-
trumento de política de habitação social
como o PER - Programa Especial de Rea-
lojamento - só encontra explicação, na vi-
são de Nuno Serra e Isabel Guerra, num
conjunto de acontecimentos sociopolíti-cos como o Encontro Nacional da Habita-
ção, a Presidência Aberta de Mário Soares
na AML ou a Expo'9B' s '. «O PER não nasce
de uma intencionalidade prévia» e a urgên-cia para a sua concretização muito deve ao
culminar da «exaltação da integração eu-
ropeia», referiu Nuno Serra. Em resposta
à audiência sobre a importância de recor-
dar o SAAL - Serviço de Apoio Ambulató-
rio Local -, e não só o PER, Isabel Guerra
reforçou a necessidade de questionarmoso porquê do retrocesso entre os dois pro-
gramas, alertando também para a respon-sabilidade dos técnicos. Mais tarde, clarifi-
cou a ideia de que o governo central, assim
como os locais, sempre estiveram «presosà indústria da construção civil», não sendo
as políticas «suficientemente ousadas»
para regular o sector.
No plano da regulação, a história pre-sente e futura assemelha-se à narração do
passado. Segundo Rita Silva, o actual go-verno não está a pôr em causa a liberali-
zação do mercado. Jorge Malheiros desa-
fiou o executivo a implementar medidas
mais corajosas para regulá-10, a par do
turismo, o que implica, na opinião da ve-readora Paula Marques, alterações legis-lativas - nomeadamente, a definição de
alojamento local e a imposição de quotas
que possam diminuir o número de aloja-mentos que não constituam um comple-mento ao rendimento das famílias -, bem
como políticas fiscais de incentivo ao ar-
rendamento de longa duração. Para além
da regulação e política fiscal, e segundo a
intervenção da deputada Helena Roseta,
a actuação do governo deve assentar emdois outros pilares: a promoção directa e
o financiamento. Deve-se ousar no esta-
belecimento de uma percentagem de ha-
bitação de custos controlados em novos
empreendimentos, reforçou Jorge Ma-
lheiros, e, em matéria de financiamento,ter atenção à agenda europeia, recomen-dou João Ferrão. No seu entender, em-
bora a habitação não seja uma política co-
munitária, o seu casamento com outras
agendas políticas, como a reabilitação e
eficiência energética ou o pilar da políticasocial europeia - a nova política de coe-
são -, deve ser equacionado.
Quanto aos destinatários do financia-
mento, como referiu a actual secretária
de Estado da Habitação, não deverão ser,
necessariamente, as famílias. Apesar de a
nova geração de políticas se centrar nas
pessoas, no acesso à habitação, para Ana
Pinho, tal não significa financiá-las direc-
tamente, contrariamente ao que pode-riam desejar algumas autarquias repre-sentadas na audiência. Significa, no âm-
bito do Primeiro Direito - programa quese destinará às famílias que sofrem de
graves carências habitacionais -, sinalizá-
-las, tarefa que «não pode ficar apenas nas
mãos das autarquias», alertou Rita Silva.
Na opinião de Marco Allegra - investiga-dor (ICS -UL), coordenador do projectoexPERts e co-coordenador do evento, jun-tamente com Roberto Falanga (ICS - UL)e Ana Rita Alves (CES - Universidade de
Coimbra) -, governo e administração cen-
tral devem exercer uma liderança efectiva
nas áreas de avaliação e monitorização, as
quais, segundo João Ferrão, deveriam ter
uma «componente representativa de acto-
res que estão no terreno».
Histórias vistas de baixo?
Foram escassas as abordagens centra-
das nas (re)acções dos habitantes face
às políticas seguidas pelos sucessivos go-vernos. Ainda assim, foi realçada por Rita
Silva e Isabel Raposo a história dos exclu-
ídos do recenseamento PER e as suas lu-
tas por um direito que a Constituição re-
conhece, mas que a legislação não prevê.António Brito Guterres contou-nos a his-
tória dos que habitam nos bairros sociais.
Evidenciando as representações positi-vas dos moradores sobre si próprios e o
seu potencial para gerar formas de gover-
nança, questionou, simultaneamente, as
representações negativas da opinião pú-blica e publicada e as tradicionais políti-cas correctivas de intervenção nestes con-
textos. Um bom exemplo de como a his-
tória vista de baixo «deve ser retirada do
gueto (ou da aldeia dos camponeses, das
ruas da classe trabalhadora, dos bairros
miseráveis ou dos altos edificios) e usada
para criticar, redefinir e consolidar a cor-
rente principal da história»^.
Dar a conhecer a capacidade de mobi-
lização dos moradores permite-nos re-
pensar o modo de transformação - suge-rida por Maria João Freitas, Ana Pinho e
Alexandra Gesta - do acesso à habitaçãoem algo mais do que a garantia do direito
a um tecto. Permite-nos transformá-lo na
garantia do direito à cidade a qual está si-
multaneamente dependente da capaci-dade de mobilidade espacial. Julga-se, as-
sim, que esta deveria igualmente ser per-cebida do ponto de vista dos moradores,
na medida em que «não pertence a toda a
gente deforma igual: ao lado das diferen-
ças ligadas à idade e à saúde, a capacidadede mobilidade está, com efeito, estreita-
mente ligada quer à capacidade financeirados indivíduos, quer, e talvez ainda mais, a
uma certa capacidade cultural que desen-
volve ou limita as exigências de um enrai-
zamento espacial concreto <; estável»^. A
história da mobilidade vista de baixo po-deria trazer-nos novas luzes à narrativa
mais comum dos efeitos negativos da se-
gregação socio-urbanística.
A visão do meio e osmúltiplos pontos de vista
Igualmente raras foram as interven-
ções dos políticos e técnico:; locais na au-
diência, as quais poderiam ter enrique-cido a análise do passado relativamente
à actuação das autarquias. A história cen-
trou-se no caso do PER e Isabel Guerra re-
velou a ausência de capacidade logística,
estratégica e de estabelecimento de par-cerias do poder local. Apoiada por Nuno
Serra, defendeu que cada autarquia deve-ria ter uma política de habitação concer-tada com o Estado e com as autarquias vi-
zinhas. Tal exige, no seu entender, capa-cidade de reflexão local e, consequente-mente, na visão de Nuno Serra, a capaci-
tação dos seus recursos humanos. Os Pla-
nos Locais de Habitação foram apontados
por Maria João Freitas como bons instru-
mentos para clarificar a visão que se pre-tende para o território e ultrapassar difi-
culdades da governação multinível, como
reforçou João Ferrão. De acordo com
Marco Allegra, pensar a habitação terri-
torialmente, reconhecendo e gerindo as
especificidades locais e cruzando com
outras políticas sectoriais como o plane-amento e a política de solos, implica esta-
belecer uma estrutura de governança' B '.
«Com quem devemos fazer políticas de
habitação?», questionou Marco Allegra.
Segundo Maria João Freitas, devemos «en-
volver todos», incluindo o mercado. Isa-
bel Raposo reforçou que «todos têm de ser
comprometidos», mas não devemos esque-cer que existem diferentes racionalidades,
capacidades e diferentes poderes envolvi-
dos. A capacidade de previsão dos com-
portamentos dos vários actores pode ser
decisiva na minimização dos seus efeitos
perversos, especialmente quando falamos
do mercado. Num cenário de forte investi-
mento estrangeiro no imobiliário e no tu-
rismo, como realçou Jorge Malheiros, se-
rão as futuras políticas de incentivo à re-
abilitação para arrendamento suficiente-mente vantajosas para captar o interesse
dos proprietários? Se, até hoje, os níveis
de provisão directa de habitação foram
tão baixos que dificilmente se pode falar
numa capacidade do Estado de regular o
custo da habitação, como apontou Nuno
Serra, conseguiremos fazê-lo no futuro
maioritariamente com habitação de apoio
público (financiamento a proprietários)?0 que nos diz a história sobre o exercício
do direito de preferência da administraçãoe do seu poder de expropriação em rela-
ção com a dinâmica do mercado?
Para que possamos aprender com o
passado das políticas habitacionais e evi-
tar a repetição de erros cometidos, ne-
cessitamos de repensar os modelos de
interpretação que adoptamos. Como re-
feriu João Ferrão, para que o sucesso das
políticas deixe de depender da «conver-
gência excepcionai» entre protagonistas e
contexto sociopolítico, devemos acumu-lar «memória institucional». Não devemos
também centrar a nossa memória no graude convergência entre as intenções políti-cas e as práticas dos seus vários destinatá-rios? «Não existem fenómenos fundamen-tais. Não há mais que relações recíprocas
e desfasamentos constantes»^. Necessita-
mos de uma nova história para uma nova
geração de políticas de habitação. »* Assistente de investigação do Centro de
Investigação e Estudos de Sociologia do Instituto
Universitário de Lisboa (CIES-lUL) no âmbito do
projecto exPERts. Doutoranda em Estudos Urbanos
pelo ISCTE-lUL/FCSH-UNL
[1] No plano das relações entre políticas e a agência das populações, ver o trabalho de Eduardo Ascen-são, nomeadamente «História e teimosia na cidade informal», le Monde diplomatique - edição portu-guesa, Agosto de 2012.[21 Ver https://expertsproject.org/about.[3] Ver Governo de Portugal, Para Uma Nova Geração de Políticas de Habitação - Sentido estratégico,objetivos e instrumentos de atuação, Outubro de 201 7, www.portugal.gov.pt._[4] Este artigo tem por base apontamentos pessoais das intervenções no Fórum da Habitação. Agradeçoa Marco Allegra, Ana Rita Alves e Roberto Falanga a partilha das suas notas sobre as apresentações dos
oradores, as quais ajudaram a consolidar a reflexão que aqui se apresenta. Agradeço à Ana Estevens,Marco Allegra, Rita Cachado e Roberto Falanga as notas de revisão.
[5] Sobre a emergência do PER recomenda-se o trabalho de Rita Cachado. Ver, por exemplo, «O ProgramaEspecial de Realojamento. Ambiente histórico, político e social», Análise Social, 206 (XLVIII), pp. 1 35-1 52.
[6] Ver Jim Sharpe, «A história vista de baixo», em Peter Burke (org.), A Escrita da História - Novas Pers-
pectivas, Editora Unesp, São Paulo, 1992 [1991], pp. 39-62.[7] Ver Jean Rémy e Liliane Voyé, A cidade: rumo a uma nova definição?, Edições Afrontamento, Porto,1992, pp. 74-75.[8] Ver Marco Allegra et ai, Um novo PER? Realojamento e políticas de habitação em Portugal, Policy Brief
Observa, Observatório de Ambiente e Sociedade, ICS -Universidade de Lisboa, Novembro de 2017, http://www.ics.ul.pt.[9] Ver Michel Foucault, «Espaço, saber e poder», Revista Punkto (online), 2015 [1982], www.revista-punkto.com.