(uma pausa) - ntese AI... · PDF fileQuando alguém canta, eu não posso...

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é que havemos de fallar?... . W melhor cantar, não sei porquê... O canto, quando a gente canta de noite, é uma pessoa alegre e sem medo que entra de repente no quarto e o aquece a consolar nos.. . Eu podia cantar-vos uma canção que cantávamos em casa de meu passado. Porque é que não quereis que vol a cante? Terceira. — Não vale a pena, minha irmã... Quando alguém canta, eu não posso estar commigo. Tenho que não poder recordar-me. E depois todo o meu passado torna-se outro e eu choro uma vida morta que trago commigo e que não vivi nunca. E' sempre tarde do mais para cantar, assim como é sempre tarde de mais para não cantar. (uma pausa) Primeira. — Prevê será dia... Guardemos silencio... A vida assim o quer... Ao pé da minha casa natal havia uma lago. Eu ia lá e assentava-me á beira d'elle, sobre um tronco de arvore que cahira quasi dentro de agua. .. Sentava-me na ponta e molhava na agua os pés, esticando para baixo os dedos. Depois olhava excessivamente para as pontas dos pés, mas não era para as ver.-.. Não sei porquê, mas parece-me d'este lago que elle nunca existiu. . . Lembrar-me. d'elle é como não me poder lembrar de nada. . . Quem sabe porque é que eu digo isto e se fui eu que vivi o que recordo?. Segunda. — A' beira-mar somos tristes quando sonhamos... Não podemos ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremol-o sempre ter sido no passado... Quando a onda se espalha e a espuma chia, parece que ha mil vozes mínimas a fallar. A espuma só parece ser fresca a quem a julga uma. . . Tudo é muito e nós não sabemos nada. . . Quereis que vos conte o que eu sonhava á beira-mar? Primeira. — Podeis contal-o, minha irmã, mas nada em nós tem necessidade de que nol-o conteis... Se é bello, tenho já pena de vir a tel-o ouvido. E se não é bello, esperae..., contae-o só depois de o alterardes... Segunda. — Vou dizer-vol-o. Não é inteiramente falso, porque sem duvida nada é inteiramente falso. Deve ter sido assim... Um dia que eu dei por mim recostada no cimo frio de um rochedo, e que eu tinha esquecido que tinha pae e mãe e que houvera em mim infância e outros dias—nesse dia vi ao longe, como uma cousa que eu só pensasse em ver, a passagem vaga de uma veia... Depois ella cessou... Quando reparei para mim, vi que já tinha esse meu sonho... Não sei onde elle teve principio... E nunca tornei a ver outra vella. . . Nenhuma das velas dos navios que sahem aqui de um porto se parece com aquella, mesmo quando é lua e os navios passam longe devagar. . . Primeira. — Vejo pela janella um navio ao longe. E' talvez aquelle que vistes.. . Segunda. — Não, minha irmã; esse que vedes busca sem duvida um porto qualquer... Não podia ser que aquelle que eu vi buscasse qualquer porto. . . Primeira. — Porque é que me respondestes ?.. . Pode ser. . . Eu não vi navio nenhum pela janella. . . Desejava ver um e fallei-vos d'elle para não ter pena. . . Contae-nos agora o que foi que sonhastes á beira-mar... Segunda. — Sonhava que um marinheiro se houvesse perdido numa ilha longinqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam por ellas... Não vi se alguma vez pousavam... Desde que, naufragado, se salvara, o marinheiro vivia alli... Como elle não tinha meio de voltar á pátria, e cada vez que se lembrava d'ella sofrYia, poz-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido; poz-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de paiz, com outras espécies de paysagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas e de se bebruçarem das janellas... Cada hora elle construía em sonho esta falsa pátria, e. elle nunca deixava de sonhar, de dia á sombra curta das grandes palmeiras, que; se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente ; de noite, estendido na praia, de costas, e não reparando nas estrellas. Primeira. — Não ter havido uma arvore que mosqueasse sobre as minhas mãos esten- didas/ a sombra de um sonho como esse!. Terceira. — Deixae-a fallar... Não a interrompaes.. . Ella conhece palavras que as sereias lhe ensinaram.. . Adormeço para a poder escutar. . . Dizei, minha irmã, dizei. . . Meu coração doe-me de não ter sido vós quando sonháveis á beira-mar. . . Segunda. — Durante annos e annos, dia a dia o marinheiro erguia num sonho contí-

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é que havemos de f a l l a r ? . . . . W melhor can ta r , não sei p o r q u ê . . . O can to , q u a n d o a gen t e can ta de noi te , é u m a pessoa alegre e sem medo que e n t r a de r epen te no qua r to e o aquece a consolar n o s . . . E u podia can ta r -vos u m a canção que can távamos em casa de meu p a s s a d o . Porque é que não quereis que vol a c a n t e ?

T e r c e i r a . — Não vale a pena , minha i r m ã . . . Q u a n d o a lguém canta , eu não posso es t a r commigo. T e n h o que não pode r recordar -me. E depois todo o meu passado to rna -se ou t ro e eu choro u m a vida m o r t a que t r ago commigo e que não vivi nunca . E ' sempre t a r d e do mais p a r a can ta r , assim como é sempre t a r d e de mais p a r a não c a n t a r .

(uma pausa)

P r i m e i r a . — Prevê será d i a . . . G u a r d e m o s s i l e n c i o . . . A v ida ass im o q u e r . . . Ao pé da minha casa na ta l hav ia u m a lago . E u ia lá e assen tava-me á be i ra d'elle, sobre u m t ronco de a rvore que cahi ra quas i den t ro de a g u a . . . Sen tava -me na p o n t a e molhava na agua os pés , e s t i cando p a r a ba ixo os dedos . Depois o lhava excess ivamen te pa ra as p o n t a s dos pés , mas n ã o era pa ra as v e r . - . . Não sei po rquê , mas parece-me d 'es te lago que elle n u n c a ex is t iu . . . Lembrar-me. d'elle é como não me poder l embra r de n a d a . . . Quem sabe p o r q u e é que eu digo isto e se fui eu que vivi o que r e c o r d o ? .

Segunda . — A' beira-mar somos t r i s t e s q u a n d o s o n h a m o s . . . Não podemos ser o que queremos ser, p o r q u e o que que remos ser queremol-o sempre ter sido n o p a s s a d o . . . Quando a onda se espa lha e a e spuma chia, parece que ha mil vozes mín imas a fallar. A e spuma só parece ser fresca a quem a j u l g a u m a . . . T u d o é mui to e nós não sabemos n a d a . . . Quereis que vos conte o que eu s o n h a v a á b e i r a - m a r ?

P r i m e i r a . — Podeis contal-o, m i n h a i rmã , mas n a d a em nós tem necess idade de que nol-o c o n t e i s . . . Se é bello, t enho j á pena de vir a tel-o ouv ido . E se não é bello, e s p e r a e . . . , contae-o só depois de o a l t e r a r d e s . . .

Segunda . — Vou dizer-vol-o. Não é i n t e i r amen te falso, p o r q u e sem duv ida n a d a é i n t e i r amen te falso. Deve te r sido a s s i m . . . U m dia que eu dei po r mim recos t ada n o cimo frio de u m rochedo , e que eu t inha esquecido que t i nha pae e m ã e e que h o u v e r a em mim infância e out ros d i a s — n e s s e dia vi ao longe, como u m a cousa que eu só pensa s se em ver, a pa s sagem vaga de uma v e i a . . . Depois ella c e s s o u . . . Quando repare i pa ra mim, vi que j á t inha esse meu s o n h o . . . Não sei onde elle teve p r i n c i p i o . . . E n u n c a torne i a ver o u t r a ve l l a . . . N e n h u m a das velas dos navios que sahem aqui de u m por to se pa rece com aquella , m e s m o quando é lua e os nav ios passam longe d e v a g a r . . .

Primeira . — Vejo pela j ane l l a um navio ao longe. E ' ta lvez aquelle que v i s t e s . . . Segunda . — Não , m inha i r m ã ; esse que vedes busca sem duvida u m por to q u a l q u e r . . .

N ã o pod i a ser que aquelle que eu vi buscasse qua lque r p o r t o . . . Primeira . — P o r q u e é que me r e spondes t e s ? . . . Pode se r . . . E u não vi nav io nenhum

pela j a n e l l a . . . Dese java ver um e fallei-vos d'elle p a r a não ter p e n a . . . Contae-nos agora o que foi que sonhas tes á b e i r a - m a r . . .

S e g u n d a . — S o n h a v a que um mar inhe i ro se houvesse perd ido n u m a ilha long inqua . Nessa i lha hav i a pa lmeiras h i r t a s , poucas , e aves v a g a s pa s savam por e l l a s . . . Não vi se a lguma vez p o u s a v a m . . . Desde que , nauf ragado , se sa lva ra , o mar inhei ro vivia a l l i . . . Como elle não t i nha meio de vo l t a r á pá t r i a , e cada vez que se l embrava d'ella sofrYia, poz-se a sonhar u m a pá t r i a que n u n c a t ivesse t i d o ; poz-se a fazer ter sido sua u m a o u t r a p á t r i a , u m a o u t r a espécie de paiz, com ou t r a s espécies de p a y s a g e n s , e ou t ra gen te , e ou t ro feitio de p a s s a r e m pelas ruas e de se bebruçarem das j a n e l l a s . . . Cada ho ra elle cons t ru ía em sonho es ta falsa pá t r i a , e. elle n u n c a de ixava de sonhar , de dia á sombra cur ta das g r a n d e s pa lme i ras , que; se r ecor t ava , o r lada de bicos , no chão a reen to e quen te ; de no i te , e s t end ido n a pra ia , de cos tas , e não r e p a r a n d o n a s estrel las .

Primeira . — N ã o t e r hav ido uma a rvore que mosqueasse sobre as minhas m ã o s es ten­didas/ a sombra de u m sonho como e s s e ! .

T e r c e i r a . — Deixae-a f a l l a r . . . Não a i n t e r r o m p a e s . . . El la conhece pa l av ras que as sereias lhe e n s i n a r a m . . . Adormeço p a r a a pode r e s c u t a r . . . Dizei , m i n h a i rmã , d ize i . . . Meu coração doe-me de não ter sido vós quando sonháveis á be i r a -mar . . .

Segunda . — D u r a n t e annos e annos , dia a dia o mar inhe i ro erguia n u m sonho cont í-